198 A VIDA A BORDO NA CARREIRA DA ÍNDIA (SÉCULO XVI)

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CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E CARTOGRAFIA ANTIGA SÉRIE SEPARATAS 198 A VIDA A BORDO NA CARREIRA DA ÍNDIA (SÉCULO XVI) POR FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES e INÁCIO GUERREIRO INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL LISBOA .1988

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CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E CARTOGRAFIA ANTIGA

SÉRIE SEPARATAS

198

A VIDA A BORDO NA CARREIRA DA ÍNDIA

( S É C U L O X V I )

POR

FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES e INÁCIO GUERREIRO

INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL

L I S B O A . 1 9 8 8

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Separata da

Revista da Universidade de Coimbra

Vol. XXXIV — Ano 1988 — pág. 185-225

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A VIDA A BORDONA CARREIRA DA ÍNDIA (SÉCULO XVI)

FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES

INÁCIO GUERREIRO

Se, como escreveu Georges Lefebvre, os grandes descobrimentos foramo «facto essencial» do Renascimento (1), isso é particularmente verdadeirose os quisermos ver como factor poderoso na aceleração do ritmo das viagense da produção da escrita. E também por isso, o homem do Renascimento(que não é evidentemente todo o homem das esferas cultas de Quatrocentose Quinhentos) foi obrigado a reequacionar muitas das verdades em que estri-bava a sua visão do Mundo. A necessidade premente de alargar o espaçoeconómico vital, que projectou os povos ibéricos para fora do seu habitatnatural (e na sua esteira os do noroeste europeu), a par do amplo leque demotivações que deram início à época dos descobrimentos, suscitou assimuma como que reacção em cadeia, cujas sequelas pouco deixariam de pé damundivivência medieval.

Um dos resultados mais espectaculares deste novo abrir de horizontesfoi a colocação em contacto directo de pólos civilizacionais cujo mútuoconhecimento se resumia, amiúde, à notícia difusa filtrada pelos numerosostestemunhos que os iam transmitindo. Da importância do facto se deramlogo conta quer os que o protagonizaram, quer a franja de leitores que delese foi apercebendo pelos relatos a que podia ir tendo acesso (2); e do século xvi

(1) «E qual foi por junto o facto essencial, segundo o nosso ponto de vista, destagrande e multissecular aventura a que chamam o Renascimento? É evidente que foramos grandes descobrimentos» (Georges Lefebvre, O nascimento da moderna historiografia,Lisboa, Sá da Costa, 1981, p. 53).

(2) A curiosidade pelos resultados dos descobrimentos portugueses levou à publi-cação noutros países de antologias de relatos de viagens. São bem conhecidas as colecçõesitalianas, e começamos agora a saber melhor o que se passou em países como a Alemanha(v. Marília Santos Lopes, «Os descobrimentos portugueses e os novos horizontes do sabernos discursos alemães dos séculos xvi e XVII», Revista do ICALP, n.os 7-8, 1987, pp. 28-40)ou a Checoslováquia (v. Josef Polisensky e Simona Binková, «As fontes para a história dosdescobrimentos portugueses na Checoslováquia», in A Abertura do Mundo. Estudos dehistória dos descobrimentos europeus em homenagem a Luís de Albuquerque, vol. II, Lisboa,Presença, 1987, pp. 183-189), e só para citar dois casos de entre as publicações recentes.

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em diante, por este e por outros motivos, a que não é alheio o recente apareci-mento no Ocidente da impressão com caracteres móveis, irá multiplicar-seo género que geralmente se crisma de «literatura de viagens», nas suas varia-das componentes (3). Era a ânsia pela novidade, pelo exótico e diferenteque justificava esta procura de informação, a par dos enormes interessescomerciais em jogo, da curiosidade científica pelos novos dados que assal-tavam continuamente os sistemas de saber estatuídos (na geografia, náutica,botânica, medicina, entre tantos outros domínios), da procura de terrenosférteis para a extensão dos credos religiosos.

No caso português, os séculos xv e xvi, e particularmente este último,decorrem sob o signo das grandes viagens marítimas: de exploração e reconhe-cimento do espaço atlântico, primeiro, de edificação e sustenção de um impé-rio cujo eixo central é o mar, depois.

A importância decisiva deste período na história de Portugal justificaque sempre tenha merecido uma atenção particular da historiografia nacional.Importância que temos de verificar a dois níveis distintos, ainda que sumaria-mente, pois, por aliciante que o tema pareça, não cabe aqui o seu trata-mento. Por um lado há que entender o enorme leque de consequênciasgerado por esta diáspora marítima, em toda a dimensão das suas múltiplasrepercussões: económicas, sociais, políticas, institucionais ou culturais;e decorrentemente a projecção que daí adveio para o que fora até então umaentidade em quase todas estas vertentes marginal no cômputo europeu--condição à qual não tardaria a voltar, de resto, depois de ultrapassar episó-dica e parcialmente esse estatuto. Por outro lado, foi sempre um dadoadquirido nas expressões dominantes da cultura portuguesa que o século xvifoi o século de ouro da nossa história. Fossem quais fossem os critérios quenortearam juízos desta natureza — quase sempre de pendor exageradamenteideológico —, certo é que o resultado prático redunda no mesmo: a centraçãodesta centúria como um dos objectos primaciais historiografia portuguesa,como se disse atrás (4)

Nesta matéria é já um clássico o estudo de António Alberto Banha de Andrade, MundosNovos do Mundo, 2 vols., Lisboa, JIU, 1972. Para a difusão dos conhecimentos náuticos,um dos maiores alvos da curiosidade europeia, a par da cartografia, é fundamental verLuís de Albuquerque, A projecção da náutica portuguesa quinhentista na Europa, Coim-bra, JIU-AECA, sep. LXV, 1972.

(3) A designação foi retomada com particular insistência por Joaquim Barradasde Carvalho, que ensaiou a sua teorização e sistematização em múltiplos trabalhos. Portodos, v. A Ia recherche de Ia specificité de Ia renaissance portugaise, 2 vols., Paris, FCG--CCP, 1983. É ainda imprescindível Hernâni Cidade, A literatura portuguesa e a expansãoultramarina, 2 vols., Coimbra, A. Amado, 1963-4, e deve-se a João Rocha Pinto a mais recentedas tentativas de compreensão global do género, em artigo do Dicionário de História dosDescobrimentos Portugueses, dir. de Luís de Albuquerque (em vias de publicação).

(4) Para uma ponderação da respectiva produção, v. ilustrativamente, JoaquimVeríssimo Serrão, A historiografia portuguesa. Doutrina e critica, 3 vols., Lisboa, Verbo,1972-4.

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Todavia, apesar da enorme extensão da bibliografia que lhe é dedicada,apresentam-se-nos ainda vastas zonas de sombra para que dele possamos terum conhecimento apreciável. A história da marinha tem concitado nume-rosos estudos, no amplo leque temático em que se desdobra, e se em certosdomínios específicos coleccionamos hoje perplexidades mais que aferimoscertezas ou boas hipóteses de trabalho — tal como sucede, por exemplo,no caso da construção naval —, isso deve-se sobretudo às próprias dificul-dades que as fontes de que dispomos nos reservam (5). Mas globalmente,e como é natural, tudo ou quase do que diz respeito às navegações foi entãoobjecto de comentário escrito, e é hoje matéria frequente de estudo, muitoem particular quando toca à Carreira da índia: a ligação anual de Lisboaa Goa, e vice-versa, espinha dorsal do comércio oriental e razão de ser, porisso, do império português do Oriente.

Não obstante, uma dessas zonas de sombra surge-nos justamente aqui:referimo-nos mais precisamente ao estudo da vida a bordo das embarcaçõesque durante cerca de meio ano cruzavam dois oceanos antes de chegaremao seu destino, sempre com sequelas visíveis de uma viagem cuja durezaassumia frequentemente dimensões inimagináveis senão para aqueles que aconheciam por experiência própria. Ou, como escrevia de Cochim emJaneiro de 1557 o padre D. Gonçalo da Silveira, «assi como a morte nãoa pinta senão quem morre, nem se pode ser pintada senão vendo quem estamorrendo, assi o trago que passão os que navegam de Portugal a índia, nãoo pode contar senão quem o passa nem o pode entender senão quem o vepassar» (6).

Não se pretende fazer aqui um catálogo bibliográfico ou um levanta-mento das fontes disponíveis para o estudo da Carreira da índia. Masconcordar-se-à que, de uma forma geral, e embora as lacunas ainda sejammuito marcadas aqui e além, sabemos algo da composição das armadas;

(5) Em relação ao exemplo citado, note-se que o mais antigo dos textos portuguesesde arquitectura naval é de c. 1570 (reportamo-nos à segunda parte da Ars Náutica do padreFernando Oliveira), e que os primeiros desenhos técnicos completos se encontram no Livrodas Traças de Carpintaria, de Manuel Fernandes (1616). Quer isto dizer portanto queestá longe de poder ser considerado rigoroso o conhecimento que temos do traçado de embar-cações portuguesas como a caravela, a nau ou o galeão, antes do último quartel do século xvi--princípios do século xvn. Sobre as fontes portuguesas para a arquitectura naval do períodov. João da Gama Pimentel Barata, O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-80a 1640, Coimbra, JIU-AECA, sep. XXXVIII, 1970; Francisco Contente Domingues, «Cons-trução naval, tratados de (Séculos XVI-XVII)», Dicionário Ilustrado de História de Portugal,coord. de José Costa Pereira, vol. I, Lisboa, Alfa, 1985, pp. 154-5 (e sobre o mesmo temao artigo no Dicionário cit. na nota 3); idem, Problemas e perspectivas da arqueologia navalportuguesa dos séculos XV-XVH, Lisboa, Academia de Marinha (no prelo).

(6) Documentação para a história das missões do padroado português do Oriente,índia [doravante Documentação], ed. de António da Silva Rêgo, vol. VI, Lisboa, AGU, 1951,p. 189. Tal como sucede frequentemente, esta carta é também publicada por José Wickina Documenta Indica [doravante Doc Ind], neste particular no vol. III, Roma, 1954, pp. 622 ss.

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da sua organização administrativa e económica; dos navios que as inte-gravam, quer quanto às suas características e tipos gerais, quer em relaçãoaos preparos para a viagem; das rotas e dos conhecimentos técnicos neces-sários para o bom sucesso da empresa (e este capítulo talvez ainda melhorque os restantes). Pouco, muito pouco mesmo, sobre a vida a bordo, oquotidiano das centenas de homens (e por vezes algumas mulheres) que deman-davam o Oriente, em naus e galeões superlotados, em condições deficientesde alojamento e higiene; mal alimentados e mal protegidos da doença e dofrio, por vezes resistindo com dificuldade à longa monotonia dos dias sempreiguais durante meses seguidos. Monotonia que amiudadamente se que-brava apenas para lhe ver suceder o acidente, a tempestade ou o ataque depiratas e corsários. Chegar à índia era sempre algo de incerto, pois aindaque a nau cumprisse a viagem até ao seu termo, quem podia sentir-se imuneàs doenças que por vezes dizimavam os viajantes? Embarcar, bem maisdo que já sucedia na vivência quotidiana do homem de Quinhentos, era umpasso directo para os braços da providência. Ela decidia depois dos des-tinos de cada um e de todos.

E afinal, na boca dos pilotos, responsáveis maiores pelo bom curso danavegação, não andava o adágio «as naaos de Portugal para a índia e daíndia para Portugal, Deos as leva e Deos as traz» (7)?

Tripulantes, soldados, quadros administrativos e militares, missionários,aventureiros, comerciantes e outra desvairada gente (podê-lo-ia dizer qual-quer cronista da época), todos se organizavam numa micro-sociedade coma sua especificidade própria, normas e regras de conduta válidas apenasnesse espaço de tempo que era o da viagem, para logo perderem a razãode ser, que o viajante retomava de imediato tão logo se repetisse a experiência.Coisa que era aliás frequente: afora uns poucos, movidos por razões parti-culares, quem ia para a índia ia para voltar.

Historiograficamente, o problema não tem sido pois devidamente consi-derado. É certo que dispomos de um excelente livro de Mário Martinssobre o teatro a bordo (8); de uma série consecutiva de opúsculos de Joséde Vasconcellos e Menezes a propósito de aspectos relativos à saúde e cuida-dos médicos, muito recentemente rematados por um volumoso trabalhode síntese (9); e de alguns estudos de incidência parcelar ou global, que nosdão apontamentos de grande interesse: é o caso dos que levam a assinatura

(7) Documentação, VI, p. 190.(8) Mário Martins, Teatro quinhentista das naus da índia, Lisboa, Ed. Brotéria, 1973.(9) Agradecemos ao Dr. José Vasconcellos e Menezes o ter-nos gentilmente facul-

tado o texto dactilografado da comunicação que apresentou na Academia de Marinha em20 de Maio de 1987: «Apoio sanitário na nossa marinha de outrora». A obra de síntesea que nos referimos tem por título Armadas Portuguesas. Apoio sanitário na época dosdescobrimentos, Lisboa, Academia de Marinha, 1987 [1988]. Foi lançada a público nomomento em que ultimávamos a revisão final do presente texto, razão pela qual não nosfoi dado utilizar este grande manancial informativo. As investigações exaustivas do Autor,porém, não infirmam o que deixamos dito a propósito.

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de Charles Boxer (10), Frédéric Mauro (11), António da Silva Rego (12),Artur Teodoro de Matos (13) ou A. J. R. Russell-Wood (14). Mas estamoslonge de ter algo parecido cora o que José Luiz Martinez fez para a Carreiradas índias espanhola no século xvi(15). De facto, exceptuando o ensaiode Russell-Wood e as monografias de Vasconcellos e Menezes, estas últimastematicamente circunscritas à especialidade do seu autor, todas as restantessão fruto de preocupações laterais em relação ao cerne dos trabalhos daquelesinvestigadores.

Fundamentalmente, cremos poder situar em dois níveis distintos asrazões que eventualmente justificam este estado de coisas.

Era primeiro lugar, a escassez e abundância de materiais informativosverificável a um tempo, é deveras desencorajante. Quer isto dizer que porum lado é muito restrito o número de fontes que se referem sistematicamenteaos diversos aspectos da vida a bordo, embora possamos encontrar obser-vações extremamente interessantes disseminadas por documentos os maisvariados: diários de bordo, livros de armação, relatos de viajantes estrangeiros,de naufrágios, cartas particulares e oficiais, inventários e orçamentos de arma-das, entre outros. No fundo, a pesquisa não pode prescindir de deitar mãoa quase toda a sorte de fontes informativas remanescentes, e isso contribuifortemente para desmotivar os mais persistentes. De entre todas, as cartasdos padres jesuítas que iam em missão à índia são auxiliares preciosos, porquede acordo com o hábito da Companhia, e era com frequência requeridoexpressamente pelos superiores, boa parte dos que chegavam a Goa (ouCochim) enviavam ao reino notícia do que fora a viagem. São estes mesmoos únicos relatos que propositadamente tratam apenas das vicissitudes entãovividas, quando não trazem alguns informes sobre os seus primeiros tempos

(10) Charles R. Boxer, «The Carreira da índia (ships, men, cargoes, voyages)», inO Centro de Estudos Históricos Ultramarinos e as comemorações henriquinas, Lisboa, CEHU,1961, pp. 33-82, entre os vários estudos que este grande especialista da expansão portuguesalhe dedicou.

(11) Frédéric Mauro, Le Portugal, le Brésil et l'Atlantique au XVIIe. siècle (1570--1670), cap. IV: «Les voyages», Paris, FCG-CCP, 1983, pp. 81-100 (l.a ed., Paris, 1960).

(12) António da Silva Rêgo, «Viagens portuguesas à índia em meados do século xvi»,Anais da Academia Portuguesa de História, II série, vol. V, 1954, pp. 75-142.

(13) Apesar de não se lhe dedicar especificamente, o estudo de Artur Teodoro deMatos «Subsídios para a história da Carreira da índia. Documentos da nau S. Pantaleão(1592)», Boletim do Arquivo Histórico Militar, 45.° vol., 1975, pp. 7-152, é de salientar pelaimportância e detalhe que confere às questões que aqui nos interessam. É aliás de consultaimprescindível para qualquer aspecto relativo à Carreira da índia.

(14) A. J. R. Russel-Wood tratou da organização social da vida a bordo num suges-tivo estudo: «Men under stress: the social environment of the Carreira da índia, 1550-1750»,in // Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, Lisboa, IICT-CEHCA, 1985,pp. 19-35, embora acusando uma excessiva dependência informativa para com Pyrard deLaval e Linschoten.

(15) José Luís Martinez, Pasajeros de índias. Viajes transatlânticos en el siglo XVI,Madrid, Alianza Ed., 1983.

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de actividade (16); não há porém que esquecer a filtragem que eles sofremaos olhos de quem encarava a ida para a índia como uma missão espiritual,além de naturalmente dizerem respeito apenas à segunda metade do século xvi.De facto, estas cartas têm ainda uma outra limitação informativa: uma vezque os inacianos não eram supostos de voltar do Oriente, referem-se quasesempre à viagem de ida; e por serem raros os que empreendiam a torna-viagem(«os que voltaram, foram enviados por motivos de negócios da Companhia,como os procuradores dos provinciais ou das Congregações provinciais oualguns poucos por motivos de saúde ou os demitidos da Companhia ou queo viriam a ser em Portugal») (17), raros são também os relatos que a eladizem respeito,

Em obras de maior vulto, de viajantes que rumaram ao Oriente, aparecempor vezes descrições circunstanciadas do que foram as peripécias passadasa bordo. Os mais conhecidos de todos escreveram na primeira metade doséculo xvn: referimo-nos a dois estrangeiros, François Pyrard de Laval eLinschoten, e ao padre português Jerónimo Lobo, fartamente utilizadoscomo pontos principais de referência. Todavia, se os seus relatos têm sobreos outros testemunhos a vantagem de uma maior pormenorização, isso nãosignifica que tal corresponda forçosamente a um rigor acrescentado.Aceitá-los sem a precaução adequada é no mínimo perigoso: o insuspeitoPyrard de Laval, por exemplo, que é no geral uma boa fonte infoimativa—• no rigor e na extensão da descrição que fez na sua Viagem — não hesitaem deixar expressa uma opinião sobre os marinheiros da Carreira que nãoencontra eco em mais nenhum relator (18); e dando-nos continuamente aideia de, não sendo homem do mar, ter um muito razoável conhecimentodo que observa, não hesita em dar as esperas e pedreiros como exemplo depequenas peças de artilharia que se encontravam colocados nas gáveas, oque obviamente era de todo em todo impossível (19).

A segunda ordem de factores que tentamos enunciar tem a ver com oque se pode considerar a banalidade do tema e o atraso epistemológico veri-ficável em certos capítulos do percurso da historiografia portuguesa.

Pela banalidade do tema entendemos a pouca repercussão que o trata-mento do mesmo traz (ou traria), quando comparado com objectos mais

(16) A importância destes documentos para um estudo desta natureza foi destacadapor José Wicki, «As relações de viagens dos Jesuítas na carreira das naus da índia de 1541a 1598», // Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, pp. 3-17.

(17) José Wicki, op. cit., p. 11.(18) Viagem de François Pyrard, de Laval, versão portuguesa de Joaquim Heliodoro

da Cunha Rivara e A. de Magalhães Basto, vol. II, Porto, Liv. Civilização, 1944, p. 142.(19) Idem, ibidem, p. 138. Os pedreiros eram bocas de fogo de grande calibre e

tubo curto, com c. de 13 quintais de peso, e as esperas um dos tipos de canhões, com tuboe calibre médios, e sensivelmente o dobro do peso dos pedreiros. O tiro do primeiro pro-cnrava o efeito de estilhaçamento, e o segundo era destinado a bater fortificações e navios.V. Nuno Varela Rubim, Artilharia histórica portuguesa fabricada em Portugal, s/l [Lisboa],Museu Militar, 1985.

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«nobres». Na realidade dos factos, e contrariamente ao que possam ser osdiscursos de intenção, é com toda a justeza que A. H. de Oliveira Marquesfala no «desdém que o historiador das classes sociais tributa ao historiadordas formas dos chapéus, se é que lhe concede, sequer, a classificação de his-toriador» (20). Há efectivamente objectos de trabalho tomados como mais«nobres» e mais «sérios», e outros que o são menos. O reconhecimentopessoal e científico joga-se aqui um pouco, e condiciona por isso as opções.Ao historiador que investiga — por exemplo — as formas de ocupação dotempo de lazer nas sociedades europeias nossas contemporâneas pode parecerabsurdo que as mesmas se tentem explicar cabalmente sem o seu concurso;mas nem vale a pena pensar em obter idêntica projecção, até do ponto devista institucional, à do historiador da Revolução Francesa ou da indus-trialização europeia.

Tal situação mantém-se. Mas os rumos da investigação histórica infiec-tiram no último meio século para direcções até então inesperadas. A com-preensão do todo social na sua plena globalidade implicou o recurso a novastemáticas, a novas metodologias, sustentando-se em concepções epistemo-lógicas que abriram novos caminhos de investigação. O trivial, a repeti-tividade, a permanência são agora tão dignos de atenção como a mudançabrusca, o facto e o efeito isolados, o fenómeno extraordinário. Mas acresceque se a história descobriu novos mundos por explorar, isso não ocorreupor igual em toda a parte. Por razões sobejamente conhecidas, o laborhistoriográfico português esteve fortemente condicionado até há bem pouco;e além de restringido na abertura e receptividade que podia manifestar, foiigualmente objecto, por vezes, de apropriações que privilegiavam critériosde natureza não científica. Os feitos militares que consubstanciaram a edi-ficação do império de outrora revelavam-se em certo sentido bem mais apete-cíveis de tratamento que a aparente aridez de temas desta natureza, e sópara citar este exemplo (21).

Partindo destes pressupostos, e de igual forma do princípio de que,no estado actual dos nossos conhecimentos, não há resposta cabal e global

(20) A. H. de Oliveira Marques, «Apresentação», Nova História, n.° 1, 1984, p. 3.(21) A questão que temos vindo a tratar preocupou também Rui Loureiro, que se

lhe referiu cora toda a oportunidade («Imagens da vida a bordo em Os Lusíadas», JL jornalde letras, artes e ideias, n.° 168, 28.1.1986, p. 14), buscando encontrar as razões que justi-ficariam esse quase silenciamento do tema. Evocou três motivos, a saber: a escassezdocumental, com o que não concordamos plenamente em função do que deixámos escritoatrás; a banalidade do tema, apontando o desinteresse manifesto de «uma filosofia espon-tânea da história — espontaneamente partilhada por tantos historiadores» pelas consi-deradas pequenas misérias do quotidiano; e a inoportunidade do assunto, por inapropriadoàs instrumentalizações político-ideológicas. Com o que também concordamos apenasparcialmente, uma vez que em última análise e nesta óptica não há temas inapropriadospara qualquer sorte de instrumentalização, embora uns se revelem, naturalmente, maisfrutuosos que outros. Rui Loureiro foi um dos primeiros autores que conhecemos entrenós a tocar nestes problemas com uma adequada visão crítica.

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para a pergunta: o que foi a Carreira da índia?, resultará daqui uma tenta-tiva de responder mais adequadamente a um aspecto particular da questãogenérica. Advirta-se porém que nos encontramos perante um balançoprovisório dos resultados de um percurso ainda bem mais próximo do seuinício que do termo (22), no qual esperamos poder traçar uma visão geraldo que era a vida quotidiana e as formas de organização social nesses espaçoscircunscritos, que a um tempo se regiam autonomamente e viam neles reper-cutirem-se as regras estrutuivús da sociedade de onde emanavam.

A VIAGEM (23)

É ponto assente que a travessia marítima entre Lisboa e Goa, e no sentidoinverso, instituída com uma regularidade anual logo após a viagem de aberturada rota e ligação desses pontos por Vasco da Gama em 1497-1499, que otempo viria a consagrar com o nome de Carreira da índia, tinha início noestuário do Tejo quase invariavelmente no mês de Março ou no início deAbril (24); a experiência e evolução dos conhecimentos náuticos cedo tinhamrevelado ser esta a época mais adequada para iniciar a navegação atlânticae atingir o Índico no início da monção grande, facto, aliás, aceite por todosos roteiristas portugueses até aos meados do século xvii (25). Contudo,à medida que o conhecimento do regímen de ventos e correntes progredia,estabeleceu-se um novo período de partida das armadas, durante o mêsde Setembro, não devendo exceder o seu limite, agora em coordenação com

(22) Advirta-se que nos baseamos em primeiro lugar nas cartas inventariadas porJosé Wicki no artigo citado, e nas que foram publicadas por A. da Silva Rêgo na Documen-tação. Embora recorrendo a outras fontes informativas, este trabalho circunscreve-se porisso no essencial à segunda metade da centúria de Quinhentos. Apesar das modificaçõesdas condições de vida a bordo em função da própria alteração das condições de navegaçãona Carreira, boa parte do que é aqui observado serve por igual quer para a primeira metadedo século xvi, quer para os primeiros decénios de Seiscentos.

(23) Apoiámo-nos sobretudo nos seguintes trabalhos: Inácio da Costa Quintela,Anais da Marinha portuguesa, Lisboa, Academia das Ciências, 1839; C. R. Boxer, op. cit.;A. da Silva Rego, «Viagens portuguesas à índia em meados do século xvi»; Artur Teodorode Matos, op. cit.; Max Justo Guedes, «A Carreira da índia — evolução do seu roteiro»,comunicação apresentada ao IV Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa,Lisboa, 1985 (em vias de publicação); Luís de Albuquerque, «A Carreira da índia», inDicionário de História dos Descobrimentos Portugueses.

Agradecemos ao nosso querido Mestre e Amigo o ter-nos facultado o acesso a esteseu artigo, que se revestiu para nós de extrema utilidade, como excelente síntese que é dahistória da Carreira de que ora tratamos.

(24) A partida podia sofrer adiamentos devido ao mau tempo, como sucedeu coma armada de 1560 que zarpou do Tejo apenas em 20 de Abril, e esta saída tardia deve terestado na origem das dificuldades náuticas que todos os navios dessa armada experimen-taram na viagem. Um teve de arribar a Lisboa; outro à Baía, naufragando mais tardeperto de Samatra; e os dois restantes tiveram de navegar por fora (I. Costa Quintela, op. cit.,pp. 487-8).

(25) Max Justo Guedes, op. cit., p. 35.

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o ciclo da monção pequena no Índico, procurando atingir os portos do Industãoantes do seu inevitável encerramento nos meses de Junho e Julho (26). Se aarticulação entre a partida de Lisboa, a navegação atlântica e a monçãocerta no Índico não fosse devidamente conjugada, perder-se-ia a viagem,o que aconteceu por vezes, obrigando os navios a longas invernadas na Ilhade Moçambique, com os inconvenientes bem conhecidos para passageiros,tripulações e cargas, por motivo das más condições de salubridade do impor-tante porto africano oriental.

Se iniciada nos meses recomendados, a viagem decorria geralmentesem incidentes do ponto de vista da navegação até ao sul de Cabo Verde,transpostos os arquipélagos da Madeira e das Canárias com ventos e correntesgeralmente favoráveis; o primeiro grande obstáculo surgia com a entradados navios na vasta zona das calmarias equatoriais, ou doldrums, cuja tra-vessia era na maior parte dos casos «uma questão de bom governo e paciência»,na feliz expressão de Max Justo Guedes (27), embora estivesse subordinadaà escolha da longitude certa para montar com êxito a costa brasileira, comotambém reconhece aquele ilustre historiador; interessava encontrar o alísiodo sueste o mais ao sul possível para iniciar a bordada que facilitasse a mon-tagem do Cabo de Santo Agostinho, naquela costa (8o 20' S e 340° 56' W).

A primavera boreal revelou-se a melhor época para a travessia, por ser aaltura em que o alísio do Sueste sopra com menos intensidade perto do equa-dor, sendo também menor a amplitude das calmarias (28). Para atingirestes objectivos deviam os navios navegar ao largo da costa africana, atéo limite máximo de 70 ou 80 léguas dos Baixos de Santa Ana, para além doqual se corria o risco de se ensacarem no Golfo da Guiné para dentro doCabo das Palmas, por acção das correntes, como prevenia o roteirista DiogoAfonso ao fixar a derrota.

Atingidos os alíseos iniciava-se a bordada que levaria à passagem doequador, a chamada volta do mar que devia montar a costa brasileira com omaior afastamento possível do Cabo de Santo Agostinho e dos Abrolhos,afastando assim os perigos de arribada a Lisboa ou de invernada no Brasil,reveses que aconteceram por vezes, ou ainda de se ver enleado por dentrodos Abrolhos, como também sucedeu, embora mais raramente. Os naviosfaziam a bordada do Brasil em Abril ou Maio, ou mesmo em Junho se sofriamprolongados atrasos na zona das calmarias; a passagem ao largo, pelo para-

(26) Idem, ibidem, p. 36. No início do século xvii o período de Setembro passaa ser mais utilizado, ao mesmo tempo que se iniciam algumas viagens fora dos ciclos normais,procurando reforçar a segurança das rotas e iludindo cada vez mais a apertada vigilânciae hostilidade holandesas (Maria Emília Madeira Santos, «O problema da segurança dasrotas e a concorrência luso-holandesa antes de 1620», Revista da Universidade de Coimbra,vol. XXXII, 1986, p. 133.)

(27) Max Justo Guedes, op. cit., p. 11.(28) Idem, ibidem, p. 12; Artur Teodoro de Matos, op. cit., p. 21. Os alíseos podiam

ser encontrados em 2o 30' navegando em Abril, mas sê-lo-iam em 4o ou 5o se fosse em Maio,nos termos do roteiro de Vicente Rodrigues.

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leio de Santo Agostinho, e a derrota para o Sul fazia-se então sob a acçãoda monção de Sueste que de Abril a Agosto, e de modo cada vez mais intenso,se fazia sentir na costa brasileira. Este factor conjugado com os efeitos daforte corrente equatorial que actuava no mesmo sentido entre 2o N e 10° S,justificavam o prudente distanciamento do litoral brasileiro com que se deviagovernar na grande derrota do sul.

Transpostos os Abrolhos os navios deviam navegar com rumo meri-dional passando a barlavento da ilha de Trindade e dos ilhéus de Martins Vaz.

O caminho para as ilhas de Tristão da Cunha era controlado por conhe-cenças, entre as quais os roteiristas evidenciavam por vezes a declinaçãomagnética. Contudo, para evitar os temíveis efeitos das persistentes tempes-tades que nas proximidades daquele arquipélago se faziam sistematicamentesentir, os pilotos optaram por cortar o seu meridiano (L: 12° 16' W) na lati-tude que não devia exceder os 33° S (29).

A partir deste ponto, deviam os navios «ganhar altura» descaindo ligeira-mente para sul para evitarem a acção contrária dos ventos costeiros soprandodo Sueste, e das correntes contrárias, os «mares grossos» dos roteiros, quedificultavam a montagem do Cabo da Boa Esperança; os roteiros acabavampor fixar a altura de 35° e dois terços, ou mesmo 36°, como a mais recomen-dável para dobrar o promontório. Vencido mais um obstáculo, a derrotapara os portos do Industão era definida em função da data da chegada aoÍndico, estabelecendo os regimentos dados aos capitães e de acordo com osroteiros, que se fizesse por fora da ilha de S. Lourenço se o Cabo fosse dobradodepois de 15 de Julho (ainda que em certos roteiros este prazo fosse ligeiramentedilatado para a segunda quinzena desse mês); a medida visava evitar ashabituais longas permanências dos navios e tripulações nos portos africanos,pelos motivos a que já aludimos.

Se, todavia, a passagem do Cabo se fazia antes de concluída a primeiraquinzena de Julho, nada obstava a que a viagem se fizesse pelo Canal deMoçambique, ou por dentro como então se dizia, devendo neste caso esta-belecer-se uma rota que afastasse os navios dos baixos da índia, mais tardetambém chamados «baixos da Judia», que deviam ser transpostos duranteo dia; para tanto aconselhava-se uma bordada para a ponta de Santa Maria,na ilha de Madagáscar, passando os navios em seguida ao largo da ilha deJoão da Nova, rumo a Moçambique se a escala neste porto fosse necessária,ou navegando directamente para as ilhas de Cómoro em cuja altura deviamapanhar a monção favorável que os levaria finalmente até os portos de Goaou de Cochim (30).

A viagem de regresso ao reino iniciava-se quase sempre antes de 25 deDezembro, podendo os navios zarpar por vezes no final do ano, ou nos pri-meiros dias de Janeiro, sob os efeitos da monção de inverno, soprando ovento do quadrante norte. Também neste caso se preferia a derrota pelo

(29) Max Justo Guedes, op. cit., p. 20.(30) Luís de Albuquerque, op. cit.

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canal de Moçambique, procurando identificar a costa da Somália e nave-gando depois junto à costa até entrar no Canal de Moçambique; nestaságuas procurava-se avistar de novo a ilha de S. Lourenço, antes de se iniciara aproximação do Cabo da Boa Esperança.

Se os navios se atrasavam ao sair de Goa tinham de viajar por fora,por razões idênticas às da viagem de ida; seguiam então uma derrota inversaà que era adoptada para chegar a Goa, instituída no final do primeiro quartelde Quinhentos, vulgarmente conhecida por viagem por fora pela carreiravelha, em contraposição com a viagem por fora pela carreira nova. Estaderrota era utilizada mormente pelas embarcações saídas do porto de Cochime que tomavam o rumo do Sul passando ao largo da costa industância atéao Cabo Comorim; navegando a oriente do imenso arquipélago das Mal-divas, procuravam cortar o paralelo de Diogo Rodrigues na proximidadedesta ilha, seguindo dali para o Cabo da Boa Esperança (31).

Entrados nas águas atlânticas, os navios procuravam atingir a ilha deSanta Helena, e progredindo normalmente para noroeste avistavam a ilhade Ascensão, a partir da qual e sob a acção dos alíseos de Sueste cruzavamde novo o equador na relativa proximidade dos penedos de S. Pedro, depoisdo que iniciavam a navegação para a bem familiar rota pelo largo em demandados alíseos do noroeste até os Açores donde, após uma eventual escala, sedirigiam para as águas continentais portuguesas.

Tal era a viagem que, com uma duração média de seis meses em cadasentido, mas podendo ir até ano e meio se fosse necessário invernar em qual-quer escala, os nautas portugueses de Quinhentos tinham de realizar. Viagemlonga e arriscada, em que as condições de navegação mudavam continua-mente, alternando os dias de bonançosos mares com os períodos detemíveis tempestades; as indesejáveis calmarias tropicais com os não menosinconvenientes frios austrais; os pontos de difícil manobra com os troçosde fácil governo; os efeitos favoráveis de ventos e correntes com a acçãocontrária de factores idênticos...

No seu conjunto, estes condicionalismos que marcavam as viagens nãopodiam, obviamente, deixar de se refletir no quotidiano a bordo. Os documen-tos em que nos apoiamos evidenciam plenamente os factores condicionantesda viagem, ora dramatizando os reveses sofridos, ora rejubilando com osêxitos alcançados. E, curiosamente, os seus autores revelam-se quase sempreobservadores atentos e narradores fiéis de tais eventos. Dir-se-ia que, naeventual falta dos preciosos roteiros e diários de bordo, uma boa parte doscondicionamentos da carreira da índia poderia ser hoje reconstituída grossomodo por meio dos elementos contidos nas missivas dos sacerdotes que,em obediência aos imperativos superiores, tinham de dar relação circuns-tanciada dos episódios vividos na jornada (32). E devemos acrescentar que

(31) Artur Teodoro de Matos, op. cit.(32) «Porque V. R. me Io ordeno (...) he querido, por los dichos y otros muchos

respectos dar cuenta a V. R. de nuestra peregrinación o navigación», escrevia o padre

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algumas dessas cartas revelam não apenas o espírito perspicaz dos autoresmas até a excelente prosa que por vezes cultivavam, constituindo peças deinegável valor, e um tanto esquecidas, desse género literário muito cultivadoneste século, como se disse atrás — a narrativa de viagens; espelham, poroutro lado, a sua mentalidade, revelando por vezes o espírito retrógado dealguns, a contrastar com a formação de outros que tinham deliberadamentetransposto o limiar do Renascimento.

Voltando à viagem, procuraremos confirmar, com o apoio de algunsexemplos, o que acima sustentámos.

Assim, o trecho da navegação a partir da barra do Tejo até ao sul deCabo Verde, é quase sempre descrito com optimismo; por vezes, emboramais raramente, a derrota não sofria incidentes até o equador, como sucedeuna viagem da nau «Rainha» em 1562: «Sempre até à Linha tivemos bonís-simo tempo, vento em popa, e en pouquo mais de 15 dias cheguamos muiperto dela, onde nos começou a visitar com hos enfadamentos que costumadar aos que por ella passão» (33).

O perigo da aproximação demasiada dos Baixos de Santa Ana e a acçãoadversa da contra-corrente equatorial e do seu natural prolongamento, acorrente da Guiné, de que advertiam os nossos roteiristas, como vimos, épor vezes descrito com a natural ansiedade dos autores, temendo que se per-desse a viagem; segundo o padre Francisco de Monclaro, «não faltavãoenfadamentos e juizos de parecer que podíamos arribar ao Reyno ou a SantoThomé; polias grandes correntes que faz a enseada, que começa no caboda Palma» (34).

Mas, depois de vencida a costa da Guiné, considerada «a mais enfa-donha paragem em toda esta comprida careira polas grandes calmas (...)porque muitas nãos gastão em esta costa 30, 40 e 50 dias» (35), chegava denovo a alegria com os alíseos de sueste, os «gerais» sempre aguardados coma mais ansiosa expectativa: «As calmarias [escrevia o padre Jácome de Bragaem 1563] nos começarão a 4 dias d'Abril, como arriba dixe, e durarão atté7 de Maio, que pasamos a linha. Aos oito, nos derão os jerais, que héuma monção que senpre achão as naos, hum grau ou dous depois de passadaa Linha» (36). Alegria efémera, contudo, porque eram bem conhecidas ascontigências de passar com êxito o obstáculo seguinte, o cabo de Santo Agos-tinho; se a bordada a partir do Equador não fosse rigorosamente estabelecidacorria-se também aí o perigo de perder a viagem, arribando a Portugal comopor vezes sucedera. Para prevenir esse risco, os pilotos menos avisados

Ribera, de Goa para o reitor de Córdova, a 27 de Outubro de 1565 {Doc Ind, VI,p. 531).

(33) Assim escrevia o padre Fernão da Cunha aos jesuítas de Portugal, Baçaim,3 de Dezembro de 1562, Doc Ind, V, p. 574.

(34) Doc Ind, VIII, p. 278.(35) Ibidem, VII, p. 365. . .. .(36) Ibidem, VI, p. 48.

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faziam por vezes a volta francamente pelo largo, sobretudo quando o navionão «gilaventeasse muito», como aconteceu com a nau «São Paulo» que seveio a perder mais tarde perto de Samatra. Na viagem de 1560, esta naupassou «o cabo de Santo Agostinho sem aver vista de terra, porque [escreveo padre Manuel Álvares] hiamos tanto ao mar por medo de não ficar daquem,que depois de postos na altura da Baia pusemos muitos dias em achegar aella, donde parecia que estávamos ao mar mais de duzentas legoas» (37).Mas há testemunhos da navegação correcta na montagem desse cabo; paraoutros não citar reportamo-nos ao de Fernando Alcaraz que esclarece terementrado na altura do cabo de Santo Agostinho «cem légoas metidos ai mar»,como aconselhavam os roteiros (38).

Depois de dobrado este cabo, havia, como se sabe, boas razões paracontinuar a navegar longe de terra, na derrota para sul: se os elementosfísicos actuando junto à costa brasileira tolhessem qualquer navio e o ati-rassem para os baixos dos Abrolhos, redobravam os perigos e as probabi-lidades de se perder.

Quando em 1563 a nau «S. Filipe» foi enredada nos Abrolhos gerou-se opânico por entre toda a gente por se navegar por vezes em menos de 4 braças,sendo o vento muito escasso para se sair dos baixos; procuraram durantedez dias uma saída que os afastasse dos escolhos, mas sempre em vão; final-mente, com pouca vela e sondagens de ambos os bordos conseguiram liber-tar-se do temível obstáculo (39).

Rumo ao sul, para tomar a altura do Cabo, os navios deparavam porvezes com as ilhas de Tristão da Cunha, enquanto não se adoptou a derrotaque definitivamente as evitasse. Por serem muito tormentosas diziam oshomens do mar que «nestas ilhas andaam os demónios», mas constituíamum bom ponto de referência ao iniciar o difícil trecho de navegação paradobrar o cabo. Era então que cresciam as dificuldades de «tomar o sol»e que a importância das conhecenças se tornava mais sensível, facto de que seaperceberam os clérigos, que passam a registá-lo com alguma frequência:«Na paragem destas ilhas [escrevia o irmão Rodrigues Girão] há muito génerode pássaros, entre os quais há huns que chamão antenaes, os quais tem asazas tam grandes que tomando-as polias pontas, ficão do tamanho de humgiande homem, e eu vi estes pássaros» (40). E, mais adiante, depois dedobrado o cabo da Boa Esperança afirma ter visto alguns lobos marinhos«os quais como se vêm, hé sinal de terem yá o cabo passado» (41).Curiosa alusão a algumas das conhecenças que nestas paragens muito aju-davam a estimar a latitude em que se navegava, como reconhecem osroteiristas.

(37)(38)(39)(40)(41)

lbidem,lbidem,

IV, pp. 628-9.VI, p. 787; Artur Teodoro de Matos, op. cit., p. 22

Doc. Ind, VI, p.lbidem,lbidem,

XII, p.p. 870.

382.868.

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Os exemplos apontados, cobrindo o percurso Atlântico, dão-nos aimagem dos condicionalismos da viagem registados pelos que a empreen-deram, permitindo-nos ao mesmo tempo analisar melhor o quotidiano abordo, por vezes intimamente relacionado com tais circunstâncias.

A VIDA A BORDO

1. Tripulantes e passageiros

François Pyrard de Laval deixou-nos um quadro impressivo da estru-tura hierárquica a bordo, e bem assim das esferas de competência de cada um.Esta descrição é no essencial bastante correcta e conforme aos elementos quepodemos colher em testemunhos de outra natureza. E o que podemos cons-tatar por esta via não é diferente do que em geral se verificou ao longo detodo o século xvi.

A bordo de um navio com a tonelagem média das usadas na Carreirasuperintendia o capitão, e abaixo dele o piloto, sota-piloto, mestre, contra--mestre, guardião, dois trinqueiros, cerca de sessenta marinheiros e setentagrumetes, o mestre bombardeiro ou condestável, e cerca de vinte e cincobombardeiros, um capelão e um escrivão, quatro pagens, um meirinho oualcaide, um ou dois dispenseiros, e um ou dois artífices de cada ofício dosnecessários a bordo, a saber: cirurgiões, carpinteiros, calafates, tanoeiros eoutros (42). Todos perfariam um total de cerca de 150 tripulantes parauma nau da índia, cifra que exclui o capitão e quantos lhe estão directamenteadstritos, porque se contam entre o número de soldados, substancialmentemais elevado que o de homens do mar (era sempre o maior contingente abordo): entre uns e outros e incluindo ainda os passageiros, podiam ir embar-cados largas centenas de homens, quase sempre acima do meio milhar, enão raro próximo do dobro. Estes números são naturalmente variáveis emextremo e nem sequer valerá a pena entrar em linha de conta com a possi-bilidade de uma maior precisão, quer porque os dados conhecidos são muitoimprecisos e não raro exagerados («a gente que vai em cada uma delas nauspassa de mil ou mil e duzentos homens, ou pelo menos anda de oitocentos anovecentos», escreve ilustrativamente Pyrard de Laval) (43), quer porqueos únicos valores seguros que podemos aceitar são os relativos às tripulações.

O capitão tinha larga margem de autonomia no seu comando e aindanos aspectos disciplinares. Estava naturalmente sujeito à autoridade maiorda armada, o capitão-mor, que em geral comandava a nau ou galeão em queia embarcado. Capitães ou capitães-mor eram quase exclusivamente deextracção fidalga, no século xvi, e a atribuição dos cargos era amiúderecompensa de serviços prestados em matérias que nada tinham a ver com

(42) François Pyrard de Laval, op. cit., II, pp. 142-(43) Ibidem, p. 142.

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o mar. Donde, não era raro ver o comando entregue a homens que nave-gavam pela primeira vez, com total ignorância dos meandros da função.Os critérios eram porém claros, e privilegiavam inequivocamente a ascen-dência social.

Por consequência, quem efectivamente ocupava o topo da hierarquiaentre os homens do mar era o piloto (coadjuvado pelo sota-piloto), queassim tomava a responsabilidade pela navegação. É muito interessantea descrição de Pyrard de Laval sobre a sua posição a bordo: o piloto ia «lá emcima na popa», com uma das três bússulas que havia em cada nau. Noconvés ia um marinheiro que retransmitia para baixo, ao que estivesse aoleme, as ordens que lhe eram dadas pelo piloto (44). Incumbia-lhe tambéma redacção do diário de bordo, e por alguns dos que chegaram aos nossosdias podemos aperceber-nos da sua importância para um melhor conheci-mento das circunstâncias técnicas da navegação nesta Carreira (45).

A sua valia profissional era pois decisiva para o bom curso da viagem,mas não é excessivo dizer-se que demasiadas vezes o encargo foi atribuídoa quem não tinha merecimentos adequados. Por um lado, por pura e simplesfalta de pilotos; noutros casos por lá terem chegado indivíduos que compra-vam o cargo ou o obtinham por outros critérios menos claros. Naus per-deram-se por erros de pilotagem, e provavelmente devem-se-lhes boa partedas arribadas: bons pilotos das Carreiras do Brasil ou de Angola não tinhamde o ser na da índia, para onde eram por vezes deslocados. Os relatos dosviajantes não são avaros a taxar alguns pilotos de incompetentes: fá-lo ocitado Pyrard de Laval, bem como vários jesuítas que viajaram nas nausda índia (46).

Dos muitos casos possíveis de serem aqui citados, vale a pena nomeardois deles pelo seu carácter algo extraordinário. O primeiro diz respeitoa Simão Castanho (ou Simão Castanho Pais), dado em 1604 como antigoexaminado e aprovado na Carreira da índia, na carta de exame de ManuelVicente do Amaral, de quem foi examinador (47). Há numerosos outrosindícios de que era nos princípios do século xvn um dos mais antigos e pres-tigiados oficiais do seu ofício, e em 1615 tinha já feito duas viagens à índiacomo piloto-mor (piloto da capitânea).

Uma delas foi na armada de 1611, capitaneada por D. António de Ataíde,ele próprio um entendido nas questões de marinharia, e dono do que terásido na altura uma das melhores bibliotecas privadas existentes sobre o

(44) Ibidem, p. 143.(45) Os mais conhecidos destes diários foram publicados por Henrique Quirino

da Fonseca, Diários da navegação da Carreira da índia nos anos de 1595, 1596, 1597, 1600e 1603, Lisboa, Academia das Ciências, 1938; e Humberto Leitão, Viagens do reino paraa índia e da índia para o reino (1608-1612), 3 vols., Lisboa, AGU, 1957-8.

(46) François Pyrard de Laval, op. cit., II, p. 218.(47) Frazão de Vasconcelos, Pilotos das navegações portuguesas dos séculos XVI

e XVII Lisboa, IAC, 1942, pp. 41-2.

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tema (48). Simão Castanho, profissional considerado e cioso das suasprerrogativas e saber, entrou várias vezes em conflito com o capitão-mor,que pretendeu amiudadas vezes interferir nas decisões do piloto. Acabou,aliás, por ser D. António a redigir o diário da capitânia na torna-viagem,prova de que a dirigiu (o que é uma situação excepcional) e de que talvezse tenham deteriorado irreversivelmente as suas relações com CastanhoPais (49). Este, todavia, nas suas desavenças com o capitão-mor, teve razãopor mais de uma vez, e foi por ele copiado no roteiro que D. António escre-veu (50). Em 1609, por outro lado, quando ia para Goa na nau «NossaSenhora da Piedade», capitânea das cinco velas saídas na armada desse anosob o comando do capitão-mor D. Manuel de Meneses, passaram por váriassituações melindrosas que só a sua perícia pôde resolver. E a 9 de Novem-bro, pretendendo o capitão ir tomar água numa das ilhas perto de um atolonde tinham ido parar, Simão Castanho exigiu que na ocasião se lavrasseum auto que o livrasse de responsabilidades. Sorte ou não, um aguaceiroimpediu-os porém de o fazerem (51).

O outro caso é o de Marçal Luís. Foi julgado inapto como piloto numadiligência oficial ordenada pelo Conselho da Fazenda, uma vez que nãosabia ler nem escrever, o que uma provisão régia exigia por se entender neces-sário para cartear, fazer roteiros, conferi-los e demarcar a agulha. O factonada teria de invulgar, não fora a folha de serviços de Marçal Luís: vintee oito anos de navegação para o Brasil, como mestre e piloto de navios seus.E onze na Carreira da índia, que não ficaram por aqui, pois logo no anoseguinte à consulta que o reprovou como piloto, Marçal Luís ia para a índiana nau «S. Carlos», e em 1621 o mesmo Conselho da Fazenda o escolheupara um dos quatro lugares de piloto na armada desse ano (52).

As disposições oficiais eram exigentes quanto aos requisitos que sepediam a capitães e pilotos, sobretudo a partir do momento em que as perdasmateriais e humanas fustigaram as armadas da índia. Mas muito poucasvezes se terão aplicado à letra.

Quanto ao mestre, tinha a seu cargo a governação de marinheiros egiumetes, ajudado por um contra-mestre. Cada um na sua esfera própria,capitão, piloto e mestre comandavam efectivamente tudo o que se passavaa bordo. O guardião era o responsável directo pelos grumetes.

Os marinheiros asseguravam os serviços inerentes à navegação e mano-bras do navio. Sobre eles emitiu Pyrard de Laval uma opinião contrária atodas as restantes, como já salientámos: «Porque é certo que todos os homens

(48) Sobre D. António de Ataíde v. o nosso trabalho, também escrito em colaboração,«D. António de Ataíde, capitão-mor da armada da índia de 1611», in A Abertura do Mundo, IIpp. 51-72, com remissão para a bibliografia e fontes conhecidas ou por nós localizadas.

(49) Ibidem.(50) H. Leitão, op. dt., I, p. XIX.(51) Idem, ibidem, p. XVII.(52) Tratámos mais desenvolvidamente deste caso no artigo citado na nota 48.

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A vida a bordo na Carreira da índia

do mar, andando nele, são bárbaros, desumanos, incivis, não guardam res-peito a pessoa alguma; em suma são verdadeiros diabos em carne, e emterra são anjos, excepto somente os marinheiros das naus da Carreira daíndia, que são cortezes e benignos, assim em terra como no mar, e parecemtodos homens honrados e bem nascidos, tratando-se todos com grande res-peito uns aos outros» (53). Mais à frente, todavia, percebe-se melhor queeste comentário tem um âmbito bem mais restrito do que parece: «os mari-nheiros são mui respeitados, e há poucos que não saibam ler e escrever,porque isto lhes é necessário para a arte de navegar. Por esta palavra Mari-nheiro entende-se o que sabe bem tudo o que toca à navegação; mas poucossão os bons, conquanto todos tenham aquele nome» (54). Dois dos mari-nheiros tinham por encargo cuidar e consertar cordoalha e velas — eram ostrinqueiros (55).

Aos grumetes, quase sempre jovens adolescentes, restava cumprir como que se esperava de quem ocupava o lugar mais baixo na hierarquia: ostrabalhos pesados, acompanhados dos maus tratos a que eram frequente-mente sujeitos e sofrendo as piores condições de vida a bordo. Do mesmoescalão etário eram os pagens, mas com um tratamento e funções comple-tamente diferentes, próximas das de mandaretes.

Vêm depois os cargos específicos não ligados à marinharia. O escrivão,o meirinho ou alcaide, os dispenseiros, o capelão, e os oficiais de ofíciosque citámos atrás, e cujo papel a bordo não carece de ulterior explicação.

À parte desta estrutura, e em boa verdade independente dela, o condes-tável era o oficial que comandava os bombardeiros, e respondia apenas peranteo capitão, tal como aqueles respondiam apenas perante ele. A utilizaçãoda artilharia exigia já um certo grau de especialização, porque entre outrastarefas os bombardeiros tinham também de fabricar a pólvora. Para proveràs necessidades da sua marinha D. Manuel I agrupou-os num corpo especial,os bombardeiros da nómina (29.1.1515), mas a sua inserção no aparelho militarsó se viria a regularizar com a criação do troço de artilheiros em 1675 (56).

(53) François Pyrard de Laval, op. cit., II, p. 142.(54) Ibidem, p. 142. Em carta escrita aos jesuítas de Coimbra, a 4 de Julho de 1560,

o padre Manuel Álvares dava conta da sua impressão, francamente desfavorável, dos tri-pulantes da nau em que seguia para a índia: «Já então começávamos a tratar e conversarcom a gente da nao, a qual era muyta e de muy differentes maneiras, aynda que a maisdelia muy semelhante nos vicios. (...) Erão tantos os furtos e desconcertos, que era peraespantar muyto de ver a immensa paciência de Deus para con tal gente» (Doc Ind, IV,pp. 613-4).

(55) Segundo Pyrard de Laval. O estrinqueiro era qualquer um dos marinheirosque a bordo de uma nau lidava com a estrinca, «engenho de eixo horizontal destinado àmanobra das vergas — especialmente de papa-figos — de mastaréus e outras que deman-dassem grande força» (Humberto Leitão e J. Vicente Lopes, Dicionário da Linguagem deMarinha Antiga e Actual, 2.a ed., Lisboa, JICU-CEHU, 1974, p. 253).

(56) João Manuel Cordeiro, Apontamentos para a história da artilharia portuguesa,s/l, Typ. do Comando Geral de Artilharia, 1895; J. J. Teixeira Botelho, Novos subsídiospara a história da artilharia portuguesa, vol. I, Comissão de História Militar, 1944.

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Quanto aos soldados que seguiam a bordo tendo a índia por destino, parti-cipavam naturalmente nas acções militares, porquanto só no século xviie por iniciativa de D. António de Ataíde se veio a criar um corpo militarvocacionado para prestar serviço nos navios desta e de outras Carreiras.

Dois factores terão contribuído poderosamente para baixar o nívelprofissional e humano do pessoal embarcado: a necessidade de prover con-tinuamente novas armadas quando os lucros da viagem e os riscos dimi-nuíam e aumentavam respectivamente (responsável pelo acréscimo dos arro-lamentos coercivos), o que se tornou notório nos anos subsequentes aosmeados do século xvi; e a facilidade com que os cargos eram comprados evendidos depois de serem outorgados pelo rei: que o podia fazer a duas oumesmo três pessoas simultaneamente, como mostrou recentemente JeanAubin. Não raro o diploma régio atribuía (por exemplo) o cargo de escrivãoa bordo de uma nau da índia a alguém que uma vez lá chegado iria ocuparoutro posto, sendo-lhe reservada a licença de vender o lugar para a torna--viagem (57). O sistema de atribuições de mercês régias tornou-se caótico,e se está por demonstrar em que medida possa ter contribuído para a ine-ficácia relativa da administração do Estado Português da índia, é fora dedúvida que diminuiu fortemente a selectividade que se pretendia necessáriaà composição do rol de embarcados.

Constituindo a possibilidade de fazer negócio um dos mais poderososdos acicates, pelo recurso às disposições que o autorizavam expressamente eregulavam segundo o cargo a bordo, a posse de um destes era de facto capital:«quem quere ir à índia proveitosamente, precisa ter algum cargo no navio;e se el-rei o não dá, é mister comprá-lo a outro, ou a alguma viúva» (58),observava Pyrard de Laval com a sua judiciosa perspicácia. Mas não só,pois logo prossegue: «quem alcança os tais cargos é mister que tenha fazendaconsigo, porque há um ditado que diz quem nada leva à índia, nada traz.E ainda dizem que a primeira viagem é só para ver, a segunda para aprender,e a terceira para tirar proveito» (59). Diferente era evidentemente a situaçãodos homens do mar, cujos direitos próprios estavam assegurados.

A dicotomia entre os homens do mar e os restantes embarcados era umfacto assente. Apesar da sua especificidade própria, repercutiam a bordoos critérios e valores dominantes na sociedade portuguesa. O prestígio doshomens do mar, e ao contrário do que acontecia noutros países, estava nofundo da escala; mas a circunstância de disporem e controlarem o sabertécnico que assegurava em grande parte o bom êxito da viagem criava desdelogo uma situação de conflitualidade latente (60), que chegava inclusivamentea pôr em causa a própria autoridade da hierarquia.

(57) Jean Aubin, «Mercês manuelinas de 1519-1520 para a índia», in A Aberturado Mundo, II, pp. 123-137.

(58) François Pyrard de Laval, op. cit., II, p.149.(59) Ibidem.(60) V. A. J. R; Russel-Wood, op. cit.

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Se o capitão podia convocar com alguma frequência o conselho compostopelo que podemos chamar o conjunto dos notáveis de bordo, ou um capitão--mor reunir com os outros capitães, isso devia-se amiúde ao desejo de deixarexarada a opinião de cada um e assim deixar também claras as respectivasresponsabilidades. Todavia, e como vimos a propósito de Simão Castanho,o processo podia seguir a via inversa, de baixo para cima. Tudo isto reflectiaobviamente interesses diferentes, e não era particularmente lisonjeira a opiniãoque os viajantes formavam de quem os conduzia. Em 1606, em viagem deGoa para o Reino, a nau «Nossa Senhora de Betencour» esteve na eminênciade naufragar junto à costa de Moçambique. Quando foi necessário atirarborda fora a carga, para safar a embarcação, houve logo quem propusesseque primeiro fosse a artilharia e a pimenta do rei. E apesar da descrençano salvamento, fez-se um requerimento ao capitão, Brás Teles de Meneses,para que em primeiro lugar se lançasse ao mar a fazenda dos que não estavama trabalhar para a salvação da nau, e só depois a destes. Comentou o licen-ciado António de Mesquita, autor do Roteiro da Viagem: «e os que maisnisto justauão herão os homens do mar que perdida a fazenda lhes não impor-taua nada que a Nao se saluasse» (61).

Um outro tipo de conflito muito frequente ocorria entre capitães denaus, ou entre estes e o capitão-mor. Do facto se queixou D. António deAtaíde em relação à armada que capitaneou, atribuindo em parte a responsa-bilidade deste tipo de situações à não punição dos culpados, apesar do queos regimentos estipulavam em contrário (62).

Não é em vão que nos podemos interrogar, em certas circunstâncias,sobre o exercício efectivo da autoridade a bordo; em mais de uma situaçãoa hierarquia era ou podia ser ultrapassada, e os homens do mar constituíama bordo um poderoso grupo de pressão que frequentemente actuava coesae ordenadamente em função dos seus interesses próprios (63).

É diferente o caso dos passageiros, considerados como um todo, e umavez que se inseriam temporariamente num meio ao qual eram em princípioalheios, vendo-se sujeitos às suas regras disciplinares e vivenciais. Eramnão obstante muito variáveis as condições em que o faziam, consoante asua origem social c poder económico; este último repercutindo-se logo àpartida nas condições de vida a bordo, quer pelo acesso a espaços habita-cionais privilegiados, quer por garantir a possibilidade de uma precauçãomais adequada em relação aos géneros alimentares, que, como já se veráde seguida, não raro faltavam desde cedo a parte significativa dos embar-

(61) Roteiro da viagem que fez a nau Nossa Senhora de Betancor capitania em queia Brás Teles de Menezes..., Res. da B. N., Lisboa, cód. 340, fl. 14. Foi reproduzido numadissertação de licenciatura apresentada em 1964 à Faculdade de Letras de Lisboa, porMaria de Fátima de Azevedo, e sob o título Uma viagem da índia para o reino em 1605--1607. V. também Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., II, 370-1 e 376-81.

(62) Cf. o nosso artigo citado acima.(63) A. J. R. Russel-Wood, op. cit.

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cados. E se era sobre eles que se repercutiam mais duramente os custoshumanos da viagem, estes faziam-se também sentir diferentemente de acordocom as premissas enunciadas atrás. Não são porém muitos os elementosinformativos que nos possam permitir desenhar um quadro relativamentepreciso da variedade dessas incidências (o que se teria de fazer a partir deum tratamento quantitativo de dados representativos).

Na extrema diversidade de situações e tipos de passageiros (reflexadas suas motivações, em parte), uma há que não se pode passar em claro,mesmo neste breve bosquejo, até por se prender com um outro capítulo davida a bordo. Referimo-nos à presença de mulheres nas naus da índia.

E é uma situação relativamente excepcional esta, se atendermos à pro-porção daquelas em relação ao número de homens normalmente embar-cados. Apesar da disparidade de estatutos (da mulher do novo governadoràs órfãs do reino ou às clandestinas), é compreensível que se tornassem focosde tensão pela sua presença num meio de grande predominância masculina (64),gerando por decorrência problemas de natureza disciplinar, que se procura-vam resolver as mais das vezes pelo isolamento puro e simples ou, mais dras-ticamente, desembarcando-as na primeira oportunidade (no caso das clan-destinas, sobretudo) (65).

Era este outro dos domínios a que os sacerdotes revelavam especialatenção, quer tentando logo à partida inquirir da presença nas naus de mulheres«de que se tivesse alguma sospeita», na expressão do padre Fernão daCunha (66), ou exercitando-se depois em confissões e admoestações, do quehavia grande necessidade, como escrevia o padre Gaspar Barze, dadas asmuitas mulheres que vinham na nau em que viajava (67).

Em suma, a própria dureza da viagem justificava um clima disciplinarque tem de se classificar em termos idênticos, onde a punição castigava oinfractor sem grandes delongas — e das formas mais variadas, como a flage-lação ou o serviço nas bombas do navio —-, por vezes e apesar das pres-crições dos regimentos de forma arbitrária, a par de um sistema de premiaçãodos comportamentos tidos por merecedores: ora recompensando o mari-

(64) A vida sexual a bordo, sujeita a padrões bem diferentes do normal dadas ascircunstâncias, é tema que em si merecia sem dúvida tratamento mais detalhado. Pre-tendemos vir a fazê-lo no estudo mais aprofundado que temos em preparação. Nesteparticular, e como seria de esperar, as fontes não são muito eloquentes. Porém adivinham-secom facilidade, e comprovam-se com os dados disponíveis, toda a sorte de expedientes queusavam os mais afoitos para se aproximarem das mulheres embarcadas, por vezes comconsequências trágicas ou então simplesmente caricatas.

(65) A título de exemplo, cite-se o caso relatado pelo padre António de Quadrosem carta escrita para os jesuítas de Coimbra a 18 de Dezembro de 1555 (Doc Ind, III,p. 387). Descoberta uma mulher de «mao viver» que ia «escondidamente» na nau em queseguia, foi de imediato transferida para outra nau da armada e aí fechada com «muitoresguardo», situação que presumivelmente se manteve até à chegada.

(66) Carta enviada de Baçaim a 3 de Dezembro de 1562, Doc Ind, V, p. 569.(67) Em carta aos jesuítas de Coimbra (datada de 1548), Doc Ind, I, p. 384.

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nheiro que avistava um baixio (68), ora atribuindo um púcaro de água extraa quem sabia a doutrina (69).

2. Alimentação e Saúde

«Nestes dias que andamos ao pairo [escrevia o irmão Jácome de Braga,em 1563] adoeceo muita jente por os gramdes frios que fazião, e a mais deliamorria por estar mui deslapidada das nessesidades grandes que avião pade-cido, e não aver já mantimentos na nao, e alguns, se avia, erão todos danados,de maneira que se não podião comer, porque todo sabor e substancia tinhãoperdido. E asi morião cada dia três, quatro, que era huma piedade gran-disima ver homens mansebos, soldados, e destes, muitos que não duravãotrês ou quatro dias, que logo morião» (70). Este quadro pungente que oclérigo nos dá dos acontecimentos a bordo, depois de ter andado uns dias àderiva por altura das ilhas de Tristão da Cunha, poderia ser consideradoum exagero se não tivéssemos outros testemunhos idênticos, ou ainda maiscarregados; mas ele vale essencialmente por nos introduzir no tema, pondoem evidência alguns aspectos gerais da alimentação e saúde a bordo: a mín-gua de alimentos em plena viagem, o seu fraco valor nutriente por se teremdeteriorado, e o reflexo destas circunstâncias na saúde e morte de passageirose tripulantes.

Embarcando para a índia como se fossem «para a outra banda do rio»,muitos dos passageiros, pobres e desamparados, não dispunham na sua mata-lotagem senão de um pequeno barril de água, confiantes de que com ela,e com o que por caridade recebessem na embarcação, se manteriamaté o fim da viagem (71); eram estes, naturalmente, os que iriam sen-tir as maiores privações a bordo, permanecendo à mercê dos oficiais, fidalgose sacerdotes, cujas provisões eram em regra abundantes. E os últimos,cientes dessa dependência, acabavam por lhes prestar as esperadas ajudaspor considerarem ser esta a melhor via para os levar a salvamento à índia (72).

É certo que cada navio era abastecido antes de largar para a índia comos alimentos considerados necessários para a longa viagem; o Armazémda Guiné e índia fornecia ao pessoal da navegação um conjunto de génerosalimentícios cujas quantidades e rações diárias individuais são conhecidas (73),

(68) Do que deu conta o padre Pedro Mercado ao provincial de Portugal, em cartaescrita de Goa a 23 de Novembro de 1564 (Doc Ind, VI, p. 299).

(69) Domingos Álvares ao provincial de Portugal, Goa, 20 de Novembro de 1567,Doc. Ind, VII, p. 364.

(70) Jácome de Braga ao padre M. de Torres, Goa, 2 de Dezembro de 1563, DocInd, VI, pp. 56-7.

(71) Fernando Alcaraz aos jesuítas de Salamanca e Alcalá, Goa, 31 de Janeiro de 1556,Doc Ind, VI, p. 772.

(72) Fernão da Cunha aos jesuítas de Portugal, Baçaim, 3 de Dezembro de 1562,Doc Ind, V, p. 570.

(73) V. Artur Teodoro de Matos, op. cit., pp. 51-2, e Frédéric Mauro, op. cit., pp. 85-6.

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mas as contingências das viagens, o mau acondicionamento dos produtos,as grandes variações climáticas, e, mormente, a enorme falta de higiene abordo contribuíam para a sua rápida deterioração. O tórrido calor tropicalconcorria em larga medida para esse irreparável dano, quando os navios,tolhidos pelas calmarias, se mantinham por largos períodos nas águas equa-toriais: «Aqui [no Equador] se dano Ia mayor parte de Ias cossas de comer,porque el azeite, Ia manteca, Ias mermeladas y Ia miei fervían; el agua se cor-rompia; Ias passas, los higuos y outras muchas cosas con Ia grande calma sedanavan» (74). A nau «Chagas», da armada de 1579, permaneceu quarenta eoito dias a norte do Equador «por ventos contrários e calmarias» num per-curso que em tempo normal poderia ser completado em oito dias. Comoresultado dessa longa espera perdeu-se uma grande parte dos mantimentosque nela seguiam, apodrecendo os presuntos e a outra carne enchendo-sede bichos, como testemunhava o padre Pedro Gomes (75).

Da mesma forma a água sofria os maus efeitos do clima, e também dasmás condições higiénicas do vasilhame em que se guardava. Para bebê-laera por vezes necessário fechar os olhos e tapar o nariz (76). E a água,como se pode facilmente avaliar, era um precioso bem, cuja falta se faziasentir mais intensamente do que os alimentos sólidos. Era por isso cuida-dosamente guardada e distribuída e, nos momentos em que se temia a suaeventual falta, chegava a atingir preços altíssimos.

O padre Domingos Álvares informava que vinte dias depois da partidade Lisboa já se vendia em pregão um almude de água por quarenta e oitoreis (77), e Francisco de Monclaro, em 1570, declarava que a falta de águaentre a Baía e a Ilha de Moçambique tinha obrigado a nomear um almo-tacém entre os sacerdotes, o qual distribuía dois púcaros e meio para todoo dia «e companheiros ouve que ainda desta fazião provizão deixando humpúcaro»; o almotacém, quando tirava o púcaro cheio da talha, escorria osresíduos «mais do que laa fazem às medidas d'azeite» (78).

Nestas circunstâncias a importância das escalas aumentava, mas paranão perder a monção e por condicionalismos da viagem, nem sempre erapossível o recurso a estes pontos de refresco dos navios. Teodoro de Matosjá referiu o valor que assumia a escala de Santa Helena na torna viagem dos

(74) Pedro de la Cruz aos jesuítas de Évora, Goa, 23 de Novembro de 1563, DocInd, VI, p. 35.

(75) Pedro Gomes ao provincial de Portugal, Goa, 17 de Novembro de 1579, DocInd, XI, p. 576; o padre Francisco de Monclaro, em 1570, confirmava que a «carne salgadada regra, que nesta paragem [costa da Guiné] assy ella como a mais se corrompe toda»,em carta ao padre Leão Henriques, Moçambique, 1 de Agosto de 1570, Doc Ind, VIII,p. 279.

(76) M. de Eguzquiça ao Colégio Romano, Moçambique, 2 de Agosto de 1564,Doc Ind, VI, p. 229.

(77) Domingos Álvares ao padre Leão Henriques, Goa, 20 de Novembro de 1567,Doc Ind, VII, p. 365.

(78) Francisco de Monclaro, ibidem, p. 290. . / . . . . : . .. . •.

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navios da Carreira (79), e ao condicionamento da sua utilização como pontode aguada devido à concorrência das outras nações europeias; recorria-seentão a escalas de alternativa mas, na impossibilidade de as atingir atem-padamente, os navios socorriam-se por vezes da água das chuvas (80) usandotelas que para o efeito tinham arrecadadas.

A propósito da água das chuvas, cabe aqui uma referência à necessidadede encarar estas fontes com o devido espírito crítico, pois havia sacerdotesque nas suas missivas, bem à maneira medieval, davam acolhimento a mitose lendas, transmitindo-os como factos verídicos; é o caso do padre Andrésde Cabrera que, a propósito dos aguaceiros da costa da Guiné, afirma quea água «tiene virtud de convertirse em guzanos em espacio de una hora poçomás» (81).

Devido às más condições de conservação dos alimentos, um dos recursosadoptados era o embarque de animais vivos, com os inconvenientes de ordemhigiénica que deviam causar.

Não é possível calcular, nem mesmo aproximadamente, o número eas espécies de animais que seguiam nas armadas, mas há bastantes referênciasa galinhas embarcadas a propósito da dieta alimentar dos doentes, a quemquase sempre se destinavam, a galos, cujo cantar matinal balizava por vezesa hora de certos acontecimentos (82). Capados e porcos embarcados naIlha de Moçambique (83), e um carneiro que, levado de Lisboa pelos jesuítas,era alimentado com restos da comida e ainda não tinha sido abatido aodobrar o Cabo da Boa Esperança. A propósito de violenta tempestadeque fazia rebentar as ondas no convés, o P.e Gonzalo Rodriguez conta-nosque «hasta unos animales que ay venían que fundían Ia nao con brados» (84).

Tal como a água, também as galinhas atingiam preços altíssimos àmedida que a viagem avançava e elas se tornavam raras. Em 1563, quei-xava-se o padre Pedro da Cruz que não sé encontrava quem quisesse venderuma galinha e que, se alguém se prontificava, o seu preço comum eram500 maravedis (85), e, no ano seguinte, só por esmola se conseguia encon-trar alguma pelo preço de mil reais (86).

A confecção dos alimentos no fogão de bordo era tarefa da responsa-bilidade de cada um dos interessados. Em 1548, encontrando-se doente,

(79) Em comunicação apresentada a esta Reunião.(80) Veja-se A. da Silva Rêgo, op. cit., p. 87.(81) Andrés Cabrera ao padre Inácio de Tolosa, Baçaim, 15 de Dezembro de 1564,

Doc Ind, VI, p. 380.(82) Como num incêndio que se declarou a bordo por se ter queimado uma lanterna

de pau, «jaa depois de cantarem os galos das capoeiras» (Sebastião Gonçalves ao padreG. Vaz de Melo, Goa, 10 de Setembro de 1562, Doc Ind, V, p. 529).

(83) Em carta ao padre M. de Torres, Goa-Cochim, Janeiro de 1562, Doc Ind, V,p. 494.

(84) Ibidem.(85) Pedro de la Cruz aos jesuítas de Évora, Goa, 23 de Novembro de 1563, Doc

Ind, VI, p. 38.(86) Andrés de Cabrera, ibidem, p. 383. . .

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o Padre holandês Gaspar Barze queixa-se de que não tinha quem lhe fizessea comida no fogão, e não dispondo de ajudas porque os colegas se encon-travam no mesmo estado de enjoo, decidiu-se a meter mãos à obra. Porém,os grumetes, que se desempenhavam da mesma tarefa, reservaram-lhe umarecepção hostil, tendo-se dado por feliz por escapar sem bofetadas e tambémpor se libertar do grande fumo que lá havia; as dificuldades continuarampor uns dias até que um cavaleiro honrado, Henrique de Macedo, ordenoua um seu escravo que lhe fizesse de comer (87).

Devemos acrescentar que não se trata de um caso isolado, Pyrard de Lavalconstatou que os alimentos sólidos eram entregues crus aos tripulantes,mensalmente, devendo por isso ser confeccionados pelos próprios (88), eos documentos em que nos apoiamos aludem com frequência ao bom númerode panelas que havia ao lume, aos compassos de espera a aguardar a vez,e ao muito fumo que havia na primeira coberta, onde se encontrava o fogão.

É evidente que os fidalgos e oficiais tinham os seus próprios cozinheiros,como no caso citado, entre escravos, criados e grumetes. Embora sejamconhecidos casos de distribuição geral de rações por toda a gente em sinalde satisfação após uma tormenta, ou em caso de festa a bordo, esses ali-mentos normalmente não careciam de confecção ao lume (89).

O peixe era alimento apetecido nas viagens, principalmente quandose passavam muitos dias sem alimentos frescos. As grandes pescarias queocasionalmente se faziam amenizavam o estado de carência alimentar, pondotermo a situações bem críticas. A zona do cabo da Boa Esperança erafértil em espécies de pescado; com linhas que traziam aparelhadas de Por-tugal, atingindo por vezes 80 braças, os nossos marinheiros pescavam aí,por vezes, «grandíssima somma de peixe: galhudos, brecas, cações, pargos,gorazes e corvinas, do que nos coube muito bom quinhão, porque todosmandavão prezentes aos Padres» (90). Porém, quando o navio se encon-trava no mar alto, longe das plataformas marítimas, não se pescava quasenada (91).

«Luego desde el principio dei viagen tu vimos grande número de enfer-mos, unos de mareados, otros de enfermedades que traziam de Ia tierra,porque eran Ia gente perdida, y estos eram muchos y com tanta pobreza ydesamparo, que era cosa de grande lástima y espanto» (92).

Embora não sejam muito abundantes, colhem-se algumas notícias que

(87) Carta aos jesuítas de Coimbra, 1548, Doc Ind, I, pp. 382-95.(88) Cf. Artur Teodoro de Matos, op. cit., pp. 35-6.(89) Francisco de Pina aos jesuítas de Portugal, Goa, 4 de Novembro de 1561,

Doc Ind, V, p. 217.(90) Pedro Gama ao padre Manuel Rodrigues, 17 de Novembro de 1579, Doc Ind, XI,

p. 758.(91) F. Pásio ao padre Lourenço Pásio, Goa, 28 de Outubro de 1578, Doc Ind, XI,

p. 338.(92) Fernando Alcaraz aos jesuítas de Salamanca e Alcalá, Cochim, 31 de Janeiro

de 1566, Doc Ind, VI, p. 772.

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confirmam o embarque de pessoas doentes (93); contudo, era a bordo emal se saía a barra do Tejo que as doenças começavam verdadeiramente.Até atingir a zona das calmarias na costa da Guiné poucas enfermidades seregistam, ressalvados os enjoos que, com maior ou menor intensidade, quasetodos os passageiros e muitos tripulantes experimentavam, e que se nãodeverá na maior parte dos casos considerar uma verdadeira doença. Atente-seporém no facto de muitos dos atingidos terem de permanecer acamados,por vezes durante longos períodos, carecendo de ajudas alimentares pres-tadas, na segunda metade do século xvi, quase sempre por sacerdotes jesuítas,a quem estava vedado o exercício da medicina (94), mas que serviam inva-riável e quase exclusivamente de enfermeiros de bordo. Devemos frisar,ainda, que a situação de enjoo prolongado deixava desde logo as pessoasdebilitadas, e portanto mais vulneráveis aos efeitos das doenças.

Entre as enfermidades mais vulgares na vertente atlântica da Carreirada índia contam-se «o mal das calmarias» que começava a actuar ao largoda costa da Guiné; o mal das gengivas, ou escorbuto, mais tarde conhecidotambém pela designação de mal de Luanda, que surgia quando a viagemia mais avançada, as doenças pleuro-pulmonares (prioris) que começavama actuar quando se atingiam ao sul as zonas mais frias. Para além destasdoenças mais vulgares, surgiam por vezes outras de carácter epidémico,como a descrita pelo padre Monclaro em que os enfermos apareciam «combostelas polia testa», na costa da Guiné, ou com «bichos dos pees» de queoutros iam mal tratados (95). Há ainda referências a apostemas, devidoaos açoites que os pacientes a si próprios infligiam (96), e à gota, de que sofriaum grumete (97).

O número de doentes crescia após a passagem do equador, e aumentavaainda mais ao entrar no clima frio (98).

Os cuidados profiláticos eram praticamente inexistentes; pomos mesmoem dúvida que is muitas laranjas levadas pelo capitão da nau «Chagas»,na viagem de 1565, tivessem sido embarcadas com essa preocupação, poisforam consumidas apenas com o fim de temperar «parte dei calor que entonceshazía grande, que era ai passar de Ia Línea equinocial» (99).

(93) Veja-se, por exemplo, Sebastião Gonçalves ao padre G. Vaz de Melo, Goa,10 de Setembro de 1562, Doc Ind, V, p. 531.

(94) Cf. Gaspar Dias aos jesuítas de Portugal, Goa, 30 de Setembro de 1567, DocInd, VII, p. 280.

(95) Francisco de Monclaro ao padre Leão Henriques, Moçambique, 1 de Agostode 1570, Doc Ind, VIII, p. 284 e 288.

(96) Jácome de Braga ao padre Manuel de Torres, Goa, 2 de Dezembro de 1563,Doc Ind, VI, p. 49.

(97) Francisco de Monclaro ao padre Leão Henriques, Doc Ind, VIII, p. 278.(98) Pedro da la Cruz aos jesuítas de Évora, Goa, 23 de Novembro de 1563, Doc

Ind, pp. 35 e 39.(99) Fernando Alcaraz aos jesuítas de Salamanca e Alcalá, Cochim, 31 de Janeiro

de 1566, Doc Ind, VI, p. 774.

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Quanto à terapêutica, é bem conhecida porque há abundantes referên-cias ao quotidiano dos tratamentos a bordo. Podemos adiantar que haviaduas medidas curativas específicas e quase exclusivas: as sangrias e as purgas,ambas conjugadas com uma alimentação considerada a mais adequada.

Há poucas notícias sobre a presença e intervenção de médicos a bordo,embora nunca faltasse nos navios em que viajavam os vice-reis; aliás, nestesnavios, o que poderíamos chamar de «visita de saúde» correspondia a ummodelo que devia ser o ideal mas que raramente era seguido nas outras embar-cações: «el Viso-Rey [escrevia o padre espanhol Pedro Mercado] mandollamar ai físico, eyrugiano y boticário, quales él traía consigo, y barbero deIa nao, todos bien peritos en sus officios, que cada manana ordinariamentecon uno o dos de nosotros visitassen los enfermos que veníam e los que succe-diesen. También hizo llamar su vedor, despenseros y a mi con ellos, y man-dóles (yo presente) diziéndoles todo Io que los Padres les pidiessen pera losdolientes, todo en aquel punto nos Io dieran, como gallinas, carneros, passas,almendras, confectiones, biscoto de Io bien alvo, y finalmente cada dia tenia-mos en Ia nao pan fresco, y Io que era necessário para los más debiles sedava» (100).

Mas este quadro, revelador de um bem organizado apoio sanitário,não se assemelha aos que vulgarmente se colhem a propósito de outras embar-cações; dir-se-ia que é a boa excepção de um serviço deficiente. Aliás, comoreza o documento só o barbeiro era da guarnição da nau, e na maior partedos navios era ele que actuava como sangrador, e os padres como enfer-meiros.

«Pola menhã, despois que nos encomendávamos a Deus, hia o Pe. Marcoscom o barbeiro por toda a nao e visitava todos os enfermos; eu entretamtoficava fazendo os cristeis. E os que avião mister sangrados, se sangravão;logo outros cristeis, outros a alevantar-lhes as espinhellas, da qual avia muitosque não padecião doutro mal, porque tamto que lha levantavão logo seachavão bem. Como se acabavão de vizitar, hiamos com hum baril d'agoae com huma panela d'asucar rrozado, e dávamos a todos o que via o barbeiroque tinhão nessesidade, de sua colher d'asucar rrozado e seu púcaro d'águaa cada hum» (101). Esta imagem que o irmão Jacome de Braga nos dá émais consentânea com a realidade quotidiana

Para extrair os maus humores de que, segundo se cria, o enfermo padecia,era preciso sangrar e acudir com clisteres, em qualquer dos casos consideradaa terapêutica perfeita: «Eu tinha a cargo os cristeis, os quais serviam de todaa medicina» escrevia o mesmo sacerdote. Mas as sangrias eram do mesmomodo vulgares e consideradas mais eficientes. Sangravam-se os pacientesse tinham febre, como acontecia com o mal das calmarias, sangravam-se se

(100) Pedro Fernandes (Mercado) ao padre Jacobo Mirón, Goa, 23 de Novem-bro de 1564, Doc. Ind, VI, pp. 293-4.

(101) Jácome de Braga ao padre Manuel Torres, Goa, 2 de Dezembro de 1563,Doc. Ind, VI, p. 54.

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tinham frenesis (ou prioris) devido ao frio das regiões do sul, sangravam sese as pernas e gengivas inchavam, e até se sangrava se alguém era acometidode loucura súbita. Após ter sido sangrado por nove vezes a bordo da nau«S. Paulo», o padre Manuel Álvares foi recebido na Baía pelos colegas dacompanhia que, como lhe restassem «algumas febrezinhas», trataram de osangrar mais uma vez (102). E o padre Alcaraz conta que sentindo crescera enfermidade, o sangraram «nueve o diez vezes, en Ias quales me saquaronnovienta o cien onças de sangue, con Io qual y con los poços remedyos queahy en Ia mar, lhegué a quasi no poderme mover en Ia cama de Ia grandeflaqueza, con Ia qual algumas vezes parecia que se me arrancava el anima yhartía» (103). Acrescente-se que as cem onças equivalem a 2,870 Kg desangue.

Os casos poderiam multiplicar-se, mas fiquemos por estes, que são eluci-dativos. Cremos que as sangrias foram responsáveis por muitas das mortesque houve a bordo, por serem aplicadas em pessoas altamente débeis. Colhe-mos apenas um exemplo em que um médico, após ter prescrito uma sangria,dispensou depois o paciente de a fazer «por a fraqueza e muitos dias de estreitadieta em que andava» (104).

De resto, devemos acrescentar que as sangrias, nos navios ou em terra,vão continuar por muitos anos. Ao começar o último quartel do século xvm,o ilustre governador e capitão general de Angola, D. Francisco Inocênciode Sousa Coutinho, nas instruções que deixou ao seu sucessor naquele cargo,D. António de Lancastre, escrevia, referindo-se às tropas: «Para melhor,todos os que viessem de Novembro até Junho, deviam ter o seu quartel nasFortalezas do Penedo e S. Miguel, por serem de bom ar; e se os não san-grassem tanto, seria muito melhor» (105).

3. Vida Espiritual

«Se queres aprender a orar, entra no mar», preceituava um aforismoportuguês quinhentista, e raramente a sabedoria popular terá construídouma síntese tão ajustada à realidade espiritual a bordo dos navios da Car-reira da índia (106).

Na verdade, havia vários estímulos para manter a bordo uma vida reli-giosa perene de actividade, o primeiro dos quais seria naturalmente a situação

(102) Manuel Álvares aos jesuítas de Coimbra, Baía, 4 de Julho de 1560, Doc Ind, IV,p. 630.

(103) Fernando Alcaraz, Doc. cit. supra, p. 775.(104) Manuel Lopes ao padre Francisco de Borja, Guiné, 2 de Maio de 1568, Doc

Ind, VII, p. 510.(105) Cf. Instrução de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho ao seu sucessor

D. António de Lencastre, Luanda, 26 de Novembro de 1772. Arquivo Histórico Ultra-marino, Angola, cx. 56, Doc. 81, foi. 17.

(106) Ou «se queres saber a Deus rogar emtra em o mar»; cf. Pedro Parra ao padreMirón, Doc Ind, VI, p. 306.

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de perigo iminente vivida por tripulantes e passageiros, e a consequente dis-ponibilidade psicológica para encarar a morte; era preciso estar sempre pre-parado para empreender a viagem final. Mas havia outros factores quejustificavam os frequentes actos de devoção, tais como a quadra Pascal emque decorria quase sempre a primeira parte da viagem, a estimulante presençaa bordo de agentes do clero, a obrigatoriedade regimental de cumprir pre-ceitos religiosos em determinadas circunstâncias; não menos importante,era a convicção partilhada por muitos, propalada pelos sacerdotes nas suasintervenções apostólicas, de que o êxito da viagem dependia do permanenteestado de pureza espiritual que cada um devia procurar manter a bordo,para evitar as tentações divinas, punidas com violentas tormentas, prolon-gadas calmarias e destruidoras epidemias.

O início da viagem em Lisboa coincidia quase sempre com o tempo deQuaresma. A intensificação da actividade religiosa que nesse período senota por toda a parte reflectia-se claramente nas comunidades navegantes.Os sacerdotes não se esqueciam de fazer embarcar na sua matalotagem oselementos auxiliares dos rituais sagrados. «Dia de ramos [escrevia o padreFernão da Cunha a propósito do 22 de Março de 1562] fizemos todo hoofficio que se costuma a fazer, benzendo hos ramos, que pera isso trouxemosde Portugual, com voz entoada. Despois disse missa e a paixão no mesmotom, achando-sse todos hos da nau presentes; despois fiz huma breve praticada festa, de que todos fiquaram satisfeitos e contentes» (107).

Os preceitos pascais eram de um modo geral cumpridos a bordo donavio como se de uma aldeia se tratasse, salvaguardadas as devidas pro-porções e os condicionamentos derivados do pouco espaço livre no convés.Há muitas notícias de procissões e de solenidades religiosas em que nãofaltava o lava pés (108) em dias santificados, segundo a oportunidade que aossacerdotes se oferecia: «Quinta e sesta-feira d'Endoenças [escreve BelchiorNunes Barreto] ouve ahy armar a tolda e cantarmos as lamentações e osofficios que naquelles dias podemos fazer»; o mesmo sacerdote dá-nos contanoutro passo da missiva que «Muytas picisões fizemos na nao com todas ascousas que podessem mover a gente à devação» (109).

Devemos acrescentar que as procissões não se realizavam apenas nasquadras festivas da Igreja; sucediam-se com alguma frequência: por acçãode graças, por ter acalmado alguma violenta tempestade, ou a pedir a Deusque mandasse os ventos de feição, para acabar com o terrível flagelo das calma-rias, com o seu cortejo de doenças e mal estar. «E asi tampem se faziam muitas

(107) Fernão da Cunha aos jesuítas de Portugal, Baçaim, 3 de Dezembro de 1562,em Doc lnd, V, p. 572.

(108) «A quinta-feira da Somana Santa nos ocupamos todos três em lavar os peesaos soldados e à noyte se fez huma procissão e eu fiz huma breve practica da paixão deChristo» (Sebastião Gonçalves ao padre G. Vaz de Melo, Goa, 10 de Setembro de 1562,Doc lnd, V, p. 530).

(109) Carta aos jesuítas de Portugal, Goa, 9 de Dezembro de 1551, Doc lnd II,p. 235.

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pucisãos nos dias de festas mui solenemente, onde sé levava hum crucifixo,e algumas vezes levavão relíquias de muitos sanctos encastoadas numa caxinhacom grande solenidade, cantando todos os Padres e outros cantores comvozes mui solenes; onde hião todos por sua ordem e o Viso-Rey detraz de todos.E no castelo da proa estava hum altar, e ali se punhão en geolhos todos epidiam a Deus misericórdia, e faziam ali commemoração de Nosa Senhora.E de ali se tornavam pera a popa com sua ladainha, ou quantando algum salmocom trombetas e frautas, que parecia alguma pucisão de corpus Christr E asifezemos algumas de nocte, polas necesidades que nos sobrevinham, com muitastochas e cirios acesos, pidindo a Deus muitas vezes misericórdia» (110).

Mais vulgares do que as procissões eram os actos normais do cultoque tinham lugar diariamente; ladainhas cantadas, comemorações de Santosrematadas com orações, terminadas as quais «tangiam às Ave Marias quepareciam estarmos nalguma aldeã», e a missa que todos os dias se celebravanum altar que para o efeito se erguia debaixo da tolda; aos domingos e diasfestivos dizia-se sempre missa cantada, e antes das festas ou dias santos haviavésperas cantadas, por vezes com «cantores (...) de muito boas falas, comseus tangeres e trombetas», como sucedia no ano de 1554, a bordo do navioem que seguia para a índia o vice-rei D. Pedro de Mascarenhas (111). Ostripulantes, sempre que o serviço do navio não exigisse a sua dedicação per-manente, participavam activamente no culto; e até cabiam exclusivamenteaos marinheiros as rezas de Salvé-Rainha, ditas aos sábados e as «prosasdos marinheiros antiguas a seu modo devotas» que terminavam por «humasomma de Pater noster, que [no dizer do padre Francisco de Monclaro]me parece que não há Santo nem Santa na costa de Portugal e casas de grandesromagens a que não rezem e gastam nisto mais de hora e meia». E o sacer-dote termina com estas palavras de louvor: «Andavão os fregueses a [ver]quem o faria melhor, e eu com o P.e Estevão Lopez, que nunca engenhououtro tanto na sua freguesia» (112). A iniciativa de tais orações semanaiscabia ao piloto, que nelas participava (113).

Entre os actos de assistência espiritual a bordo figuravam as confissõescom grande proeminência, quiçá a maior ocupação dos sacerdotes após aajuda aos doentes.

Por uma carta de Goa, escrita em Novembro de 1556, dirigida ao novi-ciado de Coimbra, o padre espanhol Galdamés dava conta do grande fervorque havia nas confissões e por um rol que tinha feito antes da chegada aMoçambique, dizia levar já registadas quase duzentas pessoas confessadas;desde o capitão (o fidalgo D. João de Ataíde), até os grumetes, registava

(110) Diogo de Soveral aos jesuítas de Portugal, Goa, 5 de Novembro de 1554,Doc Ind, III, pp. 109-110. O vice-rei referido era D. Pedro de Mascarenhas.

(111). Idem, ibidem, p. 109.(112) Francisco de Monclaro ao padre Leão Henriques, doc. cit. supra, p. 293.(113) Pedro de Ia Cruz aos jesuítas de Évora, Goa, 23 de Novembro de 1563, Doc

Ind, VI, p. 34.

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confissões de outros fidalgos que amiúde se confessavam; não deixavamigualmente de cumprir este preceito «otros muchos, piloto, maestro, contra-mestre, condestabre, guardián, marineros, y (...) muchos soldados», o quesignifica que toda a comunidade da embarcação se confessava (114). E nãosurpreende que assim fosse se nos lembrarmos que para além da reconhecidadevoção de alguns havia a obrigatoriedade de todos os que adoeciam seconfessarem antes de receber tratamento, aliada às confissões generalizadasem caso de perigo ameaçador.

O já aqui citado Francisco de Monclaro esclarece-nos noutra passagemda sua missiva que «Com os enfermos (...) sempre se teve em conta no spiri-tual, não nos curando do corpo sem primeiro serem curados na alma» (115),e noutro passo mais objectivo afirma que «o enfermeiro não os curava semse primeiro confessarem, e alem de se confessarem todos na Baia sem ficarnenhum, sendo poucos dias antes da Coresma, outra vez os fizemos todosconfessar pola Coresma» (116). O irmão Jácome de Braga confirma estapreocupação em curar primeiro o espírito do que o corpo, afirmando que«tamto que hum enfermava, o fazíamos aparelhar para se confesar, primeiroque nenhuma cousa, e despois de confesado e exersitado, estar conformeem tudo com a vomtade de Deus» (117); era então assistido na doença, oque na maioria dos casos significava que já podia ser sangrado e purgado.As duas passagens coincidentes apontam para uma eventual determinaçãosuperior sobre tal prática, aliás já muito antiga, pois no regimento dadoa Fernando Soares, determinava o rei, no ponto dedicado à cura dosdoentes, que «tamto que farem doemtes os faram loguo comfesar e fazerseus testamentos em que decrarem os descareguos de suas comciemcias»(118).Queixavam-se os sacerdotes que a sua permanente preocupação apostólicanão encontrava eco na convivência quotidiana dos passageiros; as discórdiassucediam-se frequentemente nas viagens, as juras, blasfémias, arrenegos, ejogos maus continuavam, e muitos morriam sem: os sacramentos porque oscompanheiros deliberadamente omitiam o seu passamento (119). Outrosporém exageravam nas suas auto-penitências e há notícias frequentes dedisciplinantes cujo fervor religioso os levava a sacrificarem-se em silêncio,com sangue e devoção (120), entre os quais se contavam os oficiais do navio, osfidalgos e cortesãos do rei (121).

(114) A. Galdamés ao noviciado de Coimbra, Goa, 4 de.Novembro de 1556, DocInd, III, p. 505. . .

(115) Francisco de Monclaro, Doc. cit. supra, p. 284.(116) Idem, ibidem, p. 291.(117) Jácome de Braga ao padre M. de Torres, Goa, 2 de Dezembro de 1563, Doc

Ind, VI, pp. 46-61.(118) Publicado in As Gavetas da Torre do Tombo, V, Lisboa, CEHU, 1965, p. 357"(119) Francisco Rodrigues aos jesuítas de Portugal, Goa, 2 de Novembro de 1556,

Doc Ind, III, p. 494.(120) Marcantonio Porcari ao padre Acquaviva, Cochim, 30 de Novembro de 1581,

Doc Ind, XII, p. 461.(121) Idem, ibidem, p. 462. :

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Os juramentos e blasfémias preocupavam tanto os sacerdotes que forampor vezes instituídas confrarias para os evitar: «Ordenamos logo a confrariado nome de Jesu, que há-de durar por todo o descusso da jornada, (...) Fize-mos logo moordomo hum fidalgo principal, que se chama Thomé da Fonseca,com hum homem honrado por escrivão, e outro recebedor, com síndicos,espalhados pollos ranchos e camaradas, que denunciavão dos que juravãoà mesa da confraria e outros de si mesmos se vinhão accusar» (122).

4. A situação psicológica do viajante.

Bem entendido, estamos perante dois tipos de viajantes distintos entresi: o padre jesuíta que vai à índia em missão espiritual, e nem sequer é supostode voltar; e bem assim a maior parte dos outros religiosos seculares e regulares;e todos os restantes, que além de fazerem o mesmo caminho por motivosos mais diversos, iam quase sem excepção animados do desejo de regressarum dia.

Temos vindo a ver que outra coisa os separa ainda: o que abunda deelementos informativos dos e sobre os primeiros falta-nos para os segundos,que naturalmente englobamos numa única categoria meramente por umaquestão de comodidade. Em rigor, quem quiser saber algo sobre os mer-cadores que viajam para a índia por conta própria esbarra com dificuldadesde grande monta, ao passo que já não é tão difícil saber algo sobre os pilotosda carreira.

Não há porém muitos indícios sobre todos estes. Trataremos aquidas duas situações que, basicamente, podemos encontrar reflectidas nas cartasdos inacianos que iam em missão.

A viagem era justamente isso mesmo — uma missão, já um serviço em si,prestado a Deus e para o acrescento do seu reino espiritual. Ao padreembarcado não faltava que fazer, e o amparo e conforto espirituais dos tri-pulantes e de outros passageiros eram desde logo o seu primeiro escopo.Todo o esforço e sacrifício daí decorrentes, directa ou indirectamente, erapois aceite nesta perspectiva, tal como tudo o que pudesse suceder entre-tanto. A sensibilidade humana era subvalorizada face à dimensão religiosada sua vivência.

Este é, ou pode ser, se quisermos ver as coisas deste modo, um sentiroficial que transparece a par e passo das cartas enviadas para o reino, a pro-pósito das mais variadas circunstâncias. Até porque não há que esquecera distância que vai do viver dos acontecimentos no momento (a eminênciade um naufrágio no meio de uma tempestade, por exemplo) até ao escrevê-lasdepois, a bom recato e em terra firme. Melchior Gonçalves escreveu umacarta de Goa para Coimbra, em 1 de Novembro de 1548, que supomos bemilustrativa do que pretendemos dizer atrás quando, a determinado passodeixa escrito: «no me acuerdo averme alledo tan entrado en Ia hora de Ia

(122) Francisco de Monclaro, doc. cit. supra, p. 283.

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muerte mi nunqua tanto medite, y me conocí que avia de morir, como enel cabo de Buena Sperança. Venístesme todos a Ia memória y llevávaos atodos atravesados por Io poço que me aproveché de vosotros, empero enextremo consolado debaxo de mi deseada y nunqua acabada obediência» (123).

Destoa francamente do tom geral destas cartas uma que já citamos atrás,a de D. Gonçalo da Silveira para o padre Gonçalo Vaz, enviada de Cochimem Janeiro de 1557. Estamos perante um verdadeiro catálogo das condiçõesda viagem que geravam o medo: o medo da morte, o medo de andar no mar.D. Gonçalo não hesita em utilizar amiudadamente vocábulos que não encon-tramos frequentemente em circunstâncias semelhantes, tais como «terror»,«angústia», ou «agonia». Mas somos forçados a seguir o texto, longamenteembora, sob pena de perder a autenticidade do relato.

D. Gonçalo põe a tónica deste no facto de a viagem para a índia não sepoder relatar a quem nunca a viveu, e num passo elucidativo que vale a penarelembrar: «assi o trago que passão os que navegam de Portugal a índia,não o pode contar senão quem o passa nem o pode entender senão quem ove passar» (124). E logo prossegue: «E assi, como os homens que primeiravez se viram na hora da morte, lhes parece que nunqua ouviram fallar nella,assim quem se vio em aquelles golfãos não lhe alembrava cousa que lhe tives-sem dito da verdade e terror presente, e sua, que passada, nem bem imaginarse pode. Assi, e sem mais nem menos, a angustia e agonia em que se vemos passajeiros desde occidente ao oriente, em que estamos os que nos vemosfora dela (ainda que o trabalhemos) nunqua a podemos vivamente representarcomnosco mesmos» (125).

Sigamos um outro passo, ainda um pouco mais longo, ainda mais impres-sivo na pena de claro recorte literário deste padre que escreve como homematemorizado face à fúria dos elementos com que se vê defrontado, antes deo fazer alicerçado na sua posição e na superioridade espiritual que, mesmoinconscientemente, se vê ressaltar noutras ocasiões. Continua D. Gonçalo:«Nunqua se virão suores de morte como os que se suão na costa da Guine.Nunqua se virão membros frios como os que cortão os ventos de Boa Espe-rança. Nunqua se virão desmaios mortaes, como os que se passão nosbalanços que as nãos fazem neste cabo. Nunqua se virão dar golpes navida, como as machadadas que dão os mares neste cabo. Nunqua se virãotermos de morte e tão pranteados, como trazem consigo os pes de vento quefuzilam neste cabo. Nunca se vio morrer homem cercado de termores esaudades do que neste mundo deixa e no outro se spera, como os que se vemnesta carreira, vendo muytos mortos e lançados ao mar e todos os outros,antre os quaes ficam velhos ainda para morrer de fome, de sede, de doençasgravíssimas e de perigos do mar innumeraveis, de baxos, de penedos, de costas,de encontros de nãos e de sorvo de mares. Vossa Reverencia imagine como

(123) Doc Ind, I, pp. 305-15.(124) Documentação, VI, p. 189.(125) Ibidem.

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se pode escapar a morte que spera a tantos portos quantos palmos ha dePortugal a índia» (126).

Diga-se finalmente que D. Gonçalo não poupa tinta a escarnecer dospilotos, cuja função, tal como a dos físicos, é consolar quem vai nas naus.Porque quanto à governação das mesmas deixam muito a desejar: comparamas paradisíacas ilhas de Ascenção com as desérticas ilhas de Martins Vaz;indo pelo mesmo caminho, uns iam parar às proximidades do Congo, outrosamanheciam na Costa do Natal; querendo-se chegar a Moçambique viam-sedos lados do pólo. Enfim, tudo se sintetiza na ironia destrutiva desta simplesfrase: «o fisico-mor da capitania, digo o seu piloto, por consolar ao nossoe a nos, dizia, se me mal não alembra, que a sua nao lhe furtara duzentaslegoas ou mais» (127).

Jerónimo Lobo, por seu turno, não é parco em descrições de condiçõesatmosféricas e dos reflexos das mesmas sobre os viajantes. Era assim naCosta do Natal, sempre temida pelos mareantes: «ar (...) asombrado e malen-colico, cuberto de nuvenis negras, os mares grosos, as noites medonhas etristes, os chuveiros grosos e pezados, os ventos fortes e impetuosos. Porvezes nos acometeo o tempo com grande fúria mas de pouca dura, mas dequalquer maneira ha sempre muito para temer, muito mais dos novos nave-gantes» (128).

A bordo os homens sentiam-se à mercê das intempéries, e o escapar deum acidente grave sem sequelas de maior era tomado como sinal da graçade Deus. Aconteceu assim quando, ainda segundo o padre Lobo, caiuum raio no topo do mastaréu que veio até à coberta arrancando quinze lascasde madeira da largura de braços. Apesar de tudo, só se registaram doisferidos. Fez-se por isso uma procissão e Jerónimo Lobo fez um ser-mão (129).

Esta intranquilidade permanente dava naturalmente lugar a uma enormealegria mal se aproximavam de um porto: mesmo que não fosse em circuns-tâncias desejadas, como as arribadas, sobretudo para quantos suportavammal a viagem. Quando a armada de 1621 resolve arribar a Lisboa, tantoera o atraso que levavam e a moléstia de quem seguia a bordo, todos, emconselho, se manifestaram a favor, excepto o vice-rei D. Afonso de Noronha,«por crédito seu», e o capitão da nau D. Francisco Lobo, que nessa mesmanau arribara no ano anterior. E mal a notícia se espalhou «foy tal a alegriacom que os mais enjoados e enfastiados do mar, que era a maior parte dagente, a festejarão que não poderia ser maior a que mostrarião se chegassemao porto e termo da navegação em que desejavão ancorar» (130). Só se

(126) Ibidem, pp. 189-90.(127) Ibidem, p. 190.(128) Jerónimo Lobo, Itinerário, ed. M. Gonçalves da Costa, s/l, Liv. Civilização,

1971, pp. 178-9.(129) Idem, ibidem, pp. 179-80.(130) Idem, ibidem, pp. 156-7.

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exceptuavam aqueles a quem a viagem interessava por causa dos cargos oufazenda nela empenhados (131).

Medo das intempéries e dos acidentes, consciência permanente dos riscose da dependência de factores não controláveis, o isolamento e solidão, aliadosà rigidez, dureza e más condições da vida a bordo, por vezes a falta de con-fiança na competência dos homens do mar, faziam com que a viagem para aíndia fosse psicologicamente difícil de suportar. Daí o ambiente de con-flitualidade que se revelava ao menor pretexto, só controlado, na verdade,pelo peso da hierarquia e a recorrência a Uma disciplina extremamente dura,de que os regimentos conhecidos dão bons exemplos, como se disse atrás.Por tudo isto, o padre Francisco Roiz pedia de Goa aos seus irmãos de Por-tugal : «tenhais particular memória em vossas orações dos homens que navegãoos quais andão em tantos perigos que parecese não poder crer se não de quemos ve» (132).

5. Recreação a bordo; correio.

Divididos por esquadras a mando dos oficiais, a vida quotidiana dostripulantes era em boa parte preenchida pelos quartos em que estavam deserviço. Em muitas outras ocasiões era-lhes ainda requerido um esforçosuplementar: sempre que se estava na iminência de combate ou se navegavaem zonas onde se sabia pairarem os corsários, obrigando por isso a precauçõesde vigilância reforçadas, nas manobras, quando havia mau tempo, ou nasoperações de carrego e descarrego das naus. O tempo livre não era realmentemuito, embora em circunstâncias de navegação fácil e continuada pudesselevar a uma maior libertação das tarefas diárias, para não falar, claro, daimobilização forçada pelas calmarias, pelas arribadas ou invernadas à esperada monção para a índia.

A dureza da vida a bordo acrescida da situação de pressão psicológicaconstante tornava particularmente importantes os momentos de descon-tracção, repouso, ou simples desocupação que, como acabamos de ver, tãopouco se repartiam equilibradamente: ou eram de menos ou eram de mais.Nestas circunstâncias, tudo o que fosse uma quebra da rotina do dia-a-diacontinha potencialmente um carácter lúdico. A própria actividade religiosapode ser entendida assim, mormente nas suas expressões mais chamativas,como as procissões. E é precisamente neste domínio que encontramos umadas actividades que mobilizava mais gente e por mais tempo: o teatro.

Independentemente de serem representadas por ocasião de qualquerfestividade religiosa particular, e de terem como fim último um propósitoespiritual (doutrinação e moralização dos passageiros e tripulantes), as peçasteatrais eram o único espectáculo organizado a bordo, se nos podemos expri-

(131) Idem, ibidem, p. 157.(132) Documentação, VI, p. 112.

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mir assim; e ocupavam os seus participantes alguns dias a fio na preparaçãoda representação.

A primeira menção de teatro a bordo surge-nos numa carta do padreBartolomeu Vallone, escrita de Baçaim a 28 de Novembro de 1574(133).Vallone saíra de Lisboa a 21 de Março de 1574 na nau «Santa Bárbara»,uma das cinco da armada desse ano, capitaneada por Manuel Pinto Leitão.Pela festa do Corpo de Deus, que caiu então a 10 de Junho, representou-sea bordo um auto sacramental que o padre Pedro Ramón escreveu proposita-damente em castelhano, inspirando-se porventura no Auto da Fé de GilVicente que já corria na edição de 1562 (134). O próprio Vallone escreveriauma comédia sobre o martírio de Santa Bárbara, que foi apresentada depoisdo cabo da Boa Esperança. É evidente que não se pode tomar o termocomédia no sentido que é hoje usual. No dizer de Mário Martins, «na con-cepção clássica, comédia não implicada sempre humorismo nem sátira. (...)Distinguia-se da tragédia por nela figurarem pessoas de classe humilde ou,pelo menos, pessoas privadas» (135).

Na nau «S. Francisco», capitaneada por João Trigueiros com Antóniode Melo por capitão-mor da armada desse ano de 1583, houve uma outrarepresentação por altura da festa de Pentecostes ou do Espírito Santo.O missionário italiano Fúlvio de Gregori, que nos deixou a notícia, assinaloutambém um facto extraordinário: foram os soldados e marinheiros a fazerpelo menos três representações por sua iniciativa, uma das quais foi a Vidae Morte de S. João Baptista, de autor desconhecido (136).

Na nau «Santiago», em 1585, representou-se o auto sacramental Tenta-ções de Cristo no Deserto, integrado na procissão da festa do Corpo de Deus.Da temática escolhida, baseada no capítulo IV do Evangelho de S. Mateus,ressalta uma grande carga dramática, que neste caso parecia prenunciar umdrama real: comandada por Fernão de Mendonça, a nau veio a afundar-se nosbaixos da índia (137).

Há que registar ainda o caso de uma representação tripartida, integradano próprio desenrolar de uma procissão, em que o 1.° acto decorreu antes docomeço desta; o 2.° no castelo da proa; e o 3.° junto da tolda, no fim docortejo. Depois atirou-se o demónio para o inferno, isto é, um boneco parao forno (138).

A encenação destas peças era naturalmente rudimentar. É possível queo carpinteiro edificasse uma ou outra pequena construção de madeira para oscenários, mas dada a sua inevitável pobreza e «a pouca destreza dos actores

(133) Seguimos aqui o excelente estudo de Mário Martins cit. supra (v. n. 8). Nesteparticular, cf. p. 15.

(134) Idem, ibidem, pp. 16-7.(135) Idem, ibidem, p. 19.(136) Idem, ibidem, pp. 39-42.(137) Idem, ibidem, p. 43.(138) Idem, ibidem, p. 46.

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amadores» é quase seguro que as peças seriam introduzidas por um ensaia-dor ou director de cena (139), improvisado como todos os restantes, e prova-velmente o próprio Autor nos casos em que ia a bordo.

Como de resto seria de esperar, não encontrámos qualquer referência ateatro profano.

Associada a estas representações surge-nos a notícia da realização deuma tourinha a bordo (140), isto é, uma corrida de novilhos mansos ou,neste caso, uma imitação de corridas de touros, sendo estes figurados porcanastras ou bonecos de verga (141). A tourada improvisada ocorre tambémno Itinerário de Jerónimo Lobo, bem mais tardio, mas o costume relatado,sem dúvida, vem do século xvi: os «touros» eram aqui tintureiras pescadaspor altura das calmarias, e lançadas no convés com os olhos vazados. Osmarinheiros tinham também por costume atar botijas bem vedadas na bar-batana da cauda destes peixes, que depois atiravam ao mar divertindo-se avê-los tentar mergulhar sem o conseguirem fazer (142). Entretendo aspor vezes longas permanências em zonas de calmaria, estes divertimentosfuncionavam igualmente como compensação para o medo que todo ohomem do mar tinha de tubarões ou outras espécies que considerasse apa-rentadas.

Muito mais frequente porque susceptível de ser praticado a qualquermomento, o jogo (o jogo de azar sobretudo) era a mais frequente das distra-ções, e acabava por ser aceite embora mal visto pela hierarquia de bordo epelos religiosos.. Não era tanto o jogo em si mesmo, cuja importância paratornar mais toleráveis as condições de vida a bordo, tanto no caso dos tri-pulantes, como no dos passageiros, era claramente entendida por todos.Reprovavam-se sobretudo as consequências que daí advinham, barafundas,zaragatas, imprecações.

Um exemplo típico é-nos contado mais uma vez por Jerónimo Lobo:um homem acabado de casar converteu os seus bens em patacas para ir àíndia, embarcando como bombardeiro. Depois de quase ter desbaratadoo dinheiro que conseguira assim reunir, gritava e blasfemava sempre queperdia, o que levou um padre a exortá-lo a ao menos não perder a alma,já que perdia a fazenda. Aliás, era esta uma das recomendações do regi-mento que os jesuítas levavam para a viagem: «atalhar desavenças entrefidalgos e evitar os jogos» (143).

O padre Diogo de Soveral, em carta escrita de Goa a 5 de Novembrode 1554, conta o caso de um homem que foi posto de serviço à bomba pelocapitão, por ter sido encontrado a jogar num domingo de manhã: o que é,

(139) Idem, ibidem, pp. 57-61.(140) Manuel Godinho Cardoso, «Relação do naufrágio da nau Santiago», in

História Trágico-Marítima, vol. IV, Lisboa, Biblioteca de Clássicos Portugueses, 1904.(141) Dicionário de Morais, 10.a ed., vol. III, p. 825 e vol. XI, p- 75.(142) Jerónimo Lobo, Itinerário, ed. cit., p. 152.(143) Documentação, V, p. 355.

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talvez ainda mais que boa parte dos castigos corporais, uma das puniçõesmais duras que se podiam infligir (144).

Há muitos indícios explícitos de que os religiosos toleravam mal a práticado jogo. Sirvam dois exemplos, por todos. O padre Francisco Roiz escre-veu de Goa a 2 de Novembro de 1556, e explicitava o que considerava seremas vantagens da ida de religiosos a bordo: «eu teria por mui bem empregadoqualquer pessoa da Companhia em estas viagens e creo que faria Deos muitamercê aquelle a quem as concedesse porque, alem deste socorro corporal,se serve a Nosso Senhor muito em outros exercicios espirituais, como con-fessar enfermos, os quais muitas vezes morrem sem confissão por falta dequem lhe proponha o que lhe convém a suas consciências, mas ainda em evitarjuramentos de que muitos se evitão se ha quem nos reprehenda, em evitarflasfemias [sic] e arrenegos e muitos jogos mãos, como pela bondade de NossoSenhor nesta nao em que vínhamos se evitarão, e em ouvir muitas confissõesde sãos que na verdade se fazem se ha quem nas procure» (145).

Sempre que possível, pois, os padres da Companhia de Jesus procura-vam-no reprimir radicalmente; e penalizavam-se se só o conseguiam fazerparcialmente, como o padre Manuel Fernandes escrevia de Moçambiquea 6 de Agosto de 1555: «tirão-se os jogos, ainda que não os necessários, porevitar ociosidade» (146).

Finalmente, resta-nos referir os leilões. Faziam-se sempre em duasalturas. Uma delas quando morria alguém: os bens eram inventariados evendidos em hasta pública por ordem do escrivão. Era um pagem qu2 faziade pregoeiro (147).

Por altura do cabo das Agulhas aproveita-se a riqueza piscícola daságuas para prover a nau. O primeiro pescado era então licitado a favor deuma confraria ou obra pia, atingindo por vezes montantes muito elevados.Dizia Jerónimo Lobo que: «lá vi pescada por que dava vinte patacas valendohua quando muito» (148). A quebra da vivência quotidiana ordinária eraassim uma forma de distracção.

A primeira notícia de correio na Carreira da índia vem-nos da armadade Cabral, com o reenvio para Lisboa de uma nau a dar notícia do descobri-mento do Brasil (149). Nela vinham duas cartas célebres, a de Pero Vazde Caminha e a de Mestre João.

(144) Doc Ind, III, p. 112.(145) Documentação, VI, p. 110; sublinhado nosso.(146) Ibidem, VI, p. 15.(147) François Pyrard de Laval, Viagem, ed. cit., II, pp. 143 e 145.(148) Jerónimo Lobo, Itinerário, ed. cit., p. 177.(149) Fortuito ou planeado, efectivo ou meramente «oficial», não discutiremos aqui

o controverso problema do descobrimento do Brasil.

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O que nos importa agora é todavia o correio dos embarcados em cursonormal de viagem para ou da índia. Não é difícil de ajuizar de sua efectivaimportância no quebrar do isolamento e do desconhecimento do que se iapassando à volta para quem podia chegar em casos extremos a estar quaseum ano sem receber ou enviar notícias de qualquer sorte.

São bem conhecidas as quatro oportunidades em que comummente seoferecia a possibilidade de contacto por escrito com o exterior, pelo quenos limitaremos a um breve apontamento. A primeira era através da cara-vela de aguada, que amiúde descia com as armadas até à altura da Guiné,antes de voltar ao reino. Geralmente levava então algumas cartas, mas porvezes tal não era possível, como se vê por um trecho que além do mais nosrevela uma forma pouco conhecida de fazer aguada: «E nestas uitavas, peraa festa ser mais perfeita, quis Noso Senhor dar-nos vista das outras nãos,das quais até antão não tínhamos novas nem esperanças de as achar; noqual dia se despedio delas a caravella da agoada pera o Reino, sem ter vistade nós nem nós dela, e por iso lhe não pudemos escrever por ella. Foi emestremo grande alegria que tivemos em ver as nãos todas juntas en salva-mento, e elas ficarão muito suspensas nara se sabendo determinar que naoseria a nosa, e mais se affirmavam ser alguma nao que vinha da índia e pornão poder tomar a ilha de Sancta Elena andava na costa tomando agoa dastrovoadas, porque asi custumão fazer» (150).

Quando se encontravam naus que seguiam a rota inversa tomavam-seestas como portadoras de cartas. O padre Quadros relata-nos porém oque sucedeu à nau em que ia embarcado em 1555: ao ter contacto visualcom duas outras naus que iam de S. Tomé ao reino, por altura da Guiné,entenderam seguir em frente em vez de as esperarem porque havia tão ruinsventos naquela costa que achavam preferível fazê-lo, pouco que fosse, em vezde se deterem para escrever (151).

As arribadas forçadas eram ocasião para pôr as novidades em dia.A incumbência dada aos jesuítas no sentido de darem notícia da sua viagemera quase sempre seguida à risca, e se acaso iam parar ao Brasil aproveitavamlogo para escrever daí. E sabemos até quem terá sido o portador da cartaque o padre Manuel Álvares escreveu da Baía para Coimbra (152).

Por último, as escalas eram por excelência, a ocasião a aproveitar. NaMadeira, se aí tocavam à ida, deixavam-se algumas cartas. Fê-lo, por exem-plo, o já citado padre Diogo de Soveral, em 1554(153). Mas eram sobre-tudo as que se usavam regularmente que melhor serviam a este propósito,como sucede logo desde as primeiras viagens. Assim, Pêro de Ataíde, com-panheiro de Álvares Cabral, deixou na aguada de S. Brás, num sapato, notíciassobre a viagem feita até então para serem levantadas pelos navegadores que

(150) Doc Ind, V, p. 365.(151) Ibidem, III, 389.(152) Ibidem, IV, p. 630.(153) Documentação, V, p. 350.

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tocassem depois aquele ponto, aos quais ficava dito que António Fernandes,em Mombaça, era depositário de outras novas (154).

Santa Helena era um local privilegiado, em relação ao qual dispomos deum interessante depoimento de Pyrard de Laval. Por ele sabemos que eraa capela o local onde se deixavam e recolhiam as cartas, sistema que funcio-nou muito bem até os holandeses começarem a visitar a ilha e a adoptar omesmo procedimento. Foram eles que destruíram depois o altar e a cruzde cantaria que existia ao fundo, em desforra dos portugueses terem porcostume tirar os painéis, imagens, bilhetes e escritos que aqueles lá deposi-tavam. Teriam até, em dada altura, escrito uma mensagem aos navegadoresportugueses: «deixai as nossas imagens e painéis, que nós deixaremos osvossos». Mas sem resultado, segundo nos conta o viajante francês (155).

Era usual também deixar gravado o nome e a data da passagem numtronco de árvore. Laval diz que lá viu inscrições de 1515 e 1520 (156).

Charles Boxer chamou-nos a atenção para uma passagem do diário deD. António de Ataíde indiciadora de uma prática que supôs comum, masda qual não encontrou qualquer outro exemplo. A passagem em causa éa seguinte: «Oje me deu António Correia hua carta de dona Anna que acaboude me aperfeiçoar o gosto do dia. Deus me deixe tomar a vela». Percebe-seque D. Ana de Lima, mulher do capitão-mor, terá entregue a um tripulantealgumas cartas que aquele ia dando espaçadamente a D. António (157).Mas deve acrescentar-se que não nos foi dado, também, encontrar qualqueroutro caso desta natureza.

«DA NAVEGAÇÃO ACUSTUMADA» ÀS TENTATIVAS DE ALTERAÇÃO DA CARREIRA

Em 1556 o militar e diplomata João Pereira Dantas avançava com umprojecto estruturado de alteração da orgânica da Carreira da índia. Instadopor D. João III a pronunciar-se sobre as razões que levavam à perda exces-siva de homens e navios, no trânsito anual regular da Carreira, Pereira Dantaspropunha que:

a) se encontrasse um local, entre o cabo da Boa Esperança e a baíada Lagoa, capaz de nele ser erigida uma fortaleza que funcionasse comoponto de apoio para as armadas;

b) as armadas sairiam de Lisboa em Setembro, Outubro ou princípiosde Novembro, e, no Índico, usariam sistematicamente a rota por fora dailha de S. Lourenço.

(154) Luís de Albuquerque, Navegadores Viajantes e Aventureiros Portugueses, I,Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, p. 193.

(155) Pyrard de Laval, op. cit., II, p. 217.(156) Idem, ibidem, p. 221.(157) C. R. Boxer, «The naval and coJonial papers of Dom António de Ataide»,

Harvard Library Bulletin, vol. V, 1951, p. 32.

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As novidades da proposta consistiam assim na necessidade de construira fortaleza, na alteração do timing usual da Carreira, e na adopção da rotapor fora, só usada até então pelas naus que chegavam tarde para apanharema monção que lhes permitia seguir a chamada rota por dentro, isto é, pelocanal de Moçambique.

Vantagens? Para João Pereira Dantas eram quase inumeráveis.Em primeiro lugar, a alteração não acarretava despesa: a nova fortaleza

controlaria o comércio no seu hinterland, e os lucros pagá-la-iam, sem quese viesse a prejudicar o importante centro económico que era Sofala, dadaa distância a que se encontrava.

Em contrapartida, a viagem de ida e volta à índia seria encurtada cercade dez meses. Aumentava-se o tempo de permanência na índia (o quegarantia maior capacidade negociai para o carrego das naus) e diminuia-seo de navegação: portanto melhoravam as condições da vida a bordo e per-diam-se menos vidas, o que além do mais resultava em benefício económicopara o Estado. A paragem nesta escala providenciaria em melhores con-dições do que até então a possibilidade de reabastecer e proceder aos con-sertos necessários nas naus. Na torna-viagem desaparecia a obrigação deinvernar caso as condições meteorológicas fossem más: bastava uma abertade três ou quatro dias para que se pudesse contornar o cabo, dada a sua proxi-midade. E, de um modo geral, quer a mudança de rota quer a alteraçãoda época do ano em que passaria a ser percorrida fariam com que as condi-ções climatéricas da viagem melhorassem substancialmente, pela reduçãodas grandes amplitudes térmicas normalmente verificáveis, o que poupariamuitas das vidas que se perdiam por falta de resistência orgânica a essasbruscas alterações.

Enfim, ganhar-se-ia assim rapidez, economia e segurança, poupavam-sevidas humanas e reduzir-se-ia drasticamente o número de naufrágios na Car-reira. Tais eram os benefícios que João Pereira Dantas reclamava poderemresultar das reformas que propunha no seu parecer, numa altura em que sedobravam os meados do século xvi e a experiência adquirida na navegaçãoda índia não era já despicienda (158).

Proposta ainda mais arrojada fez porém Pêro Lourenço, quase meioséculo antes, em carta que escreveu de Santarém ao rei (159). Está datadade 31 de Janeiro de 1510 e desconhecemos os motivos que o levaram a fazê-lo:se por iniciativa particular, a pedido do monarca, ou qualquer outro.

(158) Temos vindo a seguir a par e passo o detalhado estudo que Maria EmíliaMadeira Santos dedicou ao plano de João Pereira Dantas, ao qual apensou o parecer emcausa e outra documentação: O carácter experimental da Carreira da índia. Um planode João Pereira Dantas, com fortificação da África do Sul (1556), Lisboa, JIU-AECA, 1969.

(159) Publicada in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na ÁfricaCentral 1497-1840, vol. II, Lisboa, CEHU-NARN, 1963, pp. 408-15. Foi Luís de Albu-querque que chamou a atenção para a importância deste documento no artigo «A Carreirada índia», cit. supra.

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Invocando o «menos perygo de vosos naturaes e gasto da vosafazenda» (160), a alternativa de Pero Lourenço é simples e radical. O reidevia nomear um capitão perpétuo (para poder exercer a sua autoridadesem pressões) de uma fortaleza que devia ser, na ilha de Moçambique, overdadeiro eixo da Carreira. Aí estanceariam os homens necessários paraa sua defesa e reparação das naus, e tudo o que os reabastecimentos reque-ressem. A Carreira, na realidade, dividir-se-ia em duas: manter-se-ia umtrânsito comercial regular com a índia, e as naus que daí viessem vinhamdescarregar a Moçambique, onde outras naus vindas do reino iam buscaras mercadorias que aí estivessem depositadas para as trazer de volta a Por-tugal. Em «seys ate sete meses poderam ir e vyr em toda sua força e

frasqua de jemte e menos gasto de mantymentos» (161). De acordo comPero Lourenço acabaria a Carreira da índia, mas perder-se-iam menos vidas,naus, fazendas e ganhar-se-ia pela menor despesa, nomeadamente em manti-mentos. De Lisboa a Moçambique ou de Moçambique à índia as condiçõesde vida a bordo seriam naturalmente bem melhores que aquelas que temosvindo a descrever, em consequência directa do encurtamento do tempo daviagem.

Como se sabe, nenhum destes projectos saiu do tinteiro para o planodas realidades: concorreram para isso, não é difícil de adivinhá-lo emboranão possamos discutir aqui os termos do problema, motivos de naturezapolítica, económica e financeira, militar e estratégica. Não restam porémdúvidas de que desde muito cedo se fez sentir o peso do desgaste humano ematerial causado pela Carreira da índia; que qualquer deles poderia melhoraras condições em que se fazia o comércio entre Portugal e a índia, nomeada-mente no que toca às circunstâncias em que se vivia a bordo; e que essamelhoria teria repercussões directas e muito sensíveis no número de mortese enfermidades registadas nas naus, já para não falar nas condições psicoló-gicas em que tripulantes e passajeiros viajavam.

(160) Documentos sobre os Portugueses..., II, p. 408.(161) Ibidem, p. 412.

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