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A concretização inventiva de si a partir da perspectiva do ... · esquema conceptual à...
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Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.10,N.42019,p.2367-2398.BethaniaAssyeRafaelRoloDOI:10.1590/2179-8966/2019/37973ISSN:2179-8966
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A concretização inventiva de si a partir da perspectiva dooutro: Notas a uma Antropofilosofia Decolonial emViveirosdeCastroThe inventive embodiment of oneself from the perspective of the other:NotestoaDecolonialAnthropophilosophyinViveirosdeCastro
BethaniaAssy11PontifíciaUniversidadeCatólicadoRiodeJaneiroeUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,RiodeJaneiro,Brasil.E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0003-2290-3457.RafaelRolo22PontifíciaUniversidadeCatólicadoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,RiodeJaneiro,Brasil.E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0001-9060-7380.Artigorecebidoem2/11/2018eaceitoem10/08/2019.
ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense.
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Resumo
Esse artigo reivindica a inscrição da antropologia americanista na obra de Viveiros de
Castrosnoseiodeumateoria-práticadadescolonizaçãopermanentedopensamento.O
esquema conceptual à disposiçãonoperspectivismoemultinaturalismoameríndio, se
levadoà sério,muitomaisdoque simplesmente inverterou revertera summadivisio
tradicional entre natureza e cultura, propõe a problematização das assimetrias
constitutivasdecadapontodevistaparticular.Aexperiênciadepensamentoviabilizada
pelaantropologiadospovosameríndiospermitenãosimplesmenterepensararelação
entrehumanosenão-humanos,ouentrenaturezaecultura,mas,aoexigirumespecial
engajamentode todosqueentramemcontato comaproblemática associada a esses
dualismos, garante sustento e apoio para a crítica das fronteiras e obstáculos
tradicionais erigidos pela imagem dogmática do pensamento filosófico. O presente
artigo propõe um debate em duas partes com o perspectivismo ameríndio teorizado
pelo antropólogo brasileiro. Em um primeiro momento, serão expostos os principais
delineamentos dessa antropofilosofia, concebida como uma rede de relações. Na
segundaparte,tentar-se-áapontarbrevementealgumasimplicaçõesdesseprojetopara
uma ética performativa radical, nas quais o humanismo ameríndio e o xamanismo
cosmopolítico serão considerados. Se, diferentemente do pensamento europeu, a
humanidade é assumida pelos ameríndios como elemento dado a todas as
individualidades existentes, que humanidade é essa que, paradoxalmente, deve ser
constantementereafirmada inactuemsuarelaçãocomocorpo,sobpenadeperecer
diantedalógicadapredação?Nãoháqualquerprivilégiometafísicodohomosapiensno
contexto da “ontologia amazônica da predação” (que, todavia, antes de ser uma
ontologiaéumapragmáticaradical),pois,ondehá intencionalidadeportodocanto,o
humanonãopodeestarinequivocamentesegurodesuacondição.
Palavras-chave:Perspectivismoameríndio;Multinaturalismoameríndio;Descolonização
do pensamento; Alteridade performática radial; Eduardo Viveiros de Castro;
Antropofilosofia;Ontologiaamazônicadapredação.
Abstract
ThisarticleclaimstheinscriptionofViveirosdeCastros’amerindiananthropologyatthe
core of a practical-theory of a permanent decolonization of thinking. The conceptual
scheme available in Amerindian perspectivism andmultinaturalism, if taken seriously,
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muchmorethansimplyreversingthetraditionalboundarybetweennatureandculture,
proposestoproblematizetheconstitutiveasymmetriesofeachparticularpointofview.
The experience of thought made possible by the anthropology of the Amerindian
peoples allows us not simply to rethink the relationship between humans and
nonhumans. It rather provides sustenance and support for a criticism of traditional
boundariesandobstacleserectedbythedogmaticimageofphilosophicalthought.This
paper proposes a two-part debate with Amerindian perspectivism theorized by the
Brazilian anthropologist. At first, the main outlines of this anthropophilosophy,
conceivedasanetworkofrelationships,willbeexposed.Inthesecondpart,wewilltry
to briefly point out some implications of this project towards a radical performative
ethics,inwhichtheAmerindianhumanismandtheshamaniccosmopoliticswillbetaken
intoaccount. If,unlikeEuropeanthought,humanity is takenbytheAmerindiansasan
elementgiventoallexistingindividualities,whathumanityisitthat,paradoxically,must
be constantly reaffirmed in its relation to the body, under penalty of perishing in the
faceof predation’ schema?There is nometaphysical privilegeofhomo sapiens in the
context of the “Amazonian ontology of predation” (which, however, before being an
ontologyisaradicalpragmatics),becausewherethereisintentionalityeverywhere,the
humancannotbeunambiguouslysureofitscondition.
Keywords: Amerindian perspectivism; Amerindian multinaturalism; Decolonization of
thought;Radialperformancealterity;EduardoViveirosdeCastro;Anthropophilosophy;
Amazonianontologyofpredation.
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Introdução
O queainda dizer doHomem? Seu fim já foi anunciado e não é de hoje. A crítica ao
conceito de Homem é, talvez, tão antiga quanto o próprio conceito e, inobstante a
ancestralidadedaquestão,afactualidadedeseufimseapresentacomoumpersistente
(eresistente)embaraçoparaafilosofiaocidental.AquestãoarespeitodoHomem(do
humano, da humanidade, de sua cultura, enfim) parece ser tanto inevitável como
intransponível.Adificuldadeno tratodo temaé tantosignodopesometafísicoquea
tradiçãodopensamentoocidentallheimpõe,comodafissura(fêlure,crack)detodoseu
edifícioaxiomático,apontandoparaoutrasdimensõesdemundo.
A fenomenologia desse encontro com o absolutamente diferente é
concretamente experimentada (e experienciada) a partir daquilo que a antropologia
denominade“choquecultural”1,consequênciadeumtrabalhodecampo2responsável
nãosomentepela invençãodoalheio,mastambémpelacontrainvençãodoqueháde
mais próprio àquele que passa pelo experimento/pela experiência3. Assim, se o
problemadoHomemnoparadigmada filosofiaocidentalpareceseconsubstanciarna
constante crise face ao esgotamento da própria questão, talvez seja o momento de
consideraroutrasviasde inquiriçãoque levememcontaaexperiênciado“choque”e
possibilitemacontrainvençãodaquiloqueestámaispróximo4.
É preciso considerar, com as Metafísicas Canibais de Viveiros de Castro, a
necessidadedeumAnti-Narciso5.Istoé,éprecisorepensararelaçãoentreohumanoe
1 “A cultura é tornada visível pelo choque cultural, pelo ato de submeter-se a situações que excedem acompetênciainterpessoalordináriaedeobjetificaradiscrepânciacomoumaentidade–elaédelineadapormeiodeumaconcretizaçãoinventivadessaentidadeapósaexperiênciainicial”(WAGNER,Roy.Ainvençãodacultura.SãoPaulo:UBU,2017,p.32)2Nemtodo“trabalhodecampo”évoluntárioeacadêmico.Arespeito,conferir:“Comaexpansãopolíticaeeconômica da sociedade europeia no século XIX, muitos povos tribais domundo todo se viram em umasituaçãode‘trabalhodecampo’,semquetivessemalgumaresponsabilidadeporisso.‘Trabalhodecampo’talvezsejaumeufemismoparaaquiloquemuitasvezesfoipoucomaisqueumchoqueculturalcontinuado,cumulativo(...)”(Idem,p.63).3 “Éapenasmedianteuma ‘invenção’dessaordemqueo sentidoabstratode cultura (edemuitosoutrosconceitos)podeserapreendido,eéapenaspormeiodocontrasteexperienciadoquesuaprópriaculturasetorna‘visível’.Noatodeinventaroutracultura,oantropólogoinventaasuaprópriaeacabaporinventarapróprianoçãodecultura”(Ibidem,p.29).4 “(...) [N]a tentativa de se identificar com os que têm um modo de existência distinto do seu paracompreendê-lomelhor,do interior,dividindosuasalegriasetristezaseasrazõesquealegamparafazeroquefazem,vocêseránecessariamentelevado,porcontraste,aquestionaraevidênciadoshábitosdevidadesuaprópriacomunidade.Vocêsetornaráumpoucodiferente,edependendodotempoquepassarlongedecasa, poderá se tornar quase estrangeiro ao que era antes” (DESCOLA, Philippe.Outras culturas, outrasnaturezas.SãoPaulo:Editora34,2016,p.10).5“Aquestãoaxiald’OAnti-Narcisoéepistemológica,ouseja,política.Seestamostodosmaisoumenosdeacordoparadizerqueaantropologia,emboraocolonialismoconstituaumdeseusapriorihistóricos,está
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onão-humanodemodoapermitira(contra-)invençãodenovosregistrosdepossíveis,
aocontrárioda soluçãousualquepassapelaconstante reativaçãodamesmaquestão
comomerafunçãofática6.Nesseintuito,seafilosofiaocidentalfazgrandequestãodo
conceito/problemadahumanidadehumana,ViveirosdeCastrodenunciaacondiçãodos
índiosamazônicos(emespecialocasodosAraweté)queproblematizam,aocontrário,o
conceito/problemadoscorposesuasrespectivasperspectivas7.
Considerar o esgotamento do problema da humanidade humana a partir da
assimetria (dos corpos) aberta pelo perspectivismo ameríndio não implica umamera
reabilitaçãodoconceito/problema,reavivandoascoreseavivacidadedeumparadigma
cujohorizonteapontaparaoesgotamento.Nãosetratadeumpossível(oudesejável)
retorno em direção a um ponto supostamente “mais original” ou a uma “tradição
perdida”.Oprojetoàdisposiçãonoperspectivismoameríndio,selevadoàsério,nãoé
conservador ou reacionário, mas simplesmente selvagem8. Muito mais do que
simplesmente inverter ou reverter a summa divisio tradicional (i.e., “tradicional” aos
olhosdoocidente9)entrenaturezaecultura,operspectivismoameríndiosugeridopor
Viveiros de Castro propõe a problematização das assimetrias constitutivas de cada
pontodevistaparticular10.Relaçõesdiferenciaisquenãosedeixamsedentarizar.Contra
a lógica das Grandes Partilhas sedentárias, propõe-se a disseminação de uma lógica
hojeencerrandoseuciclocármico,éprecisoentãoaceitarquechegouahoraderadicalizaroprocessodereconstituiçãodadisciplina,levando-oaseutermo.Aantropologiaestáprontaparaassumirintegralmentesuaverdadeiramissão,adeserateoria-práticadadescolonizaçãopermanentedopensamento”(VIVEIROSDECASTRO,Eduardo.MetafísicasCanibais.SãoPaulo:CosacNaify,N-1,2015,p.20).6A função fática, no sentidode JakobsoneMalinowski, possui a finalidadede simplesmente (re)ativarocanaldacomunicação.Sobrea função fática, conferir: “Estependorparaocontatoou,nadesignaçãodeMalinowski,paraafunçãofática,podeserevidenciadaporumatrocaprofusadefórmulasritualizadas,pordiálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação” (JAKOBSON, Roman. Linguística eComunicação.8.ed.SãoPaulo:Cultrix,1975,p.126).7ViveirosdeCastrofazreferênciaconstanteadeterminadaparáboladeLévi-Strausssobreaconquistadaamérica,contadaemRaçaeHistória.Aparábolasegueassim:“DanslesGrandesAntilles,quelquesannéesaprèsladécouvertedel’Amérique,pendantquelesEspagnolsenvoyaientdescommissionsd’enquêtepourrecherchersi lesindigènespossédaientounonuneâme,cesdernierss’employaientàimmergerdesblancsprisonniers afin de vérifier par une surveillance prolongée si leur cadavre était, ou non, sujet à laputréfaction”(LÉVI-STRAUSS,Claude.Raceethistoire.Paris:Denoël,1987,p.21).8Osentidode“selvagem”aplicadoaquiésimplesmenteaquelejáavançadoporClastres,quemafirmouarespeito dos índiosGuayaki: “E esse pensamento selvagem, que quase cega por tanta luz, nos diz que olugardenascimentodoMal,dafontedainfelicidade,éoUm”(CLASTRES,Pierre.SociedadecontraoEstado.São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 229). O projeto selvagem tratado neste momento é aquele que seapresentasimplesmentecomofugidioàtotalizaçãoporumSignificanteúltimo.9Arespeito,conferirotestemunhodeDescola:“Osachuardesconhecemessasdistinções,quemepareciamtãoevidentes, entreoshumanoseosnão-humanos, entreoquepertenceànaturezaeoquepertenceàcultura.Emoutraspalavras,meusensocomumnãotinhanadaavercomodeles.Quandoobservávamosasplantaseosanimais,nãovíamosamesmacoisa”(DESCOLA,P.Outras...op.cit.,p.14).10“Opontodevistadodomsobreamercadorianãoéomesmoqueopontodevistadamercadoriasobreodom.Implicaçãorecíprocaassimétrica”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.132).
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radicalmentediferenciante11.Opensamentoameríndionãoésimplesmenteocontrário
do europeu, mas o seu absolutamente outro, afinal, na análise das multiplicidades
indiciadasnosdualismos,percebe-sequeo“trajetonãoéomesmonosdoissentidos”12.
Dizendo emoutras palavras, o selvagemnão é um anti-europeu. Aquilo que europeu
enxerganoselvageméincomensurávelemfacedaquiloqueoselvagemvêquandoestá
diantedeumeuropeu.
Como hipótese de trabalho, acredita-se que a experiência de pensamento
viabilizadapelaantropologiadospovosameríndiospermitenãosimplesmenterepensar
arelaçãoentrehumanosenão-humanos,ouentrenaturezaecultura,mas,aoexigirum
especialengajamentodetodosqueentramemcontatocomaproblemáticaassociadaa
esses dualismos13, garante sustento e apoio para a crítica das fronteiras e obstáculos
tradicionais erigidos pela imagemdogmática do pensamento filosófico (i.e., a “nossa”
filosofia,segundoLévi-Strauss14).
Seolivrointitulado“MetafísicasCanibais”éumaresenhaacabadadeumaobra
inacabada (e infinita), que terá sido denominada “Anti-Narciso:Daantropologia como
ciênciamenor”ecujoobjetoéainscriçãodaantropologiaamericanistanoseiodeuma
“teoria-prática da descolonização permanente do pensamento”15, este breve artigo
correspondeaumcomentáriodaenésimaordemque,eoipso,propõe-seajogarojogo
daleituraentreaobrapresente(MetafísicasCanibais)eaausente(OAnti-Narciso)e,tal
11“(...)[C]ontraasGrandesPartilhas,umaantropologiamenorfaráproliferaraspequenasmultiplicidades–nãoonarcisismodaspequenasdiferenças(...)”(Idem,p.27/28).12Cfr.otrechocompleto,nooriginal:“Uneméditationduperspectivismenietzschéendonnesaconsistancepositiveàladisjonction:distanceentredespointsdevue,àlafoisindécomposableetinégaleàsoipuisqueletrajet n'est pas lemêmedans les deux sens (selon un exemple nietzschéen célèbre, le point de vue de lasanté sur la maladie diffère du point de vue de la maladie sur la santé – LS, 202-204 ; AŒ, 90-91)”(ZOURABICHVILI,François.LevocabulairedeDeleuze.Paris:Ellipses,2005,p.79).13 “Fica claro do que se expôs que os devotos de ambos os conceitos, carga ou cultura, não conseguemapreender facilmente o outro conceito sem transformá-lo no seu próprio, as também fica claro que essacaracterísticanãoéexclusivadosseguidoresdocultooudosantropólogos,quetodososhomensprojetam,provocameestendemsuasideiaseanalogiassobreummundodefenômenosintransigentes.Éfundamentalparaumadefiniçãodohomemqueelecontinuamente invistasuas ideias,buscandoequivalentesexternosque não apenas as articulem, mas também as transformem sutilmente no processo, até que essessignificados adquiram vida própria e possuam seus autores. O homem é o xamã de seus significados”(WAGNER,R.Ainvenção...op.cit.,p.67).14 “De ce courant d’idées, une impression d’en- semble se dégage : qu’on s’en réjouisse ou qu’on s’eninquiète, la philosophie occupe à nouveau le devant de la scène anthropologique. Non plus notrephilosophie,dontmagénérationavaitdemandéauxpeuplesexotiquesdel’aideràsedéfaire;mais,parunfrappantretourdeschoses,laleur”(LÉVI-STRAUSS,C.Postface.L’Homme,v.154-155,abr/set,p.720).15VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.20.
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comoumfractal,abrir-senaaberturaquenos legaopensamentoameríndio.Miseen
abymeantropofilosófica16.
O presente artigo propõe um debate em duas partes com o perspectivismo
ameríndio teorizado pelo antropólogo brasileiro. Em um primeiro momento, serão
expostososprincipaisdelineamentosdessaantropofilosofia,concebidacomoumarede
de relações17. “Viveiros de Castro” interessará menos como nome próprio (eventual
suportedeumargumentodeautoridadequalquer),doque comocluster dasdiversas
linhasdeforçaqueoatravessameconstituemoplanodesuasMetafísicasCanibais.
Na segundaparte, tentar-se-áapontarbrevementequaisas implicaçõeséticas
desseprojetode“descolonizaçãocontínuadopensamento”apartirdaproblematização
das assimetrias dos corpos entre si. Se, diferentemente do pensamento europeu, a
humanidade é assumida pelos ameríndios como elemento dado a todas as
individualidadesexistentes18-19,quehumanidadeéessaque,paradoxalmente,deveser
constantementereafirmadainactuemsuarelaçãocomocorpo20,sobpenadeperecer
dianteda lógicadapredação?Nãoháqualquerprivilégiometafísicodohomo sapiens
(do “homem humano”) no contexto da “ontologia amazônica da predação”21 (que,
todavia, antes de ser uma ontologia é uma pragmática radical), pois, onde há
16 Amise en abyme pode ser considerada a imagemdo pensamento tanto da desconstrução derridiana,como também da seriação “ordinal” e da pura repetição como conceito damais absoluta diferença emDeleuze. A conexão específica entre esses dois modos de pensamento en abyme ainda merece umaproblematização que aqui somente pode ser apontada. Independente se Différance e Différenc/tiation,contudo, a imagem movente proporcionada pelo fractal corresponde perfeitamente à noção de um“estruturalismo sem estrutura” que Viveiros de Castro associa àquilo que ele denomina de “pós-estruturalismo”. A respeito da diferença entre pré- e pós-estruturalismo emViveiros de Castro, conferir:Idem,pp.233ess.17 InspiradoemBruno Latour, propõe-sepensar a antropofilosofia deViveirosdeCastro a partir deumamudançatopológicanaimagemdopensamento.“Insteadofthinkingintermsofsurfaces–twodimensions–orspheres–threedimensions–oneisaskedtothinkintermsofnodesthathaveasmanydimensionsastheyhaveconnections”(LATOUR,Bruno.Onactor-networktheory.Afewclarificationsplusmorethanafewcomplications. SozialeWelt, v. 47, 1996.Disponível em:http://www.cours.fse.ulaval.ca/edc-65804/latour-clarifications.pdf,acessadoem10.01.19).18“Acondiçãooriginalcomumaoshumanoseanimaisnãoéaanimalidade,masahumanidade.Agrandedivisãomíticamostramenosaculturasedistinguindodanaturezaqueanaturezaseafastandodacultura:osmitos contam como os animais perderam os atributos herdados oumantidos pelos humanos (...). Oshumanossãoaquelesquecontinuaramiguaisasimesmos:osanimaissãoex-humanos,enãooshumanosex-animais”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismoemultinaturalismonaaméricalatina.In:Inconstânciasdaalmaselvagem.SãoPaulo:CosacNaify,2002,p.355).19 A respeito do tema, considerar ainda a análise de RoyWagner que influenciou aquela de Viveiros deCastro: “(...) [O] argumento de A invenção da cultura se baseia na articulação entre dois domíniosuniversalmentereconhecidosdaexperiência:oreinodoinato,ou‘dado’,daquiloqueéinerenteànaturezadas coisas, e reino dos assuntos sobre os quais os seres humanos podem exercer controle ou assumirresponsabilidade”(WAGNER,R.Ainvenção...p.221).20 Afinal, como reconhece Viveiros de Castro, a “problemática ameríndia da distinção natureza/cultura,nessestermos,antesdeserdissolvidaemnomedeumacomumsocialidadeanímicahumano-animal,deveserrelidaàluzdoperspectivismosomático”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.389).21Idem,p.353.
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intencionalidadeportodocanto,ohumanonãopodeestarinequivocamentesegurode
suacondição.
I.
AsMetafísicas Canibais, i.e., tanto o nome de uma resenha acabada de uma obra
inacabada como o possível epíteto para a antropologia ameríndia, atendem a um
movimentoqueasatravessatransversalmentenaformadeumagenciamentoentretrês
interlocutoresqueserelacionamemrede(i.e.,enredam-se),quaissejam:(i)oautordo
denominado“Anti-Narciso”,(ii)DeleuzeeGuattarie(iii)Lévi-Strauss.Muitomaisdoque
pontosdosquaispartiriamdeterminadaslinhasdecoerência,essesnomesprópriossão
naverdadefrutodasconfluênciaseinflexõesdasmúltiplaslinhasdeforçaquecortamo
pensamento de Viveiros de Castro22. A confluência dessas linhas múltiplas, uma se
envelopandonaoutra,desenhaomilieuhiperbólicoporondeopensamentoselvagemé
capazdeproliferar23.
Essa antropologia possui um objetivo duplo, qual seja, promover num único
movimento a leitura cruzada entre antropologia e filosofia, informada tanto pelo
pensamento amazônico como pelo “estruturalismo dissidente”24 de Gilles Deleuze e
Félix Guattari. Com o desenvolvimento desses objetivos, percebe-se que o destino
visadoporessemovimentotambéméduplonamedidaemquepretende“aproximar-se
do ideal de uma antropologia enquanto exercício de descolonização permanente do
pensamentoeproporumoutromododecriaçãodeconceitosquenãoo‘filosófico’,no
sentido histórico-acadêmico do termo”25. Os deslocamentos mútuos entre (uma)
22“Jen’aimepaslalignequiestentredeuxpoints,maislepointaucroisementdeplusieurslignes.Lalignen’estjamaisrégulière, lepoint,c’estseulementl’inflexiondelaligne.Aussibien,cequicompte,cenesontpaslesdébutsnilesfins,maislemilieu.Leschosesetlespenséespoussentougrandissentparlemilieu,etc’est làqu’il faut s’installer, c’est toujours làque ça seplie” (DELEUZE,Gilles.Sur Leibniz. In: Pourparlers,1972-1990.Paris:Minuit,1990,p.219).23 “Certo dia, formei o desígnio e esbocei o desenho de um livro que, de algum modo, prestasse umahomenagemaGillesDeleuzeeaFélixGuattaridopontodevistademinhaprópriadisciplina.EledeveriasechamarOAnti-Narciso:Da antropologia como ciênciamenor. Seu propósito seria caracterizar as tensõesconceituais que atravessam e dinamizam a antropologia contemporânea” (VIVEIROS DE CASTRO, E.Metafísicas...op.cit.,p.19).Maisadianteoautoraindadestaca:“AodefinirasMitológicascomoomitodamitologiaeoconhecimentoantropológicocomoumatransformaçãodapráxisindígena,aantropologialévi-straussianaprojetauma‘filosofiadoporvir’:OAnti-Narciso”(Idem,p.260).24Ibidem,p.32.25Ibidem,p.32.
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filosofia e (uma) antropologia, portanto, caracterizam o Anti-Narciso na sua crítica à
imagemdopensamentoselvagem26.
Oprojetoduplocomduploobjetivoéele-própriodesdobradoemoutrasduas
experiências típicas do pensamento ameríndio, caracterizadoras de uma teoria
cosmopolítica indígena27, quais sejam: (i) operspectivismo e (ii) omultinaturalismo.O
multinaturalismo é perspectivista, na exata medida em que o perspectivismo é
multinaturalista. Ambos os conceitos antropofilosóficos se entrelaçam e formam um
quiasmanatarefadetradução/transformaçãodopensamentoselvageme,emespecial,
dopensamentoameríndioqueagenciaamultiplicidadenacultura,ouainda,acultura
enquantomultiplicidade,anunciandoosurgimentodeumaoutraantropologianaexata
medidaque,comViveirosdeCastro(esuarededeinterlocutores),“[t]odaexperiência
deumoutropensamentoéumaexperiênciasobreonossopróprio”28.
O quiasma entre perspectivismo e multinaturalismo é sentido como uma
espécie de curto-circuito entre duas pretensões aparentemente contraditórias, quais
sejam: (a)operspectivismoameríndiopressupõequecadaentevêa sipróprio (eaos
seus) como humanos, ao passo que todos os demais são considerados como não-
humanos, seguindouma lógicadecorrespondênciasno seiodas relaçõesdepredação
(ouseja,osjaguaresseriamhumanosentreosjaguares,masespíritos-predadorespara
osqueixadaseassimpordianteseguindoacontiguidadedasdiferençascorporais);(b)o
multinaturalismo se caracteriza pela afirmação da humanidade (ou da cultura) como
característica universal de todos os entes inseridos no contexto da cosmopolítica de
predação,oquedariasuporteteóricoà“doutrinadasroupasanimais”29.
26AcríticadaimagemdopensamentoéumadasprincipaispreocupaçõesdeDeleuzeaolongodesuaobra,em atenção ao seu projeto de pensar a pura diferença desvinculada da noção de “mesmo”. A respeito,conferir: “En ce sens, la pensée conceptuelle philosophique a pour présuppose implicite une Image de lapensée,préphilosophiqueetnaturelle,empruntéà l’élémentpurdusenscommun.D’aprèscette image, lapenséeestenaffinitéaveclevrai,possèdeformellementlevraietvautmatériellementlevrai.Etc’estsurcetteimagequechacunsait,estcensésavoircequesignifiepenser.Alorsilimportepeuquelaphilosophiecommence par l’objet ou par le sujet, par l’être ou par l’étant, tant que la pensée reste soumise à cetteImage qui préjuge déjà de tout, et de la distribution de l’objet et du sujet, et de l’être et de l’étant”(DELEUZE,Gilles.DifférenceetRépétition.12.ed.2.tir.Paris:PUF,2013,p.172).27VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.71.28VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.96.29Anoçãoderoupaanimalimplicaumprocessodediferenciaçãocujotermoinicialéocorpohumano,pois,como destaca Viveiros de Castro, a “forma humana é como um corpo dentro do corpo, o corpo nuprimordiala‘alma’docorpo”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.389).Aroupaé“menosformaquefunção”(Idem,p.394),servemaispeloqueelafaz(oupermitefazer),doquepeloqueesconde(oupermiteesconder).Pelaconcepçãoameríndia,Prometeutantonãoexistecomoseriaumpersonagemabsolutamenteirrelevante,poisatécnicadefinitivamentenãoestádoladohumano.Humanoéoplanodoaindanãodiferenciadoemanimal.
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Assim,ahumanidadeperformadadoperspectivismoeahumanidadeuniversal
do multinaturalismo se agenciam no estruturalismo sem estrutura da mitologia
ameríndia.Essaantropologiamenor,declaradamenteinspiradanafilosofiadeDeleuzee
Guattari, desenha uma cartografia de movimentos aberrantes30 implicados no
perspectivismo multinaturalista a partir das categorias-mestras de aliança e filiação.
Comopropõe“aquestãoé(...)apossibilidadedeconversãodasnoçõesdealiançaede
filiação,classicamentetomadascomoascoordenadasdasociogênesehumanatalcomo
efetuada no elemento do parentesco, em modalidades de abertura para o extra-
humano”31.
Viveiros de Castro, ao analisar o corpus da obra de Deleuze e Guattari,
reconhece que o Anti-Édipo “está firmemente amarrado a uma concepção
antropocêntrica da socialidade; seu problema continua a ser o problema da
hominização,a‘passagem’daNaturezaàCultura”32equeseusautores“parecemcrer,
porexemplo,queaaliançadizrespeitoaoparentesco,equeoparentescodizrespeitoà
sociedade. Por uma vez, eles se mostram excessivamente prudentes”33. Para o
antropólogo, o Anti-Édipo não chega a conduzir suas próprias premissas às últimas
consequências.Aradicalizaçãoquecaracterizaoprojetoguattaro-deleuzeanosomente
éatingidacomMilPlatôs,apartirdodeslocamentodasatençõesparaoproblemados
devires(“relaçãoreal,moleculare intensivaqueoperaemumregistrooutroqueoda
racionalidadeaindaapenasmorfológicadoestruturalismo”34).Odeviréooutronome
dasdenominadasmultiplicidades intensivas queoperama todo instanteparaalémda
metáfora ou metamorfose, não significando “imitar, aparecer, ser, corresponder”35,
fugindo, portanto, da lógicamimética, mas uma forma de “participação ‘antinatural’
(contre-nature) entre o homem e a natureza; ele é um movimento instantâneo de
captura,simbiose,conexãotransversalentreheterogêneos”36.
Como desdobramento dessa ressignificação do tema da aliança, a passagem
paraalgoalémdoestruturalismoé realizadaporViveirosdeCastroemfunçãodesua 30 “Ce qui intéresse avant tout Deleuze, ce sont lesmouvements aberrants. La philosophie deDeleuze seprésentecommeunephilosophiedesmouvementsaberrantsoudesmouvements«forcés».Elleconstituelatentative laplus rigoureuse, laplusdémesurée, laplussystématiqueaussi,derépertorier lesmouvementsaberrantsquitraversentlamatière,lavie,lapensée,lanature,l’histoiredessociétés”(LAPOUJADE,David.Deleuze,lesmouvementsaberrants.Paris:Minuit,2014,p.09).31VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.133.32Idem,p.138.33Ibidem,p.139.34Ibidem,p.184.35Ibidem,p.185.36Ibidem,p.186.
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experiênciapessoalnaanáliseoperadasobreoshábitosecostumesdosíndiosAraweté,
em especial em torno do canibalismo. O povo Araweté promove uma espécie de
transfiguraçãodatradiçãoTupinambá,namedidaemquetodocanibalismoArawetéé
simbólico e póstumo. A devoração das almas dos Araweté mortos é operada por
divindades (Maï), comoetapanoprocessode transformaçãodosdevorados em seres
semelhantes aos devoradores. A relação diferencial entre Araweté e Tupinambá não
está, simplesmente na dimensão simbólica, contudo, mas no que Viveiros de Castro
denominade“deslocamentopragmático”,ouseja,naespecífica“torçãooutranslação
deperspectivasqueafetavaosvaloreseasfunçõesde‘sujeito’ede‘objeto’,de‘meio’e
de‘fim’,de‘si’ede‘outrem’”37.Nessadinâmica,“o‘eu’sedeterminacomo‘outro’pelo
atomesmodeincorporaresse‘outro’,queporsuavezsetornaum‘eu’,massempreno
outro, através de outro (‘através’ no sentido solecístico de ‘por meio de’)”38. O rito
canibalnãocorresponde,sobessaóptica,aumasimplesdevoraçãodocorpofísico,mas
aumadinâmicanecessáriadesubjetivaçãoeautodeterminaçãorecíproca,peloqueoEu
seafirmadesdeoOutro.Devorada,éaalteridade“comopontodevistasobreoEu”39.
Nessa dinâmica diferenciada-diferenciante, encontra-se a diferença entre a
antropologia multiculturalista europeia (que busca descrever a experiência humana
desde “o ponto de vista do nativo”) e a antropologia multinaturalista nativa (que
promoveaautodescriçãodesde“opontodevistado inimigo”).ComoconcluiViveiros
deCastro,“‘[a]través’deseuinimigo,omatadorarawetévê-seoupõe-secomoinimigo,
‘enquanto’ inimigo.Eleseapreendecomosujeitoapartirdomomentoemquevêasi
mesmo através do olhar de sua vítima, ou antes, em que ele pronuncia sua própria
singularidade pela voz do outro. Perspectivismo”40. Assim, destaca-se uma noção
essencialàscomunidadesameríndias,asquaisanteanecessidadedeatodomomento
constituíremoEucomoOutro,nãoexistemsenãoforadesi,peloque“sua imanência
coincidecomsuatranscendência”41.
Nessecontexto, interessanteéaposiçãoocupadapeloxamanismo.Osxamãs,
espéciesdediplomatasdiretosnessa cosmopolíticaemqueahumanidadeéuniversal
são seres capazes de atravessar as fronteiras entre o humano e o não-humano,
assumindoasperspectivasespecíficasdosoutros,na tarefadeautodeterminaçãopelo
37Ibidem,p.159,destacado.38Ibidem,p.159.39Ibidem,p.160.40Ibidem,p.161.41Ibidem,p.162.
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Outro. Essa cosmopolítica que permite aos xamãs deslizarem entre os registros
intensivosdahumanidadeuniversalnãocorrespondeanenhumrelativismoà la lógica
europeia.Antes,trata-sedeumexercíciodasdiferençasporelasmesmas,namedidaem
que toda perspectiva é única e total e, portanto, trata-se de uma multiplicidade
irredutível a uma totalidade superior. Ao se afirmar ahumanidade de todos os seres,
não se está afirmando que todos têm um acessomínimo e imperfeito à (ideia de)
humanidade (como se da imanência, agora capturada por uma transcendência, fosse
possívelafirmarumaigualdadehomogeneizanteetotalitária).Aocontrário,parte-seda
afirmaçãodeque“[t]odopontodevistaétotal,enenhumpontodevistaéequivalente
a nenhum outro”42. O xamanismo é transversal, uma vez seu devir-outro não
corresponderaumameraassimilaçãodooutro (comodefenderiauma“hermenêutica
romântica”), mas à afirmação radical do outro como alteridade irredutível. Não se
assimila nada, já que as perspectivas não são equivalentes. Como Viveiros de Castro
semprefazquestãodelembrar,“oOutrodosOutrosésempreoutro”43.
Aaliançaqueoxamãfirmacomosoutrosoperaumacontiguidadenafronteira,
porissoésempretransversal.Trata-sedeumdevirqueoperanapuraexterioridade,em
queasrelaçõesestabelecidassãosempreabertasàdeterminaçãodoOutropeloOutro.
Essemodelo não é produtivo,maspredatório, emqueo desejo opera não (somente)
umaprodução(comosepensavanoAnti-Édipo),masumrouboeumdom,umarelação
mediada necessariamente pelo Outro, em que o Eu, para se afirmar, precisa devir-
Outro. A cosmopolítica empreendida pelos xamãs -- espécies de preceptores do
esquematismocósmico--,écapazdecomunicareadministrarperspectivascruzadasde
formaatorná-lasapreensíveis.
A afirmação da experiência de pensamento (experiência “de entrada no
pensamentopelaexperiênciareal”44)queconstituioAnti-Narcisopermiteque“aficção
setornasseantropologia,masumaantropologiaquenãoéfictícia”45.Paraessaficção,
que toma as ideias indígenas como verdadeiros conceitos e permite a construção de
uma linguagem menor46 dentro da disciplina antropológica, interessa a projeção do
42Ibidem,p.180.43Ibidem,p.93.44Ibidem,p.217.45Ibidem,p.217.46 “‘Mineurs’ serontdites ces créationsénonciatives– littéraires,maisaussibienpolitiques, théoriquesouphilosophiques – qui savent créer un nouveau langage dans une langue majeure ou dominante et, enminorant cette langue, forger ‘lesmoyensd’uneautre conscienceet d’uneautre sensibilité’ concourantà
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mundopossívelqueessasideiaspermitemconstruir,tantopornãohavermundopronto
e acabado a ser vislumbrado antesmesmoda divisão entre o visível e o invisível que
constituiohorizontedopensamento,comopelarecusaàexplicaçãotranscendentedo
contexto.Emsuma,omodeloindígenadepensamento,diferentedoeuropeu,procura
projetaralgodesimesmodesdeopontodevistadeumoutro.Propõe-sea“ocupação
do ponto de vista do inimigo”47 como forma elementar de subjetivação a partir do
constantedevir-OutrodoEu,segundoaquala“interiorizaçãodoOutroéinseparávelda
exteriorização do Eu; o domesticar-se daquele é consubstancial ao ‘enselvajar-se’
deste”48.
Na forma das conclusões de Viveiros de Castro, os índios pensamque todo o
vivente, tanto os humanos como os não-humanos, a despeito de suas diferenças
corpóreas, pensamde formaestruturalmente igual, pelo que, a partir da premissa da
homogeneidadedaalmade todovivente,podemserproduzidasdiversasperspectivas
diversas e divergentes49.O problema antropológico, então, está na contínua tradução
dasdiversasnarrativasdosexcluídos,nãonosentidodadescobertadeumsignificado
velado, mas na subversão de sua línguamaior, pormeio da “conversibilidademútua
entreantropologiaemitologia”,ouno sentidodequeo canibalismoéaantropologia
indígena (em níveis diversos e não necessariamente simbólicos), de modo a permitir
“multiplicarnossomundo,‘povoando-odetodosessesexprimidosquenãoexistemfora
desuasexpressões’”,jáque“nãopodemospensarcomoosíndios;podemosnomáximo
pensarcomeles”50.
Comoconsequênciadessasconcepções,ViveirosdeCastropropõereinscrevero
pensamento de Lévi-Strauss no contexto dos alicerces ameríndios de pensamento. O
pensamento lévi-straussianoé caracterizado comoessencialmentedividido, aindaque
essas divisões não constituam oposições ou antagonismos inconciliáveis.
Primeiramente, no nível de sua personalidade teórica, o estruturalismo é
sincronicamentedivididoentreduasfigurasqueseimplicammutuamente,natensãoda
qualdecorrem,i.e.entre“umheróiculturaleumtrickster,opersonagemdamediação
(mas que também é instaurador do discreto e da ordem) e o contrapersonagem da
fairedevenirrévolutionnaires lesminoritésauxquellesellessontconnectées”(SIBERTIN-BLANC,Guillaume.Deleuzeetles“minorités”:quelles“politiques”?Cités2009/4(nº40),pp.42/43).47VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.291.48Idem,p.290.49VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.219.50Idem,p.231,destacado.
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separação (mas que é aomesmo tempo omestre do cromatismo e da desordem)”51.
Trata-se,a todaevidência,deumasuperposição intensivadedoisestadosdodiscurso
estruturaldeLévi-Strauss.Emsegundoplano,aobradeLévi-Strausspodeserdividida
diacronicamente,empré-estruturalista(Asestruturaselementares)epós-estruturalista
(Mitológicas).OestruturalismodasMitológicaséconsideradocomo“umestruturalismo
semestrutura”52(e,portanto,um“pós-estruturalismo”),emqueamitologiaameríndia
éconcebidacomoumamultiplicidadeaberta,naqual“todomitoéumaversãodeum
outromito,todooutromitoabreparaumterceiroeumquartomitos,eosn-1mitosda
América indígena não exprimem uma origem nem apontam um destino: não tem
referência”53.
Omitodevémpoucoapoucoaprópriamáquinadesentidoque(se)agenciana
superfíciedoperspectivismomultinaturalista.Atarefadetradução,quenãoconstituio
mito, senãonamedidaemqueomitoé tradução, implicaumaespéciedeaberturae
fechamentodaestruturamíticapelaqualsepermitepensara infinidadedenarrativas
míticas.ComodestacaViveirosdeCastro,“Todo‘grupo’demitosterminaporserevelar
situadona intersecçãodeumnúmero indeterminadodeoutrosgrupos (...).Osgrupos
devemse fechar (clore);masoanalistanãopodesedeixarencerrar (enfermer)dentro
deles”54. Omito ameríndio, portanto, em certamedida impõe a fuga e amediação a
todo instante,nãohavendofechamento,senãonamedidadaabertura,oumelhor,há
sempreumdesequilíbrioouumaespéciedeassimetriadeperspectivasque impõema
repetiçãodomovimentodefugacomonecessidadeinterna55.
A dinâmica de predação do Outro pelo Outro conflui para a imagem desse
estruturalismosemestruturadomito.DeDeleuzeeGuattariaLévi-Strauss,Viveirosde
Castro enreda sua antropofilosofia de forma a permitir que a mise en abyme
51VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.234.52“Existeminúmerasestruturasnosmitosameríndios,masnãoháumaestruturadomitoameríndio–nãoháestruturaselementaresdamitologia”(Idem,p.242)53Idem,p.243.54Idem,pp.247/248.55 É reconhecido o alerta de Viveiros de Castro no sentido de que as Mitológicas de Lévi-Strauss nãocorresponder (oumesmo aderir) à imagem da “Obra Aberta” (atribuível a Umberto Eco). Contudo, paracorroborar o ponto, destaque-se o seguinte trecho: “Acontece, porém, que a multiplicação dasdemonstraçõesdefechamentoproduzaimpressãoaparentementeparadoxaldeumnúmeroteoricamenteindefinido,istoé,aberto,deestruturasfechadas.Asestruturassefecham,masonúmerodeestruturas,edevias por onde fechá-las, é aberto – não há uma estrutura de estruturas, no sentido de um nível final detotalização estrutural, nemumadeterminaçãoa priori dos eixos semânticos (os códigos)mobilizados emestrutura”(Idem,p.247).
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antropofilosófica assuma a seguinte palavra de ordem: “Contra o mito dométodo, o
métododomito”56.
II.
A humanidade araweté (bïde)57 e a humanidade ocidental (άνθρωπος) compõemdois
polos do problema que ora é cercado e avaliado. Não se trata de afirmar uma
contradição propriamente dita entre ambas58, mas de se pensar a condição de
metaestabilidade que possibilita a diferenciação e as defasagens entre cada qual59.
Afinal, entre o mundo ameríndio e o mundo ocidental não há um absoluto abismo
intransponível,hajavistaqueoencontro(eoconfronto)entremundosdiferentesnãoé
somente possível como inevitável60. Entre esses diferentes mundos há uma série de
56Idemp.259.57“Apalavrabïde,quetraduzipor‘humanidade’,significatambém‘nós’, ‘agente’,e‘osAraweté’.Nãosetrata, note-se de um etnônimo, equivalente a ‘Araweté’ (palavra inventada pelos brancos) ou de umaautodesignaçãosubstantivaedistintiva.Bïdeésintáticaesemanticamenteequivalenteañane,pronomedaprimeira pessoa do plural inclusivo (por oposição aure, primeira pessoa do plural exclusivo).Bïde é umamarca de posição enunciativa, ou seja, trata-se efetivamente de um pronome que marca a posição dosujeito,nãodeumnomepróprio.Comováriasoutrassociedadesamazônicas,osAraweténãoobjetificamocoletivoaquepertencempormeiodesubstantivosdetipoetnonímico,reservando-separaosoutros,istoé,precisamente, para os inimigos (awin)” (VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A imanência do inimigo. In:Inconstânciasdaalmaselvagem.SãoPaulo:CosacNaify,2002,p.271).58Afenomenologiada“contradição”merecesercriticadaetalvezdevasersuperadaemalgummomento.Afinal, não se exclui a possibilidade de outros “polos”, outras “fases”, portanto, que assumem entre sirelações muito mais produtivas e interessantes que aquelas de simples “oposição”. Não seria absurdoimaginarumaestruturamultipolaroumultifásica,sendoquecadapolo/fasecompõeumasériedetensõesprodutivas, tanto internas comoexternas, com todososdemaispolos/fases existentes.Assim,para alémdosmodelos ameríndio e europeu, seria o casode sepensarnomodelo totêmicos,modelonômade, nomodelo africano (magrebino, subsaariano etc.), enfim. Essas considerações possuem alguma relevância,acredita-se,paraacompreensãoecríticadasepistemologias“decoloniais”e/ou“pós-coloniais”.59 A inspiração para essa análise é trazida da análise de Simondon e seu emprego aqui é puramente“tateante”: “L’apparition de la distinction entre figure et fond provient bien d’un état de tension,d’incompatibilitédu systèmepar rapportà lui-même,deceque l’onpourraitnommer la sursaturationdusystème;maislastructurationn’estpasladécouverteduplusbasniveaud’équilibre:l’équilibrestable,danslequel tout potentiel serait actualisé, correspondrait à la mort de toute possibilité de transformationultérieure; or, les systèmes vivants, ceux qui précisément manifestent la plus grande spontanéitéd’organisation, sont des systèmes d’équilibre métastable; la découverte d’une structure est bien unerésolution au moins provisoire des incompatibilités, mais elle n’est pas la destruction des potentiels; lesystèmecontinueàvivreetàévoluer;iln’estpasdégradéparl’apparitiondelastructure;ilrestetenduetcapabledesemodifier”(SIMONDON,G.Dumoded’existencedesobjetstechniques.Paris:Aubier,2012,p.226/227).60NãosedesconheceoalertadeViveirosdeCastroacercadaincompossibilidade,apartirdonossopontodevista,daperspectivaocidentaledaperspectivaameríndia.Arespeito,conferir:VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo... op. cit., p. 398).Destaca-se, tão-somente, comoo próprio autor deixa claro, queo fatodessa incompossibilidade é tambémuma consequência perspectiva.No sentido proposto acima, importareconhecerqueseassociedadesditas“primitivas”sãopropriamentesociedadescontraoEstado,ouaindasociedadesqueprocessamumaconjuração-antecipaçãodaforma-Estado,talcondiçãosedevejustamentepelaexistênciadeumarelaçãodiferencialque,deacordocomumateoriamarginalistaaplicadaàpolítica,
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instabilidadeseinconsistênciasquepermitemaambosmanterem-sevivos,garantindoa
perpetuaçãodoproblemadatradução(econtaminação)deumsistema-mundoparao
outroe,consequentemente,doequívoco61.
RoyWagner,decertaforma,propõeexatamenteissocomsuaanálisearespeito
dadistribuiçãodo inato (oudodado)edocontingente (oudoâmbitodeagência),ou
melhor, nos termos que serão empregados a seguir, entre fundo e figura, em uma
determinadacultura.Problematizaroconceitodehumanidadeàluzdessasexperiências
convida a pensar a respeito da proliferação das diferenças em meio aos planos
desenhados pelas diferentes conformações entre fundo (o inato) e figura (o
contingente).Afinal,seosocidentaispensamahumanidade(eeoipsosuacultura)como
figura, ou melhor, como o âmbito extensivo do atual-diferenciado sobre um fundo
natural, no qual a categoria da espécie humana está necessariamente inserida com
todos os demais não-humanos, os ameríndios pensam a humanidade como o fundo
intensivovirtual-diferenciantesobreoqualasdiferentes(ediferintes)figurascorpóreas
tomarão parte na (cosmo)política da predação, motivo pelo qual a participação na
espécienãoestánuncaterminantementegarantida62.Paraosameríndios,“areferência
comumatodososseresdanaturezanãoéohomemcomoespécie,masahumanidade
como condição”63. Viveiros de Castro esclarece: “Para nós, a espécie humana e a
condição humana coincidem necessariamente em extensão, mas a primeira tem
primazia ontológica; por isso, recusar a condição humana a outrem termina, cedo ou
transformaolimiteemlimiar(seuil).Arespeito,conferir:SIBERTIN-BLANC,Guillaume.PolitiqueetÉtatchezDeleuzeetGuattari:Essaisurlematérialismehistórico-machinique.Paris:PUF,2013,p.51.61 “A antropologia, então, vive de equívocos. Mas, como observou RoyWagner (...) sobre suas relaçõesiniciaiscomosDaribidaNovaGuiné:‘Oequívocodelesameurespeitonãoeraomesmoquemeuequívocoacercadeles’(...)–talvezamelhordefiniçãoantropológicadeculturajáproposta.Opontocrucialaquinãoé o fato empírico das incompreensões,mas o ‘fato transcendental’ de que elas não eram asmesmas. Aquestão,pois,nãoéadesaberquemestáenganado,emuitomenosaindaquemestáenganandoquem.(...)Oequívocodeterminaaspremissas,maisqueédeterminadoporelas.Porconseguinte,elenãopertenceaomundodacontradiçãodialética,poissuasínteseédisjuntivaeinfinita:toma-locomoobjetodeterminaumoutroequívocoamontante,eassimpordiante”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.92/93).62ContrariamenteàquiloquesugereOscar-GuardiolaRiveraeDrucillaCornellemrecentestextosarespeitodopensamentodeViveirosdeCastro, nãohá “grau zeroperspectivista”.Operspectivismonãopode seracusadodepermanecer“foradecritério”,jáqueeleinteriorizaaprópriarelação(ZOURABICHVILI,François.Deleuze:Umafilosofiadoacontecimento.SãoPaulo:Editora34,2016,p.84).Todo“grau-zero”nãopodecorresponder senãoauma interpretaçãodaspráticasameríndiasapartirdaperspectivadoocidental. Seassim é, para que a interpretação europeia se mantenha produtiva (e interessante), essa invenção dacultura alheia (como diria Roy Wagner) deve assumir sua participação no equívoco das traduções. Arespeito,cfr.:RIVERA,Oscar-Guardiola.OnaShaman’sCouch:Whyonlyamerindianscansavethemodernsoul.Disponívelem:http://kindlemag.in/shamans-couch-indians-save-modern-soul/,acessadoem26.12.18,e CORNELL, Drucilla. Mythologizing History. Jaguar Humans, or How to Creolize Heidegger throughAmerindianCosmo-politics,textogentilmentecedidopelaautoraeaindanãopublicado.63ViveirosdeCastrocitaDESCOLA,Philippe.Lanaturedomestique:symbolismeetpraxisdansl’écologiedesAchuar.Paris:MaisondesSciencesdeL’Homme,1986,p.120.
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tarde,emumarecusadesuaco-especificidade.Nocasoindígena,éacondiçãoquetem
primaziasobreaespécie,easegundaéatribuídaatodoserquesepostulacompartilhar
daprimeira”64.
Nocontextoemqueohumanoestáemtodocanto,quetudoéintencionalidade
equeosprocessosdesubjetivaçãonãotêmfim,ahumanidadeéoutracoisatotalmente
diferente. Essa parece ser a lição principal do perspectivismo e multinaturalismo
ameríndio. No contexto dasMetafísicas Canibais, a distinção entre humanos e não-
humanosnão se faznuncadeumavezpor todas (i.e.,nunca se sedentarizade forma
absoluta). Em um mundo onde “tudo pode ser humano, então nada é humano
inequivocamente”65.Háumaproliferaçãodasdiferençasquenãosedeixacapturarpela
lógica do transcendente. Tanto no seio da experiência de mundo araweté, como na
relação equívoca que se estabelece no encontro entre o pensamento ocidental e o
pensamentoselvagem,podemserverificadosdiferentesconcepçõesdohumano.
Verifica-seumaproliferaçãodeorientaçõessobreohumano,apartirdaleitura
daspráticasaraweté.Afinal,eestaéateseprincipalaserdefendidanestemomento,o
conceito antropofilosóficodesenvolvidoporViveirosdeCastroparapensarohumano
araweté(bidë)possuiriaaomenostrêsdimensõesamerecerdestaque,quaissejam:(i)
humano enquanto plano universal (espécie de tabula rasa) a partir do qual os entes
cósmicosparticipamda(onto-)lógicadapredação66;(ii)humanoenquantolinhatrópica
dediferenciaçãointensivaqueseestabeleceapartirdoencontrocomaperspectivado
inimigo67;e(iii)ohumanocomopontotópicoquereclamaconstante(re-)afirmaçãopor
meiodaenunciaçãodaprópriaperspectivacomodominante68.
64VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.p.382.65Idem,p.377.66“Acondiçãooriginalcomumaoshumanoseanimaisnãoéaanimalidade,masahumanidade.Agrandedivisãomíticamostramenosaculturasedistinguindodanaturezaqueanaturezaseafastandodacultura:os mitos contam como os animais perderam atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os não-humanossãoex-humanos,enãooshumanososex-não-humanos.Assim,senossaantropologiapopularvêahumanidadecomoerguidasobrealicercesanimaisnormalmenteocultospelacultura–tendooutrorasido‘completamente’animais,permanecendo,‘nofundo’,animais–,opensamentoindígenaconcluiaocontrárioque,tendooutrorasidohumanos,osanimaiseoutrosexistentescósmicoscontinuamasê-lo,mesmoquedeumamaneiranãoevidenteparanós”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.60).67“Aoescolhercomoprincípiodemovimentoaincorporaçãodeatributosdoinimigo,osociusameríndioélevado a se ‘definir’ – determinar – segundo esses mesmos atributos. (...) Enfim, eis o essencial da‘metafísicadapredação’dequefalavaLévi-Strauss:asociedadeprimitivacomoumasociedadeseminterior,quenãoésenãoforadesi.Suaimanênciacoincidecomsuatranscendência”(Idem,p.162).68“Veja-seoqueosAchuarestudadosporTaylorrecomendam,comométododeproteçãoaoseencontrarumiwianch,umfantasmaouespírito,nafloresta.Deve-sedizeraoiwianch:‘Eutambémsouumapessoa!...’.Ouseja,deve-seafirmaroprópriopontodevista;quandoohumanodizquetambéméumapessoa,oqueeleestádizendoéqueeleéoeu,nãoooutro:averdadeirapessoaaquisoueu”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.397).
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O plano, tropos e topos (ou o plano, a linha e o ponto) – A imagem do
pensamento selvagem pressupõe uma topologia e uma topografia totalmente
diferentes daquelas da imagem do pensamento ocidental69. Pensar as diferenças
radicaisentreessascartografiaséumatarefaantropofilosófica.
Decerta forma,astrêsdimensõesdoconceitoameríndiodehumanoapontam
paraumaestruturahiperbólica (não-euclidiana)perante aqual cadaumaenvelopa as
demais, sem nunca uma totalizar ou englobar totalmente a outra, não havendo
necessidade ou pertinência na perquirição sobre qual estrutura seria mais
“fundamental” em relação às demais (não há uma “estrutura de estruturas”, diria
ViveirosdeCastro70).Apassagemparaumadeterminadadimensãonãoépropriamente
umasoluçãoparaaproblemáticaapresentadaemoutra,namedidaemquequalquer
passagem só é possível levando em conta a necessária procrastinação do problema
comomododevida71.
Perspectivismo e multinaturalismo ameríndio, ao assumirem a condição
universal (eeo ispoproblemática72) dohumano, imprimemuma lógicadomovimento
que conjura a sedentarização, lançando-se contra os humanismos consumados ou
finalizados (i.e., incapazes de devires) na medida em que propõem um “humanismo
interminável”73, perante o qual nunca se pode estar certo de qual é a perspectiva
69 “Nesse sentido, a assimilação predatória de propriedades da vítima, no caso amazônico, deve sercompreendida não tanto nos termos de uma física das substâncias como nos de uma geometria dasrelações, isto é, enquanto movimento de preensão perspectiva, onde as transformações resultantes daagressãoguerreira incidemsobreposiçõesdeterminadas comopontosdevista” (VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.291).70VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.247.71 “(...) [O]s selvagensnosmostraméo esforçopermanentepara impedir os chefes de serem chefes, é arecusa da unificação, é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm umahistóriaé,diz-se,ahistóriada lutadeclasses.Ahistóriadospovossemhistóriaé,dir-se-ácomaomenostanta verdade, a história da sua luta contra o Estado” (CLASTRES, P.A Sociedade contra o Estado. In: ASociedade contraoEstado:Pesquisasdeantropologiapolítica. SãoPaulo:CosacNaify2013,p.231).Seriainteressante demonstrar commais vagar como essa procrastinação do problema comomodo de vida serelaciona intimamente com a recusa à unificação por parte das sociedades “primitivas”, tal comodenunciado por Pierre Clastres. Afinal, “[a] aliança intensiva amazônica é uma aliança contra o Estado(...homenagemaPierreClastres)”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.206).72“Seulel’Idée,seulleproblèmeestuniversel.Cen’estpaslasolutionquiprêtesonuniversalitéauproblème,maisleproblèmequiprêtesonuniversalitéàlasolution.Iln’estjamaissuffisantderésoudreunproblèmeàl’aide d’une série de cas simples jouant le rôle d’éléments analytiques; encore faut-il déterminer lesconditionsdans lesquelles leproblèmeacquiert lemaximumdecompréhensionetd’extension, capabledecommuniquer aux cas de solution la continuité idéelle qui lui est propre. (…) Résoudre, c’est toujoursengendrerlesdiscontinuitéssurfondd’unecontinuitéfonctionnantcommeIdée”(DELEUZE,G.Différence...op.cit.,p.211).73VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.27/28
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dominante74. Esse outro humanismo é experimentado/experienciado a partir de uma
pragmática que radicaliza a própria concepção demundo ao interiorizar a relação no
conceito.ÉdissoqueViveirosdeCastro trataaodiscutiracaracterística“pronominal”
dasexpressõesindígenasquesãogeralmentetraduzidaspeloocidentalpor“humano”75.
EmboraViveirosdeCastronãoindiqueafonte,ateorialinguísticadeJakobson,
com base nas análises do dinamarquês Otto Jespersen, identifica o gênero de
fenômenossemelhantesapartirdonomedeshifters76.Eaqui talvez seja interessante
uma breve explicação do fenômeno. Um shifter corresponde a uma específica
conformação da relação entremensagem e código (conteúdo e expressão), as quais
podemtantoserutilizadas,comosimplesmentereferidas(i.e., instrumentalizadaspara
outrosusos).Adependerdocaso,portanto,entre(i)mensagemutilizada,(ii)mensagem
referida, (iii) código utilizado e (iv) código referido é possível estabelecer relações de
circularidade(M/MouC/C)oudesobreposição(M/CouC/M)queredundamemquatro
relações fundamentais, quais sejam: (i) Mensagem utilizada/Mensagem referida
(discursoindireto),(ii)Códigoutilizado/Códigoreferido(nomepróprio),(iii)Mensagem
utilizada/código referido (discurso autônimo, típico de circunlóquios, sinônimos e
traduções) e (iv) Código utilizado/Mensagem referida (shifters). Um shifter, portanto,
caracteriza-se pelo fato de seu código não poder ser definido sem referência à
mensagem, ou melhor, os shifters correspondem a uma categoria verbal a meio
74“Asaparênciasenganamporquenuncasepodeestarcertosobrequaléopontodevistadominante,istoé, quemundoestáemvigorquando se interage comoutrem.Tudoéperigoso; sobretudo quando tudoégente,enóstalveznãosejamos”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.397).75“Aprimeiracoisaaconsideraréqueaspalavrasindígenasquesecostumamtraduzirpor‘serhumano’,eque entram na composição das tais autodesignações etnocêntricas, não denotam a humanidade comoespécienatural,masacondiçãosocialdepessoa,e,sobretudoquandomodificadasporintensificadoresdotipo‘deverdade’,‘realmente’,‘genuínos’,funcionam,pragmáticaquandonãosintaticamente,menoscomosubstantivosquecomopronomes.Elasindicamaposiçãodesujeito;sãoummarcadorenunciativo,nãoumnome.Longedemanifestaremumafunilamentosemânticodonomecomumaopróprio (tomando ‘gente’paranomedatribo),essaspalavrasfazemooposto,indodosubstantivoaoperspectivismo(usando‘gente’comoaexpressãopronominal‘agente’).Porissoascategoriasindígenasdeidentidadecoletivatêmaquelaenorme variabilidade de escopo característica dos pronomes, marcando contrastiva e contextualmentedesdeaparentelaimediatadeumEgoatétodososhumanos,outodososseresdotadosdeconsciência;suacoagulação como etnônimo parece ser, na maioria dos casos, um artefato produzido no contexto dainteração com o etnógrafo. Não é, tampouco, por acaso que a maioria dos etnônimos ameríndios quepassaram à literatura não são autodesignações,mas nomes (frequentemente pejorativos) conferidos poroutrospovos: aobjetivaçãoetnonímica incideprimordialmente sobreosoutros, não sobrequemestáemposiçãodesujeito(verUrban1996:32-44).Osetnônimossãonomesdeterceiros,pertencemàcategoriado‘eles’,nãoàcategoriado‘nós’.Issoéconsistente,aliás,comumadifundidaevitaçãodaautorreferêncianoplanodaonomásticapessoal: os nomesnão sãopronunciadospor seus portadores, ou em suapresença;nomearéexternalizar,separar(d)osujeito”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.371/372).76Arespeito,cfr.:JAKOBSON,Roman.Shifters,verbalcategoriesandRussianverb. In:SelectedWritingsII:WordandLanguage.TheHague:Mouton&Co.,1971,pp.130ess.
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caminho entre o índice e o símbolo e, por isso, são denominados de “indexical
symbols”77.
Oqueimportadestacaréque,paraJakobson,opronomeéapenasumaespécie
do gênero de categorias verbais denominadas de shifters78. Jakobson entende que a
unidadeelementardacomunicaçãoseriaadoeventonarrado79,apartirdaqualdiversas
outras combinações são possíveis. Os shifters, portanto, corresponderiam a uma
aquisiçãolinguísticatardia80.
Essespontossãoessenciaisparaseconceberadiferençaentreacosmopolítica
ameríndia e a metafísica ocidental. Primeiramente, como Viveiros de Castro parece
sugerir, o perspectivismo e o multinaturalismo ameríndio são caracterizados,
primordialmente, pelo fato de a estrutura pronominal que os determina não
corresponder a umamera aquisição tardia e inessencial da fala, como apontado por
Jakobson,masàestruturaaxialdaenunciação.Paraoameríndio,oenunciado (procès
del’énoncé)nãopossuinuncaumvalorabsoluto,capazdeserdesvinculadodoevento
deenunciação(procèsdel’énonciation)81.
Com outras palavras, a performance assume posição de destaque. O
estruturalismosemestruturadomito,sugeridoporViveirosdeCastro,apontaparauma
aberturaúltimadopensamentoprecisamenteparaoeventodeenunciação82.Énesse
sentido,emboraporumaviatotalmentediferente,queViveirosdeCastropodeafirmar
77“TheirsemioticnaturewasdiscussedbyBurksinhisstudyonPeirces’classificationofsignsintosymbols,indices, and icons. According to Peirce, a symbol (e.g. the English word red) is associated with therepresentedobjectbyaconventionalrule,whilean index(e.g.theactofpointing) is inexistentialrelationwiththeobjectitrepresents.ShifterscombinebothfunctionsandbelongthereforetotheclassofINDEXICALSYMBOLS”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.131/132).78Apesardessaconstataçãonecessária,orestantedoensaioempregaonome“estruturapronominal”ou“marcadorpronominal”aoinvésde“shifter”.Trata-sedeumusoassumidamentemetonímico.79“Anyverbisconcernedwithanarratedevent”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.133).80 “The indexical symbols, and in particular the personal pronouns, which the Humboldtian traditionconceives as the most elementary and primitive stratum of language, are, on the contrary, a complexcategory where code and message overlap. Therefore pronouns belong to the late acquisitions in childlanguageandtotheearlylossesinaphasia”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.132).81 “Both designators and connectorsmay characterize the narrated event (procès de l’énoncé) and/or itsparticipants either without or with reference to the speech event (procès de l’énonciation) (…/Es) or itsparticipants (…/Ps). Categories implying such a reference are to be termed shifters; thosewithout such areferencearenon-shifters”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.134).82“Amitologiaameríndia,enfim,éumamultiplicidadeaberta,umamultiplicidaden-1,oudiríamosmelhora“M-1”,emhomenagemaomitodereferência,MI,omitobororoque,comologoseconstatavaemOcrueocozido,eraapenasumaversão invertidaeenfraquecidadosmitos jêqueoseguiam(M7-M12).Omito ‘dereferência’éummitoqualquer,ummito‘semreferências’–comotodomito.Poistodomitoéaversãodeum outro mito, todo outro mito abre para um terceiro e um quarto mitos, e os n-1 mitos da Américaindígena não exprimem uma origem nem apontam um destino: não têm referência. Discurso sobre asorigens,omitoéprecisamenteoquesefurtaaumaorigem”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.243).
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que “[t]odo ‘grupo’ de mitos termina por se revelar situado na intersecção de um
número indeterminado de outros grupos; e dentro de cada grupo, cada ‘mito’ é
igualmenteumainterconexão;edentrodecadamito...”83.Omito,nomecoletivoparaa
multiplicidadedaredemítica,correspondeaumamiseenabymeantropofilosófica.Esse
estruturalismo sem estrutura predefinida é possível pois o marcador pronominal
corresponde a uma categoria fundamental do pensamento ameríndio, garantindo a
proliferaçãodesériesmíticas.
Em segundo plano, a afirmação da posição determinante da estrutura
pronominalparaoaraweténãoénuncaaposiçãodo“eu”,comonocasodoocidental,
masaquelado“tu”.ApredaçãodaperspectivadoOutro,comosedisseacima,écapaz
deproduziroutrosOutros.Anoçãodehumanoameríndio(bidë)edeculturaquelheé
correspondenteétributáriadesseprocessodeseriaçãoperformativaquenuncapodese
desdobrar fora das redes pragmáticas da (onto-)lógica da predação. A afirmação da
humanidadeéinseridasemprenareferênciaaoeventodapredação.
O evento predatório corresponde de fato a uma espécie de captura e, na
medidaemquetodossãohumanoseemúltimamedidatodasasrelaçõessãosociais84,
deumaespéciedecanibalismo.Trata-sedeum“[c]ontextoanormalnoqualosujeitoé
capturadoporumoutropontodevistacosmológicodominante,ondeeleéotudeuma
perspectivanãohumana,aSobrenaturezaéaformadoOutrocomoSujeito,implicando
a objetivação do eu humano como um tu para este Outro”85. As posições do “eu”
(cultura) e do “ele” (natureza) são mediadas pela possibilidade constante do “tu”
(Sobrenatureza) que para se tornar eficaz deve ser capaz de capturar. Como alerta
Viveiros de Castro, aquele que “responde a um tu dito por um não humano aceita a
condiçãodeser sua ‘segundapessoa’,eaoassumir,por suavez,aposiçãodeeu jáo
fará como um não humano”86-87. A defesa da própria condição humana, perante a
83Idem,p.247.84VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.286.85VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.396/397.86Idem,p.397.87Aexortaçãodopredadorpoderiaseraproximadadaquelaproferidapelopolicialalthusseriano(“hé,vous,là-bas!”).Emcadacasoháumacapturaqueseprocessa.Emcadacaso,umamorte.Adiferençaentreumaeoutra,contudo,éessencialnopontoemqueoencontronaflorestacomopredadorpermanecesendoumeventoqueseprocessaàmargemdatribo,aopassoqueoencontrocomoagentedeEstadocorrespondeanadamaisqueummecanismonormalizado (ordemdocontrole)denormalização (controledaordem)noseiodasdinâmicasburguesas,oquepoderiaserchamado,inspiradoemBourdieu,dea“ordemdocontroledaordem”.OEstadodependedasubjetivaçãopredatóriaparagarantirsuaexistência,produzindomortos-vivosequase-suicídiosatodoinstante,aopassoque,nocontextodacomunidadeameríndia,oeventodepredaçãopermanececomoumapossibilidademarginal(agenciandooduplodeum“limite/limiar”),ouumaespéciedeapocalipsepagão(CLASTRES,P.Sociedade...op.cit.,p.230).
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ameaça de um predador, está na (re)afirmação (mais que simbólica) da própria
humanidade, pelo que é preciso constantemente “afirmar o próprio ponto de vista;
quandoohumanodizquetambéméumapessoa,oqueeleestádizendoéqueéoeu,
não o outro: a verdadeira pessoa aqui sou eu”88. O que importa, em cada caso, é a
enunciação,nãooenunciado.Tudoésubjetivadoapartirdoqueameaçaoenunciante
e,nãorarasvezes,tomaseu lugar(i.e.,osujeitovivo-enunciantesetornaosujeitodo
morto-enunciado).Éexatamenteapartirdessaexperiênciaquedevesercompreendida
acríticaatodohumanismoacabado,seguro-de-sieestagnado,conformeapropostade
descolonizaçãopermanentedopensamento.
Ora, em resumo dos últimos parágrafos, foram identificadas duas diferenças
essenciais entre o multiculturalismo ocidental e o multinaturalismo ameríndio.
Primeiramente,diferentementedoocidental,oameríndiotemnaestruturapronominal
não uma aquisição tardia e inessencial da fala, mas uma estrutura transcendental,
determinando a condição de possibilidade de seu próprio ser. Em segundo plano, a
perspectivadeterminanteparaaindividuaçãodomarcadorpronominalnãoéaquelado
“eu”,masado“tu”,pormeiodacanibalizaçãodo“pontodevistadoinimigo”89.
A predação da perspectiva do inimigo (o “tu”) é, para o perspectivismo
ameríndio,constitutivadequalquersubjetividadeprópria(o“eu”).Énocontextodesse
encontro(i.e.,nocontextodacaçaedaguerra),queoprópriocorpocoletivodatribose
constituina sua contraposição comosdemais.O “socius se constituiprecisamentena
interfacecomseuexterior,ou,emoutraspalavras,queelesepõecomoessencialmente
determinado pela exterioridade”90. Essa ocupação do ponto de vista do inimigo91 é
responsável pela assimilação das narrativasmíticas responsáveis pela constituição do
sociusameríndio,sempreemcontrapontocomumadadaexterioridade.92
O mito selvagem não é estático e ancestral, mas dinâmico e performático.
ViveirosdeCastroafirmaqueomitoameríndioésem-referência,mastalvezfossemais
elucidativo dizer que o mito não possui referência abstrata. O mito problematiza a
própriareferênciaquesomentepodeserafirmadanoatodesuaenunciação(comona
estrutura pronominal). A problemática referência do mito constitui a sua
88VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.397.89VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.282ess.90VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.290/291.91Idem,p.291.92ConcluiViveirosdeCastro:o “canibalismocomo imagemdopensamento,o inimigo comopersonagemconceitual: resta todo um capítulo da Geofilosofia deleuzo-guattariana a escrever”. Esse capítulo a serescrito(ouqueterásidoescrito)éoAnti-Narciso.VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.225.
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universalidade93.Trata-sedeumareferênciavirtualcujodestinoésuacristalizaçãopor
meio da prática perspectivista. Fala-se de cristalização como uma complicação do
binômio virtual-intensivo/atual-extensivo. O mito corresponde a um agenciamento
específico no qual o atual e o virtual não correspondem simplesmente a dois estados
diferentes de uma sequência diacrônica, mas às fases sincrônicas de uma estrutura
responsável por um contínuo deslocamento de perspectivas94. A repetição como
conceitodadiferençapura,responsávelpelacontínua(des)territorializaçãodecorpos.
Todaessadiscussão implicaprofundas consequências paraodesenvolvimento
de uma teoria ética das interações entre humanos e não-humanos, entre natureza e
cultura, as quais merecem ser devidamente levadas em consideração. Afirmar que a
humanidadenãoestánuncaasseguradaouque,adespeitodaexistênciadeumplano
englobante (verdadeira tabula rasa) em que “tudo é humano”, no qual todos têm
acesso ao mesmo fundo de cultura e perante o qual, em razão dessa mesma
universalidade, não há garantia alguma que impeça um ente de simplesmente passar
para o lado dos algozes, é determinante para a lógica de predação da cosmopolítica
ameríndia.
Ao contrário da humanidade ocidental, fincada na certeza de uma disjunção
exclusiva, segundo a lógica do gênero e espécie, a qual todavia não consegue senão
pensar a diferença a partir do mesmo, a humanidade ameríndia pensa a diferença
radical no sentido da pura repetição dos processos de seriação assimétrica,
internalizando a relação nos termos e permitindo pensar em múltiplos devires
prosopomórficos,paraalém (ouaquém)dacastração típicada subjetivaçãoocidental.
Seopensamentoselvagempartedoprincípio“tunãoésmaisqueosoutros”95, como
adiantou Pierre Clastres, e se a definição do que são “os outros” deve ser
93 Cfr.: DELEUZE, G.Différence... op. cit., p. 211. Não se pode esquecer que Deleuze diferencia entre oabstratoeouniversal(problemático).Arespeito,conferir:“LesIdéesparelles-mêmessontproblématiques,problématisantes – et Kant, malgré certains textes où il assimile les termes, s’efforce de montrer ladifférenceentre«problématique»d’unepart,etd’autrepart«hypothétique»,«fictif»,«général»ou«abstrait»”(Idem,p.218).94“L’imagevirtuelleabsorbetouteactualitédupersonnage,enmêmetempsquelepersonnageactueln’estplus qu’une virtualité. Cet échange perpétuel du virtuel et de l’actuel définit un cristal. C’est sur le pland’immanencequ’apparaissent lescristaux.L’actuelet levirtuelcoexistent,etentrentdansunétroitcircuitqui nous ramène constammentde l’unà l’autre. Cen’est plusune singularisation,maisune individuationcomme processus, l’actuel et son virtuel. Ce n’est plus une actualisationmais une cristallisation. La purevirtualitén’aplusà s’actualiserpuisqu’elleest strictement corrélativede l’actuelavec lequel elle forme leplus petit circuit. Il n’y a plus inassignabilité de l’actuel et du virtuel,mais indiscernabilité entre les deuxtermes qui s’échangent ” (DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’actuel et le virtuel. In: Dialogues. Paris:Flammarion,2008,p.184.95CLASTRES,P.Asociedade...op.cit.,p.220.
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consequentemente ampliada no sentido da proposta multinaturalista de Viveiros de
Castro, o homem-humano ameríndio não possui qualquer estatuto especial garantido
naescalahierárquicaemetafísicaemcomparaçãoaosoutrosseres,aocontráriodoque
acredita o homem ocidental96, mas é apenas um nódulo na rede de relações de
predação que se estabelece sempre in actu. Em outros termos, enquanto o homem
europeu tem a tarefa existencial de “tornar-se o que se é” atendendo à exortação
délficamilenar,ohomemameríndiocorresempreoriscodejáterpassadoparaolado
do não-mais-humano97. Em suma, a humanidade ameríndia não prescinde do ato de
enunciaçãoapartirdaperspectivadoinimigo,responsávelpelacontínuareafirmaçãode
sua condição humana. Uma das consequências éticas dessa humanidade ameríndia,
longede firmarumrelativismovitalista,é justamentea ideiadequeareafirmaçãoda
minhacondiçãohumanadependedaafirmaçãocontíguadaperspectivadoinimigo,ou
seja,daalteridaderadical.
Comoantropologiaselvagem,naveiaabertaporPierreClastres,asMetafísicas
Canibais se expressam como contínua conjuração da metafísica do unum (ou do
proprium)98 e, consequentemente, como convite à proliferação das diferenças e da
disseminação das concepções de humano99. Aponta-se para uma ética performativa
radical capaz de desconstruir (e aqui importa considerar em que medida a
desconstrução seria necessariamente um construtivismo) os binômios estanques da
96 Toma-se em conta, a título de mero exemplo, o “Discurso sobre a dignidade humana”, de Pico delaMirandola,umdos textos seminaisdohumanismoeuropeu (cfr.MIRANDOLA,Picodela.Discursosobreadignidadehumana.Ed.bilíngue.6.ed.Lisboa:Edições70,2011).Nosentidodacríticaoraproposta,bastasimplesmente fazer alusão à análise deAgambena respeito: “La tesi centrale dell’orazione è, infatti, chel’uomo,essendostatoplasmatoquandoimodellidellacreazioneeranotuttiesauriti(…),nonpuòaverenéarchetiponéluogoproprio(…)nérangospecifico(…).Anzi,poichélacreazioneèavvenutasenzaunmodellodefinito (…),eglinonhapropriamentenemmenouna faccia (…)edevemodellarlaa suoarbitrio in formabestiale o divina (…). In quantononhané essenzané vocazione specifica,Homoè costitutivamentenon-umano,puòriceveretuttelenatureetuttelefacce(…).Lascopertaumanisticadell’uomoèlascopertadelsuomancareasestesso,dellasuairrimediabileassenzadidignitas”(AGAMBEN,Giorgio.L’aperto:L’uomoel’animale.Torino:BollatiBoringhieri,2010,p.35/36).97“Éimportanteobservarqueessescorposameríndiosnãosãopensadossobomododofato,masdofeito.(...)ABildungameríndiaincidesobreocorpoantesquesobreoespírito:nãohámudançaespiritualquenãopasseporumatransformaçãodocorpo,porumaredefiniçãodesuasafecçõesecapacidades”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.390).98SegundoClastres:“(...)[E]ssepensamentoselvagem,quequasecegaportantaluz,nosdizqueolugardenascimentodoMal, da fonte da infelicidade, é oUm” (CLASTRES, P.A sociedade... op. cit., p. 229).Maisadiante,oautoraindaquestiona:“EmquecondiçõesépossívelpensaroUm?Éprecisoque,dealgummodo,sua presença, odiada ou desejada, seja visível. É por isso que acreditamos poder revelar, sob a equaçãometafísicaqueigualaoMalaoUm,umaoutraequaçãomaissecreta,edeordempolítica,quedizqueoUmé o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tentativa heroica de uma sociedade primitiva para abolir ainfelicidadenarecusaradicaldoUmcomoessênciauniversaldoEstado”(Idem,p.229/230).99 “Se a filosofia real abunda em selvagens imaginários, a geofilosofia visada pela antropologia faz umafilosofia imaginária com selvagens reais. ‘Imaginary gardenswith real toads in them’ (MarianneMoore):jardinsimaginárioscomsaposdeverdade”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.224).
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lógica ocidental: humano e não-humano, natureza e cultura, dentro e fora, fundo e
figura, enfim.Mais do que uma posição simetricamente oposta em comparação a do
ocidental (o que determinadas leituras antropológicas não se cansam de evidenciar,
talvez rápido demais), o pensamento ameríndio aponta em direção a uma assimetria
entre sociedades ocidentais e sociedades ditas “primitivas” (ou contra o Estado)100.
Reprisando a exortação pregnante de Viveiros de Castro, para quem “o Outro dos
Outrosésempreoutro”101.Essaassimetriaestá inseridaemdoisdiferentesregimesde
espacializaçãodoproblemaemconformidadeadiferentestopologiasetopografias.
Separaopensamentoocidental,ohumanoéafiguradaquelequesedeslocano
espaço já delimitado e formatado em fronteiras, para o pensamento ameríndio o
humanoéopanodefundosemprecapazdesubverterqualquerfronteiraestabelecida
em favor da instauração de uma cosmopolítica entre todos os viventes. Se para o
ocidental, o humano é aquele cuja propriedade é não possuir especificamente um
proprium,podendoassumirtantoascaracterísticasdeumanimal,comoasdeumanjo,
adependerdeumaespecíficadisposiçãodoespírito,paraoameríndio,ohumanoéo
anti-proprium, sempre preparado para a transgressão de fronteiras e a assunção da
perspectiva de um terceiro, evitando-se justamente a constituição de qualquer
perspectivaprivilegiada,transcendentalouredundante.Separaoocidentalosolipsismo
é o principal receio epistêmico, para o ameríndio o principal receio vital seria a
desintegraçãodocorpocanibalizado.
Contraaviolênciaepistêmicadopensamentoocidental,que,apartirda lógica
dosaparelhosdecaptura, cria tantoaCultura comooHomemquese tornamobjetos
dessamesmacaptura102,opensamentoameríndiopropõeumacontra-violência(oque
nãoéomesmoqueumanão-violência)semprepreocupadaemconjurar-anteciparessa
capturaapartirdeseudiscurso“só-sujeito”103.Enfim,contraaviolênciaepistêmicado
Estado,contraacapturadaculturahegemônica,contraosmodelosdesubjetivaçãodo
homemocidental,opensamentoameríndioapresentaumestruturalismosemestrutura
paraseuhumanismointerminável.
100Vernota71,supra.101VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.93.102“Finalement,iln’yapasdutoutdemystère:lemécanismedecapturefaitdéjàpartiedelaconstitutiondel’ensemblesurlequellacaptures’effectue”(DELEUZE,G;GUATTARI,F.Mille...op.cit.,p.557)103VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.355.
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ConsideraçõesFinais
Retorne-seàquestão:oqueaindadizerdohomem?Seufim(eskhaton)jáfoianunciado.
Inobstante, e esta foi uma premissa importante deste trabalho, não basta anunciar o
esgotamento. É preciso ressignificar a narrativa escatológica para sensibilizar o
pensamentoàshumanidadesintermináveisanunciadaspelopensamentoameríndio.
Como dito, o perspectivismo e o multinaturalismo ameríndio agenciam o
conceitodehumanonãoapartirdalógicadafalta(i.e.,comomeranegatividade),mas
conforme a ontologia da predação, em cuja “dialética só há Mestres”104. Tal (onto-
)lógica selvagem, fincada na perspectiva do inimigo, cuja humanidade é referencial
compartilhado por todos os partícipes de sua cosmopolítica, é capaz de enfrentar a
captura/estagnação do pensamento que se resolve na reafirmação de binômios por
demais conhecidos, tais como: humanos/não-humanos, natureza/cultura, dentro/fora,
figura/fundo,enfim.Emfacedascapturasocidentais,opensamentoameríndiopermite
vislumbrarummodelodedisseminaçãodosconceitosdehumano.
Essadisseminaçãonãocorrespondeaumaexperiênciahomogeneizante.Muito
pelo contrário. É caso de pensar a disseminação dasmultiplicidades,mas também, e
talvez principalmente, das assimetrias e desequilíbrios. Considerar o “humanismo
universal”ameríndiosobajustaluz,implicaevitartodaequalquerafirmaçãoapressada
e simplória no sentido de que todos os entes envolvidos na cosmopolítica indígena
seriamequivalentesemdignidade,talcomoprocede,porexemplo,umaingênuacrítica
da relação entre homem e animal a partir de determinado paradigma jurídico
contemporâneo. Ao contrário, a lógica da predação, em toda sua imanência, associa
intrinsecamentedireitoepoder (segundooqueodireitodecadaqual seestendeaté
ondevaisuapotência),namedidaemquecadaperspectiva lutaparaseperpetuarna
cadeia de predação105. O humanismo universal implicado no xamanismo transversal
ameríndioé frutodeuma“geometriadas relações”106 entreos viventes,marcadapor
“umdesequilíbrioperpétuo”107.
104VIVEIROSDECASTRO,E.Imanências...op.cit.,p.291.105As implicações entreo pensamento ameríndio e a filosofia spinozana e nietzschiana seráo objetodeestudo próprio e futuro, fugindo do escopo e dos limites deste artigo. Nestemomento, importa apenasapontarparaaquestão,semcontudoadensarconceitualmenteasdimensõesdoproblema.106VIVEIROSDECASTRO,E.Imanências...op.cit.,p.291.107VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.180.
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Afirmarqueasdiferentesperspectivassobreohumano(eeoipsoasdiferentes
conformaçõesdahumanidade)nãoseequivalemimplicasugerirumaaberturaradicalàs
alteridades.Radical em dois sentidosmínimos, pode-se dizer. Primeiramente, pois na
dialética “só-Mestres”, nenhuma espécie em particular pensa encontrar-se no vértice
absoluto da cadeia de predação, ou mesmo personificar a posição de absoluta
precariedade. O xamanismo transversal araweté corresponde a um “dispositivo de
intercâmbioentreosviventeseosMaï”108,numcontextodepensamento“pronominal”
perante o qual, cada conformação da humanidade (i.e., a humanidade-queixada, a
humanidade-jaguar, a humanidade-humana, enfim) compartilha uma série de
referentesentresi,demodoquecadaumaencontra-setensionadanoseiodarelação
de predação. Se o homem-humano é um espírito para o queixada, o jaguar pode se
encontrar em posição de enxergar o homem-humano como só mais uma presa. A
ocupaçãocomaalteridade,portanto,surgenamedidaemquearelaçãoentreviventes
eMaïnãoénuncaestabelecidanumúnicosentido.Hásempreoriscodeassumiruma
posiçãoquejánãoémaisa“sua”posiçãohumana.Nestesentido,acadeiadepredação
não implica na mera lógica da “lei do mais forte”, ao contrário, aponta para uma
relacionalidade éticade tensadeferênciaàalteridade radicaldooutro,namedidaem
queacadeiadepredaçãonuncapersonalizaumaposiçãoabsolutaesegura.
Em segundo lugar, pois ao compartilhar determinados referentes, os viventes
proliferamdiferentesexpressõesdahumanidade.Porisso,trata-sedeumahumanidade
interminável,afinal,o“outrodosoutrosétambémOutro”109.Perceba-se,porém,queo
“Outro” de Viveiros de Castro não é nem o marcador da falta, nem o marcador da
transcendência,masumagentededisseminação.Ametafísicadapredaçãoameríndiaé
responsável por uma antropologia que vive de equívocos (os quais devem ser
entendidosnãocomo“falhasubjetiva”,mascomo“dispositivodeobjetivação”110).Ser
determinado pelo ponto de vista do inimigo exige que cada perspectiva prolifere
diferentes narrativas de mundos diferentes (trata-se da “circulação infinita de
perspectivas”,asquaisseabremumasàsoutras,comofractais),sobacondiçãodecada
pontodevistaassumir,atodoinstante,operigoabsolutodejánãomaiscorresponderà
perspectivadominantedarelaçãodepredação.
108VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.269.109VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.260.110Idem,p.93.
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Essadisseminaçãodedisseminaçãoevocaumacondiçãoprofundamenteética,a
qual assumiria uma conformação efetivamente prosopomórfica (e não propriamente
antropomórfica que tome o homem-humano como ideal de forma), perante a qual a
expressão se constitui como elemento indispensável. O xamanismo ameríndio
correspondeaumaarteético-políticasingular,“[p]oisaboa interpretaçãoxamânicaé
aquela que consegue ver cada evento como sendo, em verdade, uma ação, uma
expressãodeestadosoupredicadosintencionaisdealgumagente”111.Saberpersonificar
é necessário justamente porque é necessário personificar para saber112. Viveiros de
Castro sintetiza: “se no mundo naturalista da modernidade um sujeito é um objeto
insuficientemente analisado, a convenção interpretativa ameríndia segue o princípio
inverso: um objeto é um sujeito incompletamente interpretado”113. A impessoalidade
interpretativa,ouausênciadacapacidadededeterminar sua relaçãosocial (epolítica)
comaquelequeconhece,nãotemrelevânciaontológica.
Nãosetratanemdeumanimismovoluntarista,nemdeumrelativismo,masde
umrelacionismo114.Nãosugereanimismovoluntarista,nosentidodequeosanimaisse
assemelham aos homens-humanos, tidos como paradigmas existenciais. O
perspectivismo assume que animais e humanos são difereintes de si mesmos, numa
diferença intensiva. Tambémnão supõeamultiplicidadede representações subjetivas
sobreamesmanaturezaexternatotaleindiferenteàsrepresentações,comonomodelo
relativista.Todaperspectivaétotal.Oquemudadeenteparaenteéoprópriomundo
que cada qual vê. Trata-se de uma perspectiva total e não de uma simples
representaçãoparcelardarealidade.
A diferença entre os pontos de vista está no corpo, ou seja, a capacidade
perspectivista em Viveiros de Castro é uma potência do corpo. Corporeidade é
entendidanãocomodiferençafisiológica,massimcomoascapacidadeseafecçõesque
singularizamcadaespéciedecorponaconstituiçãodeseushábitos.Esse“maneirismo
corporal” expõem uma diferença que só pode ser apreendida em termos de
intensidades “(...) para outrem, uma vez que, para simesmo, cada tipo de ser tem a
mesma forma (a forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo qual a
alteridadeéapreendidacomotal.Nãovemos,emcondiçõesnormais,osanimaiscomo
111VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.359.112Idem,p.360/361.113Ibidem,p.360.114Ibidem,p.382.
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gente, e reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e perspectivos) são
diferentes”115.
Essa ontologia ameríndia levada a sério por Viveiros de Castro acenaria para
umaéticaperformativaradical.Namedidaemqueestabeleceumarespectividadedos
corpos, permitiria levar a cabo a tarefa de finalizar o humano e, ao mesmo tempo
ressignificaranarrativadoesgotamento,aoinseriroproblemadaperformancenoloop
constantedarepetiçãoenquantoprocessoabsolutodediferenciação(eternoretornoda
diferença). Não haveria de se falar em utopias ou distopias, mas na radicalização da
(onto-)lógica do equívoco, capaz de superar as amarras epistêmicas para conferir a
possibilidade de simplesmente transbordar para além das formas (e fôrmas)
estabelecidasdoshorizontestranscendentes.
Umaéticaperformativaradical,também,namedidaemqueessarespectividade
dos corpos assinala, retomandoa inspiraçãoemRoyWagner, paraumaconcretização
inventiva de si a partir da perspectiva do outro, tanto do ponto de vista do sujeito
quanto da vida social. Havíamos ressaltado três imbricadas dimensões de pensar o
humano araweté na antropofilosofia a partir de Viveiros de Castro. Um humano
enquantoplanouniversalnoqualtodososentesparticipamdahumanidade,nãocomo
uma constante autônoma, mas como variável de uma função, em que todos são
mestres,enuncasepodeestarcertodequaléaperspectivadominante.Umhumano
queelegecomoprincípiodemovimentoainclusãodeatributosdoinimigo,implicaum
sociusameríndionoqualoqueosujeitoassimiladooutrosãoossignosdaalteridadedo
próprioinimigo.116Umhumanoquereivindicaconstantementeaafirmaçãoenunciativa
de sua perspectiva como pessoa. Em todas as três dimensões se expressa um
humanismocomutador,noqual,segundoViveirosdeCastro,o“eu”eo“outro” intra-
humanos se comutam. Esse mesmo humanismo perspectivista, segundo o qual as
diferentes subjetividades que povoam o universo são dotadas de pontos de vista
radicalmente distintos se comutam, está pressuposto também no contexto do
xamanismo.Nesseúltimo,certoshumanospossuemacapacidadedecruzarasbarreiras
corporaiseadotaraperspectivahumanadassubjetividadesnão-humanas.Umaespécie
decampocosmopolitanaqualacomutação/conduçãoentreo“eu”eo“outro”sedáde
115Ibidem,p.380/381.116VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.290.
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forma interespecífica.117ComoafirmaViveirosdeCastro, “nãohá lugarparaum ‘nós’
senãoojádeterminadopelaalteridade”118
Umacontinuidadepossíveldapresenteinvestigaçãopartiriaparaaapreciaçãoe
aprofundamento da discussão a respeito dos modos de ser da antropofilosofia de
ViveirosdeCastro.Trata-sedealçaro“quomodo?”àcondiçãodepalavradeordem.
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SobreosautoresBethaniaAssyProfessora de Filosofia do Direito dos programas de mestrado e doutorado daPontifíciaUniversidadeCatólicadoRiodeJaneiroedaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro.MestradoePhDemFilosofiapelaNewSchoolforSocialResearch–NY,USA.Orientanda da filósofa Agnes Heller. Pós-doutorado emDireito pelaBirkbeckLaw School - Universidade de Londres (2012-2013). Coordenadora Adjunta daCátedraUnescoViolence,GovernmentandGovernance.Pesquisadoravisitanteem:UniversidadedeBremen (2001);UniversidadedeFrankfurt(2003);UniversidadedeOldenburg(2001,2006,2007);noInstitutoMaxPlanckdeHistóriadaCiência-Berlin(2005);UniversidadeLivredeBerlin(2009).ProfessoraVisitantenaUniversidadedeNanterre–ParisX (2018, 2015,2013).PublicouÉtica, Responsabilidadee JuízoemHannah Arendt, (em inglês- Editora Peter Lang, português-Editora Perspectiva eitaliano-EditoraMimesis); publicou com José Ricardo Cunha: Teoria do Direito e osujeito da injustiça social (português); editouDireitosHumanos: Justiça, VerdadeeMemória(português)eatualmenteestátrabalhandonopróximolivro,emcoautoriacom Allan Hillani: The Subject of Injustice: political action, law and empowerment(inglês,editoraRutledge).E-mail:[email protected] em Direito, graduado pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2003-2009),MestreemDireitoProcessualpelaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro–UERJ (2013-2015) eDoutorandoemTeoria doEstado eDireito Constitucional pelaPontifíciaUniversidadeCatólica doRiode Janeiro – PUC-RIO (2016-presentedata),com sanduíche na University of London – Birkbeck (primeiro semestre de 2018).ProcuradordoEstadodoPará(2010-presentedata).Já lecionoudiversasdisciplinasdoDireitoemcursosespecíficose seminários, taiscomooDireitoConstitucional,oDireitoFinanceiro eoDireito Processual. Recentementeaprovadopara o cargodeprofessor substitutodaUniversidadeFederaldoPará–UFPAparaasdisciplinasdeHistóriadoPensamento Jurídico,TeoriadoDireito,Ética JurídicaeHermenêuticaeTeoria daArgumentação. Possui interesses emFilosofia, Filosofia Política, Filosofiado Direito, Teoria do Estado e Direito Constitucional. E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.