A Ideia de Justica - Amartya Sen

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Crônicas

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no maislutando por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a

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  • Em memria de John Rawls

  • Sumrio

    PrefcioAgradecimentos Introduo: Uma abordagem da justia parte i as exigncias da justia

    1. Razo e objetividade2. Rawls e mais alm3. Instituies e pessoas4. Voz e escolha social5. Imparcialidade e objetividade6 Imparcialidades fechada e aberta parte ii formas de argumentao racional

    7. Posio, relevncia e iluso8. A racionalidade e as outras pessoas9. A pluralidade de razes imparciais10. Realizaes, consequncias e agncia parte iii os materiais da justia

    11. Vidas, liberdades e capacidades12. Capacidades e recursos13. Felicidade, bem-estar e capacidades14. Igualdade e liberdade

  • parte iv argumentao racional pblica e democracia

    15. A democracia como razo pblica16. A prtica da democracia17. Direitos humanos e imperativos globais18. A justia e o mundo Notas

  • Prefcio

    No pequeno mundo onde as crianas levam sua existncia, diz Pip em Greatexpectations [Grandes esperanas], de Charles Dickens, no h nada que seja percebido esentido to precisamente quanto a injustia.1 Espero que Pip esteja certo: ele recordavividamente, depois de seu humilhante encontro com Estella, a coero caprichosa eviolenta que sofreu quando criana nas mos da prpria irm. Mas a percepo firme deinjustias manifestas tambm se aplica aos seres humanos adultos. O que nos move, commuita sensatez, no a compreenso de que o mundo privado de uma justia completa coisa que poucos de ns esperamos , mas a de que a nossa volta existem injustiasclaramente remediveis que queremos eliminar.

    Isso bem evidente em nossa vida diria, com as iniquidades ou sujeies que podemossofrer e das quais temos boas razes para nos ressentir, mas tambm se aplica aosdiagnsticos mais generalizados de injustias no vasto mundo em que vivemos. corretopressupor que os parisienses no teriam tomado de assalto a Bastilha, que Gandhi no teriadesafiado o imprio onde o sol costumava no se pr, que Martin Luther King no teriacombatido a supremacia branca na terra dos homens livres e lar dos bravos, no fosse seusenso das injustias manifestas que poderiam ser vencidas. Eles no estavam tentandoalcanar um mundo prefeitamente justo (mesmo que no houvesse nenhum acordo sobrecomo seria tal mundo), mas o que queriam era remover claras injustias at onde pudessem.

    A identificao de injustias corrigveis no s o que nos anima a pensar em justia einjustia, ela tambm central, como argumento neste livro, para a teoria da justia. Nainvestigao aqui apresentada, o diagnstico de injustia aparece, com suficiente frequncia,como o ponto de partida para uma discusso crtica.2 Contudo, pode-se perguntar, se talponto de partida razovel, por que no pode ser tambm um bom ponto de chegada? Qual a necessidade de irmos alm do nosso senso de justia e injustia? Por que precisamos deuma teoria da justia?

    Compreender o mundo nunca uma questo de apenas registrar nossas percepesimediatas. A compreenso inevitavelmente envolve o uso da razo. Temos de ler o quesentimos e aparentemente vemos, e perguntar o que essas percepes indicam e como

  • podemos lev-las em conta sem sermos sobrecarregados por elas. Uma questo diz respeito confiabilidade de nossas percepes e impresses. Um senso de injustia poderia servir comoum sinal que nos move, mas um sinal ainda demanda um exame crtico, e deve haver umexame cuidadoso da validade de uma concluso baseada principalmente em sinais. Aconvico de Adam Smith da importncia dos sentimentos morais no o impediu de buscaruma teoria dos sentimentos morais, nem de insistir em que um senso de agir mal sejacriticamente examinado atravs de uma anlise arrazoada, para determinar se ele pode ser abase de uma reprovao sustentvel. Uma exigncia semelhante de anlise se aplica inclinao para elogiar algum ou alguma coisa.

    Temos de perguntar tambm que tipos de argumentao racional devem contar naavaliao de conceitos ticos e polticos tal como justia e injustia. De que forma umdiagnstico da injustia, ou a identificao do que poderia reduzi-la ou elimin-la, pode serobjetivo? Isso exige imparcialidade, em algum sentido especfico, tal como independncia denossos interesses pelo prprio benefcio? Isso tambm exige um reexame de algumasatitudes, mesmo que elas no estejam relacionadas a interesses pelo prprio benefcio, masreflitam juzos preconcebidos ou preconceitos locais que podem no sobreviver aoenfrentamento arrazoado de atitudes no restritas pelo mesmo paroquialismo? Qual opapel da racionalidade e da razoabilidade na compreenso das exigncias da justia?

    Essas consideraes e algumas questes gerais muito prximas so abordadas nosprimeiros dez captulos, antes que eu passe a tratar de questes de aplicao, envolvendo aavaliao crtica dos fundamentos sobre os quais os juzos sobre a justia se baseiam (sejamliberdades, capacidades, recursos, felicidade, bem-estar ou alguma outra coisa), a especialrelevncia de diversas consideraes listadas sob os ttulos gerais de igualdade e liberdade, aconexo evidente entre perseguir a justia e buscar a democracia, vista como o governo pormeio do debate, e a natureza, a viabilidade e o alcance das reivindicaes dos direitoshumanos.

    que tipo de teoria?

    Apresento aqui uma teoria da justia em um sentido bem amplo. O objetivo esclarecercomo podemos proceder para enfrentar questes sobre a melhoria da justia e a remoo dainjustia, em vez de oferecer solues para questes sobre a natureza da justia prefeita. Issose diferencia claramente das teorias da justia predominantes na filosofia moral e polticacontempornea. Tal como discutirei de forma mais completa na introduo que se segue, hparticularmente trs diferenas que exigem uma ateno especfica.

    Primeiro, uma teoria da justia que possa servir como base da argumentao racional nodomnio prtico precisa incluir modos de julgar como reduzir a injustia e promover ajustia, em vez de objetivar apenas a caracterizao das sociedades prefeitamente justas

  • exerccio que marca, de forma bastante dominante, muitas teorias da justia na filosofiapoltica atual. Os dois exerccios, para identificar arranjos sociais prefeitamente justos e paradeterminar se uma mudana social especfica melhoraria a justia, de fato tm conexesmotivacionais; contudo, eles so analiticamente desconectados. O ltimo, sobre o qual estaobra se concentra, central para tomar decises sobre as instituies, o comportamento eoutros determinantes da justia; e o modo como essas decises so derivadas crucial parauma teoria da justia que objetiva guiar a argumentao racional no domnio prtico arespeito do que deve ser feito. Pode-se mostrar que totalmente incorreta a suposio deque esse exerccio comparativo no pode ser feito sem que primeiro sejam identificadas asexigncias da justia prefeita (como discutido no captulo 4).

    Segundo, embora muitas questes comparativas de justia sejam resolvidas com sucesso por um acordo alcanado por meio de argumentos fundamentados , pode haver outrascomparaes nas quais consideraes conflitantes no estejam completamente resolvidas.Sustento aqui que podem existir muitas razes distintas de justia, cada qual sobrevivendo aoexame crtico, mas resultando em concluses divergentes.a Argumentos razoveis emdirees conflitantes podem emanar de pessoas com experincias e tradies diversas, mastambm podem advir de dentro de dada sociedade ou, por causa disso, at de uma nicapessoa.b

    Devemos argumentar de modo fundamentado, conosco e com os outros, em vez de apelarao que se pode chamar de tolerncia descomprometida, acompanhada pelo conforto deuma soluo preguiosa como voc tem razo na sua comunidade, e eu, na minha. Aracionalidade argumentativa e a anlise imparcial so essenciais. Todavia, mesmo o maisvigoroso dos exames crticos pode deixar de fora argumentos conflitantes e concorrentes queno so eliminados pela anlise imparcial. Adiante, retomarei esse ponto, mas enfatizo aquique a necessidade de raciocinar e analisar no est de forma alguma comprometida pelapossibilidade de que prioridades conflitantes sobrevivam a despeito do enfrentamento darazo. A pluralidade com a qual terminaremos ser o resultado do uso do raciocnioargumentativo, no de nossa absteno dele.

    Terceiro, a presena de uma injustia remedivel pode, em grande medida, estarconectada a transgresses de comportamento, e no a defeitos institucionais (a recordao dePip, em Great expectations, de sua irm coerciva era apenas isso, e no uma condenao dafamlia como instituio). A justia est fundamentalmente conectada ao modo como aspessoas vivem e no meramente natureza das instituies que as cercam. Em contrapartida,muitas das teorias da justia se concentram predominantemente em como estabelecerinstituies justas e atribuem um papel acessrio e secundrio aos traos comportamentais.Por exemplo, a abordagem de John Rawls da justia como equidade merecidamentecelebrada produz um nico conjunto de princpios de justia, que dizem respeitoexclusivamente ao estabelecimento de instituies justas (para constituir a estrutura bsica

  • da sociedade), embora requeiram que o comportamento das pessoas cumpra integralmenteas exigncias do funcionamento apropriado dessas instituies.3 Na abordagem da justiaapresentada nesta obra, sustenta-se que existem algumas inadequaes cruciais nessaconcentrao dominante sobre as instituies (na qual se supe que o comportamento sejaapropriadamente obediente), e no sobre a vida que as pessoas so capazes de levar. O focosobre a vida real na avaliao da justia tem muitas implicaes de longo alcance para anatureza e o alcance da ideia de justia.c

    A orientao da teoria da justia que explorada nesta obra tem influncia direta, comodefendo, sobre a filosofia poltica e moral. Contudo, tambm tentei discutir a relevncia dosargumentos aqui apresentados para algumas das disputas em andamento no direito, naeconomia e na poltica; eles poderiam inclusive ter pertinncia, se nos dispusermos a serotimistas, para os debates e decises sobre programas e polticas prticas.d

    O uso de uma perspectiva comparativa, indo bem alm da limitada e limitante estrutura do contrato social, pode ser uma contribuio til nesse momento. Pretendemosfazer comparaes em termos de promoo da justia quando combatemos a opresso (comoa escravido ou a sujeio das mulheres), ou protestamos contra a negligncia mdicasistemtica (em decorrncia da inexistncia de instalaes mdicas em partes da frica e dasia ou da falta de cobertura mdica universal na maioria dos pases do mundo, incluindo osEstados Unidos), ou repudiamos a permissibilidade da tortura (que continua a ser usadacom notvel frequncia no mundo contemporneo algumas vezes por baluartes doestablishment global), ou rejeitamos a tolerncia silenciosa da fome crnica (por exemplo, nandia, a despeito da bem-sucedida eliminao da fome).e Com bastante frequncia, podemosconcordar que algumas mudanas contempladas (como a abolio do apartheid, para dar umtipo diferente de exemplo) reduziro a injustia, mas, ainda que todas as mudanasacordadas fossem implementadas com sucesso, no teramos nada que pudssemos chamarde justia prefeita. Consideraes prticas, no menos que argumentos tericos, parecemexigir uma orientao um tanto radical na anlise da justia.

    argumentao racional pblica,democracia e justia global

    Ainda que na abordagem aqui apresentada os princpios de justia no sejam definidoscom relao s instituies, mas sim quanto vida e s liberdades das pessoas envolvidas, asinstituies no podem deixar de ter um papel instrumental importante na busca da justia.Junto com os determinantes do comportamento individual e social, uma escolha apropriadadas instituies tem um papel criticamente importante na tarefa de melhorar a justia. Asinstituies entram nos clculos de muitas formas diferentes. Elas podem contribuirdiretamente para a vida que as pessoas so capazes de levar de acordo com o que tm razo

  • para valorizar. As instituies tambm podem ser importantes para facilitar nossa capacidadede examinar minuciosamente os valores e as prioridades que podemos considerar, sobretudopor meio de oportunidades para o debate pblico (incluindo consideraes da liberdade deexpresso e do direito informao, bem como a existncia de locais para o debateinformado).

    Neste trabalho, a democracia avaliada no que concerne argumentao racional pblica(captulos 15-17), resultando em uma compreenso da democracia como o governo pormeio do debate (uma ideia para cuja promoo John Stuart Mill muito contribuiu). Mas ademocracia tambm precisa ser vista de forma mais genrica quanto capacidade deenriquecer o debate fundamentado atravs das melhorias da disponibilidade informacional eda factibilidade de discusses interativas. A democracia tem de ser julgada no apenas pelasinstituies que existem formalmente, mas tambm por diferentes vozes, de diversas partesda populao, na medida em que de fato possam ser ouvidas.

    Alm disso, essa maneira de ver a democracia pode ter impacto sobre sua busca em umnvel global e no apenas dentro de um Estado-nao. Se a democracia no vistasimplesmente com relao ao estabelecimento de algumas instituies especficas (como umgoverno global democrtico ou eleies globais democrticas), mas com relao possibilidade e ao alcance da argumentao racional pblica, que se trata de promover (emvez de aprefeioar), tanto a democracia global como a justia global podem ser vistas comoideias eminentemente compreensveis que com toda a probabilidade podem inspirar einfluenciar aes prticas para alm das fronteiras.

    o iluminismo europeu e nossa herana global

    O que posso dizer sobre os antecedentes da abordagem que busco apresentar aqui?Discutirei amplamente essa questo na Introduo, mas devo assinalar que a anlise dajustia que apresento neste livro recorre a linhas de argumentao racional que foramparticularmente exploradas no perodo de descontentamento intelectual durante oIluminismo europeu. Dito isso, preciso, contudo, fazer imediatamente duas observaesesclarecedoras para evitar possveis mal-entendidos.

    O primeiro esclarecimento consiste em explicar que a conexo desta obra com a tradiodo Iluminismo europeu no faz com que o background deste livro seja particularmenteeuropeu. Na verdade, uma das caractersticas inusuais excntricas, como talvez algunsdiro deste livro, em comparao com outros escritos sobre a teoria da justia, o usoextensivo que fao de ideias oriundas de sociedades no ocidentais, sobretudo da histriaintelectual indiana, mas de outras partes tambm. Existem fortes tradies de argumentosfundamentados em razes, em lugar da dependncia da f e de convices injustificadas. Aoconfinar a ateno quase que exclusivamente literatura ocidental, a busca contempornea

  • em grande parte, ocidental da filosofia poltica, em geral, e das exigncias da justia,em particular, tem sido, eu diria, limitada e, em certa medida, paroquial.f

    Todavia, no sustento que haja uma dissonncia radical entre o pensamento ocidental eo oriental (ou, genericamente, no ocidental) sobre esses temas. Existem muitas diferenasde argumentao racional no Ocidente e no Oriente, mas seria completamente estapafrdiopensar em um Ocidente unido no enfrentamento de prioridades quintessencialmenteorientais.g Essas vises, conhecidas nas discusses contemporneas, esto bem distantes daminha compreenso. Sustento, ao contrrio, que ideias semelhantes ou intimamenteligadas de justia, equidade, responsabilidade, dever, bondade e correo tm sidobuscadas em muitas partes diferentes do mundo, o que pode expandir o alcance dosargumentos considerados na literatura ocidental, e que com frequncia a presena globaldessa argumentao racional desconsiderada ou marginalizada nas tradies dominantesdo discurso ocidental contemporneo.

    Alguns dos argumentos racionais, por exemplo, de Gautama Buda (o defensor agnsticodo caminho do conhecimento) ou dos escritores da escola Lokayata (empenhada naanlise incansvel de todas as crenas tradicionais) na ndia do sculo vi a.C., podem soarintimamente alinhados e no adversos a muitos dos escritos crticos de autoresproeminentes do Iluminismo europeu. No precisamos nos alvoroar tentando decidir seGautama Buda deve ser visto como um membro antecipado de alguma liga iluministaeuropeia (seu nome adquirido afinal de contas significa iluminado em snscrito), nemconsiderar a tese forada de que o Iluminismo europeu pode ser remontado influncia delonga distncia do pensamento asitico. No h nada particularmente estranho emreconhecer que comprometimentos intelectuais semelhantes ocorreram em diferentes partesdo globo em estgios distintos da histria. J que argumentos um tanto diferentes foramapresentados com frequncia para lidar com questes semelhantes, podemos perder possveispistas-chave para a argumentao racional sobre a justia se mantivermos nossas exploraesregionalmente confinadas.

    Um exemplo com certo interesse e relevncia uma importante distino entre doisconceitos de justia encontrada na antiga cincia do direito indiana: niti e nyaya. A primeiraideia, niti, diz respeito tanto adequao organizacional quanto correo comportamental,enquanto a ltima, nyaya, diz respeito ao que resulta e ao modo como emerge, em especial,a vida que as pessoas so realmente capazes de levar. A distino, cuja relevncia serdiscutida na Introduo, ajuda-nos a ver com clareza que h dois tipos bastante diferentes,embora relacionados, de justia que devem ser satisfeitos pela ideia de justia.h

    Minha segunda observao explicativa diz respeito ao fato de os autores iluministas noterem falado a uma s voz. Como discutirei na Introduo, h uma dicotomia substancialentre dois tipos diferentes de argumentao racional sobre a justia que se reflete em doisgrupos de importantes filsofos ligados ao pensamento radical do perodo iluminista. Uma

  • abordagem se concentrou na identificao de arranjos sociais prefeitamente justos,considerando a caracterizao das instituies justas como a tarefa mais importante e,frequentemente, como a nica identificadora da teoria da justia. Articuladas, dediferentes formas, em torno da ideia de um contrato social hipottico, importantescontribuies foram feitas, seguindo essa abordagem, por Thomas Hobbes no sculo xvii e,mais tarde, por John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, entre outros. Aabordagem contratualista tem sido uma influncia dominante na filosofia polticacontempornea, especialmente depois do artigo pioneiro de John Rawls, Justice as fairness[Justia como equidade], de 1958, que precedeu a apresentao definitiva dessa abordagemno seu clssico Uma teoria da justia.4

    Por outro lado, muitos outros filsofos iluministas (Smith, Condorcet, Wollstonecraft,Bentham, Marx e John Stuart Mill, por exemplo) adotaram uma variedade de abordagensque compartilham o interesse comum em fazer comparaes entre diferentes vidas que aspessoas podem levar, influenciadas pelas instituies, mas tambm pelo comportamento realdessas pessoas, pelas interaes sociais e outros determinantes significativos. Este livro sealinha, em grande medida, a essa tradio alternativa.i A disciplina analtica e um tantomatemtica da teoria da escolha social que pode ser remontada s obras deCondorcet no sculo xviii, mas que foi desenvolvida na forma atual pelas contribuiespioneiras de Kenneth Arrow em meados do sculo xx pertence a essa segunda linha deinvestigao. Essa abordagem, adaptada adequadamente, pode ser uma contribuiosubstancial, como discutirei, ao se tratar de questes sobre o melhoramento da justia e aremoo de injustias no mundo.

    o lugar da razo

    A despeito das diferenas entre as duas tradies do Iluminismo a contratualista e acomparativa , existem muitos pontos de semelhana entre elas. As caractersticas emcomum incluem a dependncia da argumentao racional e o apelo s exigncias do debatepblico. Ainda que se relacione principalmente com a segunda abordagem, e no com aargumentao contratualista desenvolvida por Immanuel Kant e outros, este livro muitoguiado pelo insight kantiano fundamental (como Christine Korsgaard o expressa): Trazer arazo ao mundo torna-se a tarefa da moralidade, e no da metafsica, e tanto o trabalhocomo a esperana da humanidade.5

    Em que medida a argumentao racional pode prover uma base confivel para uma teoriada justia , obviamente, ela mesma uma questo sujeita a controvrsia. O primeiro captulodeste livro trata do papel e do alcance da argumentao racional. Sustento que no plausvel considerar as emoes, a psicologia ou os instintos como fontes independentes devalorao, sem uma avaliao arrazoada. Contudo, os impulsos e as atitudes mentais

  • continuam sendo importantes, visto que temos boas razes para lev-los em conta na nossaavaliao da justia e da injustia no mundo. Sustento que aqui no existe um conflitoirredutvel entre razo e emoo, e h muito boas razes para darmos espao relevncia dasemoes.

    Todavia, existe um tipo diferente de crtica dependncia da argumentao racional queaponta o predomnio da desrazo no mundo e o irrealismo envolvido na pressuposio deque o mundo seguir na direo ditada pela razo. Em uma crtica gentil, mas firme, deminha obra em campos aparentados, Kwame Anthony Appiah argumentou que por maisque voc amplie sua compreenso da razo pelas vias que Sen gostaria de usar eis umprojeto cujo interesse exalto voc no percorrer o caminho completo. Ao adotar aperspectiva individual de uma pessoa razovel, Sen deu as costas para a pervasividade dadesrazo.6 Enquanto descrio do mundo, o que Appiah afirma est obviamente certo, esua crtica, que no endereada construo de uma teoria da justia, apresenta boasrazes para sustentar o ceticismo sobre a eficincia prtica do debate fundamentado sobreassuntos sociais confusos (como a poltica da identidade). A prevalncia e a resistncia dadesrazo podem tornar muito menos eficazes as respostas baseadas em razes para questesdifceis.

    Esse ceticismo especfico sobre o alcance da argumentao racional no produz nempretende produzir (como Appiah deixa claro) nenhum fundamento para deixarmos deusar a razo at onde seja possvel ao buscarmos a ideia de justia ou qualquer outra noode relevncia social, como a identidade.j Ele tampouco mina o argumento a favor detentarmos nos persuadir reciprocamente a examinar nossas respectivas concluses comcuidado. Tambm importante observar que o que pode parecer aos outros um exemploclaro de desrazo nem sempre o de fato.k O debate baseado em razes pode acomodarposies conflitantes que paream aos outros um preconceito injustificado, sem que sejarealmente o caso. No existe obrigao alguma, ao contrrio do que s vezes se pressupe, deeliminar todas as alternativas fundamentadas deixando apenas uma.

    Entretanto, no tratamento dessa questo o ponto central que os preconceitoscomumente cavalgam em algum tipo de argumentao racional por mais fraca e arbitrriaque ela possa ser. De fato, mesmo as pessoas bastante dogmticas tendem a ter algum tipo derazo, possivelmente muito crua, em apoio a seus dogmas (os preconceitos racistas, sexistas,classistas e de casta so desse tipo, entre outros tipos de intolerncia baseada emargumentaes grosseiras). A desrazo em geral no consiste na prtica de dispensarcompletamente a razo, mas de contar com uma argumentao racional bastante primitiva efalha. Resta, porm, esperana nela porque uma m argumentao pode ser defrontada poruma argumentao melhor. Assim, existe oportunidade para o compromisso com razes,ainda que muitas pessoas se recusem, pelo menos inicialmente, a assumir tal compromisso, adespeito de serem questionadas.

  • O que importa para os argumentos neste livro no algo como a onipresena da razo nospensamentos que cada um de ns tem nesse exato momento. Essa pressuposio no podeser feita, e nem necessria. A alegao de que as pessoas concordariam quanto a umaafirmao especfica se elas argumentassem de forma aberta e imparcial obviamente nopressupe que as pessoas j estejam empenhadas em argumentar dessa forma, nem mesmoque estejam ansiosas por faz-lo. O que mais importa o exame do que o raciocnioargumentativo exigiria para a busca de justia levando em conta a possibilidade deexistirem muitas diferentes posies razoveis. Esse exerccio totalmente compatvel com apossibilidade, at mesmo a certeza, de que, em determinado momento, nem todas as pessoasestejam dispostas a realizar tal anlise. A argumentao racional central para acompreenso da justia mesmo em um mundo que inclui muita desrazo; na verdade, elapode ser especialmente importante em um mundo assim.

    a. A importncia da pluralidade valorativa foi explorada extensiva e vigorosamente por Isaiah Berlin e Bernard Williams. Aspluralidades podem sobreviver dentro de dada comunidade, ou mesmo para uma pessoa especfica, e no precisam serreflexos de valores de comunidades diferentes. Contudo, as variaes de valores entre pessoas em diferentes comunidadestambm podem ser significativas (tal como foi discutido, de diferentes modos, em importantes contribuies feitas porMichael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel, entre outros).b. Por exemplo, Marx exps o argumento a favor tanto da eliminao da explorao do trabalho (relacionada justia deficar com o que pode ser visto como o produto do prprio esforo) como da alocao de acordo com as necessidades(relacionada s exigncias da justia distributiva). Ele continuou discutindo o inescapvel conflito entre essas duasprioridades no seu ltimo escrito substancial: Crtica do programa de Gotha (1875).c. A recente investigao do que veio a ser chamado de perspectiva das capacidades se encaixa diretamente nacompreenso da justia em termos de vida humana e liberdades que as pessoas podem respectivamente exercer. Ver MarthaNussbaum e Amartya Sen (orgs.), The quality of life (Oxford: Clarendon Press, 1993). O alcance e os limites dessa perspectivasero examinados nos captulos 11-14.d. Por exemplo, o argumento a favor da aqui chamada imparcialidade aberta, que admite tanto vozes distantes comoprximas na interpretao da justia das leis (no apenas quanto equidade em relao aos outros, mas tambm quanto evitao do paroquialismo, como discutida por Adam Smith em Teoria dos sentimentos morais e Lectures on jurisprudence),tem relevncia direta para alguns dos debates contemporneos na Suprema Corte dos Estados Unidos, como discuto noltimo captulo deste livro.e. Tive o privilgio de discursar, diante do Parlamento indiano, sobre As exigncias da justia, em 11 de agosto de 2008, aconvite de seu presidente, Somnath Chatterjee. Foi a primeira Hiren Mukerjee Memorial Lecture, que passou a ser um eventoparlamentar anual. A verso completa do discurso est disponvel em uma brochura impressa pelo Parlamento; uma versoabreviada foi publicada no The Little Magazine, v. 8, n. 1 e 2 (2009), com o ttulo What should keep us awake at night [Oque deve nos manter despertos noite].f. Kautilya, antigo escritor indiano que tratou da estratgia poltica e da economia poltica, foi descrito algumas vezes naliteratura moderna, e s quando foi notado, como o Maquiavel indiano. Em alguns aspectos, isso no surpreendenteporque h algumas semelhanas entre suas ideias sobre estratgias e tticas (a despeito das profundas diferenas em muitasoutras reas, com frequncia mais importantes), mas divertido que um analista poltico indiano do sculo iv a.C. tenha deser apresentado como uma verso local de um escritor europeu nascido no sculo xv. Obviamente, isso reflete no um tipode afirmao tosca de hierarquia geogrfica, mas apenas a falta de familiaridade dos intelectuais ocidentais com a literaturano ocidental (na realidade, de intelectuais de todo o mundo moderno, devido atual dominncia global da educao

  • ocidental).g. De fato, argumentei em outro lugar que no h prioridades quintessencialmente orientais, nem mesmoquintessencialmente indianas, pois na histria intelectual desses pases podem ser encontrados argumentos orientados emdiferentes direes. Ver meu The argumentative indian (Londres e Nova Delhi: Penguin; Nova York: fsg, 2005) e Identity andviolence: the illusion of destiny (Nova York: Norton; Londres e Nova Delhi: Penguin, 2006).h. A distino entre nyaya e niti significativa no apenas dentro de um Estado, mas tambm entre os Estados, assim comodiscuti em meu ensaio Global justice, apresentado no World Justice Forum (em Viena, julho de 2008), que patrocinadopela American Bar Association, em conjunto com a International Bar Association, a Inter-American Bar Association, aInter-Pacific Bar Association e a Union Internationale des Avocats. Faz parte do World Justice Program, da American BarAssociation, e foi publicado em James Heckman, Robert Nelson e Lee Cabatingan (orgs.), Global perspectives on the rule oflaw (Nova York: Routledge, 2009).i. Todavia, isso no me impedir de aproveitar insights da primeira abordagem, partindo do esclarecimento que obtemosdos escritos de Hobbes e Kant, e, atualmente, de John Rawls.j. Na verdade, existem considerveis evidncias de que os debates pblicos interativos podem ajudar a enfraquecer a recusada razo. Ver o material emprico sobre isso apresentado em Development as freedom (Nova York: Knopf; Oxford:Clarendon Press, 1999 [Desenvolvimento como liberdade. So Paulo: Companhia das Letras, 2000]), e Identity and violence:the illusion of destiny (Nova York: Norton; Londres: Penguin, 2006).k. Como observa James Thurber, enquanto os supersticiosos podem evitar passar por baixo de escadas, aqueles com mentecientfica que querem desafiar as supersties podem escolher procurar escadas e se deliciar passando por baixo delas.Mas, se voc continuar procurando-as e passando por baixo delas por tempo suficiente, algo vai lhe acontecer (JamesThurber, Let your mind alone!. New Yorker, 1o maio 1937).

  • Agradecimentos

    Em agradecimento ajuda que recebi para a obra aqui apresentada, devo comearlembrando que minha grande dvida com John Rawls, que me inspirou a trabalhar nessarea. Ele tambm foi um professor maravilhoso durante muitas dcadas, e suas ideiascontinuam a me influenciar ainda que eu discorde de algumas de suas concluses. Este livro dedicado sua memria, no apenas pela educao e pela afeio que dele recebi, mastambm pelo encorajamento para que eu levasse adiante minhas dvidas.

    Meu primeiro longo contato com Rawls foi nos anos 1968-9, quando vim da Universidadede Delhi para Harvard como professor visitante e apresentei, com ele e Kenneth Arrow, umseminrio na graduao. Arrow tambm foi uma forte influncia sobre este livro, bem comosobre muitas de minhas obras anteriores. Sua influncia se deu no somente por meio delongas discusses durante muitas dcadas, mas tambm atravs do uso que fao da estruturaanaltica da moderna teoria da escolha social qual ele deu incio.

    Esta obra foi escrita em Harvard, onde passei a maior parte do tempo desde 1987, e noTrinity College, em Cambridge, particularmente durante seis anos, entre 1998 e 2004,quando voltei para essa importante instituio como reitor. Foi nela que, cinquenta anosatrs, comecei a pensar sobre questes filosficas. Fui influenciado em especial por PieroSraffa e C. D. Broad, e encorajado por Maurice Dobb e Dennis Robertson a perseguirminhas inclinaes.

    O livro veio luz lentamente, pois minhas dvidas e meus pensamentos construtivosforam desenvolvidos durante um longo tempo. Durante essas dcadas, tive o privilgio dereceber comentrios, sugestes, perguntas, desconsideraes e encorajamentos de um grandenmero de pessoas. Todas foram muito teis e minha lista de agradecimentos no vai sercurta.

    Devo primeiro mencionar a ajuda e o aconselhamento recebidos de minha esposa, EmmaRothschild, cuja influncia est refletida em todo o livro. A influncia de Bernard Williamsem meu pensamento sobre questes filosficas ser clara para os leitores familiarizados comseus escritos. Essa influncia derivou de muitos anos de conversadora amizade e tambmde um perodo produtivo de trabalho conjunto para planejar, editar e introduzir uma

  • coletnea de ensaios sobre a perspectiva utilitarista e suas limitaes (Utilitarianism andbeyond, 1982).

    Venho desfrutando da grande sorte de ter colegas com os quais tenho mantido conversasinstrutivas sobre filosofia poltica e moral. Alm de Rawls, devo reconhecer minha largadvida com Hilary Putnam e Thomas Scanlon, pelas tantas conversas esclarecedoras duranteanos. Aprendi muito com as conversas com W. V. O. Quine e Robert Nozick. uma penaque os dois j tenham partido. As aulas apresentadas em conjunto em Harvard tambm tmsido uma fonte constante de educao dialtica, suprida tanto por meus alunos como, claro, por meus coprofessores. Robert Nozick e eu ensinamos em cursos conjuntos duranteanos seguidos, por quase uma dcada, em algumas ocasies com Eric Maskin; ambosinfluenciaram meu pensamento. Vrias vezes dei cursos com Joshua Cohen (do no muitodistante Massachusetts Institute of Technology), Christine Jolls, Philippe Van Parijs, MichaelSandel, John Rawls, Thomas Scanlon e Richard Tuck, e com Kaushik Basu e James Foster,quando eles visitaram Harvard. Alm do absoluto deleite que me proporcionavam, essasaulas eram bastante teis para o desenvolvimento de minhas ideias e, frequentemente, deargumentos em conjunto com meus colegas.

    Em todos os meus escritos me beneficiei das crticas de meus alunos, e este livro no uma exceo. Em relao s ideias deste livro especificamente, gostaria de agradecer aosintercmbios feitos sobretudo com Prasanta Pattanaik, Kaushik Basu, Siddiqur Osmani, RajatDeb, Ravi Kanbur, David Kelsey e Andreas Papandreou durante muitas dcadas, e maistarde com Stephan Klasen, Anthony Laden, Sanjay Reddy, Jonathan Cohen, Felicia Knaul,Clemens Puppe, Bertil Tungodden, A. K. Shiva Kumar, Lawrence Hamilton, Douglas Hicks,Jennifer Prah Ruger, Sousan Abadian, entre outros.

    Minhas alegrias e benefcios do ensino interativo remontam aos anos 1970 e 1980,quando eu ensinava em Oxford eram aulas rebeldes, um aluno me disse com RonaldDworkin e Derek Parfit, das quais G. A. Cohen participou mais tarde. Minhas afetuosaslembranas daquelas discusses argumentativas foram recentemente reavivadas por Cohen,que organizou, na University College London em janeiro de 2009, um seminrioextremamente cativante sobre a abordagem central deste livro. A reunio estava repleta deagradveis dissidentes, incluindo Cohen ( claro). L tambm estiveram Jonathan Wolff,Laura Valentis, Riz Mokal, George Letsas e Stephen Guest, cujas diferentes crticas meajudaram muito (Laura Valentis gentilmente me enviou comentrios adicionais emcomunicaes posteriores ao seminrio).

    Ainda que uma teoria da justia deva pertencer principalmente filosofia, o livro usaideias apresentadas por vrias outras disciplinas. Um importante campo de estudo do qualeste livro muito se vale a teoria da escolha social. Embora minhas interaes com outraspessoas que trabalham nesse amplo campo sejam demasiado numerosas para seremcapturadas em uma curta apresentao feita aqui, gostaria de agradecer particularmente

  • pelos benefcios que recebi do trabalho realizado com Kenneth Arrow e Kotaro Suzumura,com quem editei o Handbook of social choice and welfare, e de mencionar meureconhecimento do papel de liderana que vem sendo desempenhado nesse campo por JerryKelly, Wulf Gaertner, Prasanta Pattanaik e Maurice Salles, especialmente por meio dotrabalho visionrio e incansvel deles para o surgimento e o florescimento da publicaoSocial choice and welfare. Tambm gostaria de agradecer pelos benefcios que usufru de meulongo relacionamento e das extensas discusses, de um modo ou de outro, sobre problemasde escolha social que tive com Patrick Suppes, John Harsanyi, James Mirrlees, AnthonyAtkinson, Peter Hammond, Charles Blackorby, Sudhir Anand, Tapas Majumdar, RobertPollak, Kevin Roberts, John Roemer, Anthony Shorrocks, Robert Sugden, John Weymark eJames Foster (alm dos nomes j mencionados).

    Uma influncia de longa data sobre minha obra a respeito da justia, especialmente emrelao s liberdades e capacidades, veio de Martha Nussbaum. Sua obra, combinada a seufirme compromisso com o desenvolvimento da perspectiva das capacidades, influenciouprofundamente muitos dos recentes avanos dessa perspectiva, incluindo a explorao de suaconexo com as ideias aristotlicas clssicas de capacidade e florescimento, e tambmcom obras sobre desenvolvimento humano, estudos de gnero e direitos humanos.

    A relevncia e o uso da perspectiva das capacidades tm sido vigorosamente exploradosnos anos recentes por um grupo de destacados pesquisadores. Ainda que seus escritostenham influenciado bastante meu pensamento, uma lista completa de nomes seriademasiado extensa para ser includa aqui. Devo, contudo, mencionar a influncia vinda dasobras de Sabina Alkire, Bina Agarwal, Tania Burchardt, Enrica Chiappero-Martinetti, FlavioComim, David Crocker, Sverine Deneulin, Sakiko Fukuda-Parr, Reiko Gotoh, MozaffarQizilbash, Ingrid Robeyns e Polly Vizard. Existe ainda uma ntima conexo entre aperspectiva das capacidades e a nova rea do desenvolvimento humano, cujo pioneiro foimeu falecido amigo Mahbub ul Haq, tambm marcada pelo impacto da influncia de PaulStreeten, Frances Stewart, Keith Griffin, Gustav Ranis, Richard Jolly, Meghnad Desai, SudhirAnand, Sakiko Fukuda-Parr, Selim Jahan, entre outros. A publicao Journal of HumanDevelopment and Capabilities tem um forte envolvimento com o trabalho sobre a perspectivadas capacidades, mas a Feminist Economics tambm assumiu um interesse especial nessarea, e para mim tm sido sempre estimulantes as conversas com a sua editora, DianaStrassman, a respeito da relao entre a perspectiva feminista e a abordagem dascapacidades.

    No Trinity, tive a excelente companhia de filsofos, juristas e outros interessados nosproblemas da justia, e tive a oportunidade de interagir com Garry Runciman, Nick Denyer,Gisela Striker, Simon Blackburn, Catharine Barnard, Joanna Miles, Ananya Kabir, EricNelson e ocasionalmente com Ian Hacking (que, algumas vezes, voltou ao seu velho college,onde nos encontramos pela primeira vez e conversamos como estudantes nos anos 1950).

  • Tambm tive a maravilhosa possibilidade de conversar com destacados matemticos,cientistas naturais, historiadores, cientistas sociais, juristas e pesquisadores das cinciashumanas.

    Tambm me beneficiei substancialmente de minhas conversas com muitos outrosfilsofos, incluindo Elizabeth Anderson, Kwame Anthony Appiah, Christian Barry, CharlesBeitz, o falecido Isaiah Berlin, Akeel Bilgrami, Hilary Bok, Sissela Bok, Susan Brison, JohnBroome, Ian Carter, Nancy Cartwright, Deen Chatterjee, Drucilla Cornell, Norman Daniels,o falecido Donald Davidson, John Davis, Jon Elster, Barbara Fried, Allan Gibbard, JonathanGlover, James Griffin, Amy Gutmann, Moshe Halbertal, o falecido Richard Hare, DanielHausman, Ted Honderich, a falecida Susan Hurley, Susan James, Frances Kamm, o falecidoStig Kanger, Erin Kelly, Isaac Levi, Christian List, Sebastiano Maffetone, Avishai Margalit,David Miller, o falecido Sidney Morgenbesser, Thomas Nagel, Sari Nusseibeh, a falecidaSusan Moller Okin, Charles Parsons, Herlinde Pauer-Struder, Fabienne Peter, Philip Pettit,Thomas Pogge, Henry Richardson, Alan Ryan, Carol Rovane, Debra Satz, John Searle, afalecida Judith Shklar, Quentin Skinner, Hillel Steiner, Dennis Thompson, Charles Taylor eJudith Thomson (alm daqueles j mencionados).

    No pensamento jurdico, eu me beneficiei bastante das discusses com Bruce Ackerman, ojuiz Stephen Breyer, Owen Fiss, o falecido Herbert Hart, Tony Honor, Anthony Lewis,Frank Michelman, Martha Minow, Robert Nelson, a juza Kate ORegan, Joseph Raz, SusanRose-Ackerman, Stephen Sedley, Cass Sunstein e Jeremy Waldron (alm daqueles jcitados). Ainda que meu trabalho para este livro tenha efetivamente comeado com minhasConferncias John Dewey (sobre Bem-estar, agncias e liberdade), apresentadas nodepartamento de filosofia da Columbia University, em 1984, e em grande parte terminadocom outro conjunto de conferncias filosficas na Stanford University (sobre A justia), em2008, tambm testei meus argumentos sobre as teorias da justia em vrias escolas de direito.Alm de muitas palestras e seminrios apresentados nas escolas de direito de Harvard, Yale eda Washington University, apresentei as Conferncias Storrs (sobre A objetividade) naescola de direito de Yale, em setembro de 1990, as Conferncias Rosenthal (sobre Odomnio da justia) na escola de direito da Northwestern University, em setembro de 1998,e uma conferncia especial (sobre Os direitos humanos e os limites da lei) na Cardozo LawSchool, em setembro de 2005.a

    Em economia, que minha rea original de concentrao e tem considervel relevnciapara a ideia de justia, eu me beneficiei muito de discusses regulares, durante muitasdcadas, com George Akerlof, Amiya Bagchi, Jasodhara Bagchi, o falecido Dipak Banerjee,Nirmala Banerjee, Pranab Bardhan, Alok Bhargava, Christopher Bliss, Samuel Bowles,Samuel Brittan, Robert Cassen, o falecido Sukhamoy Chakravarty, Partha Dasgupta, MrinalDatta-Chaudhuri, Angus Deaton, Meghnad Desai, Jean Drze, Bhaskar Dutta, Jean-PaulFitoussi, Nancy Folbre, Albert Hirschman, Devaki Jain, Tapas Majumdar, Mukul Majumdar,

  • Stephen Marglin, Dipak Mazumdar, Luigi Pasinetti, o falecido I. G. Patel, Edmund Phelps,K. N. Raj, V. K. Ramachandran, Jeffrey Sachs, Arjun Sengupta, Rehman Sobhan, BarbaraSolow, Robert Solow, Nicholas Stern, Joseph Stiglitz e Stefano Zamagni (alm dos nomes jmencionados).

    Tambm tive conversas muito proveitosas com Isher Ahluwalia, Montek Ahluwalia, PaulAnand, o falecido Peter Bauer, Abhijit Banerjee, Lourdes Beneria, Timothy Besley, KenBinmore, Nancy Birdsall, Walter Bossert, Franois Bourguignon, Satya Chakravarty,Kanchan Chopra, Vincent Crawford, Asim Dasgupta, Claude dAspremont, Peter Diamond,Avinash Dixit, David Donaldson, Esther Duflo, Franklin Fisher, Marc Fleurbaey, RobertFrank, Benjamin Friedman, Pierangelo Garegnani, o falecido Louis Gevers, o falecido W. M.Gorman, Jan Graaff, Jean-Michel Grandmont, Jerry Green, Ted Groves, Frank Hahn,Wahidul Haque, Christopher Harris, Barbara Harris White, o falecido John Harsanyi, JamesHeckman, Judith Heyer, o falecido John Hicks, Jane Humphries, Nurul Islam, RizwanulIslam, Dale Jorgenson, Daniel Kahneman, Azizur Rahman Khan, Alan Kirman, Serge Kolm,Janos Kornai, Michael Kramer, o falecido Jean-Jacques Laffont, Richard Layard, Michel LeBreton, Ian Little, Anuradha Luther, o falecido James Meade, John Muellbauer, PhilippeMongin, Dilip Mookerjee, Anjan Mukherji, Khaleq Naqvi, Deepak Nayyar, Rohini Nayyar,Thomas Piketty, Robert Pollak, Anisur Rahman, Debraj Ray, Martin Ravallion, Alvin Roth,Christian Seidl, Michael Spence, T. N. Srinivasan, David Starrett, S. Subramanian, KotaroSuzumura, Madhura Swaminathan, Judith Tendler, Jean Tirole, Alain Trannoy, JohnVickers, o falecido William Vickrey, Jorgen Weibull, Glen Weyl e Menahem Yaari.

    Tambm me beneficiei bastante das conversas, durante anos, sobre uma variedade deassuntos intimamente relacionados justia com Alaka Basu, Dilip Basu, Seyla Benhabib,Sugata Bose, Myra Buvinic, Lincoln Chen, Martha Chen, David Crocker, Barun De, JohnDunn, Julio Frenk, Sakiko Fukuda-Parr, Ramachandra Guha, Geeta Rao Gupta, GeoffreyHawthorn, Eric Hobsbawm, Jennifer Hochschild, Stanley Hoffmann, Alisha Holland,Richard Horton, Ayesha Jalal, Felicia Knaul, Melissa Lane, Mary Kaldor, Jane Mansbridge,Michael Marmot, Barry Mazur, Pratap Bhanu Mehta, Uday Mehta, o falecido RalphMiliband, Christopher Murray, Elinor Ostrom, Carol Richards, David Richards, JonathanRiley, Mary Robinson, Elaine Scarry, Gareth Stedman Jones, Irene Tinker, Megan Vaughan,Dorothy Wedderburn, Leon Wieseltier e James Wolfensohn. A parte do livro que trata dademocracia em sua relao com a justia (captulos 15-17) se baseia em minhas trs palestrassobre A democracia apresentadas na School of Advanced International Studies (sais), daJohns Hopkins University, no campus de Washington dc, em 2005. Essas palestrasresultaram da iniciativa de Sunil Khilnani, apoiada por Francis Fukuyama; de ambos recebisugestes muito teis. As prprias palestras produziram outras discusses em reunies nasais que foram muito proveitosas para mim.

    O novo programa de Harvard sobre Justia, bem-estar e economia, que dirigi por cinco

  • anos, de janeiro de 2004 a dezembro de 2008, tambm me proporcionou uma maravilhosaoportunidade para interagir com alunos e colegas interessados em problemas similares emdiferentes campos. O novo diretor, Walter Johnson, est dando continuidade a eexpandindo essas interaes com grande liderana, e tomei a liberdade de apresentar aideia principal deste livro em minha apresentao de despedida do grupo, recebendo muitosexcelentes comentrios e questes.

    Erin Kelly e Thomas Scanlon me auxiliaram imensamente lendo boa parte do manuscritoe fizeram vrias sugestes criticamente importantes. Sou muito grato aos dois.

    As despesas da pesquisa, incluindo o trabalho dos assistentes, foram em parte atendidaspelo projeto sobre a democracia realizado durante cinco anos no Centre for History andEconomics do Kings College, em Cambridge, em conjunto com a Ford Foundation, aRockefeller Foundation e a Mellon Foundation, de 2003 a 2008, e posteriormente por umnovo projeto, financiado pela Ford Foundation, sobre A ndia no mundo globalizado, cujofoco central era a relevncia da histria intelectual indiana para os problemascontemporneos. Sou muito grato a esse apoio, e tambm reconheo o maravilhoso trabalhode coordenao desses projetos feito por Inga Huld Markan. Tambm tive a sorte de contarcom assistentes de pesquisa extremamente capazes e imaginativos; eles se interessaramprofundamente pelo livro e fizeram vrios comentrios muito produtivos que me ajudaram amelhorar meus argumentos e a apresentao. Por isso devo muito a Pedro Ramos Pintos, quetrabalhou comigo por mais de um ano e deixou sua duradoura influncia sobre este livro, eatualmente a Kirsty Walker e Afsan Bhadelia, por sua excelente ajuda e contribuiointelectual.

    O livro est sendo publicado pela Penguin e, nos Estados Unidos, pela Harvard UniversityPress. Meu editor da Harvard, Michael Aronson, fez vrias e excelentes sugestes de cartergeral. Os dois resenhistas annimos do manuscrito fizeram comentrios notavelmente teis,e, como meu trabalho de detetive revelou que se tratava de Frank Lovett e Bill Talbott, possolhes agradecer pelo nome. A produo e a preparao na Penguin Books foram levadas acabo de forma excelente, sob a forte presso do tempo, pelo trabalho rpido e incansvel deRichard Duguid (o gerente editorial), Jane Robertson (preparadora) e Phillip Birch (editorassistente). Sou grato a todos eles.

    Para mim, impossvel expressar adequadamente minha gratido ao editor desta obra,Stuart Proffitt, da Penguin, que fez inestimveis comentrios e sugestes sobre cada captulo(na verdade, sobre cada pgina de cada captulo) e me levou a reescrever muitas sees domanuscrito para torn-lo mais claro e acessvel. Seus conselhos sobre a organizao geral dolivro tambm foram indispensveis. Posso perfeitamente imaginar o alvio que ele sentirquando este livro, depois de tanto tempo, estiver pronto para deixar suas mos.

    Amartya Sen

  • a. As Conferncias Dewey foram organizadas principalmente por Isaac Levi; as Conferncias Storrs, por Guido Calabresi; asConferncias Rosenthal, por Ronald Allen; e a conferncia na Cardozo School, por David Rudenstine. Beneficiei-meenormemente das discusses com eles e seus colegas.

  • Introduo: Uma abordagem da justia

    Cerca de dois meses e meio antes da tomada da Bastilha em Paris, que foi de fato o incioda Revoluo Francesa, o filsofo poltico e orador Edmund Burke disse no Parlamento emLondres: Deu-se um acontecimento sobre o qual difcil falar, e impossvel silenciar. Era 5de maio de 1789. O discurso de Burke no tinha muito a ver com a tempestade que seformava na Frana. Em vez disso, a ocasio era o impeachment de Warren Hastings, entono comando da Companhia Inglesa das ndias Orientais, que estava estabelecendo asupremacia britnica na ndia, iniciada com a vitria, pela Companhia, da Batalha de Plassey(em 23 de junho de 1757).

    No impeachment de Warren Hastings, Burke invocou as leis eternas da justia, que,segundo ele, Hastings havia violado. A impossibilidade de manter silncio sobre umassunto uma observao que pode ser feita a respeito de muitos casos de patente injustiaque nos enfurecem de um modo at difcil de ser capturado por nossa linguagem. Aindaassim, qualquer anlise da injustia tambm demanda uma enunciao clara e uma anlisearrazoada.

    Burke de fato no deu mais mostras de embarao com as palavras: falou com eloqunciano s de um delito de Hastings, mas de um grande nmero deles, e ento apresentousimultaneamente vrias razes diferentes e bastante distintas para sustentar a necessidade deincriminar Warren Hastings e a natureza do surgente domnio britnico na ndia:

    Eu acuso o sr. Warren Hastings de graves crimes e contravenes.Eu o acuso em nome dos Comuns da Gr-Bretanha reunidos em Parlamento, cuja confiana parlamentar ele traiu.Eu o acuso em nome de todos os Comuns da Gr-Bretanha, cujo carter nacional ele desonrou.Eu o acuso em nome do povo da ndia, cujas leis, direitos e liberdades ele subverteu, cujas propriedades ele destruiu e

    cujo pas ele deixou arruinado e abandonado.Eu o acuso em nome e em virtude das leis eternas da justia que ele violou.Eu o acuso em nome da prpria natureza humana que ele cruelmente ultrajou, feriu e oprimiu, em ambos os sexos, em

    todas as idades, posies sociais, situaes e condies de vida.1

    Nenhum argumento identificado aqui como a razo para o impeachment de WarrenHastings como um golpe isolado produzindo o nocaute. Ao contrrio, Burke apresenta

  • um conjunto de razes distintas para o impeachment de Hastings.a Examinarei neste livro oprocedimento que pode ser chamado de fundamentao plural, isto , o uso de vriaslinhas diferentes de condenao, sem buscar um acordo sobre seus mritos relativos. Aquesto subjacente se temos de concordar com uma nica linha especfica de censura parachegarmos a um consenso fundamentado no diagnstico de uma injustia que exigereparao urgente. O que importante observar aqui, como fundamental para a ideia dejustia, que podemos ter um forte senso de injustia com base em muitos fundamentosdiferentes, sem, contudo, concordarmos que um fundamento especfico seja a razodominante para o diagnstico da injustia.

    Talvez um exemplo mais imediato, e mais contemporneo, dessa observao geral sobre asimplicaes da congruncia possa ser oferecido pela anlise de um acontecimento recente,envolvendo a deciso do governo norte-americano de deflagrar uma invaso militar noIraque, em 2003. H diversas maneiras de julgar decises desse tipo, mas o ponto a serconsiderado aqui que possvel que vrios argumentos distintos e divergentes levem, aindaassim, mesma concluso nesse caso, concluso de que a poltica escolhida pela coalizoliderada pelos Estados Unidos de comear a guerra no Iraque em 2003 foi um erro.

    Consideremos os diferentes argumentos apresentados, todos bastante plausveis, comocrticas da deciso de ir guerra no Iraque.b Primeiro, a concluso de que a invaso foi umerro pode ser baseada na necessidade de um maior acordo global, em particular atravs dasNaes Unidas, antes que um pas possa justificadamente desembarcar suas tropas em outro.Um segundo argumento pode enfocar a importncia de estar bem informado, por exemplo,sobre os fatos relacionados presena ou ausncia de armas de destruio em massa noIraque antes da invaso, antes de tomar tais decises militares, que inevitavelmentecolocariam inmeras pessoas em risco de serem assassinadas, mutiladas ou desalojadas. Umterceiro argumento pode estar relacionado com a democracia como governo por meio dodebate (para usar uma antiga expresso com frequncia associada a John Stuart Mill, masque foi usada antes por Walter Bagehot), e se concentrar por sua vez no significado polticoda distoro de informaes contida no que apresentado ao povo de um pas, incluindo ocultivo da fico (como as conexes imaginrias de Saddam Hussein com os acontecimentosde Onze de Setembro ou com a Al-Qaeda), dificultando aos cidados dos Estados Unidos aavaliao da proposta do Executivo de entrar em guerra. Um quarto argumento poderia ver aquesto principal como no sendo nenhuma das listadas acima, mas, em vez disso, como asconsequncias reais da interveno: ela levaria paz e ordem ao pas invadido, ou ao OrienteMdio, ou ao mundo, ou se esperaria que ela reduzisse os perigos da violncia e doterrorismo globais em vez de intensific-los?

    Todas essas consideraes so srias e envolvem elementos avaliativos muito diferentes,nenhum dos quais sendo facilmente excludo como irrelevante ou sem importncia naapreciao de aes desse tipo. E, em geral, podem no levar mesma concluso. Mas, se for

  • mostrado, como nesse exemplo especfico, que todos os critrios sustentveis levam aomesmo diagnstico de erro gigantesco, ento tal concluso especfica no necessita esperarpela determinao das relativas prioridades para ser anexada a esses critrios. A reduoarbitrria de princpios mltiplos e potencialmente conflitantes a um nico e solitriosobrevivente, guilhotinando todos os outros critrios avaliativos, de fato no um pr-requisito para chegar a concluses teis e robustas sobre o que deve ser feito. Isso se aplicatanto teoria da justia quanto a qualquer outra parte da disciplina da razo prtica.

    argumentao racional e justia

    A necessidade de uma teoria da justia est relacionada com a disciplina de argumentarracionalmente sobre um assunto do qual, como observou Burke, muito difcil falar.Afirma-se s vezes que a justia no diz respeito argumentao racional; que se trata de seradequadamente sensvel e ter o faro certo para a injustia. fcil ficar tentado a pensar nessalinha. Quando deparamos, por exemplo, com uma alastrada fome coletiva, parece naturalprotestar em vez de raciocinar de forma elaborada sobre a justia e a injustia. Contudo, umacalamidade seria um caso de injustia apenas se pudesse ter sido evitada, em especial seaqueles que poderiam ter agido para tentar evit-la deixaram de faz-lo. Qualquer que seja oraciocnio argumentativo, ele s pode intervir partindo da observao de uma tragdia echegando ao diagnstico da injustia. Alm disso, casos de injustia podem ser muito maiscomplexos e sutis que a estimao de uma calamidade observvel. Poderia haver diferentesargumentos sugerindo diversas concluses, e as avaliaes sobre injustias podem no sernada bvias.

    No so protestadores indignados os que frequentemente se esquivam da justificaoarrazoada, mas sim plcidos guardies da ordem e da justia. Ao longo da histria, areticncia foi um apelo para os que, detendo cargos governamentais dotados de autoridadepblica, no tinham certeza dos fundamentos de suas aes ou estavam pouco dispostos aexaminar cuidadosamente as bases de suas polticas. Lorde Mansfield, o poderoso juiz inglsdo sculo xviii, deu um famoso conselho a um governador colonial recm-nomeado:Considere o que voc acha que a justia exige e decida de modo apropriado. Mas nuncaapresente suas razes, pois seu julgamento provavelmente estar certo, mas suas razes semdvida estaro erradas.2 Isso pode at ser um bom conselho para um governo discreto, mascom certeza em nada garante que a coisa certa seja feita. Tampouco ajuda a assegurar que aspessoas afetadas possam ver que a justia est sendo feita (o que , como discutiremosadiante, parte da disciplina de tomar decises sustentveis com respeito justia).

    Os requisitos de uma teoria da justia incluem fazer com que a razo influencie odiagnstico da justia e da injustia. Por centenas de anos, aqueles que escreveram sobre ajustia em diferentes partes do mundo buscaram fornecer uma base intelectual para partir de

  • um senso geral de injustia e chegar a diagnsticos fundamentados especficos de injustias,e, partindo destes, chegar s anlises de formas de promover a justia. Tradies deargumentao racional sobre a justia e a injustia tm histrias longas e impressionantes por todo o mundo; com base nelas, podemos considerar esclarecedoras sugestes derazes de justia (como ser examinado em breve).

    o iluminismo e uma divergncia bsica

    Ainda que a justia social tenha sido discutida por sculos, a disciplina recebeu umimpulso especialmente forte durante o Iluminismo europeu nos sculos xviii e xix,encorajado pelo clima poltico de mudana e tambm pela transformao social e econmicaem curso na Europa e nos Estados Unidos. H duas linhas bsicas e divergentes deargumentao racional sobre a justia entre importantes filsofos ligados ao pensamentoradical daquele perodo. A distino entre as duas abordagens recebeu muito menos atenodo que, a meu ver, ela ricamente merece. Comeo tratando dessa dicotomia porque issoajudar a localizar a compreenso especfica da teoria da justia que busco apresentar nestaobra.

    Uma abordagem iniciada por Thomas Hobbes no sculo xvii, e seguida, de diferentesmodos, por destacados pensadores, como Jean-Jacques Rousseau concentrou-se naidentificao de arranjos institucionais justos para uma sociedade. Essa abordagem, que podeser chamada de institucionalismo transcendental, tem duas caractersticas distintas.Primeiro, concentra a ateno no que identifica como a justia perfeita, e no nascomparaes relativas de justia e injustia. Ela apenas busca identificar caractersticas sociaisque no podem ser transcendidas com relao justia; logo, seu foco no a comparaoentre sociedades viveis, todas podendo no alcanar os ideais de perfeio. A investigaovisa identificar a natureza do justo, em vez de encontrar algum critrio para afirmar queuma alternativa menos injusta do que outra.

    Segundo, na busca da perfeio, o institucionalismo transcendental se concentra antes detudo em acertar as instituies, sem focalizar diretamente as sociedades reais que, em ltimaanlise, poderiam surgir. claro que a natureza da sociedade que resultaria de determinadoconjunto de instituies depende necessariamente tambm de caractersticas noinstitucionais, tais como os comportamentos reais das pessoas e suas interaes sociais. Nodetalhamento das provveis consequncias das instituies, se e somente se uma teoriainstitucionalista transcendental as comentar, so feitas algumas pressuposies comportamentais que ajudam na operao das instituies escolhidas.

    Ambas as caractersticas se relacionam com o modo contratualista de pensar, queThomas Hobbes iniciou e que foi levado adiante por John Locke, Jean-Jacques Rousseau eImmanuel Kant.3 Um contrato social hipottico, supostamente escolhido, claramente diz

  • respeito a uma alternativa ideal para o caos que de outra forma caracterizaria uma sociedade,e os contratos que foram mais discutidos por tais autores lidavam sobretudo com a escolhade instituies. O resultado geral foi o desenvolvimento de teorias da justia que enfocavama identificao transcendental das instituies ideais.c

    Contudo, importante observar que, na busca de instituies perfeitamente justas, osinstitucionalistas transcendentais s vezes tambm apresentaram anlises profundamenteesclarecedoras dos imperativos morais e polticos para o comportamento socialmenteapropriado. Isso se aplica em especial a Immanuel Kant e John Rawls: ambos participaram deinvestigaes institucionais transcendentais, mas tambm forneceram anlises abrangentesdos requisitos das normas comportamentais. Ainda que eles tenham focado as escolhasinstitucionais, suas anlises podem ser vistas, de forma mais ampla, como abordagens dajustia focadas em arranjos, em que arranjo se refere tanto ao comportamento certo como sinstituies certas.d claro que existe um contraste radical entre uma concepo de justiafocada em arranjos e uma concepo focada em realizaes: esta necessita, por exemplo,concentrar-se no comportamento real das pessoas, em vez de supor que todas sigam ocomportamento ideal.

    Em comparao com o institucionalismo transcendental, vrios outros tericos iluministasadotaram uma variedade de abordagens comparativas endereadas s realizaes sociais(resultantes de instituies reais, comportamentos reais e outras influncias). Diferentesverses desse pensamento comparativo podem ser encontradas, por exemplo, nas obras deAdam Smith, do Marqus de Condorcet, de Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft, KarlMarx, John Stuart Mill, entre vrios outros lderes do pensamento inovador nos sculos xviiie xix. Ainda que esses autores, com suas ideias muito diferentes sobre as exigncias dajustia, tenham proposto modos bastante distintos de fazer comparaes sociais, pode-sedizer, sob o risco de exagerar um pouco, que todos estavam envolvidos com comparaesentre sociedades que j existiam ou poderiam surgir, em vez de limitarem suas anlises apesquisas transcendentais de uma sociedade perfeitamente justa. Tais comparaes focadasem realizaes tinham com frequncia como principal interesse a remoo de injustiasevidentes no mundo que viam.

    A distncia entre as duas abordagens, o institucionalismo transcendental, de um lado, e acomparao focada em realizaes, de outro, bastante significativa. Por acaso, sobre aprimeira tradio a do institucionalismo transcendental que a filosofia poltica hojepredominante se apoia amplamente em sua explorao da teoria da justia. A exposio maisinfluente e significativa dessa abordagem da justia pode ser encontrada na obra do maisimportante filsofo poltico de nossa poca, John Rawls (cujas ideias e contribuies de longoalcance sero examinadas no captulo 2).e De fato, em seu livro A theory of justice, osprincpios de justia so definidos inteiramente em relao a instituies perfeitamentejustas, embora Rawls tambm investigue de forma muito esclarecedora as normas do

  • comportamento certo em contextos polticos e morais.f

    Vrios preeminentes tericos contemporneos da justia tambm adotaram, de modogeral, a via institucional transcendental aqui tenho em mente Ronald Dworkin, DavidGauthier, Robert Nozick, entre outros. Suas teorias que forneceram insights diferentesmas importantes sobre as exigncias de uma sociedade justa compartilham o objetivo deidentificar regras e instituies justas, embora as identificaes desses arranjos institucionaisassumam formas muito distintas. A caracterizao de instituies perfeitamente justastransformou-se no exerccio central das teorias da justia modernas.

    o ponto de partida

    Contrastando com a maioria das teorias da justia modernas, que se concentram nasociedade justa, este livro uma tentativa de investigar comparaes baseadas nasrealizaes que focam o avano ou o retrocesso da justia. Nesse aspecto, minha investigaono est alinhada forte tradio, filosoficamente mais clebre, do institucionalismotranscendental, que surgiu no perodo iluminista (iniciada por Hobbes e desenvolvida porLocke, Rousseau, Kant, entre outros), mas outra tradio que tambm tomou formaquase no mesmo perodo ou pouco depois (levada adiante de vrias maneiras por Smith,Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx, Mill, entre outros). O fato de compartilhar essaperspectiva inicial com esses diversos pensadores obviamente no indica que eu concordecom suas teorias substantivas (isso deve ser bastante claro, pois eles mesmos diferemsobremaneira uns dos outros), e, indo alm dessa perspectiva inicial compartilhada, tambm preciso observar alguns resultados finais.g O restante deste livro ir explorar essa jornada.

    Devemos atribuir importncia ao ponto de partida, em especial seleo de algumasquestes a serem respondidas (por exemplo, como a justia seria promovida?) em lugar deoutras (por exemplo, o que seriam instituies perfeitamente justas?). Esse ponto departida tem como efeito uma dupla divergncia: primeiro, toma-se a via comparativa, em vezda transcendental; segundo, focam-se as realizaes que ocorrem nas sociedades envolvidas,em vez de focar apenas as instituies e as regras. Dado o presente balano de nfases nafilosofia poltica contempornea, esse efeito vai exigir uma mudana radical na formulaoda teoria da justia.

    Por que necessitamos de uma dupla divergncia? Comeo com o transcendentalismo, noqual vejo dois problemas. Primeiro, pode no haver nenhum acordo arrazoado, mesmo sobestritas condies de imparcialidade e anlise abrangente (por exemplo, como identificadaspor Rawls em sua posio original) da natureza da sociedade justa: esse o problema dafactibilidade de encontrar uma soluo transcendental acordada. Segundo, um exerccio darazo prtica envolvendo uma escolha real exige uma estrutura para comparar a justia naescolha entre alternativas viveis, e no uma identificao de uma situao perfeita,

  • possivelmente inacessvel, que no possa ser transcendida: esse o problema da redundnciada busca de uma soluo transcendental. Logo discutirei esses problemas do enfoquetranscendental (factibilidade e redundncia), mas antes me permitam comentar brevementea concentrao institucional envolvida na abordagem do institucionalismo transcendental.

    Esse segundo componente da divergncia diz respeito necessidade de focar as realizaese os feitos, em vez de apenas o que se identifica como as instituies e as regras certas. Ocontraste aqui se relaciona, como mencionado anteriormente, a uma dicotomia geral emuito mais ampla entre uma viso da justia focada em arranjos e uma compreenso dajustia focada em realizaes. A primeira linha de pensamento prope que a justia sejaconceitualizada quanto a certos arranjos organizacionais algumas instituies, algumasregulamentaes, algumas regras comportamentais , cuja presena ativa indicaria que ajustia est sendo feita. Nesse contexto, a pergunta a ser feita : a anlise da justia necessitalimitar-se ao acerto das instituies bsicas e das regras gerais? No deveramos tambmexaminar o que surge na sociedade, incluindo os tipos de vida que as pessoas podem levar defato, dadas as instituies e as regras, e tambm outras influncias, incluindo oscomportamentos reais, que afetam inescapavelmente as vidas humanas?

    Considerarei sucessivamente os argumentos a favor das duas respectivas divergncias.Comeo com os problemas da identificao transcendental, partindo do problema dafactibilidade e depois enfrentando o da redundncia.

    a factibilidade de um acordo transcendental nico

    Pode haver srias diferenas entre princpios de justia concorrentes que sobrevivam aoexame crtico e tenham pretenso de imparcialidade. Esse problema bastante srio, porexemplo, para a pressuposio feita por Rawls de que haver uma escolha unnime de umconjunto nico de dois princpios de justia em uma situao hipottica de igualdadeprimordial (por ele chamada de posio original), em que as pessoas no sabem quais soseus interesses pelo prprio benefcio. Isso pressupe que existe fundamentalmente apenasum tipo de argumento imparcial que satisfaa as exigncias da justia e do qual os interessespelo prprio benefcio tenham sido aparados. Acredito que isso possa ser um erro.

    Pode haver diferenas, por exemplo, nos pesos comparativos exatos a serem dados igualdade distribucional, por um lado, e na melhoria geral ou agregada, por outro. Em suaidentificao transcendental, John Rawls especifica uma dessas frmulas (a regra domaximin lexicogrfico, a ser discutida no captulo 2), entre muitas outras disponveis, semapresentar argumentos convincentes que eliminariam todas as outras alternativas quepoderiam concorrer pela ateno imparcial com essa sua frmula bastante especial.h Podehaver muitas outras diferenas arrazoadas envolvendo as frmulas especficas sobre as quaisRawls se concentra em seus dois princpios de justia, sem nos mostrar por que outras

  • alternativas no continuariam a merecer ateno na atmosfera imparcial de sua posiooriginal.

    Se um diagnstico de arranjos sociais perfeitamente justos for incuravelmenteproblemtico, ento toda a estratgia do institucionalismo transcendental estprofundamente prejudicada, mesmo que todas as alternativas concebveis no mundo estejamdisponveis. Por exemplo, os dois princpios de justia na investigao clssica da justiacomo equidade de John Rawls, que sero discutidos de forma mais completa no captulo 2,versam em detalhe sobre instituies perfeitamente justas em um mundo no qual todas asalternativas esto disponveis. Contudo, o que no sabemos se a pluralidade de razes afavor da justia permitiria que um conjunto nico de princpios de justia emergisse naposio original. A elaborada explorao da justia social rawlsiana, que procede passo apasso a partir da identificao e do estabelecimento das instituies justas, estaria emperradana prpria base.

    Em seus escritos posteriores, Rawls faz algumas concesses ao reconhecimento de que oscidados obviamente divergiro quanto s concepes polticas de justia que considerammais razoveis. De fato, Rawls vem a dizer, em O direito dos povos (1999), que:

    O contedo da razo pblica dado por uma famlia de concepes polticas da justia, e no apenas por uma nica.Existem muitos liberalismos e vises relacionadas; portanto, muitas formas de razo pblica especificadas por umafamlia de concepes polticas razoveis. Dentre estas, a justia como equidade, quaisquer que sejam seus mritos, apenas uma.4

    Todavia, no est claro como Rawls lidaria com as implicaes de longo alcance dessaconcesso. As instituies especficas, firmemente escolhidas para a estrutura bsica dasociedade, demandariam uma soluo especfica para o problema da escolha dos princpiosde justia, da maneira delineada por Rawls em suas obras anteriores, incluindo Uma teoriada justia (1971).i Uma vez descartada a pretenso de unicidade dos princpios de justiarawlsianos (o argumento a favor desse descarte foi esboado nas obras posteriores de Rawls),o programa institucional teria claramente uma sria indeterminao, e Rawls no nos dizmuito sobre como um conjunto especfico de instituies seria escolhido com base em umconjunto de princpios de justia concorrentes que demandassem diferentes combinaesinstitucionais para a estrutura bsica da sociedade. Rawls poderia obviamente resolver oproblema abandonando o institucionalismo transcendental de suas primeiras obras(sobretudo de Uma teoria da justia); esse seria o caminho mais atrativo para mim emparticular.j Mas temo no poder alegar que essa era a direo para a qual o prprio Rawlsestava claramente se encaminhando, ainda que suas obras tardias levantem forosamenteessa questo.

    trs crianas e uma flauta: um exemplo

  • No corao do problema especfico de uma soluo imparcial nica para a escolha dasociedade perfeitamente justa, est a possvel sustentabilidade de razes de justia plurais econcorrentes, todas com pretenso de imparcialidade, ainda que diferentes e rivais umas das outras. Permitam-me ilustrar o problema com um exemplo em que voc tem dedecidir qual dentre trs crianas Anne, Bob e Carla deve ficar com uma flauta pela qualesto brigando. Anne reivindica a flauta porque ela a nica que sabe toc-la (os outros nonegam esse fato) e porque seria bastante injusto negar a flauta nica pessoa que realmentesabe toc-la. Se isso fosse tudo o que voc soubesse, teria uma forte razo para dar a flauta primeira criana.

    Em um cenrio alternativo, Bob que se manifesta e defende que a flauta seja deleporque, entre os trs, o nico to pobre que no possui brinquedo algum. A flauta lhepermitiria brincar (os outros dois admitem que so mais ricos e dispem de uma boaquantidade de atrativas comodidades). Se voc tivesse escutado apenas Bob, teria uma forterazo para dar a ele a flauta.

    Em outro cenrio alternativo, Carla quem observa que ela, usando as prprias mos,trabalhou zelosamente durante muitos meses para fazer a flauta (os outros confirmam essefato) e s quando terminou o trabalho, s ento, ela reclama, esses expropriadoressurgiram para tentar me tirar a flauta. Se voc s tivesse escutado a declarao de Carla,estaria inclinado a dar a ela a flauta em reconhecimento a sua compreensvel pretenso aalgo que ela mesma fez.

    Tendo ouvido as trs crianas e suas diferentes linhas de argumentao, voc ter de fazeruma difcil escolha. Tericos com diferentes convices como os utilitaristas, osigualitaristas econmicos ou os libertrios pragmticos podem opinar que existe umasoluo evidente em nossa frente e que no difcil enxerg-la. Contudo, quase certo quecada um veria uma soluo totalmente diferente como a obviamente correta.

    Bob, o mais pobre, tenderia a receber o franco apoio de um igualitarista econmico queestivesse comprometido com a reduo das disparidades entre meios econmicos disponveispara diferentes pessoas. Por outro lado, Carla, que fez a flauta, receberia a aprovaoimediata do libertrio. possvel que o hedonista utilitarista enfrente o desafio mais difcil,mas ele sem dvida tenderia a atribuir peso maior que o atribudo pelo libertrio ou peloigualitarista econmico ao fato de que Anne provavelmente fruir o maior prazer, por sera nica que sabe tocar flauta (alm disso, h o dito comum quem guarda acha). Todavia, outilitarista tambm deve reconhecer que a privao relativa de Bob poderia fazer com que,por receber a flauta, seu ganho adicional, com relao felicidade, fosse muito maior. Odireito de Carla pode no impressionar imediatamente o utilitarista, mas uma reflexoutilitarista mais profunda tenderia a levar em conta as exigncias dos incentivos ao trabalhona criao de uma sociedade na qual a gerao de utilidade contnua e encorajada pelapermisso de que as pessoas fiquem com o que produzem por seus prprios esforos.k

  • O apoio do libertrio soluo de dar a flauta a Carla no condicional operao dosefeitos sobre os incentivos, como com certeza o caso do apoio do utilitarista, j que olibertrio consideraria diretamente o direito de uma pessoa de ficar com o que ela mesmaproduziu. A ideia do direito aos frutos do prprio trabalho pode unir a direita libertria esquerda marxista (no importando quo desconfortvel cada um se sentiria na companhiado outro).l

    A questo geral aqui que no fcil ignorar como infundadas quaisquer das pretensesbaseadas respectivamente na busca da satisfao humana, na remoo da pobreza ou nodireito a desfrutar dos produtos do prprio trabalho. Todas as diferentes solues tm sriosargumentos a seu favor, e podemos no ser capazes de identificar, sem algumaarbitrariedade, um dos argumentos alternativos como aquele que deve prevalecerinvariavelmente.m

    Tambm quero chamar a ateno para o fato bastante bvio de que as diferenas entre osargumentos justificativos das trs crianas no representam divergncias sobre o queconstitui a vantagem individual (cada uma das crianas considera vantajoso ganhar a flauta eacomoda esse fato em seus respectivos argumentos), mas sobre os princpios que devemgovernar a alocao de recursos em geral. Suas divergncias so sobre como os arranjossociais devem ser estabelecidos e quais instituies sociais devem ser escolhidas e, atravs disso, sobre quais realizaes sociais devem vir a acontecer. No se trata apenas das diferenasentre os interesses pelo prprio benefcio das trs crianas (embora, claro, eles sejamdiferentes), mas do fato de que cada um dos trs argumentos aponta para um tipo diferentede razo imparcial e no arbitrria.

    Isso no se aplica apenas disciplina da equidade na posio original rawlsiana, mastambm a outras exigncias de imparcialidade, por exemplo, a demanda, feita por ThomasScanlon, de que nossos princpios satisfaam a condio de no poderem ser rejeitados, deforma razovel, pelos outros.5 Como mencionei acima, tericos com diferentes convices,como os utilitaristas, os igualitaristas econmicos, os tericos dos direitos do trabalho ou oslibertrios srios, podem adotar a viso de que h uma s soluo francamente justa,facilmente detectada, mas cada um argumentaria a favor de uma soluo totalmentediferente como a que obviamente certa. Pode de fato no haver nenhum arranjo socialidentificvel que seja perfeitamente justo e sobre o qual surgiria um acordo imparcial.

    uma estrutura comparativa ou transcendental?

    O problema com a abordagem transcendental no surge apenas da possvel pluralidade deprincpios concorrentes que reivindicam relevncia para a avaliao da justia. Dada aimportncia do problema da no existncia de um arranjo social identificvel comoperfeitamente justo, um argumento extremamente importante a favor da abordagem

  • comparativa da razo prtica na justia no apenas a inviabilidade da teoria transcendental,mas sua redundncia. Se uma teoria da justia deve orientar a escolha arrazoada de polticas,estratgias ou instituies, ento a identificao dos arranjos sociais inteiramente justos no necessria nem suficiente.

    Para exemplificar, se estamos tentando escolher entre um Picasso e um Dal, de nadaadianta invocar um diagnstico (mesmo que esse diagnstico transcendental pudesse serfeito) segundo o qual o quadro ideal no mundo a Mona Lisa. Pode ser interessante ouvirisso, mas no tem nenhuma relevncia na escolha entre um Dal e um Picasso.6 Na verdade,para a escolha entre as duas alternativas com que deparamos, no minimamente necessriofalar sobre o que pode ser o quadro mais grandioso ou perfeito do mundo. Tambm no suficiente, ou mesmo de alguma serventia especfica, saber que a Mona Lisa o quadro maisperfeito do mundo quando a escolha de fato entre um Dal e um Picasso.

    Esse ponto pode parecer enganosamente simples. Uma teoria que identifica umaalternativa transcendental tambm no nos diria, pelo mesmo processo, o que queremossaber sobre a justia comparativa? A resposta no isso no acontece. Podemos,naturalmente, ser atrados pela ideia de que somos capazes de classificar as alternativasquanto a sua respectiva proximidade com a escolha perfeita, de modo que uma identificaotranscendental pudesse, indiretamente, produzir tambm um ranking das alternativas. Masessa abordagem no nos leva muito longe, em parte porque h diferentes dimenses nasquais os objetos diferem (de modo que h ainda o problema adicional da avaliao daimportncia relativa das distncias em dimenses distintas), e tambm porque a proximidadedescritiva no necessariamente um guia para a proximidade valorativa (uma pessoa queprefere o vinho tinto ao branco pode preferir qualquer um deles mistura dos dois, mesmoque a mistura seja, em um sentido descritivo evidente, mais prxima do vinho tinto preferidoque do vinho branco puro).

    claro que possvel ter uma teoria que faa as duas avaliaes: comparaes entre paresde alternativas e uma identificao transcendental (quando isso no for impossvel devido sobrevivente pluralidade de razes imparciais que reivindicam a nossa ateno). Ela seriauma teoria conglomerada, mas nenhum dos dois tipos de juzo decorre do outro. Maisimediatamente, as teorias padro da justia, associadas abordagem de identificaotranscendental (por exemplo, as de Hobbes, Rousseau, Kant ou, atualmente, Rawls eNozick), no so de fato teorias conglomeradas. Contudo, verdade que, no processo dedesenvolvimento de suas respectivas teorias transcendentais, alguns desses autoresapresentaram argumentos especficos que por acaso valem para o exerccio comparativo. Mas,em geral, a identificao de uma alternativa transcendental no oferece uma soluo para oproblema das comparaes entre quaisquer duas alternativas no transcendentais.

    A teoria transcendental simplesmente trata de uma questo diferente da tratada pelaavaliao comparativa uma questo que pode ser de interesse intelectual considervel,

  • mas que no tem relevncia direta para o problema da escolha que tem de ser enfrentado. Oque necessrio, em vez disso, um acordo baseado na argumentao racional pblica sobrerankings de alternativas que podem ser realizadas. A separao entre o transcendental e ocomparativo bastante abrangente, como ser discutido com mais detalhes no captulo 4.Coincidentemente, a abordagem comparativa central para a disciplina analtica da teoriada escolha social, iniciada pelo Marqus de Condorcet e outros matemticos franceses nosculo xviii, que trabalhavam principalmente em Paris.7 A disciplina formal da escolha socialno foi utilizada por um longo perodo, embora os trabalhos tenham continuado na subreada teoria do voto. A disciplina foi reanimada e estabelecida em sua forma atual por KennethArrow, em meados do sculo xx.8 Essa abordagem tornou-se, nas ltimas dcadas, umcampo bastante ativo de investigao analtica, ao explorar formas e meios de basear asavaliaes comparativas de alternativas sociais em valores e prioridades das pessoasenvolvidas.n Como a literatura da teoria da escolha social normalmente bastante tcnica equase toda matemtica, e muitos dos resultados nesse campo s podem ser estabelecidosatravs de extensos argumentos matemticos,o sua abordagem bsica tem recebido comrelao a isso pouca ateno, especialmente por parte dos filsofos. Contudo, a abordagem esua argumentao subjacente so muito prximas da compreenso do senso comum arespeito da natureza das decises sociais apropriadas. Na abordagem construtiva que buscoapresentar neste trabalho, insights da teoria da escolha social tero um papel substancial adesempenhar.p

    realizaes, vidas e capacidades

    Passo agora segunda parte de minha divergncia, a saber, a necessidade de uma teoriaque no se limite escolha das instituies nem identificao de arranjos sociais ideais. Anecessidade de uma compreenso da justia que seja baseada na realizao est relacionadaao argumento de que a justia no pode ser indiferente s vidas que as pessoas podem viverde fato. A importncia das vidas, experincias e realizaes humanas no pode sersubstituda por informaes sobre instituies que existem e pelas regras que operam.Instituies e regras so, naturalmente, muito importantes para influenciar o que acontece,alm de serem parte integrante do mundo real, mas as realizaes de fato vo muito alm doquadro organizacional e incluem as vidas que as pessoas conseguem ou no viver.

    Ao atentarmos para a natureza da vida humana, temos razes para nos interessar no spelas vrias coisas que conseguimos fazer, mas tambm pelas liberdades que realmente temospara escolher entre diferentes tipos de vidas. A liberdade de escolher nossa vida podecontribuir significativamente para nosso bem-estar, mas, indo alm da perspectiva de bem-estar, a prpria liberdade pode ser vista como importante. A capacidade de oferecer razes eescolher um aspecto significativo da vida humana. Na verdade, no temos obrigao de

  • procurar apenas nosso prprio bem-estar, e cabe a ns decidir quais so as coisas que temosboas razes para buscar (essa questo ser discutida nos captulos 8 e 9). No temos de serum Gandhi, um Martin Luther King Jr., um Nelson Mandela ou um Desmond Tutu parareconhecer que podemos ter objetivos ou prioridades que diferem da busca inflexvel denosso prprio bem-estar apenas.q As liberdades e as capacidades das quais desfrutamostambm podem ser valiosas para ns, e, em ltima anlise, cabe a ns decidir como usar aliberdade que temos.

    importante enfatizar, mesmo nesta breve exposio (uma explorao mais completa buscada mais adiante, particularmente nos captulos 11-13), que, se as realizaes sociais soavaliadas com relao s capacidades que as pessoas de fato tm, e no com relao a suasutilidades ou sua felicidade (como Jeremy Bentham e outros utilitaristas recomendam),alguns pontos iniciais muito significativos so produzidos. Primeiro, as vidas humanas soento vistas sem excluso, levando em conta as liberdades substantivas que as pessoasdesfrutam, ao invs de ignorar tudo menos os prazeres ou as utilidades que elas acabamtendo. H tambm um segundo aspecto significativo da liberdade: ela nos faz responsveispelo que fazemos.

    A liberdade de escolha nos d a oportunidade de decidir o que devemos fazer, mas comessa oportunidade vem a responsabilidade pelo que fazemos na medida em que so aesescolhidas. Uma vez que uma capacidade o poder de fazer algo, a responsabilidade queemana dessa capacidade desse poder uma parte da perspectiva das capacidades, e issopode abrir espao para demandas do dever o que pode ser genericamente chamado deexigncias deontolgicas. H aqui uma sobreposio entre as consideraes centradas naagnciar e as implicaes da abordagem baseada nas capacidades, mas no h nadaimediatamente comparvel na perspectiva utilitarista (amarrando a responsabilidade de umapessoa a sua prpria felicidade).s A perspectiva das realizaes sociais, incluindo ascapacidades reais que as pessoas possam ter, nos leva inevitavelmente a uma grandevariedade de outras questes que acabam sendo bastante centrais na anlise da justia nomundo e que tero de ser examinadas e analisadas cuidadosamente.

    uma distino clssica na teoria do direito indiano

    Para o entendimento do contraste entre uma viso da justia focada em arranjos e umaviso focada em realizaes, til invocar uma antiga distino da literatura snscrita sobretica e teoria do direito. Considere duas palavras diferentes, niti e nyaya; no snscritoclssico, ambas significam justia. Entre os principais usos do termo niti, esto a adequaode um arranjo institucional e a correo de um comportamento. Contrastando com niti, otermo nyaya representa um conceito abrangente de justia realizada. Nessa linha de viso, ospapis das instituies, regras e organizaes, importantes como so, tm de ser avaliados da

  • perspectiva mais ampla e inclusiva de nyaya, que est inevitavelmente ligada ao mundo quede fato emerge, e no apenas s instituies ou regras que por acaso temos.t

    Considerando uma aplicao especfica, os antigos tericos do direito indiano falavam deforma depreciativa do que chamavam matsyanyaya, a justia do mundo dos peixes, naqual um peixe grande pode livremente devorar um peixe pequeno. Somos alertados de queevitar a matsyanyaya deve ser uma parte essencial da justia, e crucial nos assegurarmos deque no ser permitido justia dos peixes invadir o mundo dos seres humanos. Oreconhecimento central aqui que a realizao da justia no sentido de nyaya no apenasuma questo de julgar as instituies e as regras, mas de julgar as prprias sociedades. Noimporta quo corretas as organizaes estabelecidas possam ser, se um peixe grande aindapuder devorar um pequeno sempre que queira, ento isso necessariamente uma evidenteviolao da justia humana como nyaya.

    Permitam-me considerar um exemplo para tornar mais clara a distino entre niti e nyaya.No sculo xvi, Ferdinando i, sacro imperador romano, fez a famosa afirmao Fiat justitia,et pereat mundus, que pode ser traduzida como Que a justia seja feita, embora o mundoperea. Essa mxima severa poderia figurar como uma niti uma niti bastante austera defendida por alguns (na verdade, o imperador Ferdinando fez exatamente isso), mas seriadifcil aceitar uma catstrofe total como exemplo de um mundo justo, quando entendemosjustia na forma mais ampla de nyaya. Se de fato o mundo perecesse, haveria muito pouco acomemorar nessa realizao, mesmo que a niti severa e inflexvel que leva a tal resultadoextremo pudesse concebivelmente ser defendida com argumentos muito sofisticados dediferentes tipos.

    A perspectiva focada em realizaes tambm facilita a compreenso da importncia deprevenir injustias manifestas no mundo, em vez de buscar o que perfeitamente justo.Como o exemplo de matsyanyaya deixa claro, o tema da justia no diz respeito apenas tentativa de alcanar ou sonhar com a realizao de uma sociedade perfeitamente justaou arranjos sociais justos, mas preveno de injustias manifestadamente graves (comoevitar o terrvel estado de matsyanyaya). Por exemplo, as pessoas que faziam campanha afavor da abolio da escravido nos sculos xviii e xix no se deixavam iludir com o fato deque ao abolir a escravido o mundo se tornaria perfeitamente justo. Ao contrrio, elasalegavam que uma sociedade com escravos era totalmente injusta (entre os autoresmencionados acima, Adam Smith, Condorcet e Mary Wollstonecraft estavam bastanteenvolvidos na apresentao dessa perspectiva). Foi o diagnstico da injustia intolervelcontida na escravido que fez da abolio uma prioridade esmagadora, e isso no exigia abusca de um consenso sobre o que seria uma sociedade perfeitamente justa. Aqueles quepensam, de forma bastante razovel, que a Guerra Civil Americana que levou abolioda escravido foi um grande ataque em defesa da justia na Amrica teriam de sereconciliar com o fato de que pouco pode ser dito na perspectiva do institucionalismo

  • transcendental (quando o nico contraste entre o que perfeitamente justo e o restante)sobre a melhoria da justia atravs da abolio da escravido.u

    a importncia dos processos e das responsabilidades

    Aqueles que tendem a ver a justia com relao ao niti e no ao nyaya, no importa comochamem essa dicotomia, podem s