A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
-
Upload
amos-clarke -
Category
Documents
-
view
228 -
download
0
Transcript of A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 1/199
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Jorge Claudio Bastos da Silva
A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano
Rio de Janeiro
2011
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 2/199
Jorge Claudio Bastos da Silva
A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, aoPrograma de Pós-Graduação em Históriada Universidade do Estado do Rio deJaneiro. Área de concentração: HistóriaPolítica.
Orientador: Profª. Drª. Maria Emília Prado
Rio de Janeiro
2011
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 3/199
CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese.
_____________________________________ ___________________________Assinatura Data
H539m Silva, Jorge Claudio Bastos daA monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano \
Jorge Claudio Bastos da Silva – 2011.
197 f.
Orientadora: Maria Emília Prado.Tese (Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.Bibliografia.
1. Herculano, Alexandre, 1810 - 1877. 2. Monarquia -Portugal - Teses. 3. Liberalismo – Portugal - Teses. 4. Portugal –História. I.Prado, Maria Emília. II. Universidade do Estado doRio de Janeiro.Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.
CDU 946.9
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 4/199
Jorge Claudio Bastos da Silva
A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor aoPrograma de Pós-Graduação emHistória, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:História Política.
Aprovada em: 02 de junho de 2011
Banca Examinadora:
_____________________________________________Profa. Dra. Maria Emília da Costa Prado (Orientadora)Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
_____________________________________________Prof. Dr. Arno WehlingInstituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ
_____________________________________________Prof. Dr. Daniel de Pinho BarreirosInstituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ
_____________________________________________Lúcia Maria Paschoal GuimarãesInstituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
_____________________________________________Oswaldo Munteal FilhoInstituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
Rio de Janeiro
2011
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 5/199
DEDICATÓRIA
Para os meus filhos Cecília e Carlos, cujos futuros orientam o meu presente e para meu avôCarlos ( In memoriam) e minha tia Noemi ( In memoriam), cujos passados orientam meu
futuro.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 6/199
AGRADECIMENTOS
À Professora Maria Emília Prado, minha orientadora, pelo carinho, atenção e rigorfundamentais para o desenvolvimento e conclusão da tese; ao Professor Arno Wehling,
presença marcante na minha formação acadêmica e intelectual; ao Professor Daniel Barreiros,
apoio constante e amizade fraterna; ao Professor Orlando Munteal pelo apoio e pelas palavras
animadoras aliados às preciosas sugestões; à Professora Lucia Guimarães pelo carinho e
atenção demonstrados desde os primeiros dias de aula no PPGH/UERJ.
Aos funcionários da Secretaria do PPGH, especialmente à Daniele, cuja atenção é
fundamental para que todos os alunos do Programa consigam atingir seus objetivos comsucesso.
Aos colegas do Prevest do Colégio Militar do Rio de Janeiro, principalmente aqueles
que generosamente apoiaram e facilitaram, das mais distintas maneiras, a realização da tese:
Cel. Túlio Marron - Coordenador, Maj. Nicácio - BIO, Maj. Kling - GEO ( In Memoriam),
Prof. Gabriel Vogt - GEO, Prof. Vinícius Moura - GEO, Prof. Alexandre Antunes - QUI,
Prof.ª Claudete Daflon - LIT, Prof.ª Cátia Valério - LIT, Prof. Paulo Brito - BIO, Prof.
Benjamin Cesar - MAT, Prof.ª Suely Shibao - LP, Prof. Luiz Antônio Barros - LP, Prof.
Cláudio Capuano - RED, Prof. André Calvet - FIS, Prof.ª Andréa Sotero - ING e Prof.ª Maria
Spanó - LP.
Aos amigos do grupo Kali Rio, Eduardo Gomes, Tales Vasconcellos e Paulo Pereira,
que nunca negaram apoio e sempre tiveram paciência com os meus atrasos e ausências.
Mabuhay!
Aos meus eternos alunos e alunas do Colégio Andrews e do Colégio Militar do Rio de
Janeiro, especialmente à Priscila Alves e à Fernanda Prates, que acompanharam a tese desde
quando esta era apenas uma intenção.
À minha esposa e companheira, Ana Maria, e aos meus filhos e “cúmplices”, Gabriela,
Cecília e Carlos. Obrigado pelo apoio, carinho e compreensão. Amor eterno!
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 7/199
RESUMO
SILVA, Jorge Claudio Bastos da. A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.
2011. 197 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
A pesquisa A Monarquia Portuguesa na Obra de Alexandre Herculano analisa aconstrução do modelo ideal de monarca por Alexandre Herculano, com especial ênfase na
produção histórica em que os monarcas portugueses foram retratados com maior riqueza dedetalhes e analisados de forma mais criteriosa. A pesquisa se dá a partir da conjunturahistórica portuguesa marcada pelo estabelecimento do Estado Liberal e pelos debates entre osdiferentes grupos políticos em que a participação dos intelectuais é um ponto relevante. Notocante a Alexandre Herculano, o envolvimento do autor em diversas polêmicas e articulações
políticas é uma evidência da importância e da atuação da intelligentsia na sociedade
portuguesa do século XIX. Ao lado da conjuntura histórica na qual a obra de Herculano foi produzida, o universo conceitual forjado pelo autor com fundamento nos pressupostosteóricos e políticos também foi contemplado, pois o modelo de monarca construído pelo autorfoi elaborado a partir deste universo conceitual que, conforme os pressupostos teóricosempregados nesta pesquisa atuam e interferem nos debates contemporâneos à obra.
Palavras-chave: Monarquia. Portugal. História. Liberalismo. Intelectuais. Municípios.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 8/199
ABSTRACT
The research The Portuguese Monarchy in Alexandre Herculano’s work analyses the
building of the monarch’s ideal model (by Alexandre Herculano) especially focusing on thehistorical production on which the Portuguese monarchs were detailedly portrayed anddiscerningly analysed. Considering the Portuguese historical conjuncture marked not only bythe establishment of the Liberal State but also by the debates among the different politicalgroups in which the intellectual’s partaking is relevant. Concerning Alexandre Herculano, theauthor’s involvement in several debates and political articulations is an evidence of theintelligentsia’s outstanding role in the Portuguese society of the nineteenth century. Alongwith the historical context in which Herculano’s work was produced, the conceptual universecreated by the author reasoned on theoretical and political assumptions was also considered
because the monarch’s model built by the author was created from this universe of conceptsthat, according to the theoretical assumptions used in this research, act and expand their
sphere of influence towards the contemporary debates to his work.
Keywords: Monarchy. Portugal. History. Liberalism. Intellectuals. Municipality.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 9/199
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………….…… 8
1 LIBERALISMO E ROMANTISMO EM HERCULANO............................. 14
1.1 A trajetória de Alexandre Herculano............................................................... 14
1.2 O século XIX português..................................................................................... 26
1.2.1 As constituições portuguesas................................................................................ 31
1.2.2 O quadro político-partidário em Portugal do século XIX..................................... 35
1.3 A i ntelligentsia portuguesa................................................................................. 40
1.3.1 Veículos impressos............................................................................................... 45
1.3.2 Recomposição e condições de acesso à elite intelectual....................................... 48
1.3.3 A educação formal................................................................................................ 51
2 OS CONCEITOS NA OBRA DE HERCULANO........................................... 67
2.1 O universo conceitual de Alexandre Herculano.............................................. 67
2.1.1 História................................................................................................................. 70
2.1.2 Classe média......................................................................................................... 100
2.1.3 Concelhos............................................................................................................. 107
3 OS MONARCAS PORTUGUESES COMO MODELO ................................ 119
3.1 Os reis na obra de Alexandre Herculano.......................................................... 119
3.1.1 Afonso I - 1128/1185............................................................................................ 123
3.1.2 Sancho I - 1185/1211............................................................................................ 134
3.1.3 Afonso II - 1211/1223........................................................................................... 143
3.1.4 Sancho II - 1223/1248........................................................................................... 152
3.1.5 Afonso III - 1248/1279......................................................................................... 160
3.1.6 D. João II - 1481/1495.......................................................................................... 1703.1.7 D. Manuel I - 1495/1521....................................................................................... 173
3.1.8 D. João III - 1521/1557......................................................................................... 176
3.2 As virtudes necessárias e os vícios a serem evitados pelo rei ideal................. 179
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 190
REFERÊNCIAS.................................................................................................. 194
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 10/199
8
INTRODUÇÃO
A bibliografia sobre Alexandre Herculano e sua obra é vastíssima, justificando a
importância do autor para a historiografia portuguesa. Considerado fundador da Ciência
Histórica em Portugal, Herculano é tido como o “ pai da historiografia portuguesa”1 e como
um marco referencial nos estudos historiográficos portugueses. Por isso, o pesquisador que se
dedicar ao Solitário de Vale dos Lobos tem uma grande vantagem e ao mesmo tempo corre
um grande risco. Vantagem, pois as diversas análises sobre Herculano oferecem um panorama
bastante abrangente do autor e sua obra e, dada esta abrangência, o risco consiste em
enveredar a análise por um caminho anteriormente trilhado.
Ao longo da pesquisa e redação da dissertação de Mestrado em Memória Social eDocumento pela UNIRIO A Identidade Portuguesa e a Construção da Memória Nacional na
Obra de Alexandre Herculano, orientada pelo Prof. Dr. Arno Wehling, onde foram
trabalhadas a Identidade e a Memória Nacional portuguesa sob a luz do diálogo e do
enfrentamento entre Memória e História, percebemos que, apesar de enfatizar a Nação, a
História Social Portuguesa, a Teoria dos Dois Princípios e outras questões relevantes da obra
de Alexandre Herculano, um personagem estava presente na obra do autor, possuindo
atributos de agente e instituição política simultaneamente: o Soberano. Ou melhor, uma ideiaou modelo de Soberano elaborada a partir do ideário de Herculano e de seu projeto para
Portugal. Inicialmente pensamos em incluir a construção da imagem deste Modelo de
Soberano em nossas investigações, mas logo ficou claro que este não seria mais um “lugar da
Memória”, no entender de Pierre Nora. Seria um elemento constitutivo de todos os lugares da
Memória construídos por Alexandre Herculano ao longo de sua obra. Desvendar a construção
deste modelo de Soberano exigiria um trabalho à parte, ideal como tema para uma tese de
Doutorado.Ao retomar a obra de Herculano para elaborar o projeto para a seleção do Programa de
Pós-Gradução em História da UERJ, observamos que na introdução da terceira edição do
Volume I de História de Portugal Alexandre Herculano externou a sua gratidão para com o
rei D. Fernando pelo emprego de real bibliotecário da Ajuda e das Necessidades e, como
retribuição, se propôs a orientar os caminhos políticos do jovem príncipe D. Pedro V e
dedicava a obra a ele, pois a História era considerada a melhor conselheira política:
1 TORGAL, Luís Reis. Antes de Herculano. TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. Históriada História em Portugal . Lisboa: Temas e Debates, 1998.p.3. v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 11/199
9
Quando ha dezessete annos publiquei a primeira edição deste volume destinava o encetadotrabalho para estudo de um principe, (...) que em futuro remoto (...), devia governar Portugal.Persuadido de que o conhecimento da vida anterior de uma nação é o principal auxílio para se poder e saber usar, sem ofensa dos bons principios, do influxo que um rei de homens livrestem forçosamente nos destinos do seu país (...).2
Esta História ad usum Delphini3 levou-nos a algumas considerações sobre o modelo
ideal de rei construído por Herculano, visto que, além de servir como fundamento político do
modelo proposto por Herculano, a monarquia portuguesa elaborada pelo autor também
objetivava servir de parâmetro para o jovem príncipe, destacando as virtudes e defeitos, as
instituições privilegiadas na construção dos monarcas e quais os reis portugueses que o autor
considerou dignos de figurar na educação do jovem Pedro V. Enfim, como Alexandre
Herculano construiu este modelo de monarca, quais os critérios utilizados e como este modelo
aparece na sua produção intelectual, principalmente em História de Portugal e na História da
Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal .
Apesar de autores como Fernando Catroga4 e António José Saraiva5 mencionarem a
importância do monarca no pensamento político e na obra de Herculano, as menções feitas
não foram aprofundadas e, observando a produção mais recente sobre Alexandre Herculano e
sua obra, observamos que não existe nenhuma pesquisa desenvolvida sobre este tema
específico, o que garante a originalidade do nosso trabalho.
Para fundamentar teoricamente o nosso estudo, optamos pelo instrumental fornecido
pela “Escola Collingwoodiana” ou o “Contextualismo Linguístico”, em que se destacam
Quentin Skinner e John Pocock. O instrumental fornecido por esta corrente, de acordo com o
nosso entendimento, nos permite compreender o pensamento de Alexandre Herculano em sua
própria historicidade através de um “processo de pesquisa arqueológico” 6, segundo
definição do próprio Skinner, em que “a única história das ideias que deve ser feita é a
história dos usos a que as idéias estão sujeitas” 7. Para Skinner, uma categoria é de suma
importância, os Atos Discursivos ou Atos da Fala, em que a análise da sentença cede lugar à
2 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand 1980. p. 3.
3 CATROGA, Fernando. Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, JoséAmado; CATROGA, Fernando. História da História de Portugal . Lisboa: Temas e Debates, 1998. p.56. v. 1.
4 Ibidem. p. 56.
5 SARAIVA, Antônio José. Herculano e o liberalismo em Portugal . Lisboa: Bertrand, 1977.
6 SKINNER, Quentin. On intellectual history And the history of books. CONTRIBUTIONS. Rio de Janeiro, IUPERJ, v. 1, n.1, 2005. p. 34. SKINNER, Q. Liberdade Antes do liberalismo. São Paulo: Unesp, 1999. p. 90.
7 SKINNER, Quentin. Significação e Compreensão na História das Idéias. In ______ . Visões da política. Miraflores: DIFEL,2005. p. 123.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 12/199
10
“análise do ato de fala, do uso da linguagem em um determinado contexto, com determinada
finalidade e de acordo com certas normas e convenções” 8, categoria teórica que
retomaremos mais adiante.
Nessa direção, Skinner especifica a noção de ‘contexto’, qualificando como
‘linguístico’ ou de linguagem aquele que importa reconstituir historicamente para dar sentido
às proposições da teoria política e social no tempo e destaca o caráter intencional destes Atos
Discursivos, cujo intuito é intervir neste contexto linguístico. A análise dos discursos
observando o momento histórico em que floresceram e inseridos num contexto linguístico em
que atuam de forma intencional consiste, de acordo com o nosso ponto de vista, num
pressuposto capital para o trabalho proposto.
Foi a partir desta preocupação que redigimos o capítulo 1, dedicado à trajetória deAlexandre Herculano, da composição e características da intelligentsia oitocentista e à
conjuntura histórica. Portanto, o primeiro capítulo objetiva descrever o contexto no qual
Herculano e sua obra surgiram e com o qual interagiram.
Num primeiro momento duas questões se colocam ao considerarmos o arcabouço
teórico-metodológico e as fontes que pretendemos utilizar: de uma forma geral, as fontes
estudadas pelos autores filiados ao Contextualismo Linguístico são, principalmente, tratados e
obras de pensamento político. Isto posto, como podemos analisar a obra de AlexandreHerculano dada a grande variedade de formas discursivas que compreendem a produção
literária do autor, como o romance histórico, os contos, a poesia, a produção historiográfica,
dentre outras? Vejamos o que Quentin Skinner no diz sobre esta questão:
Claro que é um erro supor a reconstituição desta dimensão [onde os autores veiculam suasidéias e intervêm intencionalmente num determinado contexto lingüístico através dos atosdiscursivos] só terá interesse quando aplicada a certos gêneros de textos. Essa dimensão está presente em todas as expressões discursivas sérias, quer em verso, quer em prosa, quer em
filosofia quer em literatura
9
(grifo nosso).
A partir deste princípio, podemos dizer que a produção intelectual, independente da
forma discursiva empregada, pode ser observada sob os enfoques propostos.
A segunda questão que se coloca consiste no risco que corremos de empobrecer nosso
trabalho ao padronizarmos a análise da obra de Herculano sob o crivo dos enfoques teórico-
metodológicos eleitos, desprezando as especificidades dos discursos literário, historiográfico,
8 JASMIN, Marcelo Gantus. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista brasileira deCiências Sociais. São Paulo, ANPOCS, v. 20, n. 57, 2005. p. 28.
9 SKINNER, Quentin. Interpretação e compreensão dos actos discursivos. In ______ . Visões da política. Miraflores:DIFEL, 2005. p. 174.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 13/199
11
teatral, etc., e das possibilidades que, dentre outras, o diálogo entre a análise literária e a
História fornecem em nome de uma unidade analítica destas modalidades discursivas.
Ao pressupormos, fundamentados em Skinner, que a produção intelectual de
Alexandre Herculano como um todo se presta à análise do pensamento político do autor, não
estamos minimizando as contribuições que o diálogo entre os estudos literários e a História
trazem e sim evidenciando que na obra de Herculano existe um universo de Atos Discursivos
que nos orientam em direção ao objetivo do nosso trabalho: a construção de um modelo ideal
de Rei. As diferentes modalidades discursivas não são ignoradas por nós, tanto que, a seguir,
vamos recorrer a elas para evidenciar as intenções do autor em tela ao empregar uma
determinada modalidade discursiva. Para tal, torna-se necessário definir como vamos
trabalhar com as categorias Intenções e Motivações, tão caras a Skinner e de importânciacapital para o nosso trabalho.
O propósito de intervir no contexto português e participar da definição dos rumos a
serem tomados por Portugal, manifestado por Alexandre Herculano, pode ser associado a um
dos pontos chaves da argumentação teórica proposta por Skinner, pois o seu objetivo ao
interpretar um texto busca “(...) saber o que o autor queria com o texto, o que significa lidar
com as intenções do autor” 10.
Partindo desta intencionalidade, Skinner enfoca dois pontos na análise dos textos: osvalores políticos do autor e os temas e objetos presentes nas obras, manifestações da
intencionalidade do autor que os transforma em atos intencionais do discurso, que são
denominados por Skinner como “Speech Acts” ou, numa tradução livre, Atos Discursivos. Os
valores do autor e os Atos Discursivos são, portanto, indissociáveis, existindo uma conexão
lógica entre ambos, sendo necessário buscar o ambiente intelectual onde surgem as obras
através da hermenêutica com o objetivo de vislumbrar tal conexão11.
Inicialmente nos debruçamos sobre a intencionalidade do autor e como esta estava presente e se manifestava na produção de Alexandre Herculano. Torna-se, desta forma,
necessário trabalhar com a noção de Atos Discursivos na obra de Alexandre Herculano e
como ela se conecta com a intencionalidade do autor.
Pensamos que a concepção mais abrangente de Atos Discursivos foi proposta por
Marcelo Jasmin ao afirmar que:
10 SKINNER, Quentin. O anjo e a história. Folha de São Paulo, 16 de agosto de 1998.
11 LOPES, Marcos Antônio. Para ler os clássicos do pensamento político: um guia historiográfico. Rio de Janeiro: FGV,2002. p. 54 - 55.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 14/199
12
(...) os trabalhos de filosofia política seriam elaborados como ‘atos de fala’ (speech acts) deatores particulares, em resposta a conflitos também particulares, em contextos políticosespecíficos e no interior de linguagens próprias ao tempo de sua formulação. Cada autor, ao publicar uma obra de teoria política, estaria portanto ingressando num contexto polêmico paradefinir a superioridade de determinadas concepções, produzindo alianças e adversários, e buscando a ‘realização’ prática de suas ideias 12.
Isto posto, podemos associar os Atos Discursivos ou “Atos de Fala”, conforme
mencionados por Marcelo Jasmin, com a operacionalização discursiva da intencionalidade do
autor, com a cristalização em discurso dos objetivos do autor.
Foram estes os balizamentos teóricos que foram empregados para elaborarmos o
capítulo 2, onde o objeto de estudo foi o universo conceitual forjado e empregado por
Herculano para intervir no contexto português e para construir o modelo de rei proposto pelo
autor. Antes de analisarmos os principais conceitos utilizados por Herculano, História, Classe Média, Forais e Concelhos, aprofundamos a problemática das intenções e motivações
proposta por Skinner.
No capítulo 3 o objeto de estudo foi a construção dos reis na obra de Herculano.
Partindo da premissa de que o rei é o elemento central da organização social e política
proposta por Alexandre Herculano e que a sua produção intelectual tem caráter didático,
típico do Romantismo, destacando a História de Portugal , elaborada para ajudar o futuro rei
D. Pedro V a governar, montamos uma série de tabelas a partir das obras de Herculano, ondesão destacadas as virtudes e os equívocos cometidos pelos reis de Portugal. Grande parte das
informações contidas nas tabelas tem como fonte a História de Portugal e a História da
origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Nestas obras os reis de Portugal são
personagens e objetos de destaque e as suas decisões são analisadas por Herculano. Nos
romances históricos, conforme veremos ao longo do capítulo 3, os reis e os seus reinados são
como um pano de fundo onde se desenrola a trama e nos Opúsculos a ênfase recai sobre
questões políticas, históricas e culturais e os reis, quando mencionados, servem mais comouma referência temporal e institucional e não são analisados de forma tão detida quanto nas
duas obras citadas.
A partir das informações retiradas das obras de Herculano e do cruzamento das tabelas
elaboradas a partir delas, pensamos ter chegado a um modelo de rei ideal não apenas pelas
virtudes e acertos que devem ser utilizados como exemplo para o bom exercício do poder,
mas também chegamos a um contramodelo, ou modelo negativo, onde são elencados os vícios
12 JASMIN, Marcelo Gantus. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista brasileira deCiências Sociais, São Paulo, v. 20, n. 57, 2005. p. 28.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 15/199
13
e equívocos cometidos e que devem ser evitados para que o rei exerça seu poder de forma a
beneficiar a sociedade e possibilitar o estabelecimento do Liberalismo em Portugal.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 16/199
14
1 LIBERALISMO E ROMANTISMO EM HERCULANO
1.1 Trajetória de Alexandre Herculano
Alexandre Carvalho de Araújo nasceu em Lisboa no dia 28 de março de 1810, ano da
terceira invasão francesa comandada por Massena. Segundo Herculano ele pertencia “ pelo
berço a uma classe obscura e modesta”1. O pai, Teodoro Cândido de Araújo, era recebedor da
Junta dos Juros, enquanto que por parte da mãe, Maria do Carmo de São Boaventura, o bisavô
e o tio-avô foram arquitetos das Obras Públicas, trabalhando no Paço Real e recebendo
mercês reais2. Como veremos adiante, as conexões da família de Herculano com o Paço
podem ter contribuído para o ingresso definitivo do autor no funcionalismo público em 1839.Funcionário público modesto, liberal e possuidor de uma formação cultural mediana,
Teodoro Cândido foi o primeiro mestre do filho, que concluiu as Humanidades no Colégio de
São Filipe de Nery, coordenado pelos padres da Congregação do Oratório. A pretensão do
jovem Herculano de ingressar na Universidade de Coimbra foi frustrada pela doença do pai,
que ficou cego e impossibilitado de continuar trabalhando, o que diminuiu a renda familiar e
obrigou Herculano a buscar uma carreira profissional mais modesta e que possibilitasse o
ingresso imediato no mercado de trabalho para ajudar financeiramente a sua família. Cursou aAula de Comércio e frequentou as aulas de Diplomática na Torre do Tombo, que contribuíram
para despertar em Herculano o interesse pela História e que foi um instrumento de grande
valia para a sua posterior produção intelectual. Neste período Herculano conviveu com
amigos intelectuais e literatos que o introduziam no salão da Marquesa de Alorna, fato que
marcou decisivamente a sua formação intelectual, pois além de conhecer a língua e o
romantismo alemães, o contato com os frequentadores do salão da ilustre marquesa ampliou o
círculo social do autor e contribuiu para a ascensão de Herculano à elite intelectual portuguesa. Segundo Herculano, a Marquesa de Alorna era comparada à Madame de Stael,
pois “ella fazia voltar a atenção da mocidade para a arte da Alemanha, a qual veio dar nova
seiva á arte meridional que vegetava na imitação servil das chamadas letras clássicas”3. No
1 Apud SANTOS, M de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa:Presença. p. 46
2 SANTOS, Mª de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa: Presença. p.46.
3 HERCULANO, Alexandre. Opúsculos. 2. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 278. v.9.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 17/199
15
artigo dedicado à Marquesa de Alorna publicado em O Panorama no ano de 1844, teceu o
reconhecimento da importância da Marquesa na sua formação:
Àquela mulher extraordinaria, a quem só faltou outra pátria, que não fosse esta pobre eesquecida pátria de Portugal, para ser uma das mais brilhantes provas contra as vãs pretensõesde superioridade excessiva do nosso sexo, é que devi encitamento e protecção litteraria,quando ainda no verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada das letras. Apraz-meconfessá-lo aqui, como outros muitos o fariam se a occasião se lhes offerecesse; porque omenor vislumbre d’engenho, a menor tentativa d’arte dou de sciencia achavam nella tal favor,que ainda os mais apoucados e timidos se levantavam; e d’isso eu proprio sou bem claro
argumento.4
O período entre 1829 e 1831 foi decisivo na formação intelectual de Herculano pois,
associado ao contato e adesão aos ditames românticos difundidos no salão da Marquesa de
Alorna5, Herculano se converteu ao Liberalismo. No poema “ A Semana Sancta”, redigido em
1829 mas publicada somente em 1838 na coletânea “ A Harpa do Crente”, a estética
romântica e as ideias liberais são inequivocamente declaradas: “ Eu não! – eu rujo escravo; eu
creio e espero / No Deus das almas generosas, puras, / E os déspotas maldigo. –
Entendimento / Bronco, lançado em seculo fundido / Na servidão do goso ataviada / Creio
que Deus é Deus e os homens livres!”6
A pena que defendia as liberdades românticas e liberais em 1829 foi substituída pelas
armas em 1831. Herculano fez parte do levante do Regimento 4 de Infantaria de Lisboa,iniciado em agosto de 1831. Inspirados na Revolução de 1830 ocorrida na França, os
sublevados pretendiam o restabelecimento da Carta Constitucional de 1826, revogada por D.
Miguel em 1828. A reação miguelista foi imediata e violenta. Muitos conjurados foram
mortos durante os embates ou fuzilados após a rendição. Herculano conseguir escapar do
trágico fim de muitos de seus colegas de sedição e buscou esconderijo numa fragata francesa
que, a seguir, levou-o para o exílio na Inglaterra e, logo depois, na França. Este foi o início de
um breve período de exílio que durou cerca de seis meses. Para os autores que estudaram avida e obra de Herculano, o breve exílio em terras francesas foi decisivo para a sua formação
intelectual pois, nesse período, Herculano teve contato com as obras de autores franceses que
o influenciaram. Dentre eles, destaque para os historiadores François Guizot e Augustin
Thierry. Segundo António José Saraiva, “ Enfim, Herculano chegava a França na época da
4 HERCULANO, Alexandre. Opúsculos. 2. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 276. v.9.
5 Não vamos discutir a polêmica levantada por Teófilo Braga quanto à defesa do Absolutismo por Alexandre Herculano
durante a adolescência, pois esta questão não é relevante para os objetivos do nosso trabalho. Se Herculano um dia defendeuo absolutismo miguelista e o Antigo Regime, este fato não marcou a sua obra e, portanto, não influenciou na construção doaparato teórico e conceitual empregado para construir o modelo ideal do monarca.
6 HERCULANO, Alexandre. Poesias. 2.ed. Lisboa: Bertrand, 1860. p. 4.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 18/199
16
grande voga dos estudos históricos de Thierry e de Guizot, que davam a perspectiva história
da revolução burguesa pela qual ele se estava batendo.”7
Pensamos que o período de exílio vivido por Herculano contribuiu para a sua
formação intelectual ao ampliar e diversificar o universo de autores lidos por ele, mas o
acesso para o entendimento e a chave para a compreensão de autores como Guizot e Thierry
no campo historiográfico e Chateaubriand e Walter Scott, no aspecto literário, foi possível
graças ao contato anterior com as ideias liberais e românticas no salão da Marquesa de Alorna
e no convívio com outros intelectuais no período anterior ao exílio. Por isso entendemos que a
bagagem intelectual obtida por Herculano no exílio foi um complemento, uma segunda etapa
do processo de formação intelectual do autor, iniciado entre 1829 e 1831.
Em fevereiro de 1832 Herculano embarcou para a Ilha Terceira junto com outrosliberais portugueses no exílio. Foco da resistência antimiguelista, a Ilha Terceira abrigou o
Batalhão de Voluntários da Rainha, comandado pelo ex-imperador do Brasil D. Pedro. Em
julho de 1832 Herculano participou do célebre Desembarque do Mindelo e da posterior
tomada do Porto pelas armas liberais. A reação miguelista cercou a cidade até agosto de 1833,
quando houve um novo desembarque liberal no Algarves, que obrigou a reação miguelista a
dividir seus esforços para tentar evitar a derrota iminente.
A vitória das armas liberais foi consagrada pela Convenção de Évora-Monte em maiode 1834. A recondução de D. Maria II ao trono e o restabelecimento da Carta de 1826
marcaram o estabelecimento do Estado Liberal em terras portuguesas. Estes fatos
encontraram Alexandre Herculano exercendo o cargo de segundo-bibliotecário da Biblioteca
Pública do Porto, nomeação feita antes mesmo do fim do cerco miguelista ao Porto. A
organização do acervo da Biblioteca do Porto, composto por obras que pertenceram a
bibliotecas eclesiásticas e monásticas, exigiu um grande esforço de Herculano. Em conjunto
com o trabalho de organização, o autor se debruçou sobre manuscritos que foramincorporados ao acervo, utilizando os seus conhecimentos de Diplomática para empreender
investigações históricas com bases nesses documentos.
A Revolução de Setembro de 1836 marcou o final do período portuense de Alexandre
Herculano. Com a revogação da Carta de 1826 e o restabelecimento da Constituição de 1822
pelo novo governo, formado pelo grupo liberal liderado por Passos Manuel e com forte apoio
popular, o funcionalismo público foi obrigado a jurar a constituição restaurada, imposição
recusada por Herculano que, de imediato, pediu demissão do cargo que exercia numa
7 SARAIVA, António José. Herculano e o liberalismo em Portugal . Lisboa: Bertrand, 1977. p. 51.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 19/199
17
demonstração de fidelidade à Carta de 1826 e a D. Pedro, falecido em 1834. Tão logo o
pedido de demissão foi aceito pelo novo governo, Herculano retornou a Lisboa, dando início a
uma nova etapa da sua vida intelectual.
Até aqui pudemos observar duas etapas da trajetória intelectual de Alexandre
Herculano: o período de formação intelectual (1829/1833) e o início do processo de ascensão
à elite intelectual (1833/1836). Na primeira etapa a produção intelectual de Herculano é
basicamente poética. Enquanto frequentava o salão da Marquesa de Alorna, convivia com
amigos intelectuais e, durante o exílio, a poesia era o veículo através do qual o jovem autor
expressava suas ideias e princípios ainda em processo de organização e consolidação. Na
etapa seguinte, de 1833 a 1836, Herculano já havia concluído o processo de formação
intelectual, consolidando ideias e princípios anteriormente adquiridos, e exercia um cargo público. Foi nesse momento de consolidação da formação intelectual que Herculano se viu na
necessidade de utilizar outras modalidades discursivas para se expressar. Nesse período a
poesia gradualmente cede espaço para a prosa pois, em nosso entender, Herculano passou a
ter a atenção voltada para novos objetos e preocupações que seriam mais bem veiculados
através de artigos e crônicas. A publicação dos artigos Qual é o estado na nossa Literatura?
Qual é o trilho que ela hoje tem a seguir?8 de 1834 e Poesia: Imitação-Belo-Unidade 9 de
1835, ambos publicados no Repositório Literário do Porto, apresentam propostas para acriação de uma literatura genuinamente portuguesa calcada nas premissas românticas em voga
na Europa. Para Paulo Motta Oliveira, o primeiro artigo era “uma tentativa de entender a
literatura do presente quando esta passava por mudanças cruciais e era em Portugal ainda
um campo em construção”10. A poesia deixava de ser um veículo preferencial das ideias de
Herculano para se tornar objeto de estudo, levando o autor a se dedicar a artigos e crônicas.
O ocaso da produção poética e o início de uma terceira etapa da vida intelectual de
Herculano podem ser explicados a partir do momento em que as suas preocupações sevoltaram para outros domínios da vida social como a História, a Literatura, a crítica literária e,
a partir de 1836, a política. Este terceiro momento intelectual de Herculano, que começou em
1836/37 e se estendeu até 1867, pode ser definido como o momento de apogeu intelectual do
autor, dada a publicação das suas obras mais conhecidas e influentes, associada ao exercício
8 HERCULANO, Alexandre. Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o trilho que hoje ela tem a seguir? In ______.Opúsculos. 2. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 1-20. v.9.
9 Idem. Poesia: Imitação, Belo e Unidade. In Ibidem. p. 21-72.
10 OLIVEIRA, Paulo Motta. A construção da crítica literária: Herculano e Garrett. In: BASTOS, Lucia Maria et al. (Org.). Literatura, história e política em Portugal (1820-1856). Rio: EdUERJ, 2007. p. 75.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 20/199
18
da função de referência intelectual no século XIX. Podemos afirmar que nesse momento da
sua trajetória Herculano pode ser efetivamente definido como intelectual, seguindo as
definições de Norberto Bobbio e Daniel Barreiros.
Para Norberto Bobbio, o intelectual é “ alguém que não faz coisas, mas reflete sobre
as coisas, que não maneja objetos, mas símbolos, alguém cujos instrumentos de trabalho não
são máquinas mas objetos”.11 Os intelectuais sempre existiram, pois eles são os detentores do
poder ideológico (presente em todas as sociedades ao lado do poder político e do poder
econômico), que se exerce “ sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de
símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra”,
caracterizando-se e relacionando-se com os outros poderes de acordo com as sociedades e o
contexto histórico.12 Destacando a função dos intelectuais e, com isso, aprofundando as suas atribuições
mencionadas por Bobbio, Daniel Barreiros define intelectual
como todo aquele que exerce integralmente a função de organizar a cultura, preservar amemória social, disseminar valores, símbolos e representações coletivas, bem como
sistematizar compreensões acerca da realidade social e visões de mundo. 13
Ao expandir seus interesses para a política, a cultura, a História e exercer o papel de
pioneiro tanto na literatura quanto na produção histórica, Herculano passou a exercer o papel
de formador de opinião com suas obras, provocando polêmicas e debates acalorados junto à
opinião pública portuguesa.
Retomando a trajetória intelectual de Herculano, a sua reação à Revolução Setembrista
não se limitou ao pedido de demissão do cargo de bibliotecário. No final de 1836 foi editado o
artigo A Voz do Profeta que, inspirado em Parole d’un Croyant, de Lammenais, tecia severas
críticas ao novo ministério setembrista e à Constituição de 1822 e fazia apologia da Carta de
1826. Publicado inicialmente em Ferrol, na Galiza, e reeditado no volume I de Opúsculos em
1873, A Voz do Profeta foi o artigo que projetou o nome de Alexandre Herculano no cenário
político e intelectual português oitocentista, sendo, por isso, considerado como marco
inaugural da terceira etapa da trajetória intelectual de Herculano ao abrir as portas do circuito
político e intelectual lisboeta para o escritor português.
11 BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder . São Paulo: UNESP, 1997. p. 68.
12 Ibidem. p.11.
13 BARREIROS, Daniel Pinho. Intelectuais e estrutura Social: uma proposta teórica. Sinais sociai, n.9, Jan./Abr. 2009. p. 16.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 21/199
19
Redigido com nítidas intenções panfletárias e utilizando recursos retóricos dramáticos,
apocalípticos e de forte teor religioso, A Voz do Profeta pode ser considerado o libelo
inaugural do movimento cartista. Se até 1836 as grandes polêmicas envolviam liberais e
miguelistas, observamos que a partir de setembro de 1836 o bloco liberal se dividiu em duas
facções pricipais: cartistas e setembristas ou vintistas, defensores da Carta de 1826 e da
Constituição de 1822, respectivamente. Para Herculano, a Carta de 1826 criou condições para
o progresso individual e social português enquanto a Revolução Setembrista de 1836 e o
restabelecimento da Constituição de 1822 sufocavam as liberdades individuais ao legitimar o
poder pelo “número-multidão”, em que se encontrava implícita a “tirania irracional do
número, inevitável causadora de injustiças”14. A democracia defendida pelos setembristas foi
implantada, de acordo com Herculano, sem levar em consideração as peculiaridades dasociedade portuguesa e das suas instituições. Ao escrever a Introdução de A Voz do Profeta
em 1867, quando foi publicada no volume I de Opúsculos, Herculano destaca a principal
diferença entre setembristas e cartistas, reforçando e detalhando a crítica feita em 1837:
A meu ver, a distinção profunda e precisa entre cartismo e o septembrismo consistia em negaro primeiro o princípio da revolução, dentro das instituições representativas livre esolemnemente adoptadas ou acceitas pelo país, e sua índole. Mas representava até certo ponto
em affirmá-lo o segundo. Tudo o mais em ambos era fluctuante e vago.15
Percebemos que o cartismo adotava, assim como Alexandre Herculano, uma postura
liberal-conservadora ao defender a manutenção das instituições vigentes e as suas eventuais
transformações de acordo com a “índole” portuguesa e, consequentemente, posicionando-se
contra as transformações decorrentes das rupturas institucionais e dos arroubos
revolucionários.
A defesa incondicional da Carta de 1826, a crítica à democracia e à revolução, a
projeção intelectual e política de Alexandre Herculano e os postulados liberais-conservadoresdestacam a importância de A Voz do Profeta na produção intelectual de Herculano pois
antecipam e apresentam ideias que acompanharam o autor ao longo da sua trajetória
intelectual e política. Além das ideias e do posicionamento político de Herculano, pensamos
que A Voz do Profeta utiliza pela primeira vez um recurso retórico que marcou a sua obra e
que foi destacado por Jorge Borges de Macedo: a polêmica como forma de exposição,
argumentação e veiculação de ideias.
14 MACEDO, Jorge Borges de. Alexandre Herculano: polêmica e mensagem. Amadora: Bertrand, 1980. p. 37.
15 HERCULANO, Alexandre. A voz do profeta. In: ______. Opúsculos. 5.ed. Lisboa: Bertrand, 1907. p. 17- 18. v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 22/199
20
Para Borges de Macedo, Herculano raramente utiliza relatos sistemáticos para expor
suas ideias e pontos de vista sendo que os personagens de suas obras, reais e fictícios,
históricos e literários, se caracterizam em contraposição a outros personagens ou a uma
circunstância, pois “ Herculano define-se polemicamente, em contraste, em choque, em
divergência (...) sendo, essencialmente, um homem de luta”16.
Desta forma, A Voz do Profeta pode ser considerada como um marco divisor na
trajetória de Herculano, pois além de projetá-lo como intelectual ligado ao cartismo liberal-
conservador e inseri-lo no circuito cultural e jornalístico lisboeta, foi a primeira obra de
Herculano a utilizar a polêmica como recurso retórico, tornando-a uma das suas principais
características discursivas.
Após demitir-se da Biblioteca Pública do Porto e retornar a Lisboa em 1837,Alexandre Herculano foi convidado a assumir o cargo de redator de O Panorama, que
exerceu entre 1837 e 1839 e, posteriormente, entre 1833 e 1834. Nos primeiros meses de 1838
acumulou a redação do Diário do Governo. Foi nas páginas de O Panorama que Herculano
publicou os primeiros contos históricos que seriam posteriormente reunidos em Lendas e
Narrativas, de 1851.
Apesar do renome literário e jornalístico, a estabilidade financeira e profissional foi
alcançada após a sua nomeação para a direção das Bibliotecas Reais da Ajuda e Necessidadesem 1839. Com a nomeação, facilitada pelo Marquês de Resende e pelos contatos familiares na
Corte, Herculano passou a ter condições materiais para desenvolver suas pesquisas históricas
e dedicar-se com maior disponibilidade à literatura. Contudo, a nomeação não levou
Herculano a abandonar o jornalismo e a atividade política.
Em 1840 Herculano foi eleito deputado pelo Porto e durante o seu curto mandato,
findo no início de 1841, quando renunciou, Herculano bateu-se a favor de duas premissas
básicas do liberalismo: a liberdade de imprensa, criticando a exigência de vultoso depósito emdinheiro para a abertura de jornais, medida que era considerada um atentado à liberdade de
expressão, pois a limita àqueles que têm mais recursos, e a instrução pública, criticando a
extinção da Escola Politécnica e defendendo um projeto de educação popular quando integrou
a Comissão Parlamentar de Instrução Pública.
Em 1842 teve início um período histórico conhecido como Cabralismo, marcado pela
ditadura do Ministro do Reino Costa Cabral, iniciado com uma sublevação militar e apoiado
por D. Maria II, e pelos movimentos de oposição política que, sufocados pela repressão e pela
16 MACEDO, Jorge Borges de. Alexandre Herculano: polêmica e mensagem. Amadora: Bertrand, 1980. p. 30.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 23/199
21
censura cabralista, pegaram em armas por diversas vezes contra o governo. Foi somente em
1851 que o Cabralismo chegou ao fim.
Alegando lealdade ao Trono, Herculano adotou uma postura neutra diante do Governo
de Costa Cabral. Apesar de o Cabralismo ter restaurado a Carta de 1826 em substituição à
Constituição Moderada de 1838, Herculano buscou distanciar-se de Costa Cabral recusando
títulos e a nomeação para o cargo de Inspetor de Teatros. Ao mesmo tempo, Herculano
mantinha ligações pessoais com inúmeras personalidades políticas e intelectuais de oposição,
aproximando-se deste grupo a partir de 1848 ao participar de reuniões e oferecer a sua
residência para encontros políticos. Paradoxalmente, o período de aparente neutralidade de
Herculano coincidiu com o apogeu da sua produção intelectual.
Nesse período Alexandre Herculano escreveu três grandes romances, O Bobo (1843), Eurico, o Presbítero (1844) e O Monge de Cister (1848), e publicou uma série de contos
reunidos em Lendas e Narrativas (1851).
Além dos romances históricos, Herculano dedicou-se à pesquisa histórica e nesse
período foram editadas obras que podem ser consideradas como o núcleo da sua produção
historiográfica: as Cartas sobre a História de Portugal , os Apontamentos para a História dos
Bens da Coroa e Forais e os três primeiros volumes de História de Portugal .
Editadas inicialmente na Revista Universal Lisbonense em 1842 e reunidas no 5ºvolume dos Opúsculos17, trata-se de uma exposição inicial das teses elaboradas por
Alexandre Herculano e da sua concepção de História.
Na Carta I o historiador justifica a publicação de suas cartas aos editores da revista e
traça a sua concepção de História:
História não tanto dos indivíduos como da Nação; História que não ponha à luz do presente oque deve se ver à luz do passado; História, enfim, que ligue os elementos diversos queconstituem a existência de um povo em qualquer época, em vez de ligar um ou dois desseselementos, não com os outros que com ele coexistem, mas com os seus afins na sucessão dostempos, grudados pelos topos cronológicos com massa de papel feita das folhas da Arte de
verificar as datas. 18
Na Carta II Herculano analisa o contexto histórico da Península Ibérica por ocasião da
chegada do futuro Conde Henrique, enquanto que na Carta III o historiador expõe sua tese
17 HERCULANO, Alexandre. Opúsculos. Lisboa: Bertrand, [S.d]. p. 33-158. v.4
18 Ibidem. p. 37 - 38.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 24/199
22
sobre o estatuto jurídico da concessão de Portugal a D. Teresa, considerando-a como a doação
do domínio hereditário sobre Portugal ao Conde Henrique19.
Na Carta IV o autor propõe uma nova cronologia para a História portuguesa, inspirado
pelo historiador francês Augustin Thierry. Nessa cronologia, a História de Portugal divide-se
em duas etapas: a Idade Média e o Renascimento. Na primeira verifica-se o apogeu da Nação,
onde os elementos municipal e nobre possuíam grande atuação política, extinta na Corte de
Évora de 1841, ocasião que marca a centralização política em torno do monarca e o início do
declínio nacional. A Carta V corresponde a uma reflexão filosófica de Herculano sobre a
História de Portugal, considerando a Nação suscetível a fases biológicas como os indivíduos.
Em nosso entender, as Cartas sobre a História de Portugal constituem-se, juntamente
com os Apontamentos para a História dos Bens da Coroa e dos Forais num ensaio para aobra principal de Alexandre Herculano: a História de Portugal .
Artigo publicado em O Panorama em 1843/44 e posteriormente publicado no 6º
volume de Opúsculos20, Apontamentos para a História dos Bens da Coroa e Forais é uma
análise do caráter jurídico e administrativo da propriedade territorial em Portugal, considerado
pelo autor como um exemplo da “índole” portuguesa e elemento de distinção frente aos
demais reinos ibéricos medievais. Em seguida, Alexandre Herculano debruça-se sobre os
tipos de Forais e as suas especificidades.Este artigo possui grande valor para captar a visão que Herculano tinha da sociedade
medieval portuguesa como um todo e as relações entre os seus diversos grupos através das
instituições, sendo estas relações o ponto central da ideia de história social para o autor.
Editada em quatro volumes, a História de Portugal pode ser considerada a obra-prima
de Alexandre Herculano, onde verificamos de forma clara a aplicação e o aperfeiçoamento
das teorias expostas em escritos anteriores. Dada a grandiosidade e a profundidade da obra,
comentaremos volume por volume, visando a tornar mais objetiva a análise a que nos propomos.
Editado em 1846, o Volume I21 trata inicialmente da história dos povos peninsulares
da Antiguidade, onde o autor contesta a ligação histórica entre Portugal e os Lusitanos. A
seguir, Herculano dedica-se à História política dos reinos muçulmanos e cristãos da Península
Ibérica, tidos como a base para a História política da Monarquia portuguesa. O tópico
19
Herculano retoma esta questão no volume I da História de Portugal.20 HERCULANO, Alexandre. Opúsculos. 3. ed. Lisboa: Bertrand. [190-]. p. 185-301.v.6.
21 Idem. História de Portugal, t.1.. Lisboa: Bertrand, 1980.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 25/199
23
seguinte consiste no estudo do Condado Portucalense por ocasião do governo do Conde
Henrique e, encerrando o volume, o governo de Afonso Henriques.
O Volume I originou uma polêmica sobre a Questão de Ourique, que viria a consumir
tempo e esforços de Alexandre Herculano na defesa de sua posição quanto à Batalha de
Ourique e sua importância na História portuguesa. Em defesa da sua posição como historiador
diante de setores que a criticavam, principalmente setores do clero, Herculano publicou “ Eu e
o Clero”, “Considerações pacíficas” e “Solemnia Verba”22 no ano de 1850.
O Volume II23 teve sua primeira edição em 1847 e dedica-se à análise dos fatos e
conflitos políticos ocorridos durante os reinados de Sancho I, Afonso II e Sancho II.
Em 1849 foi lançada a primeira edição do Volume III24. A parte inicial do volume
dedica-se aos fatos políticos do reinado de Afonso III. A seguir, Alexandre Herculanodebruça-se sobre a análise da História social dos povos peninsulares, buscando traçar um
painel evolutivo destas sociedades conforme fizera no aspecto político. Nesta parte do
volume, o autor expõe a sua visão de História como ciência de caráter utilitário para as
sociedades contemporâneas e a sua teoria sobre os Dois Princípios e a importância dos
Concelhos como elemento de equilíbrio entre ambos25.
Encerrando o volume, o autor descreve as divisões administrativas do Reino português
e a condição civil da população no século XII, destacando uma evolução que aponta emdireção à liberdade difundida com o crescimento dos Concelhos.
O Volume IV26 foi editado apenas em 1853 em virtude do envolvimento do autor na
polêmica Questão de Ourique: trata-se de um volume específico sobre os Concelhos.
Nesse volume Alexandre Herculano estabelece uma classificação entre as diversas
modalidades de Forais conforme o grau de liberdades e garantias dadas aos integrantes dos
Concelhos: Rudimentais, Imperfeitos e Completos. Segundo o autor, esta classificação torna-
se necessária dada a imensa diversidade entre os Concelhos:
Na organização dos Concelhos dava-se a condição comum de todas as instituições da IdadeMédia, a falta de uniformidade, ou antes no municipalismo, pela sua própria natureza, maisque em nenhuma outra (…) Quer nascesse por si, quer fosse criada por impulso alheio, amunicipalidade, ainda a mais desenvolvida e completa, era na verdade instituída e organizada por um tipo preexistente, mas a esse tipo não se associava a ideia de princípio geral e
22 Reeditadas em HERCULANO, Alexandre. Opúsculos. 4.ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. v.3.
23 Idem. História de Portugal . t.2. Lisboa: Bertand, 1981.
24
Idem. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertand, 1980.25 Ibidem. p. 310 - 311.
26 Idem. História de Portugal, t.4. Lisboa: Bertrand, 1980.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 26/199
24
invariável que a civilização moderna ajunta a certas doutrinas de direito público. Aimportância da povoação, o estado anterior da propriedade no seu território, a sua situaçãomilitar e mil outros acidentes faziam com que os privilégios e garantias que se lhe davam, oureconheciam, e os deveres que se lhe impunham variassem do modelo, ou, para falar commaior exacção, faziam com que se escolhesse entre vinte ou trinta modelos ou forais deanteriores concelhos aquele que mais se acomodava às condições acidentais do novo, quase
sempre alterando-o nalguma coisa. 27
A participação de Alexandre Herculano no golpe de Estado liderado por Saldanha em
1851, que marcou o início do período histórico conhecido como Regeneração, foi
fundamental. Sondado para assumir a pasta do Reino pelo Marechal Saldanha da Costa,
Herculano recusou a oferta. O primeiro gabinete formado por Saldanha contava com vários
amigos de Herculano que haviam articulado o golpe de 1851, mas a duração desse ministério
foi breve. O novo ministério formado por Saldanha tinha Fontes Pereira de Melo, defensor deum processo de regeneração nacional fundamentado na expansão ferroviária e na captação de
investimentos e empréstimos no exterior. Herculano e outros intelectuais que haviam apoiado
o golpe de 1851 passam para a oposição antes de o governo de Saldanha completar 4 meses.
Foi nesse momento que o grupo oposicionista fundou os periódicos O País, que encerrou as
suas atividades ainda em 1851, e O Português28, em 1853. Nesse mesmo ano foi eleito para a
Câmara Municipal de Belém, defendendo o municipalismo e atacando a centralização
administrativa, e publicou, em 1854, o primeiro volume de História da Origem e
Estabelecimento da Inquisição em Portugal 29. Publicada com o intuito de “Chamar a juízo o
passado, para vermos, também, aonde nos podem levar outra vez as tendências da reação”30,
esta obra teve um objetivo prioritariamente político já que a intenção desta obra era apontar os
erros cometidos no passado pelos mesmos setores que criticavam a sua posição na Questão de
Ourique. Neste ataque à reação, o próprio Herculano admitiu que a obra sofre de carências
documentais e que foi escrita com assumido interesse político31.
Em 1852 Herculano tornou-se sócio da Academia de Ciências de Lisboa e deu início,
nos dois anos seguintes, à recolha de documentos para a compilação de documentos históricos
portugueses, a Portugaliae Monumenta Historica, cujo primeiro volume foi publicado em
1856. Em 1855 Herculano foi eleito vice-presidente da Academia das Ciências, envolvendo-
27 Ibidem. p. 91.
28 Diversos artigos sem assinatura foram publicados em O Português por Alexandre Herculano e alguns deles foram reunidosem SARAIVA, António José. Herculano Desconhecido. 2. ed. Lisboa: Europa-América. 1977.
29 Os dois volumes restantes foram publicados em 1855 e 1859.
30 HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América.[198?]. p. 16.v.1.
31 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a consciência do liberalismo português. Lisboa: Bertrand, 1977. p. 168.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 27/199
25
se no ano seguinte numa polêmica contra a nomeação de Costa Macedo para a função de
Guarda-Mor da Torre do Tombo por indicação do ministro Rodrigo Sampaio.
Eleito em 1859 por Sintra, Herculano abre mão da eleição em protesto à centralização
administrativa. No ano seguinte ingressou na Comissão Revisora do Código Civil. De sua
atuação nesta Comissão surgem os Estudos Sobre o Casamento Civil , publicado em 1866. A
posição favorável de Herculano quanto ao casamento civil, contrária à determinação oficial da
Santa Sé, acirrou ainda mais a tensão entre Herculano e a hierarquia católica, iniciada na
polêmica Questão de Ourique.
Herculano comprou a Quinta de Vale dos Lobos em 1859 e mudou-se para lá em
1867, alegando cansaço e buscando afastar-se da vida pública. O retiro em Vale dos Lobos
não foi tão radical quanto pressupôs o autor, que continuou a dirigir a publicação dos volumesseguintes do Portugaliae Monumenta e envolveu-se em mais uma polêmica contra a
hierarquia católica ao defender a realização das Conferências do Cassino em 1871, proibidas a
pedido da reação ultramontana. Entre 1875 e 1877 Herculano publicou o seu último estudo
histórico, Da Existência ou Não Existência do Feudalismo em Portugal 32, artigo publicado
por ocasião da primeira edição do Volume V dos Opúsculos em 1881, constituindo-se numa
análise da obra Ensayo sobre la Historia de la Propriedad Territorial en España, de
Francisco de Cárdenas. Segundo Oliveira Marques, Da Existência ou não Existência do Feudalismo em Portugal trata-se de um artigo pioneiro nos debates quanto à existência do
Feudalismo em Portugal e na porção ocidental da Península Ibérica33.
Alexandre Herculano refutou o autor quanto à existência do Feudalismo em Portugal
baseando-se na definição de Feudalismo elaborada por Guizot:
(…) Guizot entende também que a sociedade feudal se caracteriza por três fatos essenciais,elementos constitutivos daquele regime (Feudalismo). O primeiro de todos(…) era a naturezaespecial da propriedade territorial, efetiva, inteira, hereditária, e todavia havida de umsuperior e envolvendo na posse, com pena de comisso, certas obrigações pessoais. O segundofato é a incorporação da soberania na propriedade, isto é, a atribuição ao proprietário do solo,em relação à universalidade dos que aí habitavam, de todos ou quase todos os direitos queconstituem o que chamamos de soberania, e que hoje só o Estado, o poder público possuem.O terceiro fato é a existência de um sistema hierárquico nas instituições legislativas, judiciaise militares, que ligavam uns aos outros os possuidores de feudos, constituindo assim a
sociedade geral. 34
32 HERCULANO, Alexandre. Da Existência ou não Existência do Feudalismo em Portugal In ______. Opúsculos. 4. ed.Lisboa: Bertrand. [190-]. p. 189-309.v.5.
33 MARQUES, A. H. de Oliveira Marques. Guia do estudante de história medieval portuguesa. Lisboa: Estampa. 1988. p.91.
34 HERCULANO, Alexandre. Opúsculos. 4.ed. Lisboa: Bertrand. [190-]. p. 209 - 210.v.5.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 28/199
26
Por fim , afirma que a posição de Guizot, com a qual Herculano concorda, contempla
o “modo de ser ” da sociedade feudal enquanto que Cárdenas analisa o Feudalismo como
estrutura fundiária35.
Além dos argumentos utilizados por Alexandre Herculano para defender a não
existência do Feudalismo em Portugal, o artigo adquire destaque por dois fatores que são
constantes na sua obra: a ênfase na análise da sociedade e o diálogo do historiador com a
historiografia francesa.
Em 13 de setembro de 1877 Alexandre Herculano faleceu em Vale dos Lobos em
decorrência de uma pneumonia.
1.2 - O Século XIX português
Os ventos das revoluções liberais atingiram a sociedade portuguesa no início do século
XIX, a exemplo do que ocorria nos demais países da Europa. Com a corte no Brasil e
sofrendo inicialmente com as invasões francesas e posteriormente com a interferência direta
da Inglaterra, o Liberalismo difundiu-se rapidamente em Portugal. Até a eclosão do
movimento revolucionário do Porto, em 1820, surgiram inúmeras confrarias secretas e jornais
de apelo liberal, muitos deles editados no exterior, onde se discutia a realidade portuguesa
frente às propostas liberais de transformações, apesar das proibições impostas pela JuntaGovernativa portuguesa e pelas autoridades militares britânicas que, na ausência da Coroa,
governavam Portugal. A interferência britânica em Portugal contribuiu para o surgimento de
um nacionalismo associado às idéias liberais.
Economicamente, o quadro português era bastante crítico nesse período,
principalmente por causa dos tratados assinados por D. João com a Inglaterra, que abriram o
mercado consumidor brasileiro aos produtos ingleses. Desta forma, a exclusividade comercial
dos setores mercantis portugueses encerrava-se, agravando a crise econômica. Frente àseconomias europeias, Portugal encontrava-se em desvantagem, pois não havia iniciado seu
processo de industrialização, dependendo da exploração do mercado brasileiro, agora
dominado pelo comércio britânico, e da atividade agrícola, cujo crescimento se encontrava
comprometido pela permanência dos direitos senhoriais sobre as propriedades fundiárias,
impedindo o investimento de capitais burgueses no campo36.
35 HERCULANO, Alexandre. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand. [190-]. p. 210 – 211. v.5.
36 SARAIVA, António José ; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 12. ed. Porto: Porto Editora, 1982. p. 718.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 29/199
27
Grande parcela da população portuguesa era formada por camponeses, muitas vezes
submetidos aos direitos senhoriais, exercidos pela Nobreza e pelo Clero, minoritários na
sociedade. A burguesia e as camadas intermediárias encontravam-se num impasse, pois não
viam possibilidades de expandir suas atividades e a representação política numa sociedade
fundamentada nos moldes do Antigo Regime. Foi nestes grupos sociais que os ideais
nacionalistas e liberais encontraram condições favoráveis para a sua propagação em Portugal.
A Revolução de 1820, iniciada na cidade do Porto e organizada por uma associação
secreta liberal denominada Sinédrio, formada em 1817 logo após o fracasso da primeira
tentativa revolucionária liberal liderada por Gomes Freire, ocorreu simultaneamente às
revoluções liberais na Espanha, nos principados alemães, na França e à tentativa de
independência grega, associando propostas de transformações liberais e um forte apelonacionalista, exigindo o fim da interferência militar e da política inglesa nos assuntos internos
portugueses.
Convocadas as primeiras Cortes Constituintes, inicia-se o primeiro período liberal
português, denominado “Vintismo”, cujo símbolo maior é a Constituição de 1822, jurada por
D. João VI, obrigado a retornar do Brasil em 1821. A primeira Constituição portuguesa
buscava “regenerar” o país, de acordo com o jargão dos liberais vintistas, tentando pôr em
prática as propostas liberais como o aumento da participação civil na política e a defesa doensino público. Porém, o primeiro período liberal português foi encerrado em 1823 através da
Vila-Francada, movimento militar liderado pelo Infante D. Miguel e apoiado tanto por D.
João VI quanto pela Rainha Carlota Joaquina, que defendia o retorno da monarquia
tradicional em substituição à monarquia parlamentar constitucional do “Vintismo”.
Apesar de representar o fim do primeiro ciclo liberal português, a Vila-Francada não
proporcionou de imediato o retorno do Absolutismo Monárquico em Portugal. D. João VI
evitava um confronto direto com os liberais, muitas vezes compondo o ministério com liberaismoderados e absolutistas, caracterizando uma “indefinição de uma fórmula de governo
monárquico-constitucional ou monárquico-tradicional”37. No ano seguinte, ocorreu outro
movimento militar de caráter absolutista, a Abrilada, também liderada pelo Infante D. Miguel.
Ameaçado de deposição pelo próprio filho, D. João VI sufocou o golpe político com o apoio
diplomático de França e Inglaterra, apoio este decisivo para a manutenção de D. João VI no
trono português. Apesar de exilado na Áustria, D. Miguel teve um papel decisivo nos rumos
políticos portugueses, visto que o Infante era a esperança de retorno da ordem tradicional.
37 VARGUES, I. N; TORGAL, L. R. Da revolução à contra-revolução: vintismo, cartismo, absolutismo o exílio político. In:MATTOSO, José.( Dir.). História de Portugal . Lisboa: Estampa, 1993. p. 68. v.5.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 30/199
28
A morte de D. João VI em 1826 provocou uma nova crise política em Portugal.
Apesar de ter nomeado a Infanta Dª. Isabel Maria como Regente, afastando a Rainha Dª
Carlota Joaquina do poder, principal liderança do grupo absolutista e mentora da Vila-
Francada e da Abrilada, El-Rei não havia indicado o seu sucessor. D. Pedro, então Imperador
do Brasil e D. Miguel, exilado na Áustria, disputavam a Coroa, tendo como aliados,
respectivamente, os liberais e os absolutistas. A outorga da Carta Constitucional em 1826 por
D. Pedro, aclamado rei pela Regência, inflamou ainda mais a disputa sucessória, que foi
temporariamente solucionada com a abdicação de D. Pedro ao trono português em favor de
sua filha, Dª. Maria II, que deveria se casar com D. Miguel, obrigado a jurar a Carta
Constitucional. Esta seria a solução para o impasse relativo à sucessão e também uma solução
para a disputa entre liberais e tradicionalistas que viam em D. Pedro e D. Miguel,respectivamente, os líderes de suas facções. Contudo, a composição política entre os irmãos e
a outorga da Carta de 1826 foram criticados por ambos os grupos.
Coroado em 1828, D. Miguel rompeu o acordo firmado com o irmão, renegando a
Carta e reinstalando a Monarquia Absolutista em Portugal. O breve reinado de D. Miguel foi
marcado pela intensa repressão aos liberais, forçando muitos deles ao exílio, onde
organizaram a reação armada ao rei. Em 1832 teve início a guerra civil com o desembarque de
tropas liberais no principal ponto de resistência a D. Miguel, a Ilha Terceira. A guerra civil portuguesa coincidiu com o ciclo revolucionário liberal europeu de 1830, cujo exemplo
significativo foi a ascensão de Luís Felipe ao trono francês após a queda de Carlos X com o
apoio da burguesia.
A partir de 1832 as tropas liberais passam a ser comandadas por D. Pedro, que havia
abdicado ao trono brasileiro no ano anterior, formando o Batalhão de Voluntários da Rainha,
que ocupou a cidade do Porto em 1833, após o histórico desembarque do Mindelo. A
ocupação do Porto pelos liberais abriu o caminho para a vitória sobre as tropas miguelistasque, apesar de numericamente superiores, não conseguiram conter o avanço liberal no
continente. O desembarque das forças liberais no Algarves em 1834 e a posterior ocupação de
Lisboa coroaram de êxito as armas liberais, e a guerra civil chegou a termo com a assinatura
da Convenção de Évora-Monte em maio de 1834.
Vitoriosos em 1834, os liberais continuaram divididos em diversas facções, existentes
antes mesmo da guerra civil. As duas principais facções eram os Vintistas, defensores da
Constituição de 1822 e favoráveis ao estabelecimento do voto universal masculino, e os
Cartistas, denominação do grupo liberal que assumiu o poder em 1834 e que defendia os
princípios consagrados na Carta Constitucional de 1826, restaurada neste período e que
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 31/199
29
fortalecia o poder da Coroa e restringia a participação política através do voto censitário. O
governo cartista estabelecido em 1834 levou adiante as propostas de transformação da
sociedade portuguesa, cujo projeto se encontra nas Leis de Mouzinho da Silveira, elaboradas
ainda na Ilha Terceira, foco da resistência liberal e de onde partiram as tropas que
desembarcaram no Mindelo e no Algarves. As leis de Mouzinho da Silveira, que decretavam
o fim dos direitos senhoriais sobre a terra e defendiam a liberdade comercial, são consideradas
como a base de um Novo Portugal, de uma nova sociedade capitalista e liberal portuguesa38.
O ímpeto reformista dos revolucionários de 1834 manifestou-se também pelas Leis de José da
Silva Carvalho, sucessor de Mouzinho da Silveira no Ministério das Finanças, que secularizou
os bens eclesiásticos portugueses, denominados bens nacionais, com o intuito de criar
condições para a modernização da estrutura agrária através de investimentos nos bensnacionais comprados por particulares. Os recursos captados com a venda dos bens nacionais
seriam utilizados na modernização de outros setores econômicos portugueses. Contudo, a
política econômica dos Cartistas não apresentava resultados satisfatórios. As finanças públicas
dependiam dos empréstimos externos, principalmente ingleses, e a venda dos bens nacionais
não era realizada com a rapidez necessária, com a lisura obrigatória nem com a eficiência
desejada, passando para as mãos de aliados do governo. Como solução para os entraves
econômicos que impediam a expansão portuguesa em virtude das obrigações senhoriais que pesavam sobre o campo, a venda dos bens nacionais tornou-se moeda de troca política no
cenário português onde, apesar da existência de grupos políticos organizados de forma
rudimentar, as lideranças individuais e as práticas clientelistas ditavam o tom, e a tão
almejada e necessária modernização da estrutura agrária portuguesa não aconteceu.
As divergências entre os grupos liberais e a crise financeira foram fatores que levaram
à Revolução Setembrista de 1836, liderada pela facção liberal Vintista, que passou a ser
conhecida como Setembrista em virtude da revolução e que contou com o apoio de setoresmercantis urbanos e do nascente proletariado português. A Carta Constitucional de 1826 foi
substituída provisoriamente pela Constituição de 1822 até a elaboração de uma terceira
constituição, promulgada em 1838. O Governo Setembrista, que se manteve até 1842, teve
como um de seus destaques o Ministro do Reino Manuel Passos que buscou incrementar a
industrialização e o ensino público e, com o apoio de Almeida Garrett, um dos nomes de
destaque do Primeiro Romantismo Português39, foram fundados liceus, a Academia de Belas
38 FRANÇA, José-Augusto. O romantismo em Portugal . 2.ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1993. p. 63.
39 Adotamos a periodização empregada em José-Augusto França em FRANÇA, José-Augusto. O romantismo em Portugal . 2.ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 32/199
30
Artes do Porto e de Lisboa e a Escola Polítécnica de Lisboa, dentre outras instituições.
Também merece destaque a preocupação com o patrimônio cultural manifestada por Manuel
Passos, preservando objetos históricos valiosos, construções e monumentos existentes nos
bens nacionais que eram alvo de especulação e ameaçados de desaparecimento.
As reações ao governo de Manuel Passos partiam não somente da oposição cartista e
da guerrilha miguelista localizada no Algarve sob a liderança do notório Remexido40. O
Trono também conspirava contra o líder setembrista ao tentar afastá-lo do poder em
novembro de 1836, dois meses após a sua posse, num episódio conhecido como Belenzada e
que teve participação da própria rainha e que só não chegou a afastar efetivamente Manuel
Passos, dada a intervenção de lideranças setembristas e o apoio popular.
Os Cartistas reassumiram o poder em 1842 através da Revolução Cabralista, assimconhecida pela liderança do ex-setembrista Costa Cabral, que compunha o ministério desde
1839. A restauração da Carta Constitucional de 1826, a reforma fiscal e a política fomentista
foram fatos marcantes do Período Cabralista, que conviveu com diversos conflitos
orquestrados pelos grupos oposicionistas, destacando-se a Maria da Fonte, revolta ocorrida
em 1846 que foi motivada pela alta de impostos e pela proibição de enterrar os mortos nos
terrenos das igrejas, concentrando-se na área rural e a Patuleia, ocorrida em 1848 e organizada
por intelectuais e militares opositores do Cabralismo.O Cabralismo encerrou-se em 1851 frente a um novo período político, a Regeneração,
que durou de 1851 a 1868 e foi marcado pelo incremento à industrialização e modernização
da economia portuguesa. A Regeneração foi liderada pelo Marechal Saldanha e apoiada por
Cartistas influentes como Alexandre Herculano e enquadra-se no terceiro ciclo revolucionário
europeu, que teve como movimentos significativos a proclamação da Segunda República
francesa e a posterior restauração do Império com Napoleão III, além das agitações
nacionalistas na Alemanha e na Itália.Com a Regeneração iniciou-se um período de relativa estabilidade política em
Portugal, onde as disputas entre Cartistas e Vintistas cederam espaço ao debate sobre o
desenvolvimento econômico português e “ procura-se a harmonia possível entre as facções
políticas e entre as instituições orgânicas do estado, de modo a conquistar a confiança na
exequibilidade de uma ‘terceira via’ ”41, sendo esta “terceira via” resultado de uma
40 Alcunha do militar miguelista José Joaquim de Sousa Reis, que manteve o movimento armado no Algarves contra o
governo liberal, apesar da Convenção de Évora-Monte de 1834, que selou o fim da Guerra Civil. Liderou a guerrilha até sua prisão e fuzilamento em 1838.
41 RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. A regeneração e seu significado. In: MATTOSO, José. (Dir.). História de Portugal .Lisboa: Estampa, 1993. p. 126. v.5.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 33/199
31
reorganização dos grupos políticos portugueses em torno do progresso material, originando os
partidos progressistas que dominaram a cena política até 1876.
Um dos debates políticos de maior destaque durante a Regeneração foi a questão
municipal que, apesar de existir desde 1834, ganhou maior dimensão nesse período pois era
uma das bandeiras dos opositores da Regeneração. Das páginas do jornal O Português,
Alexandre Herculano, que passou a fazer oposição ao governo regenerador logo após o seu
estabelecimento, defendia maior autonomia para os concelhos, diante da política
centralizadora do governo regenerador. Como veremos no próximo capítulo, Herculano via os
municípios portugueses como instituições fundamentais para a organização social e política
portuguesa e a diminuição da autonomia dos Concelhos colocava em xeque as liberdades
arduamente conquistadas ao tradicionalismo miguelista.A ordem política regeneradora foi acompanhada pelo estabelecimento de medidas
conhecidas como Fontismo, que visavam à industrialização e ao desenvolvimento econômico,
conduzidos pelo Estado, com o objetivo de promover o capitalismo em Portugal. As obras
públicas, destacando-se as estradas de ferro, buscavam integrar a economia portuguesa
internamente e com o mercado europeu e simultaneamente geravam renda para o Estado
português investir em outros setores sociais. A importância do Estado era fundamental para
fomentar a economia portuguesa, pois a iniciativa privada não possuía recursos suficientes para investir em atividades tão onerosas como as estradas de ferro e também para captar
recursos no exterior para promover essas obras. Contudo, o desenvolvimento econômico do
fontismo, apesar de ter ampliado significativamente a malha ferroviária portuguesa, não
conseguiu atingir plenamente o seu objetivo dadas as dificuldades estruturais do setor agrário
português.
1.2.1 As constituições portuguesas
Analisar a Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 torna-se importante
na medida em que se constituíram em fundamentos legais da Monarquia Parlamentar
portuguesa e ambas foram bandeiras políticas de dois dos principais grupos liberais
portugueses entre 1834 e 1851, Cartistas e Vintistas ou Setembristas. Segundo Amadeu de
Carvalho Homem, “(...) A Constituição de 1822 irá inaugurar uma tradição de radicalismo, do
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 34/199
32
mesmo modo que a Carta Constitucional de 1826 será reconhecida como o diploma em que se
irão rever os liberais conservadores”42.
Cabe destacar que em ambas as constituições a Monarquia continuava a existir e a ter
atribuições executivas, porém a relevância política do monarca variava significativamente,
evidenciando as diferentes concepções de Estado defendidas pelos dois grupos liberais.
Antes de nos debruçarmos sobre os dois diplomas constitucionais, algumas
observações se fazem necessárias: no período acima delimitado, 1834 a 1851, onde as
disputas entre Cartistas e Vintistas dominaram a cena política portuguesa, foi promulgada
uma terceira constituição que vigorou por um breve período, entre 1838 e 1842. Esta
Constituição de 1838 , tida como um meio-termo entre os princípios da Carta de 1826 e da
Constituição de 1822, não foi objeto de análise neste tópico, pois não serviu de bandeira ou programa para Cartistas nem para Vintistas.
A análise feita a seguir teve como prioridade os princípios e práticas políticas
consagrados pelas cartas magnas em tela. Quando mencionados, os elementos jurídicos foram
observados no tocante à relação destes com a esfera política. Ao trilharmos este caminho,
deixamos de priorizar o enfoque jurídico empregado por uma vasta gama de estudos feitos por
brilhantes juristas e historiadores do Direito português, como Marcello Caetano e Nuno
Espinoza Gomes da Silva. Nas ocasiões em que buscamos socorro nestes autores tivemoscomo objetivo auxiliar no esclarecimento de temas jurídicos que têm relação com temas
políticos.
A CONSTITUIÇÃO DE 1822
Ao analisar as Cortes que redigiram a Constituição de 1822, Oliveira Marques faz uma
observação relevante que retomaremos por ocasião da análise do Romantismo português.Segundo o autor, o Constitucionalismo português “(...) apresentou-se como restaurador das
antigas ‘liberdades’ do reino”43 ao valorizar o papel das Cortes, convocadas por determinação
régia desde o século XII e que eram tidas como instituições que possibilitavam a atuação
política de parte da sociedade portuguesa junto ao rei e a defesa dos direitos e privilégios
obtidos que eram chamados genericamente de liberdades. O liberalismo português buscava,
42
HOMEM, Amadeu de Carvalho. Jacobinos, liberais e democratas na edificação do Portugal contemporâneo. In:TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal . 2.ed. São Paulo: UNESP, 2001. p. 343.
43 MARQUES, A. H. de Oliveira. Organização administrativa e política. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira(Dir.). Nova história de Portugal: Portugal e a Instauração do Liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 235.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 35/199
33
neste sentido, resgatar a tradição representativa das Cortes interrompida a partir do século
XVIII. Em 1820, contudo, as Cortes possuíam caráter e objetivos mais abrangentes que a
representação política e a defesa das liberdades: a redação da primeira constituição
portuguesa e o exercício do Poder Legislativo.
A primeira Constituição portuguesa, inspirada na Constituição de Cádiz de 1812,
partia do princípio político que a soberania, indivisível e inalienável, residia na Nação,
representada pelas Cortes, e não mais no monarca, caracterizando o deslocamento do eixo
político, institucional e administrativo da sociedade portuguesa e relegando o rei a segundo
plano no comando do país.
A Constituição de 1822 estabelecia três poderes independentes e harmônicos:
Executivo, Legislativo e Judiciário. No tocante ao Poder Executivo, era exercido pelo rei e pelos ministros por ele
nomeados. Possuía a atribuição de sancionar as leis criadas pelas Cortes e o poder de veto
parcial, que poderia ser derrubado pelas Cortes. Ao Executivo não era permitida a proposição
de leis, prerrogativa única do Legislativo. Para assessorar o rei, foi criado o Conselho de
Estado, com integrantes por ele escolhidos.
O Poder Legislativo era atribuição das Cortes, unicameral, composta por deputados
cujos mandatos duravam dois anos, eleitos através do sufrágio direto e secreto. O colégioeleitoral era composto por homens, maiores de idade e alfabetizados. Nestes parâmetros, as
Cortes eram majoritariamente compostas por representantes dos setores médios da sociedade
portuguesa, com destaque para os setores mercantis, para o funcionalismo público e os
profissionais liberais. A representação parlamentar da Nobreza e do Clero era muito restrita
em virtude do pequeno número de integrantes destes grupos que se refletia no reduzido
número de eleitores.
Reunidas três meses por ano, as Cortes tinham, além das atribuições legislativas,encargos como a aprovação de tratados diplomáticos, a fixação de efetivos militares, controle
da receita e da fazenda real, bem como a criação de cargos públicos e as respectivas
nomeações, dentre outras atribuições. Atributos que até então estavam nas mãos do monarca e
de seus ministros se tornaram prerrogativas do Legislativo, que passou a controlar
instrumentos fundamentais para o exercício do poder como a condução da política externa, o
controle do efetivo militar, do Tesouro e da burocracia do Estado, além das suas atribuições
legislativas.
Dos três poderes instituídos, o Legislativo era o que possuía precedência perante os
demais. Logo, os grupos sociais que gozavam de maior representação parlamentar tinham em
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 36/199
34
mãos instrumentos jurídicos e políticos mais eficazes que os demais para defender os seus
interesses e projetos.
O Poder Judiciário era exercido pelos juízes eleitos pelo voto popular, obedecendo aos
mesmos critérios utilizados para a eleição de deputados para as Cortes. A instância máxima
era o Supremo Tribunal de Justiça sediado em Lisboa. A Eleição para as magistraturas
garantia, a exemplo do que ocorria nas Cortes, a precedência dos setores burgueses na
composição do Poder Judiciário, confirmando a forte liderança da burocracia jurídica nos
eventos de 1820, evidente na atuação do Sinédrio44.
CARTA CONSTITUCIONAL DE 1826
Se na Constituição de 1822 verificamos o caráter restaurador das “liberdades do
reino” através da convocação e da importância política das Cortes, podemos inferir que a
Carta Constitucional de 1826 também possui pretensões restauradoras destas mesmas
liberdades, porém com distintos papéis atribuídos às Cortes e ao Monarca. Observando o
funcionamento das Cortes portuguesas anteriores ao advento liberal, percebemos que estas
não possuíam a precedência dada pelo Vintismo/Setembrismo. Mesmo com a atribuição de
aclamar reis, o exercício do poder pelas Cortes era restrito em virtude, dentre outros fatores,de sua efêmera duração.
Um outro aspecto a destacar neste resgate vintista das Cortes era a presença de setores
tradicionais como o Clero e a Nobreza nas Cortes medievais e modernas. No tocante à
representação política destes grupos nas Cortes de 1820 e na composição do Poder
Legislativo, era praticamente nula ou existiam grandes restrições e estes grupos sociais que
ainda possuíam força no Portugal oitocentista. A exclusão ou a participação reduzida destes
grupos no Legislativo contribuiu significativamente para a instabilidade política nosmomentos em que a Constituição de 1822 vigorou.
Na concepção cartista, o monarca tinha mais atribuições e maior peso político, sendo
visto como “chave de toda a organização política”, conforme consta no prefácio da Carta.
Logo, a restauração das “liberdades do reino” não podia descartar o monarca, avalista destas
“liberdades” e de todo o ordenamento político, dada, dentre outras coisas, a sua função de
mantenedor do equilíbrio e da harmonia. Desta forma, a Carta de 1826 “(...) Era,
essencialmente, uma concessão do Poder Absoluto do monarca aos seus súbtidos
44 MARQUES, A. H. de Oliveira. A Conjuntura. In: SERRÃO, Joel ; MARQUES, A. H. de Oliveira (Dir.). Nova História de Portugal: Portugal e a Instauração do Liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 549 e 550.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 37/199
35
portugueses, sem compromisso com qualquer soberania popular ou acto revolucionário
emanada do ‘baixo’, que obrigassem o soberano” 45.
Apodada de conservadora, a Carta de 1826 avançou em alguns pontos no tocante à
ampliação de direitos do cidadão. Um exemplo foi a obrigatoriedade imposta ao Estado de
promover a educação primária gratuita, Colégios e Universidades46.
A Carta de 1826, outorgada pelo então Imperador do Brasil, era uma adaptação da
Constituição Imperial brasileira ao contexto português e seguia uma tendência
constitucionalista moderada que acontecia na Europa. Seguindo esta tendência, a Carta de
1826 instituiu, além dos três poderes estabelecidos pela Constituição de 1822, um quarto
poder, o Moderador, inspirados no Poder Régio proposto por Benjamin Constant.
Exercido exclusivamente pelo rei, o Poder Moderador era considerado como “chavede toda a organização política” e possuía atribuições amplas com destaque para o poder de
veto absoluto às determinações do Legislativo, a dissolução da Câmara dos Deputados, as
nomeações para a Câmara dos Pares, demissão de ministros e a convocação de eleições
legislativas.
As competências atribuídas ao Poder Moderador evidenciam o fortalecimento político
do soberano. Se na Constituição de 1822 a soberania residia na Nação, representada pela
Cortes e conferindo ao Poder Legislativo um papel de destaque diante dos demais poderes, aCarta de 1826 deslocou a soberania política da Nação para o monarca através do Poder
Moderador, que assumiu a primazia diante do três poderes restantes. Mesmo exercendo o
Poder Executivo em conjunto com os ministros e assistido pelo Conselho de Estado,
composto por membros vitalícios, o rei tinha no Poder Moderador a ferramenta política que
lhe conferia amplos poderes.
O Poder Legislativo era exercido pelas Cortes bicamerais. A Câmara de Deputados era
composta por representantes políticos eleitos através do voto censitário e indireto commandato de 4 anos. Nesta Câmara a maioria dos deputados era formada por representantes da
burguesia, enquanto que Nobreza e Clero tinham assento na Câmara dos Pares, formada por
membros indicados pelo rei e que exerciam mandatos vitalícios e hereditários. As duas
Câmaras podiam propor leis que seriam aprovadas mediante a aprovação de ambas e posterior
sanção régia, atribuição do Poder Moderador conforme mencionado acima.
45 MARQUES, A. H. de Oliveira. Constituição e Constituições. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (Dir.). Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 240.
46 Cf. p. 52.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 38/199
36
O Poder Judiciário era formado por juízes, nomeados pelo rei e com mandato vitalício,
e pelos jurados, selecionados de acordo com os critérios adotados pelos juízes.
Um ponto a destacar é a importância dada às Câmaras eletivas dos Concelhos,
compostas por representantes das respectivas municipalidades e responsáveis pela
administração e pela gestão financeira das cidades e vilas. Conforme veremos mais adiante, a
defesa das liberdades municipais era uma das principais premissas de Alexandre Herculano.
1.2.2 O quadro político-partidário em Portugal do século XIX
Inicialmente, há a necessidade de definir o conceito “partido político” em Portugal do
século XIX. Tanto Oliveira Marques quanto Isabel Nobre Vargues e Maria Manuela Ribeiro,autores que mais forneceram subsídios para o estudo deste tema, são unânimes em afirmar
que devemos entender partido político, no período estudado, como “designações (que) são o
resultado das correntes de opinião pública ou de facções políticas que emergem na sociedade
portuguêsa a partir dos confrontos ideológicos na primeira metade do século XIX.”47 e não
como “Organismos permanentes devidamente estruturados e com programas definidos.”48.
Alguns dos fatores apontados por Oliveira Marques que dificultavam a criação destes
“organismos permanentes”, coerentes e com unidade política, eram o clientelismo e osinteresses pessoais dos agentes políticos. Sem dúvida, a crítica de Oliveira Marques é
incontestável, mas não podemos ignorar que, pelo menos até a Regeneração, quando os
partidos políticos portugueses se institucionalizaram e adquiriram unidade49, o período
compreendido entre 1820 e 1851 foi marcado não apenas pela instabilidade política mas
principalmente pela construção de um novo Portugal a partir das premissas liberais que,
conforme o quadro partidário indica, eram muitas vezes divergentes e mesmo concorrentes
que disputavam espaço também com as correntes políticas absolutistas que, apesar devencidas em 1834, ainda estavam presentes no cenário político do período. Enfim, partimos
do pressuposto que a existência destas facções políticas é o reflexo das profundas
transformações pelas quais passava a sociedade portuguesa emergente da nova ordem liberal e
evidenciam os embates ocorridos no interior do próprio pensamento liberal europeu,
47 VARGUES, Isabel Nobre; RIBEIRO, M. Manuela Tavares. Estruturas políticas e institucionais. In: MATTOSO, José(Org.). História de Portugal . Lisboa: Estampa, 1993. p. 198.v.5.
48 MARQUES, A. H. de Oliveira. Organização administrativa e política. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira(Dir.). Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 266.
49 VARGUES, Isabel Nobre; RIBEIRO, M. Manuela Tavares. Op. cit. p. 200 e 201.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 39/199
37
principalmente após as críticas feitas pelo Pensamento Conservador, acima descritas, e que se
manifestavam em Portugal através destas facções políticas.
Utilizando o conceito de Contexto Linguístico empregado por Skinner, verificamos
que o contexto linguístico português entre 1820 e 1877 era bastante rico e conflituoso dada a
multiplicidade de propostas que buscam hegemonia na arena política coeva.
Para analisarmos as facções políticas desse período, adotamos uma periodização que
sintetiza a evolução das facções políticas de 1820, primeira experiência monárquico-
constitucional portuguesa, a 1876, data de fundação do Partido Republicano e da contestação
do regime monárquico.
Triênio Vintista (1820 – 1823) e a Composição Liberal – Tradicionalista (1823 –1826)
Inaugurado com a Revolução Liberal do Porto e findo com a Vilafrancada, teve como
principais facções rivais os Liberais, defensores do Constitucionalismo e de reformas sociais,
e os Absolutistas, liderados pelo Infante D. Miguel e pela Rainha Carlota Joaquina, favoráveis
ao restabelecimento da tradicional ordem absolutista.
Apesar de rivalizar com os absolutistas, o grupo liberal possuía divisões internas quese manifestavam deste as Cortes Constituintes de 1821: os Revolucionários, que defendiam o
Poder Legislativo predominante sobre o Executivo, e os Moderados, defensores de um
equilíbrio institucional que permitisse ao rei uma atuação política maior.
A Vilafrancada marcou o fim do breve Triênio Vintista, mas não conseguiu
restabelecer plenamente o tradicionalismo absolutista. Enquanto o grupo liberal mais radical
se viu obrigado a buscar o exílio para evitar prisões, os moderados mantinham espaço no
governo de D. João. A composição entre liberais moderados e tradicionalistas foi umacaracterística marcante da vida política portuguesa até a morte de D. João VI em 1826 e teve
na Carta Constitucional de 1826 uma tentativa de conciliar ambas as facções sem, contudo,
obter sucesso. O regresso de D. Miguel em 1828 marcou não só o retorno do grupo
tradicionalista ao poder, mas a revogação da Carta de 1826. Era o fim da composição entre
liberais moderados e absolutistas.
O embate entre as vertentes liberais surgiu entre 1820 e 1823 e antecipou a disputa
entre duas propostas de Estado que dividiram a cena política portuguesa entre 1834 e 1851.
Contudo a curta duração do Triênio Liberal demonstrava que a Tradição Absolutista ainda
exercia influência na esfera política, tornando claro que antes de colocar em disputa os seus
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 40/199
38
diferentes projetos para a construção do Novo Portugal, os grupos liberais tinham que anular
as forças políticas do Portugal Velho.
Exílio (1828 – 1834)
O exílio durante o reinado de D. Miguel levou à cisão do grupo liberal português em
duas facções: Palmelistas ou Conservadores e Saldanhistas ou Revolucionários50,
denominações derivadas dos nomes de seus líderes, o futuro Duque de Palmela e o Duque de
Saldanha, respectivamente.
Os principais pontos de discórdia entre ambos era a importância de D. Pedro como
líder na luta contra D. Miguel e a Carta Constitucional de 1826. Para os Palmelistas D. Pedrogarantia legitimidade à luta liberal, dada a necessidade de um elemento mantenedor do
equilíbrio político, evidenciado pelo Poder Moderador constante na Carta de 1826. Os
Saldanhistas viam com desconfiança a liderança de D. Pedro e defendiam as premissas da
Constituição de 1822, em que a soberania emana da Nação e o Monarca tem os seus poderes
diminuídos perante o Poder Legislativo.
As divisões do liberalismo se aprofundaram durante o exílio e as discussões em torno
da importância de D. Pedro contribuíram de forma significativa. Mas a questão que de fato provocava polêmica entre os grupos liberais girava em torno do modelo de Estado a ser
estabelecido. E os documentos constitucionais de 1822 e 1826 divergiam frontalmente,
principalmente no tocante ao papel a ser desempenhado pelo monarca. A presença de D.
Pedro à frente dos exércitos da Rainha reforçava a importância do monarca destacada pela
Carta de 1826 e fortalecia o grupo Palmelista, mas não conseguiu enfraquecer os Saldanhistas,
que também desempenharam com bravura o seu papel na vitória dos liberais sobre os
tradicionalistas em 1834.O embate entre os liberais, evidente entre 1820 e 1828, se aprofundou e ganhou bases
mais sólidas, pois as duas concepções de Estado propostas pelos distintos grupos adquirem
feições mais claras e estruturadas a partir do momento em que os documentos constitucionais
se tornaram programas políticos. A Constituição de 1822 e a Carta de 1826 deixaram de ser
apenas cartas magnas e transformaram-se em programas políticos, em bandeiras de luta e em
projetos de poder. Sem dúvida os interesses políticos pessoais pesaram nas escolhas
partidárias e programáticas, mas mesmo nestes casos a opção constitucional-programática era
50 VARGUES, Isabel Nobre; RIBEIRO, M. Manuela Tavares. Estruturas políticas e institucionais. In: MATTOSO, José(Org.) História de Portugal . Lisboa: Estampa 1993. V.5. p. 200.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 41/199
39
empregada como justificativa. Foi, enfim, uma disputa que marcou a vida política portuguesa
durante grande parte do século XIX.
1834 a 1851
Dois grupos liberais dominaram a cena política entre 1834 e 1851: Cartistas e
Vintistas, denominados Setembristas após 1836. Apesar da sobrevivência do Tradicionalismo
Miguelista, crítico feroz da Monarquia Constitucional, os grandes debates e polêmicas do
período envolviam as duas facções liberais.
A “direita” Cartista51 defende a “soberania real temperada”, delimitada pela Carta
Constitucional, que vigorou entre 1834 e 1836 e posteriormente restabelecida após 1842, etida como uma concessão do monarca, enquanto a “esquerda” Setembrista defende a
“soberana emanada da Nação”52, de acordo com a Constituição de 1822, em vigor entre 1836
e 1838. Em 1838 surgiu uma nova tendência política conhecida como Ordeiros, que se
colocavam entre Cartistas e Setembristas, defendendo a Constituição de 1838. Tão breve
quanto a vigência da Constituição de 1838, que perdurou até 1842, o grupo Ordeiro não tinha
grande representatividade parlamentar e possuía menos força política que Cartistas e
Setembristas, mas o seu surgimento evidencia a tendência à aproximação entre os principaisgrupos liberais em torno de um projeto político conciliador.
1851 a 1876
O golpe militar liderado pelo Marechal Saldanha em abril de 1851 e a revisão da Carta
Constitucional pelo Acto Adicional de 1852 criaram condições para o surgimento de partidos
políticos em Portugal, seguindo a definição adotada no início deste capítulo. Esta nova ordem política e institucional, decorrente da estabilidade política estabelecida pela Regeneração, tem
como principais agremiações políticas o Partido Progressista Regenerador e o Partido
Progressista Histórico, fundados em 1851 e 1852, respectivamente. Sem grandes distinções
ideológicas e programáticas, tais partidos se constituem de coligações entre notáveis da vida
política portuguesa e as suas respectivas redes de conhecimento e clientelas.
51 Oliveira Marques destaca a popularização dos termos “direita” e “esquerda” neste período. MARQUES, A. H. de Oliveira.
Organização administrativa e política In SERRÃO, Joel e MARQUES, A. H. de Oliveira (Dir.). Nova História de Portugal – Portugal e a Instauração do Liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 267.
52 VARGUES, Isabel Nobre e RIBEIRO, M.ª Manuela Tavares. Estruturas Políticas e Institucionais In MATTOSO, José(Org.) História de Portugal . Lisboa: Estampa, 1993. v. V. p. 200.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 42/199
40
O conceito “progressista” constante nos nomes dos dois partidos indica uma
preocupação que, se não era novidade no léxico político português, adquirem uma
importância maior do que as premissas políticas e institucionais demonstradas pelos grupos
políticos que dominaram a arena política portuguesa até 1851. Se o debate político entre 1834
e 1851 priorizava a fonte do poder político, as atribuições dos poderes das instituições e as
composições ministeriais, a preocupação com o progresso material ocupa as atenções dos
partidos políticos da Regeneração.
Na década de 1870 surgiram os primeiros partidos políticos contrários à Monarquia. O
Partido Socialista, de 1875, e o Partido Republicano, fundado em 1876, passaram a disputar
espaço político com os Partidos Progressistas, defensores do regime monárquico-parlamentar.
Até então considerada como um valor indiscutível pelos grupos e partidos políticos, aMonarquia passou a ser questionada pelos novos partidos e sua existência, colocada em
xeque.
1.3 A Intelligentsia Portuguesa
Ao estudarmos Alexandre Herculano, não podemos ignorar que ele fez parte de um
grupo social que ampliou seu espaço de atuação na sociedade portuguesa a partir da segundametade do século XVIII e que teve grande influência na formação do Estado Liberal
português, os intelectuais ou a intelligentsia. Inserido neste grupo social em ascensão,
Herculano interagiu com os seus integrantes em diversas polêmicas e questões tratadas
anteriormente, o que nos leva a pressupor que o conjunto de valores e o Contexto Linguístico,
retomando Skinner, no qual Herculano atuou foi delineado por este grupo social.
Para estudar os intelectuais portugueses da primeira metade do século XIX, utilizamos
um quadro histórico-biográfico elaborado por Maria de Lourdes Costa Lima dos Santos, quese pautou por alguns critérios para a sua elaboração. De acordo com a autora, os cinquenta
intelectuais selecionados no quadro histórico-biográfico são aqueles que “tinham condições
para uma maior capacidade de intervenção na vida da sociedade portuguesa no período em
causa (primeira metade do século XIX): capacidade de participação nas decisões políticas;
capacidade de utilização do impresso; capacidade de constituir grupos de pressão, etc.”53
Podemos entender os critérios de seleção empregados por Maria de Lourdes Costa
Lima dos Santos de acordo com estes referenciais: a “capacidade de participação nas
53 SANTOS, M de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa: Presença. p.19.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 43/199
41
decisões políticas” se relaciona com o papel de conselheira das elites políticas e econômicas
exercido pela elite intelectual que, em Portugal do século XIX, muitas vezes se confunde com
elas; “capacidade de utilização do impresso” se aproxima dos canais de difusão da produção
da elite intelectual; e a “capacidade de constituir grupos de pressão” pode ser associada ao
poder de formação de opinião de alto nível característica da elite intelectual.
Um outro critério relevante utilizado pela autora foi a tipificação das situações sociais
de origem dos intelectuais selecionados. Em linhas gerais, Maria de Lourdes Costa Lima dos
Santos trabalha com três tipos:
Tipo I – situação desfavorecida para qualquer das formas de capital consideradas.Tipo II – situação desfavorecida em termos de capital econômico mas com certas
disponibilidades de capital cultural e social.Tipo III – situação favorecida para qualquer das formas de capital consideradas. 54
A preocupação com as situações de origem da intelligentsia portuguesa pela autora
reforça e a constação da diversidade destas situações reforça a definição do grupo intelectual
como uma “camada instersticial ”, de acordo com Karl Mannheim55, entendida como uma
camada formada por indivíduos de diferentes segmentos sociais e, por isso, constitui-se em
“um agregado situado entre e não acima das classes”56.
Levando-se em consideração que muitos dos intelectuais selecionados se filiavam agrupos ou partidos políticos e que exerciam as funções do grupo intelectual de forma
agregadora para o seu grupo político e, consequentemente, desagregadora para os demais
grupos contrários, trabalharemos com os intelectuais e Portugal no século XIX como um
grupo funcional, de acordo com a proposta de Daniel Barreiros57.
Observando algumas funções gerais do grupo intelectual, verificamos, mais uma vez,
que estas funções se encaixam na atuação dos intelectuais portugueses do período. O
exercício de algumas atividades profissionais, políticas e acadêmicas dos indivíduosselecionados contribuiu para a organização da cultura ao terem acesso aos veículos de
informação, especificamente jornais e revistas, divulgando estudos, análises e
posicionamentos em várias áreas do conhecimento (história, literatura, análise política,
54 SANTOS, M de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa: Presença. p.40.
55 MANNHEIM, Karl. O problema da intelligentsia: um estudo de seu papel no passado e no presente. In ______. Sociologia
da cultura. 2.ed. São Paulo: Perspectiva. 2008. p. 80.56 Ibidem. p. 81.
57 BARREIROS, Daniel Pinho. Intelectuais e estrutura social: uma proposta teórica. Sinais sociais, n.9, Jan./Abr, 2009. p. 13.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 44/199
42
economia, direito, etc.); a preservação da memória social figura como uma das atividades
principais destes intelectuais, ao verificarmos o grande número de autores que se dedicaram
aos estudos históricos e biográficos; a disseminação de valores, símbolos e representações
coletivas, bem como a sistematização das compreensões acerca da realidade e visões de
mundo, são funções que eram exercidas pelo conjunto de indivíduos apresentados no quadro
histórico-biográfico, não apenas pelo acesso aos meios de divulgação mas pelo teor das
produções deste grupo, claramente direcionadas para a defesa e a divulgação de valores e
compreensões da vida social, que giravam em torno das ideias liberais, criticando-as ou
defendendo-as.
Observando a coluna “Posição de Partida”, verificamos que 30% dos indivíduos
listados são originários das camadas mais humildes da população (15 indivíduos), 26% sãofilhos de famílias de camadas intermediárias (13 indivíduos) e 44% dos intelectuais são
oriundos das camadas sociais mais elevadas (22 indivíduos). Os dados indicam a pluralidade
das origens sociais da intelligentsia portuguesa e demonstra que os filhos das camadas mais
altas, mais elevadas compõem a maioria simples do grupo, o que não configura um
predomínio das elites sociais na composição do grupo intelectual, pois apesar de os
intelectuais originários das camadas superiores perfazerem 44% do total, os intelectuais
originários de grupos que não formam a elite social perfazem 56% do universo de intelectuaisselecionados, configurando maioria absoluta.
Alguns fatores explicam estes percentuais. Desde as Reformas Pombalinas a
composição dos grupos intermediários e elevados da sociedade portuguesa apresentava
mudanças relevantes em virtude das mudanças na composição e formação da burocracia
governamental, das reformas no ensino e na formação da própria nobreza. No início do século
XIX, segundo Maria de Lourdes Costa Lima dos Santos, “aparelhos de sociabilidade”como
salões, saraus literários, academias e sociedades secretas passaram a contestar a velha ordemtradicional e nesses espaços de discussão e trocas de ideias, que operavam com relativa
liberdade dada a permanência do rei no Brasil, o “ saber comum e partilhado” possibilitou a
ascensão e o nivelamento social dos indivíduos que frequentavam estes espaços, notadamente
aqueles que pertenciam a camadas mais humildes e intermediárias, enfraquecendo a rígida
hierarquia social do Antigo Regime português58. Com o advento liberal, o nivelamento social
se aprofundou principalmente em virtude da participação de indivíduos dos grupos não
58 SANTOS, M de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira Metade e Oitocentos. Lisboa: Presença. p.13.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 45/199
43
integrantes da elite social na Guerra Civil de 1832-34 e na ascensão destes a cargos políticos e
administrativos de destaque no recém-estabelecido Estado Liberal.
Quanto à formação destes intelectuais, observamos que 50% dos intelectuais
selecionados cursaram o Ensino Superior (Universidade de Coimbra), 34% tiveram formação
técnico-científica (Academia Real da Marinha, Escola Politécnica de Lisboa, Academia
Politécnica do Porto, Escolas Médico-Cirúrgicas, Aula de Comércio e Aula de Diplomática),
10% cursaram as Humanidades (cursos equivalentes ao Ensino Secundário que tinham como
objetivo possibilitar o acesso à Universidade de Coimbra) e 6% eram autodidatas59.
Concluímos que o Ensino Superior não tinha um papel determinante na formação intelectual.
Para o momento histórico português a Universidade de Coimbra, única instituição de Ensino
Superior portuguesa reconhecida no período, tem um papel significativo na formaçãointelectual, mas verificamos que outras instituições têm função semelhante. Além das
instituições educacionais de formação técnica e secundária, os “aparelhos de sociabilidade”
apontados por Maria de Lourdes Costa Lima dos Santos tinham a função de formar
intelectuais a partir de um saber comum partilhado, constituindo-se também em aparelhos
formadores e em instituições funcionais, pois, conforme vimos acima, era este saber que
tornava essas instituições um espaço de convivência, nivelamento e ascensão social e, ao
mesmo tempo, era componente da formação do intelectual que freqüentava essas instituições.A Universidade, portanto, não era a principal instituição formadora dos intelectuais
portugueses no século XIX, dividindo esta função com as Academias, saraus e salões
intelectuais, sociedades secretas e as instituições educacionais de ensino técnico-científico e
secundário.
No momento histórico que estamos estudando, a Universidade não apresenta estes
atributos. No tocante à elite intelectual portuguesa do período, os paradigmas e os princípios
fundamentais não eram prioritariamente aplicados na Universidade. O Estado Liberal português e a Universidade de Coimbra muitas vezes colidiam quanto à temática educacional
aventada. A frase de Pedro Teixeira Mesquita ilustra as dificuldades encontradas pelo Estado
Liberal português para reformar o ensino superior: “ A Universidade herdada pelo
Liberalismo era uma escola anquilosada e atrasada do ponto de vista pedagógico, mas um
‘potentado’ do ponto de vista político-institucional ”60. Ao longo do século XIX o embate
59
SANTOS, Mª de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metade e Oitocentos. Lisboa:Presença,2002. p. 39.
60 MESQUITA, Pedro Teixeira. A instrução pública e privada. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (Dir.). Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 393.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 46/199
44
entre a tendência centralizadora do Estado, que assume a tarefa de incentivar e regulamentar a
educação, e a descentralização defendida pela Universidade de Coimbra, que buscava garantir
a sua influência na política educacional como um todo e o seu monopólio no ensino superior,
dominou as discussões sobre o Ensino, de uma forma geral, e sobre o ensino superior,
especificamente.
Levando-se em consideração que o quadro histórico-biográfico dos intelectuais
portugueses que estamos utilizando nesta análise é formado pela elite intelectual do período,
observamos outras instituições que exercem ou partilham com a Universidade as funções
atribuídas pelo modelo teórico de Daniel Barreiros ao ensino superior na estratificação do
grupo funcional dos intelectuais.
O exercício de cargos públicos e políticos é um dos indicadores desta elite intelectual.Dos intelectuais listados no quadro, 82% exerceram cargos públicos e/ou políticos, fato que
nos autoriza a ver o Estado português que credencia o ingresso à elite intelectual pois, uma
vez compunha a burocracia estatal, o intelectual tem acesso a meios e instrumentos para o
exercício das funções do subgrupo, tais como o aconselhamento de demais elites sociais
(cujos quadros são formados por integrantes das elites intelectuais); a definição de limites
para a prática funcional do grupo; a capacidade norteadora exercida sobre o grupo funcional
ao estabelecer modelos teóricos e paradigmas; o acesso aos canais de divulgação destesmodelos e paradigmas e a formação de opinião de alto nível. Assim podemos observar que a
participação do intelectual na burocracia estatal, além de garantir um suporte financeiro que
possibilita ao indivíduo debruçar-se sobre a produção intelectual, corresponde a uma espécie
de chancela que o credencia a integrar o subgrupo de elite.
A publicação em periódicos é um outro indicativo que credenciava o acesso à elite
intelectual. Via de regra, a imprensa é entendida como um veículo de divulgação dos modelos
e paradigmas acima mencionados, mas no período em questão o acesso ao exercício dassubfunções da elite era possibilitado pela imprensa.
A imposição da censura durante o Antigo Regime português foi um grande entrave
para o desenvolvimento da imprensa. Em nome da manutenção da “ordem social” e da
contenção da proliferação das “ideias francesas”, a censura tolhia não só o debate e a
circulação de ideias mas também o desenvolvimento dos meios materiais para que estes
pudessem acontecer de fato.
Mesmo com o estabelecimento do Estado Liberal em 1834 a liberdade de imprensa
esteve sob ameaça. A Constituição de 1822 consagrava a liberdade de imprensa através do
artigo 7, em que
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 47/199
45
A livre comunicação dos pensamentos é um dos mais preciosos direitos do homem. TodoPortuguês pode conseguintemente, sem dependência de censura prévia, manifestar suasopiniões em qualquer matéria, contanto que haja de responder pelo abuso desta liberdade nos
casos, e pela forma que a lei determinar.
61
A Carta de 1826 também estabelecia a liberdade de pensamento e o fim da censura, de
acordo com o parágrafo 3º do Artigo 145: “Todos podem comunicar os seus pensamentos por
palavras, escritos, e publicados pela Imprensa sem dependência de Censura, contanto que
hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste direito, nos casos, e pela
forma que a Lei determinar ”62.
Ambas as constituições proclamavam a revogação da censura prévia e,
consequentemente, o fim do controle da informação pelo Estado. Contudo deixavam lacunas
para que os inimigos do pensamento livre e de sua divulgação pudessem atuar. Se a censura
como instituição do Estado deixava de existir, outras formas de restrição à liberdade de
pensamento e de imprensa foram estabelecidas através de lei complementar. Com o
restabelecimento da Carta de 1826 em 1834, foi aprovada uma lei complementar que
estabelecia um conjunto de temas passíveis de responsabilização legal, destacando-se ataques
ao trono e à moral cristã.
Se em termos jurídicos a liberdade de pensamento e de expressão era uma garantia,apesar das possibilidades de ações legais, as restrições práticas à imprensa permaneciam. A
ameaça de ações contra editores e a pressão sobre juízes para condená-los, a criação de
empecilhos para a distribuição de periódicos e mesmo a agressão física e o empastelamento
de jornais eram práticas comuns.
Em 1850 foi promulgada uma lei que buscava ampliar o número de temas passíveis de
responsabilização legal, além de conceder ao governo maior poder de intervenção na
imprensa. Conhecida com Lei das Rolhas, esta medida provocou intenso debate entre aopinião pública portuguesa e foi tema de inúmeros artigos. A Lei das Rolhas foi um dos
últimos atos do Cabralismo e foi revogada em 1851 com a Regeneração.
A polêmica envolvendo a Lei das Rolhas demonstra que, apesar das restrições práticas
e legais impostas, o fim da censura prévia foi uma vitória conquistada e arduamente defendida
pela opinião pública portuguesa. E esta conquista possibilitou, dentre outros fatos, a
ampliação do mercado editorial em terras portuguesas.
61 Disponível em <http://www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/c1822t1.html> Acesso em: 17 abr. 2011.
62 Disponível em <http://www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/c1826t8.html> Acesso em: 17 abr. 2011
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 48/199
46
1.3.1 Veículos Impressos
A atividade jornalística era considerada como uma forma de compensar as limitações
do Ensino formal, pois facilitava o acesso a informações até então restritas a um público leitor
limitado. A democratização da informação era uma premissa básica da imprensa portuguesa a
partir de 1834 e, aliada à instrução, o objetivo também era civilizador, conscientizador,
formador de opinião. As correntes políticas tiveram nos jornais e periódicos instrumentos de
grande importância na difusão de suas propostas e valores.
Apesar do reduzido número de alfabetizados entre a população portuguesa, estimado
em menos de 10% da população em 1834 e em cerca de 18% em 1872, totalizando em tornode 3 milhões de habitantes63, representava um mercado consumidor significativo para a
imprensa recém-liberta da censura prévia.
Com o crescimento da imprensa verificou-se a ampliação dos quadros profissionais
ligados a esta atividade. O número de tipografias teve um aumento significativo a partir de
1834, ao mesmo tempo em que a produção de papel teve um aumento quantitativo e
qualitativo em Portugal, visando a abastecer este mercado. No final da década de 1830 a
qualidade da impressão aumentou devido à utilização de prelos metálicos64
.A imprensa portuguesa também ampliou as possibilidades para autores e intelectuais.
Se a imprensa necessitava da produção intelectual desses autores e muitas vezes associavam
os nomes de intelectuais às publicações, como Alexandre Herculano ao Panorama e António
Feliciano de Castilho à Revista Universal Lisbonense, estes tinham na imprensa a
possibilidade de divulgar suas obras e obter reconhecimento no cenário português. Esta
interação entre imprensa e intelectuais fez surgir a produção literária voltada para a
publicação em periódicos e que era designada, de forma bastante crítica, como literaturaindustrial 65. Essa produção literária, cujo principal exemplo é o romance de folhetim,
priorizava as exigências do público leitor e, consequentemente, dos diretores dos periódicos, e
era criticada, pois deixava a qualidade literária de lado em nome das exigências do público.
Apesar das críticas quanto à qualidade deste tipo de literatura, a sua existência indicou uma
63 MARQUES, A. H. de Oliveira. A cultura literária, artística e musical. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira(Dir.). Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 412
.64 Ibidem. p. 413- 414.
65 SANTOS, M de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira Metade de oitocentos. Lisboa: Presença,2002. p. 168.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 49/199
47
possibilidade de profissionalização da atividade literária, levando ao debate sobre os direitos
autorais e atuação em outras atividades culturais como o teatro.
Fica evidente que nesta seara as práticas de mercado estavam se estabelecendo.
Mercado consumidor, especialização da produção e preocupação com a qualidade, acima
descritos, são evidências deste fato. Um outro fator que corrobora a mercantilização da
produção intelectual foi a criação de periódicos que se adequavam a nichos de mercado,
buscando públicos-alvo com perfis definidos.
Ao analisar a organização do mercado literário português no século XIX, Maria de
Lourdes Costa Lima dos Santos classificou a imprensa periódica do período em jornais de
recreio e instrução; romance folhetinesco e folhetim-crônica; jornais literários, científicos e
artísticos; e jornais sociais e políticos66. As tiragens destes jornais atingiam entre 1000 e 2000exemplares que, via de regra, eram entregues a assinantes via postal67.
Destas modalidades de periódicos, os dois últimos possuem objetivos e públicos
definidos, enquanto os dois primeiros têm universo de leitores mais amplo e diversificado e
por isso mereceram maior atenção em nossa análise. E como o romance folhetinesco e o
folhetim-crônica geralmente eram publicados em jornais de recreio e instrução, vamos tratá-
los como uma única modalidade de periódico.
Entre os jornais de recreio e instrução, destacaram-se O Panorama e a RevistaUniversal Lisbonense, e o principal objetivo destas publicações era difundir os valores da sua
“missão civilizadora”, ou seja, difundir os valores que seus editores consideravam como
fundamentais para a consolidação do liberalismo em Portugal e do engrandecimento da nação
através de uma linguagem acessível e agradável, bem como através de formatos discursivos
variados como artigos, romances, poemas, etc. O público para o qual estes periódicos eram
voltados pertencia às “classe laboriosas”, aqueles “a quem poucos momentos sobram dos seus
empregos, (onde) era necessário criar uma literatura própria e de tal arte concebida, que asconvidasse a empregar nela algumas horas destinadas ao repouso”68.
Foi nesses jornais de recreio e instrução, que cediam espaço para a publicação de
inúmeros artigos e romances os quais influenciaram a opinião pública portuguesa, que
verificamos o maior grau de profissionalização do jornalismo e da produção intelectual.
66 SANTOS, Mª de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa:Presença,2002. p. 165 - 198.
67 MARQUES, A. H. de Oliveira. A cultura literária, artística e musical. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira(Dir.). Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 416.
68 SANTOS, M de Lourdes Costa Lima dos. Op. cit. p. 165 - 198.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 50/199
48
Muitos romances editados em formato de folhetim nas páginas desses jornais foram
posteriormente lançados em livro, e artigos publicados originaram acalorados debates
acompanhados pelo público leitor.
Missão civilizadora, palco de debates, espaço de divulgação de artistas e intelectuais,
formadora de opinião e mercado de trabalho. Estas são algumas características e objetivos da
imprensa portuguesa no século XIX, que evidenciam as grandes mudanças que atingiram
Portugal. Se nas esferas política, social e econômica as transformações encontravam
obstáculos que dificultavam a modernização do país, na imprensa esta modernização, que
também encontrou empecilhos difíceis de serem superados, demonstrava que no aspecto
intelectual as letras portuguesas ocupavam um papel de vanguarda na consolidação do
Liberalismo.
1.3.2 Recomposição e condições de acesso à elite intelectual
Ao analisar o intelectual contemporâneo, Karl Mannheim pontua a sua gênese no
momento em que a intelligentsia deixa de ser um grupo social fechado e com uma visão
unitária. Esta nova intelligentsia “expressa a polarização de várias visões de mundo
coexistentes que refletem as tensões sociais de uma civilização complexa”, que busca“identificar as tensões e participar das polaridades de sua sociedade”69. Os intelectuais
passaram, a partir desta transição, de estamento oriundo de poucos segmentos sociais que
buscava uma visão unitária e conciliadora a grupo social composto por indivíduos originários
de diversos segmentos sociais que buscava explicações distintas e heterogêneas sobre os
fenômenos de uma sociedade em profunda transformação.
A transição da ordem tradicional portuguesa para a ordem liberal constituiu-se, em
nosso entender, neste momento originário do intelectual moderno em Portugal que, conformevimos anteriormente, era formado por indivíduos cujas origens sociais são heterogêneas e que
buscam explicações distintas e muitas vezes concorrentes dos fenômenos sociais.
Podemos observar que tal fenômeno ocorreu em Portugal na primeira metade do
século XIX, quando os valores do Romantismo se tornaram hegemônicos na sociedade
portuguesa em detrimento dos padrões do Classicismo em vigor até então. Simultaneamente,
o Liberalismo, cujas relações com o Romantismo são profundas, influenciou tanto o aspecto
69 MANNHEIM, Karl. O problema da intelligencia: um estudo de seu papel no passado e no presente. In ______. Sociologiada Cultura. 2.ed. São Paulo: Perspectiva. 2008. p. 91- 92.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 51/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 52/199
50
os aparelhos de sociabilidade acima mencionados também são espaços onde ocorrem os dois
fatores apontados por Daniel Barreiros, que credenciam o acesso à intelectualidade: a
hereditariedade e o reconhecimento73.
Sendo a hereditariedade o compartilhamento dos elementos que compõem os valores
intelectuais entre os integrantes da intelligentsia e os seus sucessores74, era nos salões e saraus
literários, academias e sociedades secretas que esta transmissão de paradigmas acontecia e,
através dos mecanismos de sociabilidade existentes nestas instituições funcionais, os
eventuais sucessores tinham acesso aos meios para produzir e divulgar valores que, no
período observado, se davam através da imprensa e do exercício de cargos na burocracia
estatal.
No modelo teórico proposto por Daniel Barreiros a hereditariedade e oreconhecimento são entendidos como práticas distintas porém convergentes. Distintas pois na
hereditariedade o pretenso sucessor é eleito por um integrante da elite intelectual e por ele
conduzido à aceitação dos seus pares, enquanto no reconhecimento o postulante ao ingresso
no subgrupo pode ser tanto um intelectual conduzido por um integrante da elite, sendo o
reconhecimento uma etapa do processo de acesso à elite, quanto um intelectual que se destaca
por contestar valores componentes dos princípios fundamentais e encontrar interlocutores no
seio da elite75
. Logo, o reconhecimento é distinto da hereditariedade, pois o intelectual queingressa na elite pode partir de posicionamentos intelectuais distintos dos defendidos pela
elite mas, ao encontrar interlocutores, garante seu espaço no subgrupo. São, portanto, práticas
distintas quanto ao posicionamento intelectual do indivíduo na origem do processo de
ascensão à elite. Na hereditariedade o indivíduo partilha e concorda com os paradigmas
vigentes, enquanto no reconhecimento não há necessariamente a concordância do indivíduo
quanto a estes paradigmas.
A convergência se define por dois fatos: o reconhecimento como prática que reforça elegitima a hereditariedade e, consequentemente, a necessidade de interlocução de pelo menos
um intelectual da elite para garantir o acesso ao subgrupo.
73 BARREIROS, Daniel Pinho. Intelectuais e estrutura social: uma proposta teórica. Sinais sociais, n.9 , jan./abr. de 2009. p.34 - 37. Neste artigo Daniel Barreiros se propôs a discutir a relação entre intelectuais e a estrutura social nas sociedadesocidentais pós-1945. Apesar de tratarmos de um período distinto, a primeira metade do século XIX, encontramos inúmeros pontos de convergência que se mostraram úteis para a nossa análise da intelligentsia portuguesa oitocentista.
74 Ibidem. p. 36. No modelo teórico proposto por Daniel Barreiros os intelectuais são divididos em três subgrupos sendo o
reconhecimento e a hereditariedade atribuições da elite intelectual. Não utilizamos a tipologia criada pelo autor, poisentendemos que esta divisão não é passível de aplicação no período estudado e consideramos que o universo de intelectuaisque estamos analisando assumem a função da elite intelectual analisada por Daniel Barreiros.
75 Ibidem. p. 36 - 37.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 53/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 54/199
52
Cabe destacar que a questão educacional não era um tema novo no dia a dia português.
No bojo das reformas pombalinas, a educação mereceu atenção especial e muitos debates
sobre o tema no século XIX tinham como referência as medidas educacionais implantadas
pelo Ministro do Reino de D. José.
Contudo, existem alguns elementos em comum entre as distintas correntes liberais que
duelam na seara educacional: a universalização do ensino primário como forma de ampliação
da cidadania e melhor qualificação do voto; estabelecimento do ensino secundário para
reforçar a cidadania e formar quadros profissionais para suprir a nação de mão de obra
qualificada necessária para o desenvolvimento do progresso econômico; reformulação do
ensino superior, diversificando-o e quebrando o monopólio da Universidade de Coimbra e,
por fim, a ampliação da liberdade de ensino, abrindo espaço para os agentes privadosmediante a regulamentação e fiscalização do Estado77.
Trataremos a seguir das características e das medidas adotadas de acordo com o nível
educacional.
A década de 1810 foi muito profícua em termos educacionais, pois além da discussão
sobre os métodos, foram fundados vários colégios particulares. Mas foi no Triênio Liberal
(1820-1823) que ocorreu a abertura de número ainda maior de escolas e também de colégios
femininos. Apesar de ser omissa no tocante à obrigação do Estado quanto à promoção daeducação e a adoção de reformas inovadoras, a Constituição de 1822 criou condições legais
para esta expansão dos estabelecimentos educacionais ao garantir a liberdade de ensino78. Mas
foi apenas a partir de 1834 que o ensino primário recebeu maior atenção por parte do Estado,
sendo os seus princípios fundamentais norteados pela laicização, entendida como ensino
ministrado por leigos e não apenas por religiosos, gratuidade e pelo caráter obrigatório. Cabe
destacar que, nesse período, vigorava a Carta de 1826 em que o ensino era um direito
garantido a todos os cidadãos e constituía-se numa obrigação do Estado.Mesmo sendo objeto de discussão nas várias reformas educacionais ao longo do século
XIX, a promoção do ensino primário não conseguiu reverter o expressivo número de
analfabetos em Portugal. Mesmo sendo obrigatório, o ensino primário ficou restrito às
camadas mais altas.
77
MESQUITA, Pedro Teixeira. A instrução pública e privada. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (Dir.). Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do liberalismo. Lisboa: Presença, 2002. p. 350.
78 TORGAL, Luis Reis. A instrução pública. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal . Lisboa: Estampa, 1993. p.612. V.5.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 55/199
53
Foi a partir de 1836 que o ensino secundário mereceu as atenções do Estado. A
reforma educacional empreendida pelo setembrista Passos Manuel é tida como um marco
fundamental do ensino secundário ao instituir a criação dos liceus. Antes de Passos Manuel, o
Vintismo não se preocupou com o ensino secundário, mantendo a estrutura secundária
anterior, e os Professores Régios, cargo criado pelo Marquês de Pombal, continuaram a atuar
neste segmento. Também foram mantidas as disciplinas: Latim, Retórica, Grego e Filosofia.
Com a reforma de Passos Manuel, o número de disciplinas foi ampliado e se tornou
mais diversificado com a inclusão de novas disciplinas nas áreas das humanidades e das
ciências físicas. Os liceus, na visão de Passos Manuel, serviam não somente como escolas de
acesso ao ensino superior, mas também como formadoras de cidadãos, qualificando
intelectualmente o aluno que não tinha acesso à universidade.A reforma de Passos Manuel encontrou um grande obstáculo para a sua execução: o
pequeno número de professores de disciplinas científicas. Para atenuar este problema, a
reforma de Costa Cabral, de 1844, reduziu o número de disciplinas científicas e regionalizou
o currículo dos liceus, visando a atender as necessidades locais.
O ensino liceal era voltado principalmente para a burguesia portuguesa e destinava-se
“particularmente a uma formação de transição, intermédia entre o ensino primário e o ensino
superior, ou então para formar quadros de profissionais de variado tipo”79
. Também criado durante o Período Pombalino, o ensino técnico está diretamente
ligado, durante o século XIX, à ideia de progresso. Se durante o primeiro período as Aulas
Régias eram as responsáveis pela formação técnica, durante a Regeneração, quando o ensino
técnico teve grande impulso, os Institutos foram criados para esta finalidade. Uma distinção
significativa entre o ensino técnico pombalino e o da Regeneração era a atividade priorizada.
Enquanto as Aulas Régias dedicavam-se a atividades mercantis, militares e ligadas à
construção civil, os Institutos da Regeneração enfatizavam os estudos agrícolas. Uma possívelexplicação para este fato é que alguns destes cursos ministrados pelas Aulas Régias foram
incorporados pelos Liceus e, desta forma, os Institutos visavam a preencher uma lacuna
importante.
A frase de Pedro Teixeira Mesquita ilustra as dificuldades encontradas pelo Estado
Liberal português para reformar o ensino superior: “A Universidade herdada pelo Liberalismo
era uma escola anquilosada e atrasada do ponto de vista pedagógico, mas um ‘potentado’ do
79 TORGAL, Luis Reis. A instrução pública. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal . Lisboa: Estampa 1993. p.627. v.5.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 56/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 57/199
55
das características fundamentais da atividade intelectual, pois esse domínio do léxico,
categorias e conceitos forma o que Skinner define como contento linguístico, entendido como
léxico empregado pelo contexto intelectual onde o autor se insere85.
É com base nestes argumentos que o capítulo seguinte foi pensado. A partir do
universo intelectual de Herculano e de suas intervenções no contexto linguístico português
coevo, buscamos reconstruir os conceitos empregados pelo autor nas suas propostas para a
construção de uma sociedade liberal portuguesa.
85 LOPES, Marcos Antônio. Para ler os clássicos do pensamento político: um guia historiográfico. Rio de Janeiro: EditoraFGV, 2002. p.56.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 58/199
56
NOMES POSIÇÃODE
PARTIDA
CURSOS PROFISSÃO CARGOSE TÍTULOS
PRODUÇÃOLITERÁRIA
Francisco deS. Luís(1766-1845)
Tipo III(PaiProprietárioRural)
FaculdadedeTeologia(Dout.1791)
Prof (Filos.) no Colégiodas Artes (1817);Visitador-Geral daOrdem Beneditina;Membro da JuntaProvis. do Gov.Supremo do Reino(1820); Reitor da Univ.(1821-1823); Bispo deCoimbra (1822);
Guarda-Mor do Tombo;Ministro do Reino,Cons. e Par do Reino(1834); Vice-Presid. DaAcad. Das Ciências(1838); CardealPatriarca de Lisboa
Estudos nosdomínios dahistória, dalinguística, daliteratura.
Silv.PinheiroFerreira(1769-1846)
Tipo I (Paiartesão)
Humanidades naCongr. doOratório;
freq. dacadeira deMecânicada Univ.
Prof. De Filos. e Moralno Colégio das Artes(1794); Secret. da Emb.de Portugal na Holanda
(1799); Encarreg. dos Neg. Estrang. em Berlim(1802-1809); Diretor daImprensa Régia (1820);Ministro dos Neg. Estr.e Guerra (1821); Sec. deEstado de Neg. Estrang.(1821-1823); Deputado(1827, 1838 e 1842);sócio da Acad. deCiências.
Estudos nosdomínios dafilosofia, do direitoe das ciências
naturais.
CândidoJosé Xavier(1769-1833)
Tipo I (PaiAlveitar)
Freq. daUniv. (?)
Prof. de Retórica;Brigadeiro de Infant.(oficial da Legião Port. –1808); Ministro daGuerra (1821/22 e1826/27); Min. daGuerra e dos Neg. Estr.(1827/28); Subdir. e Dir.do Colégio Militar;Secret. Part.de D. Pedro
no Exílio; Ministro doReino, dos Neg. Estr. eda Regência (1833);Sócio da Acad. das
Poemas de juventude;colaboração em
jornais e revistas(artigos científicos).
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 59/199
57
Ciências.ManuelFernandesTomás
(1771-1822)
Tipo I (Paifaziatransportes
em barco)
Faculdadede Leis(Bac.
1791)
Juiz de Fora (1801);Superintend. dasAlfândegas e Tabaco
(1805); Deput.Comissário do serviçode requisições efornecim. para oExército (1808);Magistrado em Coimbra(1811); Membro daJunta Provis. do Gov.Supr. do Reino (1820);Encarreg. dos Neg. doReino e da Fazenda
(1821).
Ensaio político;obras jurídicas;discursos
parlamentares.
J. LiberatoFreire deCarvalho(1771-1855)
Tipo III(PaiBacharel)
Teologia eFilosofia(nocolégio dasuaOrdem)
Prof. no Mosteiro de S.Vicente de Fora emLisboa; Redator noexílio; Deput. (1822);Oficial da Secret. deEstado dos Neg.Estrang. (1827);Arquivista da Câmarados Pares (1834-36);Administ. da Imprensa
Nac.; sócio da Acad. dasCiências (de 1804 a1853, data em que sedemite)
Ensaios históricos e políticos;memorialismo;traduções;
jornalismo.
BorgesCarneiro(1774-1833)
Tipo I (Pai pequeno proprietáriorural)
FaculdadedeCânones(Bac.1800)
Juiz de Fora (1803);Provedor da Comarca deLeiria (1812);Desembarg. da Relaçãodo Porto e da Casa deSuplic. de Lisboa;
Deput. (1821, 22, 26 e28)
Escritos políticos;estudos jurídicos;trabalhos didáticos;discursos
parlamentares.
F. M.Trigoso deAragãoMorato(1777-1838)
Tipo III(Pai senhordevínculos)
FaculdadesdeCânones(Dout.1799)
Lente na Univ. (1818);Deput. (1821); Ministro,Secret. de Estado dos
Neg. do Reino e Cons.(1826); Par do Reino(1834); Vice-pres. daAcad. das Ciências.
Trabalhos didáticos(cadeira de Instit.Canônicas);
projetos; estudosacadêmicos dehistória e literatura.
Mouzinhoda Silveira
(1780-1849)
Tipo III(Pai
Médico)
Faculdadede Leis
(1802)
Juiz de Fora; Provedor;Administ. Geral das
Alfândegas (1821);Ministro da Fazenda(1822-23); Deput.
Estudos jurídicos,econômicos e
políticos.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 60/199
58
(1826); Ministro doReino, da Justiça e daFazenda na Regência(1832); Deput. após o
exílio (1834).FerreiraBorges(1786-1838)
Tipo III(Paiarmador)
Faculdadede Leis(Bac.1806)
Advogado (1808-1820);Secretário da Cia. dasVinhas do Alto Douro(1818); Síndico daCâmara Municipal doPorto; Advog. daRelação do Porto(1818); Membro daJunta Provis. do Gov.Supremo do Reino
(1820); Deput. (1822);Membro do Conselho deEstado (1823); JuizPresidente do TribunalComercial (1833-36)
Estudos jurídicos eeconômicos;colaboração em
jornais e revistas.
Rodrigo daFonseca(1787-1858)
Tipo I (Pai pequeno proprietáriorural)
Freq.Faculd. DeTeologia(1806-08?)
Oficial no Bat. Acad.(1808); Secret. do Gov.de Pernambuco (1819);Oficial da Secret. daJustiça (1822); Diretor-Geral no Minist. da Just.(1833); Administ. daImprensa Nac. (1833);Deput. (1834-35 e váriasLegislat.); Ministro doReino (1835, 39 e 53);dos Estr. e do Reino(1841); da Justiça e doReino (1851-52);Conselheiro (1842); Pardo Reino (1847); Sócio
Emérito da Acad. deCiências.
Poemas da juventude; jornalismo político;discursos
parlamentares.
JoaquimAnt. deAguiar(1792-1871)
Tipo II (paiCirurgião)
Faculd. deLeis(Dout.1815)
Lente (1816-23); Deput.(1826); Cons. doSupremo Tribunal deJustiça (1833); Ministrodo Reino (1833, 41, 65 e66); da Justiça (1834, 36e 46); Presidência (1841,60, 65 e 66); Pres. eReino (1868); Par do
Reino (1852); Provedorda Santa Casa deMisericórdia de Lx.
Discursos parlamentares;ensaio políticos;colaboração em
jornais e revistas.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 61/199
59
(1859)Luís da SilvaMouzinhode
Albuquerque(1792-1846)
Tipo III(Pai oficialdo
Exército)
Eng.Militar
Oficial da arma de Eng.;Provedor da Casa daMoeda (1823);
Governador da Madeira(1824); Ministro doReino e da Marinha naRegência (1832-33);Reino (1835, 42 e 46);Justiça (1842); Marinha(1846); Deput. (emvárias Legislações).
Poemas; trabalhosdidáticos, estudosacadêmicos;
colaboração em jornais e revistas.
Sá daBandeira(1795-1876)
Tipo III(Paidesembarga
dor; senhordevínculos)
AcademiaReal daMarinha e
Acad. Realda Fortific.(1816-17);Freq. daMat. eFilos. DaUniv.(1818-1820);freq. daUniv. deParis(1821-25);estudos deEng. naInglaterra
Oficial de Cavalaria(campanhas da GuerraPeninsular – 1810);
Chefe de Estado Maiordos Gov. da Madeira eAçores (1828-29);Ajudante de campo deD. Pedro (1832);Ministro do Reino e daMarinha (1832 e 33);Par do Reino (1834);Ministro do Reino(1835); Marinha (1835,37, 38, 56, 57, 58, 65);Guerra (1836, 37, 38,42, 46, 57, 58, 60, 62,65, 69, 70); Estr. (1836,37, 38); Justiça (1836);Presid. (1836, 37, 38,65, 68, 69, 70); ObrasPub. (1856); Diretor daEscola do Exército(1851); Conselheiro(1860); General e
Marquês (1864)
Trabalhoscientíficos (sobre ascolônias; questões
militares; comércioe agricultura);colaboração em
jornais e revistas.
AntonioLuis deSeabra(1796-1895)
Tipo III(PaiMagist.)
Faculd.Leis(1820)
Juiz de Fora (1821);Corregedor; Deput.(1834 e várias Legisl.);Ministro da Justiça(1852 e 1868); Presid.da Câmara de Deput. ePar do Reino (1862);Juiz do SupremoTribunal; Reitor daUniv. (1866-68); Visc.
(1865); Sócio da Acad.de Ciências.
Estudos jurídicos efilosóficos;tradução declássicos;colaboração em
jornais e revistas.
Vicente Tipo II (Pai Facul. de Lente Cat. (1834); Estudos jurídicos;
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 62/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 63/199
61
Luz Soriano(1802-1891)
Tipo I(Órfão de
pai; mãeempregada
doméstica)
Faculd. deMedicina(1842)
Oficial no Bat. Acad.(1827); Amanuense(1832); Oficial-maiorda Secret. de Estado da
Marinha (1834); Chefeda Seção de Marinha;Deput. (1853 e váriasLegisl.); Vogal doConselho Ultramarino(1860?)
Poemas; história,escritos políticos;trabalhos sobrequestões médicas;
colaboração em jornais e revistas;memorialismo.
OliveiraMarreca(1805-1889)
Tipo II (Pai proprietáriorural)
Estudos deeconomia(noexílio?)
Administ. Da Imprensa Nacional (1836); Prof.de Economia Política naAssoc. Merc. de Lisboa(1837); Deput. (1838 e
várias Legisl.);Bibliotecário-Mor daBiblioteca Nacional deLisboa (1846); Lente doInst. Ind. de Lisboa(1852); Guarda-Mor doArquivo da Torre doTombo (1861); SócioEmérito da Acad. deCiências (1874);Presidente do 1ºDiretório do PartidoRepublicano (1876)
Romance; estudosde EconomiaPolítica; trabalhosdidáticos;colaboração em
jornais e revistas.
RodriguesSampaio(1806-1882)
Tipo I (Pai peq. Prop.rural)
Humanidades;Teologia(nas aulasdoConventoem Braga)
Redator a partir de 1835;Secret. da Adminst.Geral de Bragança;Administ. Geral deCastelo Branco (1839);Deput. (1851-57);Presidente do CentroPromotor dos
Melhoramentos dasClasses Laboriosas(1853-63); Cons. doTribunal de Contas(1859); Ministro doReino (1870, 71-77, 78-79); Presid. e Reino(1881); Par do Reino(1878)
Jornalismo político.
JoséSilvestre
Ribeiro(1807-1891)
Tipo I (Pai peq. Prop.
rural)
Faculd.Cânones
(Bac.)
Ofic. no Bat. Acad.(1826); Sec. Geral da
Prefeitura (1834);Governador Civil devários distritos; Deput.
Estudos histórico-literários; trabalhos
sobre questõesadministrativas;colaboração em
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 64/199
62
(1846 e várias Legisl.);Conselheiro (1856);Ministro da Justiça(1857); Vogal do
Supremo TribunalAdministrativo (1875);Par do Reino (1882);Sócio da Acad. deCiências (1867).
jornais e revistas.
José Estevão(1809-1863)
Tipo III(Paimédico)
Faculd. deLeis
Oficial no Bat. Acad;Redator; Deput. (1836 evárias legisl.); Lente deEconomia Política naEscola Politécnica(1842); Conselheiro
(1843); Sócio da Acad.de Ciências.
Discursos parlamentares; jornalismo político.
AlexandreHerculano(1810-1877)
Tipo II(Pai func.público).
Acad.Real daMarinha(1825-1826),Aula doComércioe AulaDiplomática (1831)
2º Bibliotecário daBiblioteca do Porto(1833-36); Diretor eRedator de OPanorama (1837);Diretor das Bibliotecasda Ajuda e dasNecessidades (1839);Deput. (1840-41);Presidente da Câmarade Belém (1853);Diretor da Publicaçãodos PortugaliaeMonumenta Histórica(1853-73); Vogal doCons. Dramático doConservatório (1853);Vice-presidente daAcad. de Ciências
(1855)
Poesia; romance;história; críticaliterária;
jornalismo;polêmica.
InocêncioFranc. daSilva (1810-1876)
Tipo II (paicomerc. eofic.deorden.)
Aula doComércio(1830-32);cadeiras deMat. naAcad. daMarinha(1833)
Docente- ensino particular (1834-37);Capitão da Guarda
Nacional (1837);Amanuense de 2ª Classe(1842); de 1ª Classe(1851); Sócio da Acad.de Ciências.
Ensaios de críticaliterária, filologia,história;investigação
bibliográfica;colaboração em
jornais e revistas.
José Freirede Serpa
Pimentel(1814-1870)
Tipo III(Pai lente
da Univ.)
Faculd. deDireito
(Bac.1839)
Juiz; Governador Civildo Porto (1860); Par do
Reino; Visconde.
Poesia; teatro;colaboração em
jornais e revistas.
Joaquim da Tipo II (Pai Acad. Real Major de Artilharia; Poemas; teatro;
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 65/199
63
CostaCascais(1815-1898)
militar?) daMarinha eAcad. Realdas
Fortific.(1831)
Lente de DesenhoArquit. e Topografia noReal Colégio Militar.
colaboração em jornais e revistas.
Teixeira deVasconcelos(1816-1878)
Tipo I (PaiProp. rural)
Faculd. deDireito(Bac.1844)
Governador Civil deVila Real (1846);Presidente da Câmara deLuanda (1851); Deput.(1865); Plenipotenc. nosEUA; Redator e diretorde vários jornais; Sóciocorrespondente da Acad.de Ciências.
Jornalismo;romance; estudos
biográficos;literatura e história.
SousaBrandão(1818-1892)
Tipo II (Pai prop. rural)
Acad.Politécnicado Porto;Escola doExércitode Lisboa;Escola dePontes eCalçadasde Paris(1845-48)
Soldado do ExércitoLiberal (1833); Insp. eDiretor das ObrasPúblicas (a partir de1852); Diretor doGrêmio Popular (1857);Deput.; Membro daDiret. do PartidoRepublicano (1876);General.
Jornalismo político;escritos sobre oAssociativismo.
João deLemos(1819-1890)
Tipo III(Pai prop.fundiário evisconde)
Faculd.Direito
Encarregado de missõesoficiais (representantedos legitimistas);redator; visconde
Jornalismo; poesia;teatro.
FontesPereira deMelo (1819-1887)
Tipo III(Paiministro eCons.)
Eng.(Acad.Real daMarinha eEscola doExército)
Major de Engenharia;Deput. (1848 e váriasLegisl.); Ministro daMarinha (1851-60);Fazenda (1851, 52, 53,65, 66, 68, 71-71, 81-
83); Obras Públicas(1852-53); Reino (1859-60); Guerra (1866, 78-79, 83-86); Presid.(1866, 71-77, 78-79, 83-86); Par do Reino (1870)
Discursos parlamentares;colaboração emvários jornais erevistas.
Mendes Leal(1820-1887)
Tipo II (Paimestre demúsica)
Humanidades
Amanuense (1844?);Capitão-volunt. e Secret.Do Lugar-Tenente daRainha (1846); Diretor eRedator de jornais;
Bibliotecário-Mor daBiblioteca Nacional deLisboa (1850); Deput.
Jornalismo; teatro; poesia; romance;trabalhos históricose biográficos;traduções.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 66/199
64
(1851 e várias Legisl.);Ministro da Marinha(1862, 63, 64); dos Estr.(1870); Cons. e Par do
Reino (1871); Plenipot.(1871 e 74); Sócio daAcad. de Ciências.
Xavier de Novais(1820-1869)
Tipo I (PaiOurives)
Autodidata Ourives; redator;empregado de escritório.
Poesia; colaboraçãoem jornais erevistas.
Francisco M.Bordalo(1821-1861)
Tipo II (Paimestrerégio)
Acad. RealdaMarinha
Cadete da Armada(1834); 1º tenente eSecretário do Gov. deMacau (1850-52)
Romance; teatro;narrativa deviagens; trabalhosestatísticos.
L. A. Rebelo
da Silva(1822-1871)
Tipo III
(Pai Bac.;Deput.)
Freq.
faculd.Filosofia eMatem.(1839-41)
Oficial e Secret. da
Secret. do Cons. deEstado (1845 e 49);Fiscal do Teatro D.Maria II (1846); Deput.(1848 e várias legisl.);Membro dos Cons. deInstr. Públ. (1859); Prof.no Curso Superior deLetras (1861); Ministroda Marinha (1869-70);Sócio da Acad. deCiências.
Discursos
parlamentares;romance; teatro;estudos históricos eliterários;colaboração em
jornais e revistas.
José M. deAndradeFerreira(1823-1875)(b)
Tipo II(Órfão de
pai func.Público)
Humanidades(Incompl.); freq. daEscolaPolitécnica
Amanuense; redator;Administrador deconcelho.
Jornalismo; críticaliterária; biografias;traduções.
CustódioJosé Vieira(1823-1879)
Tipo I (Pai prop. rural)
Faculd.Direito(1849)
Comissário Civil daJunta no Algarve(1846); Advog.; redator;
Deput. (1866-67)
Jornalismo político;ensaio doutrinário.
AndradeCorvo(1824-1890)
Tipo III(Pai oficialdo exércitomiguelista)
Mat. eCiências
Nat. NaEscolaPolitécnica; Eng.(Escola doExército);Medicinana Escola
Médico-Cirúrgicade Lisboa
Lente da Esc. Polit;Vogal do Cons. Geral daInst. Pub. (1859); Lentedo Inst. Agrícola; Deput.(1865 e várias legisl.);Coronel de Eng.;Ministro das ObrasPúblicas (1866); Estr.(1867, 71-77, 78-79);Marinha (1879); Par do
Reino (1870); Sócio daAcad. de Ciências.
Romance; teatro;trabalhos didáticos;estudos sobreagricultura;colaboração em
jornais e revistas.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 67/199
65
LatinoCoelho(1825-1891)
Tipo III(Pai capitãoe prof.Mat.)
Eng.EscolaPolitécnicae Escola
doExército
Oficial da arma de Eng.;Lente da Esc. Polit.;diretor de jornal (1851);Deput. (1854 e várias
legisl.); Ministro daMarinha (1868-69); Pardo Reino (1885);General (1888); Sócioda Acad. de Ciências.
História; críticaliterária; estudos
biográficos;colaboração em
jornais e revistas.
LuísAugustoPalmeirim(1825-1893)
Tipo III(Paitenente-general)
RealColégioMilitar
Oficial do Exército(1847); Chefe deRepartição do Ministrodas Obras Pub; Censordo Teatro D. Maria II(1853); Deput.; Diretor
do Conservatório(1870?); Sócio da Acad.de Ciências.
Poesia; teatro;estudos biográficos;colaboração em
jornais e revistas.
Ant. deSerpaPimentel(1825-1900)
Tipo III(Pai Lenteda Univ.)
Faculd.Mat. (Bac.1845);Eng.(Escola doExército)
Lente da Esc. Polt.(1851); Deput. (1856 evárias legisl.); Ministrodas Obras Pub. (1859 e60); Guerra (1860);Fazenda (1872 a 77, 79);Estr. (1881-83); Cons.do Tribunal de Contas(1867); Sócio da Acad.de Ciências.
Poesia; teatro;discursos
parlamentares; biografias;colaboração em
jornais e revistas.
CasalRibeiro(1825-1888)
Tipo III(Paidesemb;Par doReino)
Faculd.Direito
Membro da Junta Rev.De Coimbra (1846);Deput. (1851 e váriaslegisl.); Ministro daFazenda (1859, 60);Estr. (1860-66); ObrasPúb. (1866); Cons. deEst. e Par do Reino
(1865); Sócio da Acad.de Ciências.
Polêmica política;discursos
parlamentares;colaboração em
jornais e revistas.
Vieira daSilva (1825-1868)
Tipo I (Paiartesão)
Autodidata Tipógrafo (até 1851);Radator; amanuense(1852) Vice-Presid. doCentro Promotor dosMelhor.das ClassesLaboriosas (a partir de1852); subdiretor de
jornal (1867)
Colaboração em jornais e revistas.
Camilo
CasteloBranco(1826-1890)
Tipo I
(Órfão de pai peq. prop. rural)
Freq. da
Acad.Polit. e daEscola
Escritor; Sócio
correspondente da Acad.de Ciências (1858);Visconde (1885)
Romance; poesia;
teatro; jornalismo;estudos biográficos;crítica literária;
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 68/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 69/199
67
2 OS CONCEITOS NA OBRA DE HERCULANO
2.1 O universo conceitual de Alexandre Herculano
Os confrontos e polêmicas ocorridos durante o século XIX português, especificamente
nos momentos de estabelecimento e consolidação do Estado Liberal português, deixam claro
que a construção da nova ordem política foi um processo árduo. Além dos embates contra os
defensores da antiga ordem absolutista, os liberais dividiram-se em inúmeras facções que
lutavam por espaço na cena política e estes embates não se restringiam aos gabinetes e salões.
Os veículos de informação do período refletiam e muitas vezes potencializavam estes embates
e ampliavam a arena onde as diversas correntes políticas buscavam afirmação, legitimidade eapoio. Alexandre Herculano teve papel relevante nestes embates e na construção da ordem
liberal portuguesa ao propor reformas e projetos inspirados nas ideias românticas e liberais e
contrapor-se às propostas antagônicas tradicionalistas ou de segmentos liberais concorrentes.
Polemista, escritor e historiador, Herculano participou de vários debates e polêmicas
empregando um universo conceitual cujo objetivo era fundamentar os seus argumentos e
contrapor-se aos adversários e que se constitui no objeto da nossa análise neste capítulo, tendo
em vista que muitos conceitos utilizados por Herculano foram por ele utilizados parafundamentar uma concepção de sociedade idealizada pelo autor que, em nosso entender, teve
como parâmetros elementos do Romantismo, do Liberalismo e do Conservadorismo1.
Diante do objetivo proposto, pensamos que o instrumental fornecido pela “Escola
Collingwoodiana” ou o “Contextualismo Linguístico”, onde se destacam Quentin Skinner e
John Pocock, nos permite compreender o pensamento de Alexandre Herculano em sua própria
historicidade através de um “processo de pesquisa arqueológico” 2, segundo definição do
próprio Skinner, em que “a única história das ideias que deve ser feita é a história dos usos a
1 Empregamos as definições e características do Pensamento Conservador indicadas por Karl Mannheim, onde A açãoconservadora é conduzida por um modo de pensar e atuar calcada na história anterior. O contato da história com o indivíduo pode, em determinadas circunstâncias, mudar este modo de pensar e atuar sendo, portanto, uma “estrutura mental objetiva”oposta à subjetividade do indivíduo isolado. Portanto, “O conservadorismo é precisamente esta configuração estruturalobjetiva, dinâmica, historicamente desenvolvida. As pessoas experimentam, e atuam, de um modo ‘conservador’ (diferentedo tradicionalista) na medida em que se incorporam a uma das fases de desenvolvimento dessa estrutura mental objetiva (emgeral a fase contemporânea) e se conduzem de acordo com a estrutura, simplesmente reproduzindo-a como um todo ou em parte, ou desenvolvendo-a mais, adaptando-a a uma situação concreta particular”. In MANNHEIM, Karl. El PensamientoConservador. In: ______. Ensayos sobre sociologia y psicologia social. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, [198-?].
p. 108 - 110.2 SKINNER, Quentin. On intellectual history and the history of books. In: ______. Contributions. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1,2005. p. 34. SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Unesp, 1999. p. 90.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 70/199
68
que as idéias estão sujeitas” 3. Para Skinner, uma categoria é de suma importância, os Atos
Discursivos ou Atos da Fala, em que a análise da sentença cede lugar à “análise do ato de
fala, do uso da linguagem em um determinado contexto, com determinada finalidade e de
acordo com certas normas e convenções” 4, categoria teórica que retomaremos mais adiante.
Nessa direção, Skinner especifica a noção de ‘contexto’, qualificando como
‘linguístico’ ou de linguagem aquele que importa reconstituir historicamente para dar sentido
às proposições da teoria política e social no tempo e destaca o caráter intencional destes Atos
Discursivos, cujo intuito é intervir nesse contexto linguístico. A análise dos discursos,
observando o momento histórico em que floresceram e inseridos num contexto linguístico
onde atuam de forma intencional, consiste, de acordo com o nosso ponto de vista, num
pressuposto capital para o trabalho proposto. Num primeiro momento duas questões se colocam ao considerarmos o arcabouço
teórico-metodológico e as fontes que pretendemos utilizar. A primeira é a temática trabalhada
pelo enfoque collingwoodiano: o pensamento político. De uma forma geral, as fontes
estudadas por estes autores são, principalmente, tratados e obras de teor político. Isto posto,
como podemos analisar a obra de Alexandre Herculano dada a grande variedade de formas
discursivas que compreendem a produção literária do autor, como o romance histórico, os
contos, a poesia, a produção historiográfica, dentre outras? Vejamos o que Quentin Skinnernos diz sobre esta questão:
Claro que é um erro supor a reconstituição desta dimensão (onde os autores veiculam suasideias e intervêm intencionalmente num determinado contexto lingüístico através dos atosdiscursivos) só terá interesse quando aplicada a certos gêneros de textos. Essa dimensão está presente em todas as expressões discursivas sérias, quer em verso, quer em prosa, quer em
filosofia, quer em literatura. 5 (grifo nosso).
A partir deste princípio podemos dizer que a produção intelectual, independente da
forma discursiva empregada, pode ser observada sob os enfoques propostos.
A segunda questão que se coloca consiste no risco que corremos de empobrecer nosso
trabalho ao padronizarmos a análise da obra de Herculano sob o crivo dos enfoques teórico-
metodológicos eleitos, desprezando as especificidades dos discursos literário, historiográfico,
3 SKINNER, Quentin. Significação e compreensão na história das idéias. In ______. Visões da política. Miraflores: DIFEL,2005. p. 123.
4
JASMIN, Marcelo Gantus. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. REVISTABRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS. São Paulo, v. 20, n. 57, 2005. p. 28.
5 SKINNER, Quentin. Interpretação e compreensão dos actos. Discursivos In: ______. Visões da política. Miraflores:DIFEL, 2005. p. 174.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 71/199
69
teatral, etc., e das possibilidades que, dentre outras, o diálogo entre a análise literária e a
História fornecem em nome de uma unidade analítica destas modalidades discursivas.
Ao pressupormos, fundamentados em Skinner, que a produção intelectual de
Alexandre Herculano, como um todo, se presta à análise do pensamento político do autor, não
estamos minimizando as contribuições contidas no diálogo entre os estudos literários e a
História, e sim evidenciando que na obra de Herculano existe um universo de Atos
Discursivos que nos orientam em direção ao objetivo do nosso trabalho: a construção de um
modelo ideal de Rei. As diferentes modalidades discursivas não são ignoradas por nós; tanto
que, a seguir, vamos recorrer a elas para evidenciar as intenções do autor em tela ao empregar
uma determinada modalidade discursiva. Para tal, torna-se necessário definir como vamos
trabalhar com a categoria Intenções, tão cara a Skinner, e de importância capital para o nossotrabalho.
No artigo Motivos, Intenções e Interpretação, Skinner define as categorias Motivações
e Intenções, diferenciando-as e estabelecendo prioridades entre elas:
Falar dos motivos de um autor implica, invariavelmente, falar de uma condição que antecedeu – e está relacionada de forma contingente – o nascimento das suas obras. Mas falar dasintenções de um autor tanto pode dizer respeito a um plano ou desígnio para criar um certotipo de obra (a intenção de fazer X) como tratar-se de uma referência, em particular, a uma
determinada obra (o acto de fazer X tem subjacente uma intenção específica). No primeirocaso, tudo indica (como quando falamos acerca dos motivos) que se trata de uma condiçãocontingente que antecedeu o surgimento da obra. Mas no último caso, parece tratar-se de umacaracterística da própria obra. Mais especificamente, parece tratar-se de uma caracterização daobra como personificando um objectivo ou intenção particulares e, nesse sentido, como
perseguindo um propósito particular. 6
Conforme o exposto, podemos deduzir que o termo Intenções possui dois sentidos que,
em nosso entender, são complementares:
- O objetivo que o autor almeja ao elaborar uma obra, distinguindo-se de Motivações, dado que estas antecedem a produção do autor, enquanto que as Intenções antecedem a
criação de uma obra específica.
- Um propósito particular (ou propósitos particulares) de uma obra específica.
O propósito de intervir no contexto português e participar da definição dos rumos a
serem tomados por Portugal, manifestado por Alexandre Herculano, pode ser associado a um
dos pontos chaves da argumentação teórica proposta por Skinner, pois o seu objetivo ao
6 SKINNER, Quentin. Motivos, intenções e interpretação. In: ______. Visões da política. Miraflores: DIFEL, 2005. p. 138 -139.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 72/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 73/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 74/199
72
século XIX somente seriam sanados se fossem restabelecidas as bases da sociedade
medieval14, onde as associações e instituições intermediárias entre o indivíduo e o governo
tais como a família e as comunas tinham grande relevância constituindo-se na “base
adequada do governo”15.
A valorização da Idade Média como período originário das tradições, costumes e
instituições defendidas pelo Pensamento Conservador constitui-se num ponto convergente
com o Romantismo que surgiu como uma oposição ao racionalismo das Luzes, valorizando
esferas da vida e condutas colocadas em segundo plano pelo racionalismo burguês, reprimidas
“ pela marcha do capitalismo racionalista”. Assim, a comunidade se opõe à sociedade, a
família e a tradição se opõem ao contrato e aos direitos naturais16. Para Nisbet “a união do
romantismo com o conservadorismo baseia-se numa aliança entre os ‘preconceitos’ de Burke, as ‘paixões’ de Madame de Stäel e o Zeitgeist alemão”17.
Uma expressão de Alexandre Herculano reforça os pressupostos românticos e
conservadores ao definir a História como “ciência útil pela sua aplicação às graves questões
que abalam os fundamentos das sociedades moderna”18. A partir desta citação podemos
destacar algumas peculiaridades do ato discursivo História em Herculano, tais como o seu
caráter científico, a sua utilidade ou função e a sua relação ou importância para as sociedades
contemporâneas.
Caráter científico da história
É quase uma unanimidade entre os autores que estudaram a obra de Alexandre
Herculano destacar o cunho pioneiro de sua produção histórica, calcada num arcabouço
teórico e metodológico que fundamentava o caráter científico de sua obra.
O rigor crítico na seleção e análise das fontes foi o ponto de partida para a produçãodo conhecimento histórico do período.
14 NISBET, Robert. Conservantismo. In: BOTTOMORE, Tom; NISBET, Robert (Org). História da análise sociológica. Rio:Zahar, 1980. p. 130.
15 Ibidem. p. 138.
16 MANNHEIM, Karl. El pensamiento conservador. In: ______. Ensayos sobre sociologia y psicologia social . Buenos Aires.
Fondo de Cultura Económica, [198?]. p. 100 - 101.17 NISBET, Robert. Conservadorismo. Lisboa: Estampa, 1987. p. 143.
18 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.3. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 225.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 75/199
73
Para Alexandre Herculano, os documentos históricos deveriam ser contemplados com
o máximo rigor crítico externo e interno, sendo considerados a matéria-prima dos estudos
históricos. No Volume I da História de Portugal , ao debruçar-se sobre a origem da pátria
onde nasceu, Herculano destaca a importância dos documentos e de sua análise criteriosa:
Assim, segundo a época que escolhem para assinalar a instantânea passagem do reino dePortugal do não ser à existência, vêem-se obrigados a rejeitar como falsos ou a desprezartodos os monumentos que se opõem à própria opinião, ao passo que, por sua parte, algunsescritores castelhanos rejeitam ou fingem esquecer os monumentos em que esses outros seestribam. É por este modo que o diploma se tem oposto ao diploma, a crônica à crônica, ainterpretação à interpretação, com uma gravidade e um peso de erudição de que é impossível,às vezes, deixar de sorrir. O historiador, porém, que não se coloca à luz falsa em que um malentendido pundonor nacional pôs os que o precederam, longe de abandonar as fonteshistóricas só porque se contrapõem a uma opinião formada antecipadamente, aceita-as todasquando intrinsecamente puras e deduz delas as suas conclusões. Os que procedem por diverso
modo, não somente avaliam mal esse grande fato da independência, mais ainda, fechando-senum horizonte limitado, atribuem à nação logo no seu berço uma individualidade tão profunda, que se inabilitam para avaliar bem os homens e as coisas, desprezando as soluçõesque ao fato, aliás inexplicáveis, lhes ministraria a história das paixões e dos interesses queentão se agitavam no seio da monarquia leonesa, ligada ainda ao novo estado que se formavano ocidente da Península por mil laços que só gradualmente se podiam quebrar. Assim ossucessos ocorridos em Portugal durante as primeiras décadas do século são quase sempredeterminados pelos acontecimentos comuns da Espanha cristã. É o que até aqui temos visto, e
é o que ainda veremos por alguns anos na prossecução desta narrativa. 19
A longa citação acima destaca não apenas o rigor crítico a ser aplicado às fontes mas a
valorização destas diante de qualquer pretensão nacionalista. A Nação era o objeto e sujeito
principal na obra de Herculano, mas os valores nacionais não podiam prevalecer diante da
rigorosa análise documental, pois a História da Nação tinha que estar calcada em fontes
fidedignas e não em manipulações equivocadas desses documentos. Nesta análise crítica, o
auxílio da Diplomática foi fundamental para atestar a veracidade e a credibilidade das fontes
históricas.
Cabe ressaltar que a valorização das fontes não implicava “uma colagem do
testemunho à narração, mas o justo aproveitamento do que realmente interessa para tornar
historiável o documento. O que permite defender que Herculano não se limitou a ‘aplicar’ o
contributo das fontes, mas que soube ‘criar’ as linhas orientadoras do seu pensamento”20.
Em poucas palavras, Herculano formulava suas teorias com base na documentação, porém
não se tornava um mero repetidor das informações contidas nas fontes.
A valorização da crítica documental levou Herculano a questionar um dos mitos
fundadores da Nação Portuguesa, a Batalha de Ourique. A “Questão de Ourique” foi uma das
mais significativas polêmicas envolvendo Alexandre Herculano e diversos setores da
19 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 344 - 345.
20 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a consciência do liberalismo português. Lisboa: Bertrand, 1977. p. 106.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 76/199
74
sociedade portuguesa. No Volume I da “História de Portugal” Herculano, ao analisar os
primeiros anos da monarquia portuguesa, questiona a importância histórica da Batalha de
Ourique, considerando-a como um simples fossado, incursão militar rápida pelos territórios
inimigos, discutindo o seu valor militar dado o reduzido número de guerreiros almorávidas.
Além de questionar a importância do confronto militar considerado a pedra angular da
monarquia portuguesa mediante a análise de fontes como o Chronicon Lamecense, Chronicon
Conimbrense e a Vita S. Theotonii21, Herculano afirma que:
Discutir todas as fábulas que se prendem à jornada de Ourique fora processo infinito. A daaparição de Cristo ao príncipe antes da batalha estriba-se em um documento tão mal forjado,que o menos instruído aluno de diplomacia o rejeitará como falso ao primeiro aspecto (o quefacilmente poderá qualquer verificar no Arquivo Nacional, onde hoje se acha). Parece, na
verdade, impossível que tão grosseira falsidade servisse de assunto a discussões graves.Quem, todavia, desejar conhecer a impostura desse documento famoso, consulte a Memória
de Fr. Joaquim de Santo Agostinho. 22
A violenta reação de setores da sociedade portuguesa, principalmente o clero, deu
início à polêmica que levou Herculano a um longo e desgastante confronto com os seus
opositores, que o acusavam de renegar as tradições pátrias, dentre outras injúrias. O registro
desta acesa polêmica verifica-se nos artigos Eu e o Clero, Considerações pacíficas e Solemnia
Verba23.
Considerando-se alvo de uma conspiração de setores conservadores portugueses,
Alexandre Herculano elaborou a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em
Portugal objetivando “Chamar a juízo o passado, para vermos, também, aonde nos podem
levar outra vez as tendências da reação”24.
O estatuto jurídico da doação do Condado Portucalense ao Conde Henrique por
Afonso VI de Castela foi outro tema contemplado por Alexandre Herculano. Contrariando a
tese até então vigente nos meios jurídicos portugueses de que Portugal seria o dote de D.
Teresa, Herculano afirma que Afonso VI concedeu o domínio hereditário da província ao
Conde Henrique por ocasião do casamento com a filha ilegítima de Afonso VI a partir da
análise do termo DONAVIT na Chronica Adephonsi Imperatoris:
21 A crítica e a análise comparativa das fontes sobre a Batalha de Ourique utilizadas por Herculano estão em HERCULANO,Alexandre. História de Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 430 - 437.
22
Ibidem. p. 658 - 659.23 Reeditadas em Idem. Opúsculos. v.3. 4. ed. Lisboa: Bertrand, [190-].
24 Idem. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América, [198?]. p. 16.v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 77/199
75
A estes raciocínios, fundados em fatos controversos, nenhum argumento, nenhuma autoridadese pode opor senão uma frase do cronista anônimo de Afonso Raimundes, que, falando de D.Teresa, não diretamente, mas por ocasião da guerra de Afonso VII com seu primo AfonsoHenriques, diz: ‘que Afonso VI a casara com o conde Henrique e a dotara magnificamente,dando-lhe a terra portugalense com domínio hereditário’. Este testemunho singular e bastante posterior ao fato provaria, quando muito, que Afonso VI dera a seu genro, em atenção a D.Teresa, o governo de Portugal para si e seus filhos perpetuamente, visto que a hereditariedadeaparece uma ou outra vez nos cargos administrativos. Tal seria, pois, nesse caso a significação
da palavra dote, que então era mui diversa da que hoje lhe damos e correspondia a donatio. 25
Em ambas as teorias elaboradas por Alexandre Herculano destaca-se a valorização do
acervo documental, rigorosamente criticado e analisado, conforme acima apontado. Apesar de
contestar versões consagradas pela historiografia portuguesa anterior, tidas como elementos
basilares da identidade nacional, a posição adotada por Herculano, mesmo contestada pela
historiografia posterior
26
, impõe-se perante as ideias e teorias estabelecidas a priori em benefício das teses calcadas nas fontes.
Aliadas a crítica documental e a erudição, bases da metodologia empregada por
Herculano, os pressupostos teóricos partem de algumas premissas fundamentais.
Em Cartas sobre a História de Portugal , editada em 1842 e tida como uma nota
prévia à História de Portugal , lançada em quatro volumes entre 1846 e 1853, Herculano
apresentou alguns desses pressupostos.
Na primeira das Cartas Herculano deixa claro o seu programa:
Estas Cartas, se merecerem a approvação de vv. ss., poderão algum dia servir, no que tiveremde bom, se o tiverem, de esclarecimento e notas a uma parte da Historia Portuguesa, como euconcebo que ella se deveria escrever: historia não tanto dos indivíduos como da Nação;historia que não ponha á luz do presente o que se deve ver á luz do passado; historia, emfim,que ligue os elementos diversos que constituem a essência de um povo em qualquer epocha,em vez de ligar um ou dois desses elementos, não com os outros que com elle coexistem, mascom os seus affins na sucessão dos tempos, grudados pelo topos chronologicos com massa de
papel feita das folhas da ‘Arte de verificar datas’. 27
A Nação é tida como objeto histórico em detrimento dos indivíduos notáveis, dos reis,
nobres e clérigos. Preocupação essencialmente romântica, a História da Nação ocupa o centro
das atenções de Herculano mas, pergunta-se, qual a definição de Nação para Herculano?
25 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal,t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. t. I. p. 629.
26 Sobre a “Questão de Ourique”, Joaquim Veríssimo Serrão não contesta o valor militar atribuído por Herculano e sim aforma como o historiador encarou uma tradição secular. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a Consciência do Liberalismo Português. Lisboa: Bertrand, 1977. p. 113-120. Quanto ao estado atual dos trabalhos sobre o estatuto jurídico da
concessão de Portugal a D. Teresa, ver SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do Direito Português - Fontes de Direito.Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1985. p. 79-93.
27 HERCULANO, Alexandre. Cartas sobre a história de Portugal. In:_____. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 37 – 38. v.5.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 78/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 79/199
77
intellectual e moral dos seu espírito, dos seus hábitos e costumes, não os conhecemos. E
porque? Porque esse homem é uma abstração: está separado do seu século. 33
A crítica de Herculano indica que o estabelecimento de marcos temporais foi
necessário mas não basta para que se conheça a História, pois falta um elemento fundamental:
o século. Ou, em outros termos, a presença dos fatores sociais que atuaram sobre este
indivíduo, garantindo-lhe existência histórica de fato. A sequência de reis, dinastias, guerras,
indivíduos eminentes, etc. torna-se sem sentido ao deixar de lado o que o autor denomina
Nação: “(...) toda essa existência complexa de muitos milhares de homens a que se chama
nação devia ter uma influencia immensa, absoluta, naquella existência individual do homem
illustre.”34
Abstrair a influência da sociedade ou, como quer Herculano, da Nação é deixar de
lado a existência histórica do indivíduo. Mesmo sendo defensor ferrenho do individualismo,
Herculano não nega, antes reafirma, o peso da sociedade na formação e na História deste
indivíduo. Sem esta face histórica, o indivíduo pode “(...) representar todas as epochas,
tomar todas as physionomias, nada representa, a nada pertence”35, ou seja, perde a sua
individualidade.
A ênfase na história da sociedade é reforçada por Herculano quando afirma “ (...)
busquemos a historia da sociedade e deixemos por um pouco a dos indivíduos. (...) a historiados costumes, das instituições, das idéas, é que há de caracterisar os indivíduos ainda
quando quizermos estudar exclusivamente a vida destes (...)”36
Esta citação, além de reforçar a importância da sociedade na formação do indivíduo e
garantindo-lhe historicidade, deixa claro o significado de História da Sociedade ou História
Social para Herculano, calcado em três bases: costumes, instituições e ideias. Das três bases, o
destaque maior recai sobre o estudo das instituições. No entender de Humberto Baquero
Moreno, a História, para Herculano, “ situa-se fundamentalmente numa perspectiva
33 HERCULANO, Alexandre. Cartas sobre a história de Portugal. In:______. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p.101.v.5.
34 Ibidem. 101 - 102.
35 Ibidem. p. 102.
36 Ibidem. p. 105.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 80/199
78
institucional. Mais propriamente de que história econômica e social, deverá considerar-se
numa história das instituições medievais portuguesas.”37
História Social, desta forma, é entendida como História das Instituições tendo em vista
que a sociedade, muitas vezes associada quando não tida como sinônimo de nação e
condicionante na formação do indivíduo, tem nas instituições a base da sua organização.
Na 5ª Carta a preocupação de Herculano é propor e justificar uma nova cronologia da
História de Portugal. Ainda utilizando a proposta de Thierry, Herculano propõe a divisão da
história portuguesa em dois grandes ciclos: a Idade Média e o Renascimento 38. Conforme
apontou Cândido Beirante, Herculano trabalhava, de fato, com três grandes ciclos. Além dos
primeiros, acima indicados, há um terceiro ciclo denominado Regeneração39. Ainda segundo
Cândido Beirante a concepção de ciclos históricos adotada por Herculano para propor umanova periodização da história portuguesa é uma contribuição de Vico, que afirmava ser a
história de cada nação dividida em três idades históricas: divina, heroica e humana. Esta
análise tripartite do processo histórico para Vico foi empregada por Herculano ao estabelecer
uma nova periodização para a história nacional portuguesa, cujas etapas foram acima
nomeadas: Idade Média, Renascimento e Regeneração40.
A Idade Média, primeiro período da história de Portugal, teve início com o início do
progresso de separação do então Condado Portucalense do reino de Leão na primeira décadado século XII, especificamente a partir da morte de Afonso VI de Leão. É nesse período que
tem início a história portuguesa pois, no entender de Herculano, “tudo o que fica além desta
data pertence, não a nós, mas á Hespanha em geral.”41
A transição do primeiro para o segundo ciclo se localiza no final do século XV. Para
Herculano “a virilidade da nação portuguesa completou-se nos fins do século XV, e a sua
velhice, a sua decadência como corpo social, devia começar imediatamente”42. Os fatos que
marcam esta transição do apogeu para a decrepitude da nação podem ser resumidos em quatro
37 MORENO, Humberto Baquero. Herculano e a história social e econômica. Academia portuguesas de histórias deHISTÓRIA. Alexandre Herculano a luz do nosso tempo: ciclo de conferências. Lisboa: Academia Portuguesa de História,1977. p. 179.
38 HERCULANO, Alexandre. Cartas sobre a História de Portugal. In:______. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p.128 -129.v.5
39 BEIRANTE, Cândido. Alexandre Herculano: as faces do poliedro. Lisboa: Vega, 1991. p. 91.
40 Ibidem. p. 84.
41 HERCULANO, Alexandre. Cartas sobre a história de Portugal. In:______. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p.129. v.5
42 Ibidem. p. 131.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 81/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 82/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 83/199
81
representam os interesses diversos das diversas classes – e dizei-nos a que epocha vos
parecem quadrarem taes caracteres? Indubitavelmente á nossa. 52
Historia Magistra Vitae ou Historia Specullum Vitae? Herculano via desta forma a
Idade Média ou estava projetando retrospectivamente as conflituosas décadas de 1830 e
1840? Sem dúvida! Mas atente-se para a primeira frase da citação: “abstraiamos da quase
constante antinomia entre a vida civil da idade-média e a vida civil actual e consideremo-las
ambas unicamente nas suas tendências políticas”. Herculano tem uma clara noção das
distinções institucionais que regiam as vidas civis dos dois períodos. Afinal, o rigor crítico da
História de Herculano não tolerava esse anacronismo evidente. Contudo o que mais se destaca
nesta longa citação é que o autor aponta ambos os momentos históricos caracterizados pelo
embate entre grupos sociais, a disputa pelo poder por facções políticas, sociais e ideológicas
que buscam sobrepor-se às demais. Enfim, o que o próprio Herculano define como “a
variedade”, a diversidade de interesses tipicamente medieval e que foi sufocada pela
monarquia absoluta53, levando a nação ao declínio apesar das conquistas ultramarinas, pois
“essas classes que degeneravam e se corrompiam por falta de vida política”54 diante da
unidade política e a anulação da atuação política dos grupos sociais, marcos da transição do
primeiro para o segundo ciclo, alvos de contestação pela Revolução de 1832-34, que
restabeleceu a pluralidade política no seio da sociedade portuguesa ao extinguir o AntigoRegime renascentista.
A fundamentação para ciclos históricos portugueses não foi a única contribuição do
pensamento de Vico para a obra de Herculano. A partir destes ciclos, Herculano buscou uma
explicação para a dinâmica da História ou uma filosofia da História, também uma
preocupação de Vico conforme o próprio Herculano cita, a seguir.
Pressupor a existência de uma filosofia da História na obra de Herculano caracteriza-
se como um ato aparentemente contrário às suas afirmativas. Nas Cartas a Oliveira Martins,Alexandre Herculano afirma que:
A generalização, a síntese, são, em absoluto, cousas excelentes: são a ciência na sua formadefinitiva e aplicável. Mas, para generalizar e sintetizar, é necessário haver que. Ora, ahistória, na significação mais ampla da palavra, ainda não possui elementos suficientes para ageneralização. Desde a paleontologia e a etnografia, até a história das sociedades modernas,há muitos fatos adquiridos indubitável e indisputadamente para a ciência; mas há muitos mais
52 HERCULANO, Alexandre. Cartas sobre a História de Portugal. In:______. Opúsculos. 4. ed., Lisboa: Bertrand, [190-]. p.
141 - 142. v.5.53 Ibidem. p. 144.
54 Ibidem. p. 133.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 84/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 85/199
83
número, são manifestações do sentimento de dignidade e liberdade humanas, do princípiosubjetivo ou de consciência. Fatos ambos inegáveis e indestrutíveis, a grande questão social é
equilibrá-los, e não tentar o impossível, pretendendo anular um ou outro. 58
Elemento causal da História, a luta constante entre o princípio da dignidade, subjetivo,e o princípio da desigualdade, material, evidencia-se em todo fato histórico. Na Vª Carta
Herculano, já em 1842, esboçava esta teoria ao citar a transição do primeiro para o segundo
ciclo. Ainda não se verifica a presença dos princípios da dignidade e da desigualdade, mas os
grupos sociais e a menção às instituições que as representam estão presentes “(...) o elemento
monarchico foi gradualmente anullando os elementos aristocrático e democrático, ou, para
falar com mais propriedade, os elementos feudal e municipal (...)”59.
Os elementos aristocrático ou feudal estão associados ao princípio da desigualdade,enquanto os elementos democrático e municipal associam-se ao princípio da dignidade.
Para Herculano o equilíbrio entre os dois princípios (e os elementos que a eles se
associam) era a grande questão, o objetivo principal a ser alcançado. Ambos tinham que
coexistir no interior da sociedade, pois representavam anseios de grupos sociais representados
por instituições, sendo as disputas entre ambos a parte essencial da dinâmica histórica. Para
que este equilíbrio pudesse ocorrer, estes grupos/elementos/instituições/princípios deveriam
ter atuação política, representação, capacidade de mobilização frente ao Estado. A anulação
política de ambos, conforme ocorrido a partir do final do século XV com a centralização
política nas mãos do monarca, não estabeleceu este equilíbrio e sim a subordinação destes
diante do Estado Moderno, paralisando a dinâmica social e histórica ao interromper o embate
entre os dois princípios.
Este ponto de vista não significa que Herculano fosse um defensor da república. Sua
crítica era voltada à monarquia centralizadora, típica do Renascimento, cerceadora da atuação
política dos grupos sociais e da subordinação das instituições ao Estado centralizado,
desligando-as do seu caráter representativo destes grupos sociais. Conforme foi mencionado
no capítulo anterior e será exposto no capítulo seguinte, a monarquia tinha um papel decisivo
na organização social defendida por Herculano, pautada pelo equilíbrio entre os dois
princípios.
A Intencionalidade do Ato Discursivo História
58 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.3. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 310 - 311.
59 Idem. Cartas sobre a História de Portugal. In:______. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 132.v.5
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 86/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 87/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 88/199
86
transformações da conjuntura histórica, dialogando com a literatura europeia sem, no entanto,
transferir os modelos estrangeiros, sendo pois uma “necessidade que sentia o gênio de beber
as suas aspirações num mundo de ideias análogas às dos nossos tempos”67, normatizando o
“engenho” do artista para evitar a repetição do “caos” que ocorria no aspecto político da
produção literária68. Neste sentido, a construção de uma literatura eminentemente nacional,
cuja função é veicular os bons costumes cívicos, segundo a ótica romântica, constituindo-se
num elemento formador da vida civil, amplia o grau de participação política do povo junto ao
Estado Liberal português.
Diante da função social da literatura, para Alexandre Herculano, duas questões se
impõem: O que eram os “bons costumes cívicos” defendidos pelos românticos? Onde se
encontravam? Na ótica do autor, os “bons costumes cívicos” correspondiam ao espírito nacional, às
origens da Nação, a sua História, levada ao público para que dela extraísse exemplos e valores
a serem aplicados no presente, na “regeneração” nacional, como a moral, a religiosidade, as
instituições e costumes. Para Alexandre Herculano, assim como para os demais românticos
portugueses, a História fornecia o paradigma para a construção da nova sociedade portuguesa,
cabendo à literatura e ao ensino público, outra bandeira do Romantismo, o papel de
divulgadores destes valores. Os valores do passado, fundamentais para a construção do futuro,encontravam-se nas tradições folclóricas populares, desprezadas pelo Classicismo,
constituindo a “alma” ou “índole nacional ”, segundo as palavras de Alexandre Herculano69.
O paradigma para a construção de uma sociedade portuguesa antenada com o
desenvolvimento europeu, de uma “Civilização Liberal” portuguesa, encontrava-se no próprio
povo, o “grande livro português”, segundo Almeida Garrett, dono de sua vontade política,
sendo necessário que este mesmo povo conhecesse seu passado para exercer plenamente a sua
própria condução política.A imprensa portuguesa do século XIX foi um grande veículo da literatura romântica e
dos valores por ela transmitidos. Os romances históricos de Herculano foram inicialmente
publicados como folhetins, em jornais, a exemplo de O Panorama e O Repositório Literário
67 HERCULANO, Alexandre. Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o trilho que hoje ela tem a seguir? In ______.Opúsculos. 2.ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 6 - 7. v.9.
68 Idem. Poesia: imitação, belo e unidade. In: ______. Op. cit. p. 23 – 24.
69 Idem. O bobo. Lisboa: Ulisseia, [198-?]. p. 47.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 89/199
87
que, mesmo após a publicação em livro, foram um sucesso de vendas 70. Assim como outros
nomes de destaque do Primeiro Romantismo português, Alexandre Herculano atuou como
formador de opinião e divulgador de ideias, tendência comum aos românticos europeus. Para
Antônio Saraiva e Oscar Lopes, Alexandre Herculano era um “escritor sintonizado com a
grande massa do público, dando expressão a aspirações coletivas, sentindo-se condutor da
opinião pública e evidenciando essa posição em seu estilo altissoante e profético”71.
Em síntese, a literatura para Alexandre Herculano consistia num instrumento de
educação para o povo, tornando-se o “mel na borda do vaso para beber o remédio”72. Em
outras palavras, a literatura se tornava atrativa e agradável para o leitor: esse era o objetivo da
missão civilizadora romântica de Herculano.
Alexandre Herculano escreveu três grandes romances, O Bobo (1843), Eurico, oPresbítero (1844) e O Monge de Cister (1848), e uma série de contos reunidos em Lendas e
Narrativas (1851).
O Bobo
Primeiro romance histórico de Alexandre Herculano, primeiramente publicado nas
páginas de O Panorama em 1843, O Bobo é o romance histórico de Herculano que apresentamais clara e completamente a função social da literatura e os valores que buscava veicular
entre a sociedade portuguesa do século XIX, exigindo uma análise mais minuciosa.
O Bobo possui um forte apelo nacionalista, evidente pelo tema da obra: as origens de
Portugal. Nas demais obras romanescas de Alexandre Herculano o nacionalismo manifesta-se
de forma menos evidente. Em Eurico, a trama se passa durante a invasão moura sobre a
Península Ibérica, retratando a reação dos Visigodos inspirada num “ sentimento nacional ”
ibérico
73
, onde o “Cavaleiro Negro” Eurico tem participação de destaque ao reunir duasvirtudes: o valor militar e a religiosidade cristã. Em “O monge de Cister ”, “romance da
70 Segundo SARAIVA, António José ; LOPES, Oscar. História a literatura portuguesa. 12. ed. Porto: Porto Editora, 1982. p.720, as oito edições da obra EURICO, de Alexandre Herculano, entre 1844 e 1880, constituem um fato significativo nomercado editorial português, sendo, segundo FRANÇA, José-Augusto. O romantismo em Portugal . 2. ed. Lisboa: Horizonte,1993. p. 133, “um sucesso sem precedentes”.
71 Ibidem. p. 720.
72 SANTOS, Maria de Lourdes C. L. dos. Intelectuais portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa: Presença, 1988. p. 168.
73 Apesar de retratar este sentimento nacional tanto em “Eurico” como em “O bobo”, Alexandre Herculano questiona aexistência deste sentimento nacional, afirmando que o sentido de unidade, principalmente ibérico, dava-se no aspectoreligioso, demonstrando certa ambiguidade neste sentido. Porém, se considerarmos as questões levantadas pelos capítulosanteriores, este nacionalismo se enquadra nos pressupostos ideológicos do autor e do próprio romantismo português.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 90/199
88
época de D. João” publicado em 1848, descreve um momento histórico em que a
interferência de Castela, associada a outros fatores como a sucessão monárquica, levou à
Revolução de Avis. Em “ Lendas e Narrativas”, a descrição dos costumes e de lendas aponta
para uma identidade portuguesa no campo cultural.
Levando-se em consideração a função da literatura como veículo das tradições
folclóricas populares, da história portuguesa, fornecendo um modelo para a “Regeneração”
nacional, O Bobo retrata a origem nacional num momento histórico em que os românticos
buscavam um renascer português, resgatando valores medievais como o surgimento de um
sentimento de identidade comunal e, por sua vez, nacional, fato capital para o estabelecimento
da Monarquia em Portugal, de acordo com a Vª Carta sobre a História de Portugal, de
Alexandre Herculano, conforme visto anteriormente.O tema do romance, a origem de Portugal, coincide com os pressupostos acima na
medida em que narra o início de um período de grandeza nacional, exemplo de grande
significado para uma Nação que tenta reerguer-se de uma etapa de decrepitude, conforme
Alexandre Herculano afirma na Introdução da obra:
Pobres, fracos, humilhados, depois dos tão formosos dias de poderio e renome, que nos restasenão o passado? Lá temos os tesouros dos nossos afectos e contentamentos. Sejam as
memórias da pátria, que tivemos, o anjo de Deus que nos revoque à energia social a aos santosafectos da nacionalidade. 74
Qual memória mais grata e mais significativa que a origem da Nação, tornada possível
pelas armas e pela honra portuguesa contra um usurpador “estrangeiro”, que se mostrava
disposto a destruir a obra do Conde Henrique, levada adiante pelo seu filho Afonso
Henriques?
A trama do romance se desenrola no Castelo de Guimarães, na corte da rainha Dª
Teresa, aliada de D. Peres de Trava, Conde galego que caiu nas graças da rainha após a mortedo Conde Henrique e que, segundo a obra, governava Portugal em nome de Dª Teresa. A
aliança entre ambos provocou o rompimento do então Infante Afonso Henriques, filho da
rainha com o Conde Henrique, que passou a reivindicar seus direitos sobre Portugal, iniciando
o conflito que culminou na Batalha de São Mamede, nos arredores de Guimarães, onde o
partido do príncipe sagrou-se vencedor. O Bobo narra os acontecimentos anteriores a esta
batalha, como as articulações políticas e militares de D. Peres de Trava e a convocação da
74 HERCULANO, Alexandre. O bobo. Lisboa: Ulisseia, [198-?]. p. 47.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 91/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 92/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 93/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 94/199
92
organização comunal e da importância dos setores mercantis, predominavam privilégios que
restringiam a liberdade individual, ideia motriz do pensamento de Alexandre Herculano, que
defendia uma função conscientizadora da literatura, conforme vimos anteriormente,
denunciando crimes e injustiças contra o povo e criando condições para que este assumia o
comando político. Nesta linha de raciocínio, a representação do discurso e a atuação do truão
D. Bibas destacadas pelo autor se identificam com a atuação do movimento liberal-romântico
português, atuante em Portugal desde a primeira década do século XIX e onde a imprensa e a
literatura possuíam papel decisivo. Na obra, D. Bibas aponta o caminho para a vitória do
Infante ao indicar a entrada secreta do Castelo de Guimarães. A literatura romântica, em
essência, não tinha a função de apontar um “caminho” para a “regeneração” portuguesa?
Retomando a análise de Bakhtin, o significado figurado de D. Bibas demonstra umarepresentação da atuação política do movimento liberal - romântico na “segunda origem”
portuguesa, a guerra civil de 1832 -1834, uma “máscara” utilizada pelo autor, integrante do
exército liberal de D. Pedro, com o fim de intervir na trama sem envolver-se pessoalmente,
inserindo na sua representação da origem nacional um personagem presente em sua realidade
histórica, o liberalismo - romantismo.
Eurico, o Presbytero
Romance histórico que narra “os tempos homéricos da Península”82, a invasão
muçulmana sobre a Península Ibérica e a Reação dos Visigodos, pano de fundo para o
romance impossível de Eurico, guerreiro visigodo que abraçou o hábito religiosos diante da
impossibilidade de casar-se com a nobre Hermengarda.
Na parte final da obra, Herculano redigiu uma série de notas que descrevem uma
sequência de fatos, instituições e costumes do período visigótico, evidenciando a preocupaçãodo autor em torná-los conhecidos pelo público, fato que remete à preocupação em difundir
conhecimentos históricos.
De acordo com o pensamento de Herculano, este período que antecede em muito o
surgimento de Portugal possui ligação direta com a questão da formação da Nação, tendo em
vista que:
Portugal, porém, nascido recentemente, incluído d’antes no todo das várias sociedades
peninsulares, fundado em fragmentos do solo das antigas divisões territoriais da Espanhacéltica, púnica e romana, tronco, enfim, arrancado da arvore leonesa, não achava um só
82 HERCULANO, Alexandre. Eurico, o Presbytero . 34. ed. Lisboa: Bertrand, [19--?]. p. 296.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 95/199
93
parentesco legítimo e exclusivo nos tempos anteriores aos da conquista goda, ou maisrigorosamente aos da restauração cristã. Podia dizer que também de algum modo se prendiaao passado; mas tecer com verdade e exacção a sua arvore genealógica especial, isto é que lhe
era impossível. 83
Neste sentido, a formação da nacionalidade portuguesa está enraizada nas sociedades
peninsulares da Reconquista Ibérica. Logo, Eurico, o Presbítero remete ao período onde se
encontram os elementos que viriam a forjar a identidade nacional portuguesa.
O Monge de Cister
A trama se desenrola na “ Épocha de D. João I ”, conforme indica o subtítulo da obra,
tendo como núcleo a vingança de Frei Vasco, outrora cavaleiro da Ordem de Avis que, ao
retornar da batalha de Aljubarrota (1385), encontra seu pai morto e sua irmã desonrada.
Então, o cavaleiro abraça o hábito para melhor concluir sua vingança pessoal.
Logo nas páginas iniciais da obra, Alexandre Herculano demonstra a sua preocupação
com a preservação e divulgação do passado nacional:
Mas seja a historia ou novella o fructo dos trabalhos daquelle que conserva o passado, que seapresse! (…) Que se apresse aquelle que quizer guardar alguns fragmentos do passado para as
saudades do futuro; porque a illustração do vapor e do atheismo social ahi vai livelando o quefoi pelo que é, a gloria pela infamia (…) 84
O romance remete a mais um período de grande significado Nacional, a instituição da
Dinastia de Avis, que ascendeu ao poder frente aos perigo de sujeição do território nacional
frente a um tirano ou força estrangeira.
Apesar de este período não ter sido objeto da produção histórica de Herculano, seu
significado para a Identidade Nacional portuguesa é relevante, tendo em vista que se
considera a instituição da Dinastia de Avis como uma afirmação da soberania nacional frenteao perigo castelhano.
Antônio José Saraiva e Oscar Lopes destacam O Monge de Cister como uma obra de
grande importância na produção literária de Herculano, pois supre uma lacuna nos estudos
históricos do autor, uma vez que:
à falta de um estudo histórico, constitui uma exposição relativamente completa de ideias deHerculano sobre esta época - a época em que, ao seu ver melhor se exprimira a índole
83 HERCULANO, Alexandre. História de Portuga, t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. t. I. p. 30.
84 Idem. O Monge de Cister . 17. ed., Lisboa: Bertrand, [19--?]. p.9 -10. v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 96/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 97/199
95
caros a Herculano, conforme indica a sua retirada para Vale dos Lobos em 186787, a segunda
narra uma experiência pessoal do autor, comum a grande parcela dos soldados liberais que
lutaram no exército de D. Pedro na Guerra Civil de 1832/1834: a amargura do exílio,
provação que, segundo supomos, era necessária para o amadurecimento político e cultural dos
exilados portugueses e que tiveram participação efetiva na instauração do Estado Liberal
português.
A Nova Síntese Histórica de Herculano
Retomando a temática das intenções de Herculano no uso do ato discursivo História,
vejamos a segunda intenção citada, criação de uma nova síntese histórica e deslocamento dasíntese anterior.
Para a criação de uma nova História era necessário contestar e desacreditar a tradição
histórica anterior e formular uma nova síntese histórica. A disputa política entre liberais e
tradicionalistas também ocorria no campo das ideias, no contexto linguístico das primeiras
décadas do Governo Constitucional português, e as polêmicas envolvendo as duas sínteses
históricas, a tradicional e a liberal, reforçam esta afirmativa.
Acima foram mencionadas as críticas que Herculano fez quanto à Batalha de Ourique(1139) como marco fundador da nacionalidade portuguesa e a fundamentação jurídica da
separação de Portugal do Reino de Leão. Nos dois casos Herculano buscou amparo na análise
documental para justificar seu ponto de vista.
A aparição de Cristo para Afonso I antes da Batalha de Ourique, indicando a vitória
das armas cristãs, o grande número de guerreiros mouros e o valor militar e territorial do
embate são os pontos contestados por Herculano à luz da análise documental. O teor religioso
de Ourique, nitidamente inspirada na conversão de Constantino em 312, garantia umachancela mística à independência de Portugal e o legitimava perante as pretensões
hegemônicas de Castela e, posteriormente, de Espanha. Além de justificar a independência de
Portugal, esta visão do fato atribuía uma relevância significativa para o Providencialismo e
para uma concepção de monarquia fundamentada por este mesmo Providencialismo que,
apesar de ser aceito por Herculano, católico porém anticlerical, tinha que ser manifesto por
meios concretos que fossem passíveis de uma análise racional88. A vitória das armas
87 Sobre a relação entre a vida rural e Alexandre Herculano, ver SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a consciência doliberalismo português. Lisboa: Bertrand, 1977. p. 213-253.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 98/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 99/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 100/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 101/199
99
Alumiada pelo clarão do Evangelho triunfante, a idade média, época da fundação dasmodernas sociedades da Europa, oferece no complexo das suas instituições e tendências umcomeço de solução ao problema que o mundo antigo não soubera resolver. Causas diversas prepararam, durante os séculos XIV e XV, o estabelecimento das monarquias absolutas, queimpediram o desenvolvimento lógico daquelas instituições, na verdade bárbaras eincompletas, mas que, apesar de sua imperfeição e rudeza, continham os elementos doequilíbrio entre a desigualdade e a liberdade. Longe de negar ou condenar com cólera infantilas diferenças de inteligência, de força material e de riqueza entre os homens, ou de tentarinutilmente destruí-las, a democracia da idade média, representante do princípio da liberdade,confessava-as, aceitava-as plenamente, aceitava-as até em demasia; mas por isso mesmomostrava instintos admiráveis em organizar-se e premunir-se contra as tendências anti -liberais dessas superioridades. Foram semelhantes instintos que produziram os concelhos ou
comunas. 94
De acordo com a teoria dos dois princípios criada por Alexandre Herculano, os
Concelhos constituem-se num elemento de equilíbrio no embate entre os princípios de
dignidade e de desigualdade, caracterizando o estágio ideal da sociedade, que foi posto delado pelo processo de centralização ocorrido a partir das Cortes de Évora, onde o equilíbrio
entre os dois princípios foi substituído pela anulação de ambos diante da centralização política
absolutista.
Tendo em vista a função social da História, “ciência útil pela sua aplicação” às
questões sociais, os Concelhos medievais, na visão de Alexandre Herculano, tornam-se a
chave para a solução dos graves acontecimentos que afligem tanto Portugal quanto a Europa
no século XIX, onde o princípio da desigualdade era representado pelas forças sociais e
políticas tradicionalistas e o princípio da dignidade pelos movimentos populares
democráticos, como a Revolução de Setembro de 1834 em Portugal. Os Concelhos como
ponto intermediário e de equilíbrio entre o despotismo do indivíduo e a ditadura da maioria,
merecendo lugar de destaque entre os objetos históricos construídos por Herculano, constitui-
se num ato discursivo de primeira grandeza no contexto linguístico contemporâneo ao autor.
Conforme vimos anteriormente, as instituições eram consideradas por Herculano
como a base da organização da sociedade. Desta forma, as instituições municipais devem ser
entendidas como base da sociedade portuguesa medieval, não apenas por estabelecer um
equilíbrio entre os dois princípios, mas por representar um grupo social específico: a classe
média ou terceiro estado. Estudar os concelhos é, para Herculano, estudar a classe média, cujo
papel na sociedade medieval era relevante, bem como no século XIX.
Pesquisar os Concelhos como instituições representativas da classe média requeria a
análise de documentos históricos que não apenas comprovavam a conexão entre municípios e
terceiro estado, mas descreviam o estabelecimento e a regulamentação dos Concelhos: os
forais.
94 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 313 - 314.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 102/199
100
Assim sendo, estes três objetos históricos relevantes para Herculano, aqui entendidos
também como atos discursivos, Classe Média (grupos social representado), Forais
(instrumentos jurídicos para esta representação) e os Concelhos (instituições que efetivamente
representavam a primeira e eram regulados pelos segundos), não devem ser analisados como
conceitos isolados a sim nas suas interações, sob pena de perdermos de vista a importância
histórica e política atribuída por Herculano a estes atos discursivos e as intenções do autor em
utilizá-los.
2.1.2 Classe média
Nas primeiras páginas da obra A Era das Revoluções, Eric Hobsbawn elenca umconjunto de conceitos que foram criados ou adquiriram novos significados a partir das últimas
décadas do século XVIII e da primeira metade do XIX e que servem de referências para o
momento histórico sobre o qual a obra se debruça. Um destes termos é Classe Média, que
mereceu uma nota do tradutor, dada a variedade de significados atribuída pelo autor ao longo
da obra, onde, por vezes, é associada ao grupo social intermediário, localizado entre as
camadas mais ricas e as mais pobres das sociedades, e/ou à burguesia, no todo ou em parte95.
A esta camada intermediária das sociedades também costumam designar outros
conceitos como Povo, Burguesia, Terceiro Estado, Braço do Povo, dentre vários outros.
A importância do conceito Classe Média e a sua polissemia foram decorrentes das
profundas transformações ocorridas no período destacado. Da árdua transição dos governos
fundados no binômio Trono-Altar para os governos representativos; dos ordenamentos
jurídicos calcados nas Coroas para os fundamentos legais fundados nas Cartas
Constitucionais; da sociedade que se pretende tripartite e estamental para uma sociedade
plural e dividida em classes e, por fim, nos embates entre as modalidades de voto, censitária
ou universal, que tiveram lugar por ocasião da vitória dos grupos liberais, a Classe Média e os
termos correlatos estiveram presentes nos discursos e embates políticos em que, de acordo
com as diferentes concepções da dinâmica social, a Classe Média era tida ora como próxima
aos grupos sociais dominantes ora prestes a ser absorvida pelas camadas sociais inferiores96.
Para Alexandre Herculano a Classe Média não era apenas grupo social intermediário e
de onde teve origem. “ Burguês dos quatro costados, liberal ferrenho e proprietário, ainda
95
HOBSBAWN, Eric. A era das revoluções. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2009. p. 19 - 20.96 SANTOS, M. de Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa: Presença,1988. p. 55.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 103/199
101
que pequeno”97, Herculano entendia a Classe Média como o principal grupo social, a ponto de
elegê-lo como ato discursivo.
Borges Coelho realça a presença da Classe Média na historiografia de Alexandre
Herculano, resultado de uma História Social específica, já que era representada pelas
instituições concelhias, e “(...) a classe média torna-se o herói político de Herculano onde
quer que ela se encontre: no Império Romano ou ressuscitado como Lázaro do túmulo ao
sopro da liberdade do município medieval”98.
A Classe Média é associada à concepção de povo, termo caro aos românticos
portugueses. Especificamente em Herculano, o povo consiste nos pequenos proprietários
urbanos e rurais99, grupo social que consistia no pilar da nova ordem liberal portuguesa100. Na
definição de Herculano para povo a questão da propriedade é central, pois, em conjunto como trabalho, define este grupo social:
Pour moi, le peuple est quelque chose de grave, de intelligent, de laborieux; ce sont ceux qui possèdent et qui travaillent, despuis l´humble métayer, ou le laboureur de sonpropre champ, jusqu’au grand propriétaire; despuis de lê colporteur et lê boutiquier jusqu’au marchand em
gros; despuis l’homme de métier jusqu’au fabricant. 101
A definição de Classe Média, povo e burguesia como aqueles que possuem e que
trabalham está associada aos valores do Romantismo. Segundo Antônio Saraiva e OscarLopes, o Romantismo português possuía um compromisso ideológico: Era “antifeudal ” e
propunha a Classe Média proprietária como base das instituições102. Pressupomos que o
caráter “antifeudal ” mencionado por Saraiva e Lopes corresponde à base senhorial da
Monarquia Absolutista, considerada como um obstáculo para o desenvolvimento português e
até mesmo um elemento inibidor da liberdade econômica, defendida pelos liberais
românticos. Em Herculano, a abolição dos direitos senhoriais por Mouzinho da Silveira em
1832 significou uma genuína revolução social em Portugal103
. Esta medida, na óticaromântica, possibilitaria a ampliação do número de proprietários e consequentemente uma
97 MARTINS, Oliveira. Alexandre Herculano. Lisboa: Horizonte. [198-?]. p. 121.
98 COELHO, Antônio Borges. Questionar a História. 2. ed. Lisboa: Caminho. 1983. p. 252.
99 HERCULANO, Alexandre. Da instituição das caixas econômicas. In: ______. Opúsculos. 5.ed. Lisboa: Bertrand, 1907. p.151-187.v.1.
100 SARAIVA, Antônio José & LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 12.ed. Porto: Porto Editora, 1982, p. 720.
101
HERCULANO, Alexandre. Mousinho da Silveira. In: ______. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand, 1907. p. 193 - 194. v.2.102 SARAIVA, Antônio José ; LOPES, Oscar. Op. cit. p. 720.
103 HERCULANO, Alexandre. Mousinho da Silveira. In: ______. Opúsculos. 4. ed. Lisboa: Bertrand, 1907. p. 167-217.v.7.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 104/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 105/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 106/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 107/199
105
deveria ser feito pelos bancos municipais118. A dicotomia entre capital e trabalho, causada
pela má distribuição da propriedade e da inserção do maquinismo na produção119, seria
equacionada pela difusão da propriedade entre os trabalhadores. A proposta de difusão da
propriedade seja através do incentivo à poupança ou através da enfiteuse era entendida como
uma segunda etapa da nacionalização dos bens eclesiásticos de 1834, já que a proposta inicial
de Mouzinho da Silveira era abolir os direitos feudo-senhoriais que incidiam sobre as
propriedades, possibilitar o aumento da produtividade agrícola e alavancar a economia
nacional. Era necessário retomar esta proposta, esquecida quando os bens nacionais foram
transferidos para aliados do regime liberal e, por isso, mantendo a concentração fundiária e a
falta de investimentos no setor. A proposta de Herculano buscava retomar a proposta inicial
de Mousinho da Silveira e buscava evitar a dicotomia entre capital e trabalho, que resultavaem condições de vida degradantes para o trabalhador e o impedia de acumular recursos e ter
acesso à propriedade, mantendo-o na miséria e impossibilitando a sua ascensão social.
A preocupação de Herculano em ampliar a Classe Média, defender os seus direitos e
garanti-la como base das instituições está inserida no conjunto de propostas reformistas que,
em linhas gerais, pode ser observada desde o Período Pombalino. Segundo Magalhães
Godinho, “às sociedades que não fizeram as revoluções industriais, que por ela não foram
modeladas mesmo se integram algumas infiltrações, põe-se o problema de recuperar talatraso e de conseguir entrar a pleno na nova era humana que se avizinha”120.
O atraso português em relação à Europa era o motivo de preocupação dos intelectuais
portugueses. Possibilitar que Portugal superasse o “cadaveroso reino”, expressão cunhada por
Ribeiro Sanches para se referir às disparidades entre Portugal e a Europa121, era uma
necessidade urgente e foi objeto de reflexão de diversos intelectuais portugueses do século
XVIII122 até meados do século XX123.
118 Um exemplo de banco municipal foi a Caixa de Socorros Agrícolas, proposta pela Câmara Municipal de Belém, então presidida por Herculano em 1851. Cf. HERCULANO, Alexandre. Da instituição das caixas económicas In ______.Opúsculos. 5. ed. Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 192. v.1..
119 Ibidem. p. 202.
120 GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 2.ed. Lisboa: Arcadia, 1975. p. 118.
121 BEIRANTE, Cândido. A ideologia de Herculano. Santarém: Edição da Junta Distrital, 1977. p. 44 .FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. p. 202.
122 Não é nossa pretensão discutir as propostas reformistas dos séculos XVIII ao XX e sim traçar um rápido panorama ondeas ideias de Herculano se inserem. Sobre as propostas reformistas desse período CARVALHO, Flávio Rey de. Umiluminismo português? São Paulo: Annablume, 2008. oferece uma visão mais atualizada sobre o tema.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 108/199
106
A estrutura econômica portuguesa por ocasião do estabelecimento do Estado Liberal
era pouco desenvolvida e estava em franca defasagem em comparação aos países da Europa
Ocidental124, tendo a agricultura baixa produtividade, o comércio em crise desde a
independência do Brasil e a indústria praticamente inexistente. A concentração fundiária e a
imposição de direitos senhoriais sobre as propriedades tais como os morgadios e vínculos,
dificultava o investimento no campo e a “ promoção social das grandes massas”125. Os
entraves e o atraso econômico e social português justificavam a afirmativa de Oliveira
Martins para quem “a falta de uma base social sobre que levantar o edifício
representativo”126 emperrava os esforços para estabelecer o Estado Liberal dada a incipiência
do grupo social que lhe garantiria sustentação, a Classe Média. E daí a necessidade de criar
condições para a ampliação e fortalecimento deste grupo que, de acordo com Herculano, seria possível através das medidas acima descritas e justificada pelo resgate do passado glorioso
deste grupo e de suas instituições representativas.
O herói-Classe Média de Herculano, citado por Borges Coelho, possui um passado
glorioso, defensor das liberdades e do Reino português num período crítico de sua existência.
Segundo Joel Serrão, “(...) o mérito incontestável de Herculano consistiu em, de acordo com
as directrizes da melhor história do seu tempo europeu, ter delineado uma prospecção das
origens do Terceiro Estado português”127
. Braço armado, amparo político, sustentáculo econômico que por fim foram sufocados
a partir de D. João II quando deixou de ter voz política após as Cortes de 1481. Para
Herculano, a Classe Média deve ser reconstruída através de um aparato histórico com base em
em critérios científicos, atentando-se para as instituições que garantiam a sua atuação política
e promoviam o equilíbrio entre os demais grupos sociais, os Concelhos e os Forais. E a partir
desta reconstrução a Classe Média e as instituições que a representam formam os alicerces da
Nação e de sua regeneração. Estava nas mãos da Classe Média construir o futuro através dosmeios necessários, cujas atribuições encontravam-se nos Concelhos e nos Forais.
123 Não podemos deixar de destacar as críticas feitas ao atraso português feitas por Antero de Quental na sua conferênciaCausas sobre a Decadência dos Povos peninsulares nos Últimos Três Séculos de 1871. Sobre os intelectuais que sededicaram a esta temática no século XX, ver FALCON, Francisco José Calazans. Op. cit. p. 202 et seq.
124 Sobre esta defasagem econômica e tecnológica, ver BEIRANTE, Cândido. A ideologia de Herculano. Santarém: Ediçãoda Junta Distrital, 1977. p. 44.
125 Ibidem. p. 44.
126 Apud GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 2. ed. Lisboa: Arcadia, 1975. p. 151.
127 SERRÃO, Joel. Para uma perspectiva da historiografia portuguesa contemporânea (1800/1940). In: MARTINS, Oliveira. Alexandre Herculano. Lisboa: Horizonte, [198-?]. p. 15.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 109/199
107
2.1.3 Concelhos
Os municípios portugueses têm uma função-chave no pensamento político de
Herculano. Conforme vimos acima, os Concelhos eram responsáveis pelo equilíbrio entre os
dois princípios, da desigualdade e da dignidade, que regiam o processo histórico concebido
por Herculano. Para o autor, o estágio ideal, marcado pelo equilíbrio entre ambos os
princípios, correu no Medievo e teve no Concelho a instituição que avalizava este equilíbrio.
Para retomar este objetivo dos municípios medievais portugueses no século XIX, era
necessário observar as condições históricas contemporâneas a Herculano e por ele descritas. O
estabelecimento das constituições portuguesas garantiu a resolução de diversos problemas,como a organização política, a distribuição de poderes, a representatividade, etc., mas não
equacionava um grave problema: a formação de uma oligarquia após o advento liberal que
passou a controlar o Estado a partir da centralização administrativa em substituição aos
grupos que monopolizavam o poder durante o Antigo Regime, usufruindo as benesses
oferecidas pelo novo Estado em prejuízo da maioria da sociedade. O exercício da liberdade
individual e as conquistadas efetivadas pelas constituições encontravam-se, portanto,
ameaçadas pela hegemonia destas oligarquias surgidas com o Estado Liberal. Omunicipalismo seria a solução para este impasse, pois era uma das formas do governo
representativo tornar-se realidade, quebrando o monopólio das oligarquias liberais sobre o
Estado e dificultando o estabelecimento da democracia, o “despotismo das multidões”, outra
ameaça à liberdade individual preconizada pelo autor.
A defesa dos Concelhos como instituições moderadores da vida política e social pode
ser associada ao Conservadorismo, pois o resgate dos municípios medievais portugueses e de
suas atribuições constitui-se no restabelecimento de uma tradição relegada a segundo plano nofinal do século XV, em benefício da centralização absolutista. Outro fato que associa a
retomada dos concelhos na ótica conservadora é a questão da liberdade e da igualdade.
Liberdade e igualdade são conceitos que foram trabalhados pelo Conservadorismo como
incompatíveis, pois a liberdade associa-se à proteção do indivíduo e da propriedade material e
imaterial da família, enquanto a igualdade é a repartição dos bens materiais e imateriais de
uma sociedade de forma equânime com o intuito de corrigir uma desigualdade anterior à
distribuição destes bens128. Neste sentido, a liberdade garante a defesa da propriedade
128 NISBET, Robert. Conservadorismo. Lisboa: Estampa, 1987. p. 83.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 110/199
108
individual e/ou familiar e consequentemente anula a redistribuição dos bens que caracteriza a
igualdade. Para a liberdade existir, as distinções sociais e a hierarquia são fundamentais posto
que fundadas na propriedade e a redistribuição desta, condição fundamental da igualdade,
jogaria por terra não só a liberdade mas toda a ordem social. Para o Conservadorismo, a única
igualdade possível é a igualdade legal sendo as demais formas “uma igualdade em servidão e
aborrecimento”129.
Seguindo esta linha de raciocínio, a democracia era criticada por Herculano por criar
condições para o estabelecimento da ditadura da maioria em detrimento da liberdade
individual, acompanhando as críticas à democracia feitas por Burke, que foram aprofundadas
por Alexis de Tocqueville (1805-1859), o qual via a democracia como possível apenas nos
Estados Unidos dada a sua tradição histórica. Ao trabalhar o pensamento político deHerculano, Joaquim Barradas de Carvalho destaca que a distinção entre liberalismo e
democracia é fundamental para a compreensão do pensamento político do autor. Ainda
segundo Barradas de Carvalho, “a confiança ou a falta de confiança nas massas populares
parece-nos ser aquilo que, no fundo, separa o democrata do liberal ”130 e que Herculano vê as
massas populares como desprovidas de preparo para o exercício da vida política e que apenas
a Classe média teria condições para tal131 e para garantir o exercício do poder por este grupo
tornava-se necessário restabelecer as características dos municípios medievais portugueses:
Em nosso entender, a história dos Concelhos é em Portugal, bem como no resto da Espanha,um estudo importante, uma lição altamente profícua para o futuro; porque estamosintimamente persuadidos de que, depois de longo combater e de dolorosas experiências políticas, a Europa há de chegar a reconhecer que o único meio de destruir as dificuldades dasituação que a afligem, de remover a opressão do capital sobre o trabalho, questão suprema aque todas as outras nos parecem subordinadas, é o que restaura, em harmonia com a ilustraçãodo século, as instituições municipais, aperfeiçoadas sim, mas acordes na sua índole, nos seus
elementos com as da idade média. 132
A citação reforça a importância dos Concelhos para Herculano como objeto histórico eato discursivo. Herculano defendia o restabelecimento do municipalismo adaptado ao
momento histórico, porém em sintonia com a índole dos Concelhos medievais, ou seja, como
ponto de equilíbrio e moderação entre os grupos sociais e políticos representados pelos dois
129 KIRK, Russell. The conservative mind . 7.ed. Washington DC: Regnery Publishing, 2001. p. 9.
130 CARVALHO, Joaquim Barradas de. As idéias políticas e sociais de Alexandre Herculano. 2.ed. Lisboa: Seara Nova,1971. p. 27. A distinção feita pelo autor entre democratas e liberais é trabalhada por nós como uma das distinções entre
liberais progressistas e liberais conservadores.131 Ibidem. p. 30-33.
132 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 313 - 314.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 111/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 112/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 113/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 114/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 115/199
113
comuns que os forais da segunda espécie. Geralmente os forais das povoações reguengas,
localizadas em terras da Coroa, pertencem a esta espécie.
4. Não pertencem a nenhuma das espécies anteriores, mas correspondem a uma “mistura” de
todas. É “destinado a remover a desordem nascida da má organização anterior”144. Não
são raros.
Em seu estudo, Herculano prioriza a primeira categoria dos Forais, alegando que as
“Cartas de Comuna” organizavam a “classe popular”, dando-lhe existência política e
convertendo-a num elemento social, sendo estas consideradas como a origem da “árvore
robusta da liberdade” do século XIX145.
O autor destaca que a natureza dos referidos forais, as Cartas de Povoação, consiste nos
seguintes fatores:1) Necessidade de reconstruir e repovoar o território após as guerras de Reconquista,
sendo iniciativa do Rei a instituição dos Concelhos mediante forais 146
.
2) Necessidade de apoio político ao Rei contra a Nobreza Fidalga e o Alto Clero. O
apoio do “povo” ao Rei consistia numa oposição à opressão senhorial e clerical enquanto que
os Concelhos serviam de amparo político ao Rei para sujeitar os grupos acima citados. A
Aliança Rei - Povo “era ao menos um instinto (…) que as lutas com o Alto Clero e as
resistências da fidalguia deviam todos os dias despertar”147
. Um exemplo dado pelohistoriador foi a postura de Afonso III ao assumir o trono português que, levado ao poder
pelo Alto Clero, queria livrar-se do controle eclesiástico, ampliando Afonso o número de
Concelhos. Segundo o autor, Afonso III vivenciou esta experiência com as revoltas
burguesas na Borgonha.
3) A questão fazendária foi um outro dado significativo para o estabelecimento destes
forais concelhios. Para Herculano, as propriedades da Aristocracia e do Clero deixaram de
ser fonte de renda da fazenda pública rapidamente, pois eram convertidas em PRÉSTAMOS(PRESTIMONIUM, APRESTAMO) e entregues à Nobreza Fidalga e ao Alto Clero, seja por
questões militares, políticas ou religiosas. Em virtude disso, houve uma diminuição
considerável das “rendas públicas”, servindo os municípios como fonte de renda para a
Tesouro, através de seus impostos, muitas vezes destinados ao pagamento das Optimas
144 HERCULANO, Alexandre. Apontamentos para a história dos bens da coroa e dos forais. In:______. Opúsculos. 3.ed.Lisboa: Bertrand, [190-]. p. 203. v.6.
145
Ibidem. p. 236.146 Ibidem. p. 216 - 217.
147 Ibidem. p. 213.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 116/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 117/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 118/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 119/199
117
merecedor de respeito. Foi de D. Pedro IV que emanou a Carta, “uma concessão de senhor,
uma concessão do monarca. Herculano vê como garantia dos direitos do indivíduo, como
garantia da liberdade, uma entidade estranha ao povo”152. A liberdade individual era
garantida por vontade do monarca e não pela vontade da sociedade como um todo. Desta
feita, não seria legítimo afirmar que o equilíbrio e a liberdade garantidos pelos Concelhos,
amparados pelos forais e representando os anseios da Classe Média, emanava do monarca? E
este monarca, com tamanha atribuição, não poderia ser classificado como um tirano
individual que tolhe as vontades dos outros indivíduos? Ou existe um outro modelo de
monarca idealizado por Herculano?
- Apesar de ter proposto uma nova periodização para a História de Portugal com base
numa história social e das instituições nas Cartas sobre a História de Portugal , Herculanonão deixou de lado a cronologia tradicional, organizada de acordo com os reinados na
História de Portugal . Manteve a proposta de priorizar a história social, mas a divisão dos três
primeiros volumes da História de Portugal segue as datas dos reinados portugueses. Em
História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal , os critérios
cronológicos também foram mantidos. A manutenção dos reinados como marcos
cronológicos não seria uma forma de indicar que a monarquia ainda era uma referência
política (e consequentemente histórica) positiva (no caso da História de Portugal ) ou negativa(com relação a História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal) no seu
pensamento?
- Ao analisar os forais, Herculano afirma taxativamente que a criação destes era uma
prerrogativa exclusiva do rei:
O verdadeiro Foral, a Carta de comuna que fazia existir o Concelho como entidade política, partia do Rei. Só dele podia partir. Fosse quem quer que fosse o promulgador do foral, chameele até no preâmbulo do diploma ao território do Concelho instituído propriedade sua ( MEAHEREDITATEM ), esse homem não era mais que um representante do príncipe; exercitavaapenas uma delegação.
153
- Na introdução da terceira edição do Volume I de História de Portugal , Alexandre
Herculano externou a sua gratidão ao rei D. Fernando pelo emprego de real bibliotecário da
Ajuda e das Necessidades e, como retribuição, propôs-se a orientar os caminhos políticos do
152
CARVALHO, Joaquim Barradas de. As idéias políticas e sociais de Alexandre Herculano. 2.ed. Lisboa: Seara Nova,1971. p. 41.
153 HERCULANO, Alexandre. Apontamentos para a história dos bens da coroa e forais. In: ______. Opúsculos. 3.ed. Lisboa:Bertrand, [190-]. p. 216- 217.v.6.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 120/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 121/199
119
3 OS MONARCAS PORTUGUESES COMO MODELO
3.1 Os reis na obra de Alexandre Herculano
Vimos no capítulo anterior a importância da monarquia no pensamento político de
Alexandre Herculano como “chave de toda a organização política”. Portanto, torna-se
necessário que busquemos como Herculano construiu historicamente os reis portugueses, ao
longo da sua vasta produção intelectual.
Iniciaremos nossa análise estabelecendo algumas distinções entre os reis portugueses
na produção histórica e na produção literária, pois pressupomos que a construção dos
monarcas seguem diferentes critérios nas obras enquadradas nestes universos.Apesar de utilizarmos alguns dos romances e contos de Herculano, demos prioridade
às obras de caráter histórico, privilegiando História de Portugal e História da Origem e
Estabelecimento da Inquisição em Portugal 1, em nosso estudo, pois nestas obras a construção
dos reis como objetos históricos possui contornos mais detalhados, apesar de na História da
Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal a prioridade de Herculano residir no
processo de estabelecimento da Inquisição em Portugal. A eleição das duas obras também se
justifica pela conexão existente entre ambas. Lembremos que a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal surgiu como uma resposta às ofensas sofridas
pelo autor por ocasião da polêmica Questão de Ourique, suscitada após a publicação do Tomo
I da História de Portugal . Na abordagem que utilizamos para observar a construção dos reis
portugueses nestas obras a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal
é considerada simultaneamente um complemento e uma antítese da História de Portugal . Se
nesta o objetivo declarado é fornecer subsídios ao Príncipe herdeiro D. Pedro, futuro Pedro V,
para que ele fizesse um bom governo
2
, naquela a proposta era “Chamar a juízo o passado, para vermos, também, aonde nos podem levar outra vez as tendências da reação”3. Estes
objetivos, entendemos, completam-se, pois a História da Origem e Estabelecimento da
Inquisição em Portugal e sua longa lista de equívocos cometidos pelos monarcas portugueses
listados pode indicar a D. Pedro V quais caminhos e escolhas políticas evitar assim como a
1
Sobre a importância destas obras, Cf. p.23 et seq.2 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal,t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 3.
3 Idem. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América, [198-?]. p. 16.v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 122/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 123/199
121
monarcas e sim de questões pontuais ou conjunturais debatidas pelo autor nas páginas dos
periódicos em que trabalhou.
Os reis de Portugal estão presentes ou são mencionados em diversas obras literárias de
Herculano. Afonso I, no romance O Bobo, na lenda O Bispo Negro, nos contos Castelo de
Faria e A Morte do Lidador ; D. João I, no romance O Monge de Cister e no conto A Abóbada
e D. Fernando, no conto Arras por Foro de Espanha. Outros reis são mencionados, porém
como referências temporais, quando o autor se refere a um momento do passado na trama, ou
espaciais, quando a referência é sobre um monumento ou um espaço físico.
Nessas passagens e menções das obras literárias de Herculano percebemos que os reis,
mesmo aqueles que aparecem como figuras principais ou de menção constante, foram
construídos como personagens romanescos, que apesar de possuírem elementos históricos nasua composição, seguem papéis e possuem atribuições que obedecem à lógica da construção
literária e não há uma preocupação de buscar um rigor histórico, a exemplo do que acontece
nas obras históricas do autor.
O Infante Afonso Henriques, em O Bobo, é constantemente citado, mas pouco aparece
no desenrolar do romance, sendo, aparentemente, mais um marco temporal do que um
personagem e as menções ao futuro rei de Portugal seguem a lógica estabelecida por
Herculano na trama, ou seja, o processo de independência de Portugal. Portanto, AfonsoHenriques é mencionado como um predestinado a livrar sua nação das garras leonesas,
demonstrando desde a tenra idade sua vocação soberana. A menção a Afonso I nos contos A
Morte do Lidador e O Castelo de Faria tem a função de estabelecer uma referência temporal
e social, ao indicar a relação dos personagens principais com o monarca. A única exceção é a
lenda coligida por Herculano, O Bispo Negro, onde o Infante português é retratado como um
impulsivo defensor da nacionalidade recém-nascida contra as pretensões do clero de limitar o
poder do Infante. Apesar de ser o personagem central da trama, ao contrário do que acontecenas obras anteriores, em que Afonso I é uma espécie de figura onipresente, porém sem
presença física, Afonso Henriques segue as normas do herói romântico: impulsivo, defensor
de uma causa nobre e disposto a pagar caro pela defesa de um ideal, mesmo que seja com a
própria alma. Herculano fez uma ressalva sobre a ocorrência dos fatos narrados em O Bispo
Negro, mas trataremos desta questão e os motivos para a seleção desta lenda, mais adiante.
D. João I apareceu como marco temporal no subtítulo de O Monge de Cister, A
Épocha de D. João e como personagem nesta obra e no conto A Abóbada, em rápidas e curtas
intervenções, quase como personagens de suporte para a trama principal e como garantia de
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 124/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 125/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 126/199
124
independência política, D. Afonso tomara do altar a armadura e a si próprio se fizera
cavaleiro”7, antecipando a sua destreza e empenho da defesa na Nação:
Na idade de pouco mais de vinte e um anos, dotado de génio belicoso e destro nas armas,Afonso Henriques estava talhado para desenvolver largamente a ideia da nacionalidade
portuguesa, ideia que amadurecera e se radicara nos ânimos de modo indestrutível.8
A manutenção da independência conquistada em 1128 era uma tarefa árdua, pois o
reino recém-independente tinha vizinhos poderosos e ameaçadores. Ao norte e leste os reinos
ibéricos e ao sul os sarracenos ameaçavam tanto a independência quanto a integridade
territorial. Lembremos que o território era um dos elementos que Herculano destacava como
aquele que confere unidade à Nação, sendo, portanto, fundamental a manutenção e posteriorexpansão das fronteiras do antigo Condado ora transformado em reino9. Afonso Henriques
tinha “energia e os esforços necessários para resistir a tão perigosos vizinhos”10.
A ameaça representada pelos sarracenos caracterizava-se pelo perigo de constantes
embates da Reconquista Ibérica e as fronteiras ao sul eram uma área de conflitos constantes e,
portanto, não totalmente definidas. Quanto aos reinos ibéricos, a questão não se limitava
apenas aos limites fronteiriços. O antigo Condado Portucalense fazia parte do Reino de Leão,
recentemente unificado a Castela por Afonso VII, primo de Afonso Henriques. Afonso VII de
Leão e Castela era um adversário de peso para as pretensões emancipacionistas do seu primo.
Reconhecido como Imperador pelo Papa, Afonso VII tinha a pretensão de unificar os reinos
ibéricos e avançar os limites cristãos para o sul da Península. Apoiado pela Igreja, senhor de
vários reinos e detentor de considerável aparato militar, Afonso VII era um forte opositor da
independência portuguesa11. Mesmo diante de tão formidável aparato, Afonso I manteve-se
irredutível na defesa da independência: “na corte do imperador ninguém o viu nunca; nas
assembleias políticas da monarquia de Afonso VII, onde se reuniam os reis e nobres vassalos
do ‘Imperador das Espanhas’) o seu lugar está sempre vazio”12. O empenho do filho do
Conde Henrique levou, no entender de Herculano, o poderoso Imperador a reconhecer a
independência portuguesa:
7 HERCULANO, Alexandre. O bobo. Lisboa: Ulissea, [198-?]. p. 62.
8 Idem. História de Portugal,t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 405.
9 Ibidem. p. 42.
10
Ibidem. p. 406.11 Ibidem. p. 410 - 411.
12 Ibidem. p. 445.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 127/199
125
(...) o orgulhoso Afonso VII, que não pode consentir a independência de Aragão e, de certomodo, de Navarra, tomando o titulo de senhor de Naxera; Afonso VII, que inclui naenumeração dos seus domínios esses países, ainda quando os naturais lhe disputam o senhorio
deles, nem uma só vez se intitula dominador de Portugal
13.
Contudo, a independência e o reconhecimento de Afonso I como rei de Portugal por
Afonso VII tiveram uma contrapartida por exigência do Imperador, conforme veremos
adiante.
A consolidação da independência portuguesa, a manutenção e a posterior expansão do
território por Afonso I foi, para Herculano, resultado das suas virtudes militares do primeiro
rei de Portugal. O gênio militar de Afonso Henriques foi mencionado em inúmeras ocasiões
em que o reconhecimento das suas capacidades bélicas pelos seus oponentes é destacado:
“(...)Afonso I, cujo pensamento quase exclusivo de toda a vida foi o das guerras e conquistas,
e cujo valor e constância lhe granjearam entre cristãos e sarracenos a reputação de um dos
príncipes do seu tempo mais empreendedores e pertinazes”14.
A conquista de Lisboa em 1147 demonstra o “empreendedorismo” e a “pertinácia” de
Afonso I. Aproveitando a presença de guerreiros do norte da Europa, que estavam em portos
portugueses a caminho da Terra Santa, Afonso I pediu o seu auxílio para a tomada da futura
capital do reino e conseguiu, ao longo do tempo que durou o cerco, evitar a debandada dastropas cruzadas e negociar a rendição dos sitiados15. Além da conquista de Lisboa, as
incursões de Afonso I no território sarraceno, no Gharb (Sul de Portugal e posteriormente
renomeado como Algarves), sejam fossados como na mítica Batalha de Ourique ou cercos e
conquistas efetivos como em Alcácer do Sal em 1158, difundiram a reputação de Afonso I, o
temível Ibn Erik para os sarracenos, como exemplo de líder e guerreiro16:
a reputação militar de Afonso I excedia a de todos os príncipes da Espanha cristã pelo brilhodas vitórias e pela rapidez das conquistas. No vigor da idade, tendo visto realizarem-se unsapós outros quase todos os seus intentos, este homem, cujo nome aparece na história da lentaagonia do islamismo espanhol como um anjo de extermínio, devia ter profunda confiança na
sua fortuna.17
13 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 445.
14 Ibidem. p. 471.
15
Ibidem. p. 519 et. seq.16 Ibidem. p. 533 - 543.
17 Ibidem. p. 543.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 128/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 129/199
127
Ibérica, uma das áreas de embate entre a Cristandade e o Islã, as determinações do Papa
tinham um peso significativo na vida política dos reinos ibéricos e a divisão política ibérica
era entendida pelos papas como uma fraqueza diante do infiel, também dividido em taifas, ou
dependente de dirigentes norte-africanos.
Buscando reconhecimento do novo reino e da nova monarquia pela Igreja, Afonso I
cometeu um grande equívoco ao submeter Portugal à Santa Sé como censual, tornando o novo
reino um vassalo do Papa e comprometendo-se a pagar anualmente uma vultosa quantia em
ouro, “esquecendo-se do preço por que haviam de comprar no futuro essa sanção do chefe
visível da Igreja”21. Ocorrida quase que simultaneamente à Conferência de Zamora, Afonso I
garantia o reconhecimento espiritual da independência portuguesa.
Contudo uma questão continuava dependente: o reconhecimento do título real aAfonso I. A homenagem de Afonso I à Santa Sé, enfeudando Portugal, concluiu e legitimou a
separação de Leão, mas deixou indefinida a “questão da monarquia”, pois o presumível rei de
Portugal, Afonso I, era “Súbdito do príncipe da Igreja, ( e ) a este pertencia confirmar-lhe a
dignidade real ”22. O Reconhecimento formal do título de rei pela Santa Sé ocorreu em 1179,
pelo papa Alexandre III, mais de trinta anos após a enfeudação de Portugal à Santa Sé. Um
dos fatores que contribuiu foi o embate entre as arquidioceses de Braga e Toledo, dificultando
o reconhecimento de Afonso I pela Igreja23
. Conforme veremos, as relações entre a Coroa dePortugal e o Papado muitas vezes foram dificultadas pelos embates no seio do clero português
e deste com os reis e os funcionários régios.
As disputas entre a Igreja e a monarquia portuguesa são o tema de uma lenda editada
por Herculano em Lendas e Narrativas. Intitulada O Bispo Negro24, esta lenda narra a
excomunhão de Afonso Henriques em 1130 pelo Bispo de Coimbra, a mando do Papa, em
virtude de o jovem infante manter a sua mãe, D. Teresa, encarcerada sob o pretexto de que ela
ameaçava a recém-conquistada independência de Portugal, “terra que é só minha e doscavaleiros portugueses”25, por ter vínculos com os nobres galegos e leoneses. A solução do
impasse foi o afastamento do Bispo de Coimbra e a nomeação de outro bispo, negro, por
Afonso Henriques. A reação da Santa Sé, através de um legado papal, renovou a excomunhão
21 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 455.
22 Ibidem. p. 457 - 458.
23
Ibidem. p. 579 - 580.24 In HERCULANO, Alexandre. Lendas e narrativas. Lisboa: Ulissea, [198-?]. p. 247-258.
25 Ibidem. p. 249.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 130/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 131/199
129
entre estes e o seu rei, criando condições para o desenvolvimento nacional e para os avanços
da civilização.
Os grupos sociais tinham condições de buscar essa representação junto ao rei através
de meios distintos. Nas chamadas classes superiores, Clero e Nobreza, esta representação era
mais direta e evidente, tendo em vista que forneciam os suportes espiritual, militar e
administrativo para o exercício do poder. Porém, o povo, que, conforme vimos no capítulo
anterior, é associado à Classe Média, aos Burgueses e ao Braço do povo, também possuía um
canal de representação junto ao monarca: os Concelhos.
A menção aos concelhos, suas atribuições, importância, força política e outras
características e atributos são uma constante ao longo de todos os reinados analisados por
Herculano na História de Portugal , merecendo um tomo único para o estudo dos grémiosmunicipais29. Mencionado mais uma vez o capítulo anterior, vimos a importância dos
Concelhos como objeto histórico para Herculano e a menção a estas instituições, em todos os
reinados observados na História de Portugal , reforça esta importância. Antes mesmo de
analisar o reinado de Afonso I, a importância dos Concelhos é destacada como uma forma de
resistência dos burgueses contra os abusos dos poderosos:
Talvez, durante a Idade Média, nenhuma época da história peninsular ofereça tantos vestígiosda influência municipal nos acontecimentos políticos, tantas resistências das vilas contra odomínio dos senhores, tantos cometimentos das povoações contra os castelos que asassoberbavam, como o primeiro quartel do século XII (...) estabelecendo o equilíbrio entre as
diversas classes.30
Os concelhos foram mencionados no reinado de Afonso I com três atribuições: o
povoamento de áreas conquistadas aos sarracenos, fato que contribuiu para o surgimento de
novos concelhos; fonte de recursos para a Coroa através de impostos31 e fornecimento de
tropas para as hostes reais. Se na História de Portugal este apoio militar dos Concelhos ao rei
é mencionado na conquista de Beja em 1162, quando os cavaleiros vilãos e as tropas
concelhias tiveram papel de destaque32, no romance O Bobo, os grupos mercantis
representados pelo Concelho de Guimarães, fundado pelo Conde Henrique e em cuja origem
se encontrava a “resistência antiteocrática e antiaristocrática que, espalhado gradualmente
pelo país, devia em três séculos pôr manietadas aos pés dos reis a aristocracia e a
29 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.4. Lisboa: Bertrand, 1980.
30
Idem. História de Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 319 - 320.31 Cf. Ibidem. p. 445.
32 Ibidem. p. 548 - 549.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 132/199
130
teocracia”33, possuem um papel fundamental na trama. O apoio destes ao partido de D.
Afonso foi vital para a sua vitória, pois grande parcela do exército do Infante era composta
por tropas concelhias, formando uma infantaria que desafiava a superioridade militar da
cavalaria dos ricos - homens de D. Peres de Trava, líder e representação da ingerência
estrangeira em Portugal. Portanto, os grupos urbanos tiveram uma participação fundamental
na independência e na origem de Portugal, assim como na ascensão do primeiro Rei português
ao poder, alguns anos após a vitória em Guimarães34.
O Afonso I construído por Herculano é o campeão da identidade e da independência
nacional, sendo este o aspecto mais destacado na sua construção histórica. Entendemos que
tal ênfase é um traço característico dos valores românticos que, lembremos, tinham umagrande preocupação em buscar as origens nacionais. A valorização da habilidade militar para
defender a nação, manter a integridade territorial e conquistar territórios ocupados pelos
sarracenos indica que o uso da força e da capacidade de liderança era atributo valorizado e
enaltecido por Herculano e mais valorizado que a habilidade política e administrativa. A
autossagração como cavaleiro na Sé de Zamora e a autoproclamação como rei de Portugal em
Valdevez, no ano de 1140, são fatos que confirmam o caráter independente de Afonso I,
reforçados pelo reconhecimento da independência portuguesa por Afonso VII, que ocredenciam como monarca talhado para o nobre ofício de defender o desejo de independência
dos portugueses, anterior a ele e que encontrou no jovem infante o executor da sua vontade.
Portanto, Afonso I era um rei legítimo por suas habilidades militares e por representar os
anseios de liberdade e independência de um povo que ansiava por libertar-se do controle
leonês. A ideia do rei como defensor da nação e representante dos anseios sociais guarda
relações com a ideia do governante como guardião e executor das vontades da sociedade,
sendo, portanto, por ela legitimado e está associada à concepção liberal de governorepresentativo.
As referências aos concelhos, suas funções e importância no reinado de Afonso I e
constante nos reinados analisados na História de Portugal, é associada à importância da
representação política da Classe Média junto ao rei. Da mesma forma, os concelhos foram
incorporados à tradição portuguesa, segundo Herculano, com atribuições políticas, suporte ao
rei diante das pretensões de Clero e Aristocracia; militares, enviando efetivos para os conflitos
33 HERCULANO, Alexandre. O bobo. Lisboa: Ulissea, [198-?]. p. 50.
34 Ibidem. p. 180.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 133/199
131
e contribuindo com mão de obra para a reconstrução das fortificações; fiscais, pagando
tributos e obrigações que contribuíam para a Fazenda Real. O incentivo ao surgimento de
novos concelhos implicava a ampliação da representação política da burguesia junto ao rei e a
manutenção dos seus direitos e prerrogativas, no fortalecimento político do rei e na
consolidação da nacionalidade portuguesa diante das ameaças externas. Nesta linha de
raciocínio, os concelhos representavam uma tradição que deveria ser valorizada e retomada
em Portugal, uma vez que foi um dos suportes da nação na primeira etapa da sua existência e
era entendida como uma instituição representativa dos anseios dos grupos sociais
intermediários portugueses.
Entre as críticas de Herculano a Afonso I, consta a pouca habilidade política do
monarca. Nas vezes que Herculano fez essas críticas, geralmente ele indicou que a períciamilitar de Afonso I era mais necessária naquele momento histórico e compensava o pouco
interesse do monarca pela política. Não foi feita nenhuma indicação direta por Herculano para
justificar essa crítica, mas pressupomos que o autor se fundamentou em dois fatos para tecê-
la: os conflitos com Fernando II de Leão, no final da vida e, principalmente, nas relações com
a Igreja Católica.
O anticlericalismo de Herculano era notório e certamente cresceu após a polêmica com
setores do Clero, em virtude da Questão de Ourique após a publicação do Tomo I da Históriade Portugal . Quando Herculano tratou a subordinação feudo-vassálica de Portugal à Santa Sé
como forma de legitimar a independência de Portugal e de confirmar o título régio
autoinstituído, mencionou que o preço a ser pago pelo reis de Portugal seria elevado, pois esta
enfeudação abriu ainda mais as portas para a ingerência dos papas nos assuntos portugueses e
cedeu espaço para manifestações de insubordinação e contestação do clero português a muitas
determinações régias.
Lembremos que, apesar de católico, Herculano não aceitava as interferências mútuasentre política e religião e era um crítico severo da Igreja Católica, por sua defesa do Antigo
Regime português e pelos abusos cometidos nesse período, alguns deles retratados em tons
críticos na História de Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal . A interferência
do clero português e da Santa Sé em nome da defesa dos seus interesses nos assuntos internos
portugueses no período retratado na História de Portugal pode ser entendida como uma
imposição dos interesses de um grupo minoritário, o Clero, sobre a vontade da sociedade
como um todo tendo, em vista que o rei era entendido por Herculano não só como a chave de
toda a organização política, mas também como o representante e executor dos desígnios da
sociedade. Esta sobreposição dos interesses eclesiásticos aos sociais, que fere o tradicional
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 134/199
132
direito de representação da sociedade portuguesa, também implicava a ameaça à soberania
nacional e mesmo a existência da nação, pois a intervenção da Santa Sé por vezes era
contrária às determinações do rei e da sociedade, sendo a demora do reconhecimento da
monarquia portuguesa pelo Papa um exemplo deste conflito de interesses, ameaçando a
soberania e a autodeterminação da sociedade portuguesa.
Antes de iniciarmos a análise dos outros reis e reinados, destacamos que algumas
destas características de Afonso I, indicadas por Herculano, estão presentes nos outros reis
estudados e muitas vezes serão utilizadas como parâmetros para classificá-las como positivas
ou negativas sendo, portanto, necessário destacar novamente algumas destas características ao
longo da nossa exposição, mesmo correndo o risco de parecermos repetitivos e redundantes.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 135/199
133
REI OBRA CARACTERÍTICASPOSITIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
CARACTERÍTICASNEGATIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
D. AFONSO I1128/1185 História dePortugalTomo ILivro II
Defesa da Nacionalidade Pouca habilidadeadministrativa
Rei como executor dosanseios e da vontade popular
Subordinação feudo-vassálica ao Papa
Habilidade militar Críticas à aproximação esubordinação à Igreja.
Povoamento e concelhosAutoproclamação como reiReconhecimento pelos
reinos ibéricos
O Bobo
Importância e participaçãoda população do ConcelhoSagração de AfonsoHenriques como cavaleirovista como ato de
independência política doinfante.Importância e participaçãoda população do Concelhode Guimarães naIndependênciaReferência ao sentimento deidentidade nacional
O Bispo Negro In Lendas e
Narrativas
Alusão a Portugal comoterra do infante e dosnobres.Embates com o clero paradefesa da nacionalidade.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 136/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 137/199
135
Assim como na análise de Afonso I e de seu reinado e na análise dos reis seguintes até
Afonso III os concelhos são mencionados e servem de parâmetro para Herculano avaliar os
cinco primeiros reis portugueses. Retomando a importância e as funções atribuídas aos
municípios medievais portugueses, Herculano destaca que Sancho I viu nos concelhos,
inicialmente, uma dupla função: auxílio militar e apoio político contra Clero e Nobreza, além
de uma terceira função dos Concelhos, levantada adiante por Herculano: a atribuição
tributária. Portanto, a expansão destes grémios populares seria:
a barreira mais forte contra as agressões de estranhos e ao mesmo tempo um seguroinstrumento de governo, do qual se ajudavam, não só para criar um sistema de repressãocontra as classes privilegiadas, mas também para aumentar o número de soldados não pagos,
tão necessários no meio duma existência de contínua guerr a40.
A política de incentivo ao povoamento através do estabelecimento de novos concelhos
em áreas conquistadas41 contou com o estabelecimento de colonos europeus. Dada a
estagnação demográfica acima mencionada e a baixa expectativa de vida da população,
associada aos baixos índices de mortalidade infantil característicos do Medievo, agravadas
pelos conflitos constantes na fronteira do reino com o Gharb sarraceno, a presença de colonos
europeus em terras portuguesas era muito bem-vinda e incentivada a ponto de, segundo
Herculano, Sancho I estabelecer vantagens fiscais e garantir a manutenção dos direitos destescolonos estabelecidos pelos forais e a proteção destes novos concelhos pelo próprio rei contra
quaisquer ofensas da população local ou imposições fiscais ou senhoriais pela aristocracia e
pelo clero:
O empenho do rei de Portugal em que os colonos ficassem satisfeitos, o que seria incentivo para novas migrações, transluz da carta dirigida às autoridades dos três concelhos. Dizia-lhesque saberia agradecer como feito à sua própria pessoa todo o bem que se fizesse aos hóspedese que, pelo contrário, qualquer agravo que recebesse um só deles seria punido com a multa
extraordinária de seis mil soldos. Declarava-os, além disso, isentos de pagarem portagens emtodo o reino, com a pena de quinhentos maravedis contra quem quer que lhas exigisse e de
ficar o infractor considerado como inimigo pessoal do rei.42
O incremento da política de povoamento, constantemente associado ao
estabelecimento de concelhos através da concessão de forais, “ padrões da liberdade popular ”,
40 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 24.
41
Herculano menciona a doação de terras e castelos às Ordens Militares como medida de incremento ao povoamento,descrevendo-as como eficazes no combate aos sarracenos e na organização da estrutura produtiva nas terras doadas. Sobre aeficiência militar, cf. Ibidem. p. 27 e sobre o estabelecimento de uma estrutura produtiva, cf. Ibidem. p. 111 - 112.
42 Ibidem. p. 122 - 123.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 138/199
136
ocorreu também em terras da Coroa, da Aristocracia e das Ordens militares 43, confirmando
que a disseminação dos concelhos era uma política de governo de Sancho I, que foi entendida
por Herculano como uma abertura maior para a participação da Classe Média na vida política
de Portugal, em que os concelhos se constituíam num dos suportes do rei contra as classes
privilegiadas, ciosas de seu poder e à espreita de oportunidades para ampliá-lo44. Mesmo nos
momentos em que as fontes silenciam sobre o reinado de Sancho I, Herculano destaca que:
Nestes quase últimos anos do seu reinado, em que a história parece esquecer-se dele, porquecessou o estrondo das batalhas e o drama dos ódios políticos, é que os diplomas falam maisalto a favor de Sancho I, que, por si ou pela capacidade dos seus conselheiros, dá um impulso
enérgico ao desenvolvimento das forças materiais da nação. 45
Herculano louvou a política de povoamento de Sancho I, pois entendeu que a
expansão das comunidades concelhias pelo território português beneficiava tanto o rei quanto
o povo. Para o rei, os concelhos eram, conforme vimos anteriormente e será citado em
inúmeras oportunidades adiante, instituições que garantiam tropas, tributos e sustentação
política46, enquanto para as camadas médias os concelhos eram uma garantia de proteção
contra os abusos dos poderosos, de manutenção de seus direitos e representação política junto
ao rei. Portanto, a expansão do povoamento e dos concelhos por Sancho I constitui:
o carácter que distingue principalmente o reinado de Sancho I, a tendência constante paracolonizar com estrangeiros e naturais os distritos mais ermos do país e para fundar novas povoações ou restaurar as antigas, tendência pela qual este príncipe mereceu da posteridade o
epíteto de Povoador .47
Outra virtude de Sancho I, destacada por Herculano, foi a tolerância religiosa. Em
duas passagens o monarca demonstra tolerância com as comunidades não cristãs.
Por ocasião da vitória no cerco a Silves junto com cruzados norte-europeus a caminho
da Terra Santa, Sancho I foi clemente com a população islâmica da cidade ao permitir a
43 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 129.
44 Ibidem. p. 172.
45 Ibidem. p. 129.
46
Um exemplo da aliança entre Rei e Concelhos é mencionado por ocasião do conflito entre Sancho I e o Bispo do Portoquando o “ povo” e os “burgueses” apoiaram o monarca Cf. Ibidem. p. 135-144.
47 Ibidem. p. 88 - 89.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 139/199
137
retirada em segurança. Esta demonstração de piedade, que, destacada por Herculano, adquire
contornos de tolerância religiosa, criou uma tensão muito grande com os aliados cruzados48.
Uma segunda manifestação de piedade de Sancho I, que também pode ser interpretada
como tolerância religiosa por ter sido mencionada por Herculano, foi a prisão de cruzados
que, ao retornar para Lisboa após a conquista de Silves atacaram os bairros judeus e mouros
da cidade, gerando novo mal-estar com os aliados norte-europeus49.
Ao destacar a piedade de Sancho I nos eventos relatados, ato que não só ameaçava a
aliança militar com os cruzados contra os sarracenos, mas também colocava em risco a
segurança de Portugal com ataques dos cruzados a cidades portuguesas, como retaliação a
Sancho I, Herculano defende, em nosso entender, a tolerância religiosa como um princípio
político e ressalta a importância de mouros e judeus na composição da sociedade portuguesa.Se no tocante à política de povoamento e de difusão dos concelhos a comparação com
Afonso I foi positiva, o mesmo não ocorreu quando a comparação foi feita no âmbito militar e
do temperamento pessoal.
Apesar dos dotes militares e das conquistas efetuadas, Herculano considerava que
Sancho I não tinha o talento militar de Afonso Henriques “ porque os homens como Afonso I
são raros”50 e, complementando a citação, Herculano indica que a capacidade intelectual de
Sancho I também era inferior à do seu pai, tendo em vista que “nem supria essa inferioridadede génio com a cultura superior do entendimento”51. O temperamento de Sancho I também
foi objeto de menção por Herculano. Na continuação do parágrafo acima, Herculano destacou
que “era fácil de dominar de cólera cega e violenta”52. O caráter violento e intempestivo de
Sancho I é o motivo da única menção ao monarca nas obras literárias de Herculano. Em O
Bobo, Herculano destaca que:
no princípio do XIII Sancho I de Portugal arrancando os olhos aos clérigos de Coimbra, querecusavam celebrar os ofícios divinos nas igrejas interditas, chamava para testemunhasdaquele feito todos os parentes das vítimas. (...) O Sancho (era) um selvagem atrozmente
vingativo.53
48 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 63 - 64.
49 Ibidem. p. 80 - 81.
50 Ibidem. p. 86.
51
Ibidem. p. 86.52 Ibidem. p. 86.
53 HERCULANO, Alexandre. O Bobo. Lisboa: Ulissea, [198-?]. p. 53 - 54.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 140/199
138
Nem a violência e a selvageria mencionadas por Herculano nem a canalização destas
contra o clero amenizaram as relações com a Igreja. A força política do Clero português, o
poder político do Papa e a subordinação feudo-vassálica de Portugal à Santa Sé foram
empecilhos para o fortalecimento do poder real no reinado de Sancho I54 e de seus sucessores
e, consequentemente, geraram crises entre o poder temporal e o poder espiritual em Portugal.
Era o preço a ser pago pelos sucessores de Afonso I pela “ sanção do chefe visível da Igreja”55
à independência e à monarquia de Portugal.
Conforme destaca Herculano, a subordinação feudo-vassálica ao Papa gerou
obrigações da Coroa à Santa Sé. A confirmação do título régio de Sancho I pelo Papa56 e
cobrança do censo devido à Santa Sé57 são evidências das intervenções de Roma em assuntos
portugueses nos primeiros anos do reinado de Sancho I. Dentre as disputas com o clero português descritas por Herculano, destaca-se o conflito com o Bispo do Porto. Neste embate
que ocupou largo tempo e muita energia de Sancho I, os vizinhos do Concelho do Porto
apoiaram o rei contra as pretensões do bispo. Nos últimos dias de Sancho I, o clero português
obteve várias concessões do rei moribundo que, entre outros fatores, prejudicavam os
interesses dos aliados do rei no Concelho portuense, levando os burgueses do Porto a resistir
diante das concessões feitas pelo rei em benefício do Bispo do Porto, fortalecido diante do rei
moribundo. O empenho e a resistência do Concelho do Porto foram um exemplo que mesmosufocado pelas classes superiores o seu valor era reconhecido pela tradição:
os burgueses do Porto foram, enfim, constrangidos a submeter-se; mas os seus inimigos,conservando os documentos do triunfo obtido, nos transmitiram involuntariamente a memóriadesses homens enérgicos, e os nomes de João Alvo e de Pedro Feudo-Tirou, que parece teremsido os chefes da conjuração municipal, podemos hoje estampá-los nas páginas da história, o
grande e indestrutível livro da linhagem popular .58
Apesar de ter rompido esta aliança com os burgueses do Porto após as disputas com o
Bispo portuense e posteriormente reprimido seus antigos aliados, Sancho I atendeu as
54 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 115 et seq.
55 Idem. História de Portugal,t.1. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 455.
56 Idem. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 82.
57 Ibidem. p. 108 - 110.
58 Ibidem. p. 152 - 153.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 141/199
139
exigências do Clero pois, segundo Herculano, o rei estava enfraquecido fisicamente e à beira
da morte, sem forças para resistir ao clero e às pressões de Roma59.
Herculano menciona uma provável influência de um valido de Sancho I, o chanceler
Julião, no acirramento das tensões com a Igreja60. No relato de Herculano em História de
Portugal , a influência dos validos e administradores é mencionada pela primeira vez. A
participação do chanceler Julião, um “homem inteligente”, foi elogiada por Herculano em
virtude da influência do valido nas “ providências administrativas para o desenvolvimento da
força e prosperidade nacional que honram indisputavelmente o reinado de Sancho I ”61. As
providências administrativas mencionadas não foram objeto da análise de Herculano.
Pressupomos, com base na difusão dos concelhos e dos embates com o Clero, que estas
medidas tinham relação com o estabelecimento do aparato burocrático e administrativo nosConcelhos, na organização do Estado português e na arrecadação de impostos, fato que
mereceu a atenção de Herculano ao traçar as últimas linhas sobre o reinado de Sancho I.
Herculano criticou o enriquecimento de Sancho I que, de acordo com autor, ocorreu à
custa da nação, pois “Também um certo número de factos da sua vida lançam sobre ele as
suspeitas de cobiçoso e de haver entesourado somas avultadas por meios gravosos para a
nação”62. Os custos das campanhas militares, a reedificação e a construção de castelos, bem
como os prejuízos da contração demográfica decorrente da fome endêmica, ainda nãoequacionada pelos novos povoamentos, eram altos. Os butins das campanhas e a contribuição
em trabalho paga pelos municípios para a reconstrução de cidades e castelos conquistados,
conhecida como anúduva, não cobriam os gastos. Nestas condições tanto o rei quanto a nação
estariam empobrecidas como fontes de receita63. Surpreendentemente, Sancho I conseguiu
acumular grandes quantidades de ouro. A explicação de Herculano para tal prodígio reside
nas “ frequentes rapinas ou um sistema tributário demasiado violento”64, iniciativa que era
diametralmente oposta à tentativa de povoar o país e explica o fracasso de incrementar aocupação em algumas localidades: “está em parte a explicação da inutilidade com que em
muitas partes se tentou tornar habitados lugares desertos ou convertidos em montões de
59 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 173.
60 Ibidem. p. 163.
61 Ibidem. p. 86 - 87.
62
Ibidem. p. 170.63 Ibidem. p. 170 - 171.
64 Ibidem. p. 171.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 142/199
140
ruínas”65. Se a difusão do povoamento pelo território era a principal medida do reinado de
Sancho I, a cobrança extorsiva de impostos tolhia esta louvável iniciativa e, de acordo com o
relato de Herculano, os gastos da Coroa com a guerra eram justificadamente elevados diante
do perigo iminente representado pelos mouros e pelos reinos ibéricos. Apesar destes gastos
elevados, Sancho I conseguiu entesourar uma vultosa quantidade de ouro. Portanto, o ônus
dos gastos e do entesouramento de ouro pelo rei recaía sobre a população, principalmente
sobre a população dos Concelhos. Como vimos anteriormente, Herculano indicou que uma
das funções era fornecer “novos recursos para a manutenção do Estado”66, mas a incidência
de encargos e obrigações fiscais sobre os municípios colocava em risco a própria existência
dos concelhos. A avareza de Sancho I comprometeu a principal iniciativa do monarca e se,
mesmo com a pesada carga tributária, o surgimento de novos povoamentos e concelhos foimemorável, associando-o ao nome de Sancho I, certamente o sucesso da política de
povoamento teria produzido resultados ainda mais significativos e representativos.
A alcunha de O Povoador que a tradição portuguesa atribuiu a Sancho I é confirmada
por Herculano na História de Portugal . O incentivo aos povoamentos de áreas conquistadas
aos mouros e o consequente estabelecimento de novos concelhos são o aspecto mais
destacado e elogiado por Herculano quando construiu a imagem de Sancho I, pois o
povoamento consolidava a conquista de territórios e possibilitava a abertura de novas frentes produtivas, desenvolvendo a economia portuguesa e expandindo a classe média, e criava
condições para o estabelecimento de novos municípios, o que, por sua vez, aumentava a
representatividade política de parcela da sociedade portuguesa, fortalecia o rei e consolidava
a independência nacional. Dada a importância dos concelhos para Herculano, Sancho I foi,
neste sentido, um rei exemplar.
Herculano mencionou influência positiva dos funcionários régios na implementação
dos povoamentos e destacou a importância do aparato burocrático competente para auxiliar orei a exercer as suas atribuições e governar em benefício da sociedade como um todo, pois o
monarca, desprovido de uma base administrativa selecionada e competente, corre o risco de
comprometer o seu governo e mesmo a sua permanência no poder, como veremos mais
adiante. Herculano, desta forma, observa que a composição de um corpo burocrático capaz e
com atribuições delegadas pelo rei é fundamental para a realização de um bom governo.
65 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 171 - 172.
66 Ibidem. p. 27.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 143/199
141
A tolerância religiosa e o respeito à liberdade de culto, valores tipicamente liberais e
entendidos como parte integrante das tradições portuguesas por Herculano, foram destacados
por Herculano no reinado de Sancho I na tomada de Silves e no ataque aos bairros judeus e
muçulmanos de Lisboa.
A menção ao respeito às tradições e ao direito por Sancho I, no tocante às doações e
concessões feitas pelos antecessores, é positiva e foi feita quando Herculano criticou Afonso
II por desrespeitar estas normas. Segurança jurídica e respeito às tradições são valores que o
liberal conservador Herculano via como fundamentais na organização e manutenção da ordem
social.
Os embates com a Igreja e o temperamento violento são arrolados como críticas
negativas, pois consumiram tempo, esforços e recursos de Sancho I e são entendidos como odesdobramento das relações entre Afonso I e a Igreja.
Mas a principal crítica negativa reside em outro fato que foi mencionado rapidamente
no final do Livro III e no Livro IV: o aumento dos encargos e obrigações tributárias por
Sancho I. Pensamos que esta crítica negativa feita por Herculano foi resultado do caráter
arbitrário destes tributos, resultados da avareza de Sancho I e não dos costumes e tradições
nacionais nem na autorização dos representantes sociais ao rei. Desta forma, a tributação
imposta por Sancho I não tinha respaldo político nem fundamentação legal, sendo um ato devontade do monarca, sendo, portanto, um ato despótico, pois no entender do liberalismo
conservador de Herculano, apenas a tradição e a delegação popular eram as fontes legais e
legítimas para a modificação da política tributária.
A política tributária de Sancho I, além de ilegal, prejudicava os esforços que o próprio
rei, com apoio de um aparato burocrático competente, promovia para expandir o povoamento
e a criação de novos concelhos, pois a carga de tributos e de obrigações dificultou o
estabelecimento e a consolidação de novos municípios que, mesmo com esta grande restrição,cresceram durante o seu reinado. Logo, a política tributária de Sancho I era uma obstáculo
para o desenvolvimento dos concelhos e implicava, dentre outros fatores, o enfraquecimento
do próprio rei ou, na melhor das hipóteses, restringia o fortalecimento político de Sancho I
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 144/199
142
REI OBRA CARACTERÍTICASPOSITIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
CARACTERÍTICASNEGATIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
SANCHO I
1185/1211
História dePortugalTomo IILivro III
Defesa da Identidade Nacional
Temperamentoviolento
Incentivo ao povoamentodo território e à criação deConcelhos
Conflitos com a Igrejae com o Clero
Concessão de apoio e deterras e castelos às OrdensMilitares
Enriquecimento do reie aumento da cargatributária
Demonstrações de
tolerância religiosaAscendência dos validosnas questõesadministrativas
História dePortugalTomo IILivro IV
Incentivo ao povoamentodo território e à criação deConcelhos
Enriquecimento do reie aumento da cargatributária
Respeito às doações e privilégios concedidos pelo antecessor
O BoboTemperamentoviolento
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 145/199
143
3.1.3 Afonso II – 1211/1223
Ainda no Livro III, que trata do reinado de Sancho I, Herculano antecipou uma
observação sobre Afonso II. Ao analisar disposições do testamento de Sancho I que, além de
indicar Afonso II como seu sucessor, doava senhorios e benesses para os seus filhos e filhas
(irmãs e irmãos de Afonso II), para as ordens militares e para setores do clero, “O rei de
Portugal parecia desconfiar da sinceridade do seu sucessor, e o tempo mostrou que essas
desconfianças estavam longe de ser inteiramente infundadas”67. Herculano se referia às
discordâncias ocorridas no início do reinado de Afonso II quanto aos bens e direitos deixados
em herança para seus irmãos68. Foi uma disputa longa e árdua, que ultrapassou os limites de
uma questão familiar ao envolver outros reinos ibéricos e o Papa.
A disputa entre Afonso II e suas tias e irmãos abriu espaço para a intervenção de
Afonso IX de Leão, que tomou o partido dos infantes portugueses contra o rei português. Para
Herculano a busca de glória e terras por Afonso II colocou em risco a independência de
Portugal e a integridade territorial, pois o monarca leonês ocupou áreas fronteiriças para
defender os infantes. A intervenção de Afonso IX só chegou ao fim devido à ingerência de
Afonso VIII de Castela, vencedor da batalha de Navas de Tolosa, com o apoio de tropas
enviadas pelo rei de Portugal, a favor do monarca português69
, da mesma forma que o
envolvimento do Papa Inocêncio III na disputa familiar favoreceu Afonso II na maioria das
vezes70.
A disputa familiar sobre o testamento de Sancho I, motivada, de acordo com
Herculano, pela avareza de Afonso II, expôs a política portuguesa aos interesses e ingerências
estrangeiras e o apoio dado ao rei ou aos infantes tinha um preço que seria cobrado no
momento conveniente, colocando em risco a soberania nacional.
Os prejuízos materiais e as consequências desta disputa familiar foram sucintamentedescritos por Herculano:
Além das devastações feitas por Afonso II nas terras de suas irmãs e dos outros danos quedeste sucesso para elas resultaram, devastações e danos avaliados em cento e cinquenta mil
áureos ou morabitinos, a entrada dos leoneses pelas fronteiras do Norte, as despesas
67 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal,t.2.. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 145-147.
68
Ibidem. p. 197.69 Ibidem. p. 212 - 218.
70 Ibidem. p. 232.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 146/199
144
inevitáveis da guerra e os estragos praticados pelos parciais das infantas deviam produzir
ainda mais graves perdas para a coroa. 71
Internamente Afonso II também buscava apoio na disputa familiar. Logo no início do
reinado, Afonso II aproximou-se do clero português ao fazer várias concessões e resolver
questões pendentes do reinado de Sancho I, dentre elas a inviolabilidade do direito canônico72,
com o intuito de garantir o apoio clerical na querela familiar 73 e do Papa, conforme vimos
acima. Para Herculano, esta ampliação dos privilégios para a Igreja e a aproximação política
entre o trono e o altar, apesar de prejudiciais à Coroa, eram uma trégua temporária do
confronto contra o Clero74.
A situação era análoga no tocante à relação do monarca com a Aristocracia. Houve
uma divisão entre os dois partidos, que deixou sequelas na relação entre Afonso II e setores da
nobreza, pois geravam “mútua má vontade das famílias nobres, divididas entre os dois
bandos, produzia necessariamente, longas rixas que se legavam como herança de honra de
pais a filhos”75.
Apesar de prejudicial para a nação, o embate familiar pelo testamento de Sancho I não
foi o aspecto mais destacado por Herculano ao debruçar-se sobre o reinado de Afonso II.
Segundo o autor, a centralização política e fiscal aliada ao desinteresse militar foram as
principais características do reinado de Afonso II: “ Medíocre guerreiro e pouco de temer para os estranhos, o filho de Sancho I parece ter sido só dominado por um desejo comum e
natural nos príncipes, o de aumentar os recursos da coroa e a influência do poderio real ”76.
A conquista territorial mais relevante do reinado, a tomada de Alcácer, não contou
com a participação do rei, sendo uma iniciativa de nobres e das Ordens Militares. Para
Herculano, “ Afonso II mostrava-se então, como sempre, mais cioso de aumentar a
intensidade da própria força em relação ao país que de acrescentar a glória e o temor do seu
nome em relação aos sarracenos ou aos outros príncipes da Espanha cristã”77
.
71 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 230 - 231.
72 Ibidem. p. 192 - 193.
73 Ibidem. p. 196.
74 Ibidem. p. 194.
75
Ibidem. p. 231.76 Ibidem. p. 243 - 244.
77 Ibidem. p. 274.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 147/199
145
Percebemos que a negligência militar de Afonso II tanto na Batalha de Navas de
Tolosa quanto na tomada de Alcácer, onde o rei se fazia representar pela nobreza militar,
pelas Ordens Militares e pelas tropas concelhias sob a liderança do bispo do Porto 78, foi alvo
de severas críticas de Herculano
Nos reinados anteriores Herculano destacou a importância de organizar o Estado e a
sociedade portuguesa, contudo a estruturação defendida e enfatizada por Herculano tinha por
princípio a defesa dos costumes e tradições locais representadas pelos Concelhos, que
homologavam via sanção régia os costumes da população local e o respeito ao direito de
propriedade de todos os segmentos da sociedade portuguesa. Os primeiros reis portugueses,
via de regra, respeitavam as propriedades. As exceções eram fruto da “barbaridade e
incerteza dos tempos”79 e mesmo as propriedades dos árabes nos territórios conquistadoseram respeitadas, porém subjugadas a “impostos feudais”80 da mesma forma que as
propriedades cristãs. No entender de Herculano o estado da Propriedade era o mais
importante, “ou antes, o que resume todos” os fenômenos peculiares que distinguem a
“índole” portuguesa dos demais Estados da Península81. Descentralização e respeito ao direito
de propriedade eram tradições que deveriam ser respeitas e mantidas como base do Estado e
da sociedade portuguesa.
A centralização empreendida por Afonso II feria estes dois princípios ao colocar osinteresses pessoais do rei em evidência e subjugar os direitos e as tradições nacionais e
colocá-los em segundo plano:
Absolutamente falando, as confirmações gerais e os inquéritos sobre o estado da fazenda pública representam um pensamento de organização e de ordem; mas, se atendermos àscircunstâncias em que ainda se achava a nação, aos motivos que os haviam suscitado e àfrouxidão em prosseguir no antigo sistema de dar força e energia ao povo por meio dasinstituições municipais, é licito crer que essas e outras providências análogas patenteiam maisos impulsos do interesse pessoal do que o desejo de constituir e ordenar a sociedade civil.Afonso teve dois dotes eminentes, a economia e a firmeza governativa, teve-os, até, com
excesso; mas esses dotes estavam longe de bastar à necessidade dos tempos. 82
78 Sobre a participação portuguesa em Navas de Tolosa, cf. HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa:Bertrand, 1981. p. 210-212. Uma nova crítica ao desinteresse de Afonso II na conquista de Alcácer diante da prioridade domonarca em centralizar o poder, cf. Ibidem. p. 276.
79 HERCULANO, Alexandre. Apontamentos para a História dos Bens da Coroa e dos Forais. In:______. Opúsculos. 3.ed.Lisboa: Bertrand. [190-]. p. 193.v.5.
80
Ibidem. p. 191.81 Ibidem. p. 188.
82 Idem. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 329.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 148/199
146
Vimos nos reinados anteriores que os concelhos são considerados instituições de
grande importância para Alexandre Herculano e a expansão das instituições municipais em
conjunto com a política de povoamento de Sancho I foi objeto de aprovação pelo autor. No
reinado de Afonso II os concelhos, no entender de Herculano, não foram valorizados,
justificando as suas críticas à política centralizadora de Afonso e a indicação do pequeno
número de forais municipais expedidos por Afonso II nos arquivos é utilizada para corroborar
estas críticas à centralização empreendida pelo monarca em que “O calor de vida que os seus
antecessores tinham procurado atrair à periferia do corpo social buscava ele concentrá-lo na
cabeça e no coração da república”83.
A comparação com Sancho I era inevitável. Se Herculano classificou Sancho I como
“um rei essencialmente municipal ”, Afonso II tinha-se “afastado daquela senda”84. Entre asconsiderações e críticas de Herculano quanto ao abandono da expansão concelhia por Afonso
II, observamos uma interessante relação entre Concelhos e Rei que, reforçando a ideia dos
Concelhos como meios de contenção dos interesses do Clero e da Nobreza, explica a crise
política crônica no reinado de Afonso II e os seus desdobramentos que, para Herculano,
influenciaram decisivamente o reinado de Sancho II, sucessor de Afonso II:
Em suma, ao passo que os seus actos indispunham contra ele as duas altas ordens do Estado(Clero e Aristocracia), porque tentava cercear-lhes o poderio e a influência, Afonso IIesquecia-se de que a força do ceptro não estava tanto na autoridade real como naanimadversão do povo contra as classes privilegiadas e de que o multiplicar os grémios
populares não era mais do que desenvolver novos meios de triunfar dessas classes. 85
De acordo com este ponto de vista, podemos afirmar que Herculano entendia que a
centralização política levada a cabo por Afonso II pecou por não buscar o apoio dos “ grémios
populares” nos embates contra o Clero e setores da Nobreza mas, paradoxalmente, este apoio
das comunidades concelhias dependia da manutenção da expansão e das suas liberdades e
privilégios, o que, entendemos, caracteriza uma descentralização administrativa, jurídica e
fiscal, dadas as diferentes atribuições constantes nos forais que regiam as relações entre rei e
municípios. Mas esta descentralização, mesmo que deixasse escapar do controle régio
atribuições que eram vistas por Afonso II como prerrogativas régias, não implicava o
enfraquecimento da autoridade real pois, lembremos, a outorga dos forais, as obrigações
estabelecidas e a sanção à escolha dos administradores municipais cabia ao rei. Portanto, a
83 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 310.
84 Ibidem. p. 317.
85 Ibidem. p. 318 - 319.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 149/199
147
descentralização fundamentada nos municípios não implicava uma anomia e sim uma
delegação e concessão de atribuições pelo rei aos vizinhos dos concelhos que, em
contrapartida, assumia as distintas funções concelhias que Herculano apontou: povoamento,
apoio político ao Rei, fonte de arrecadação fazendária para Reis e prestação de serviços
militares.
Quanto ao direito de propriedade, observamos, através das observações de Herculano,
que a política centralizadora de Afonso II colocava em xeque este direito ao questionar as
doações feitas pelos reis anteriores gerando, em conseqüência, uma insegurança jurídica ao
romper com a tradição e os costumes vigentes quanto ao direito de propriedade:
as doações de terras, quer aos nobres, quer ao clero, quer aos concelhos, feitas pelos reisanteriores constituíam uma série de actos, senão ilegais, ao menos transitórios e dependentes
da vontade do sucessor da coroa, que por essas mercês se podia dizer defraudado.86
A posição de Afonso II quanto à necessidade de referendar as doações de seus
antecessores, manifestada por ocasião das disputas com seus irmãos e irmãs sobre o
testamento de Sancho I, foi mais uma argumento utilizado para defender os seus intentos87. O
ônus político deste argumento foi a divisão da Aristocracia entre o partido do rei e o dos
infantes, visto que o segmento da Aristocracia favorável aos infantes temia que o mesmo
argumento fosse utilizado para contestar as doações e privilégios outorgados pelo
antecessores de Afonso II88. No entender de Herculano, o direito fundiário encontrava-se
estruturado naquele momento:
Por muito rudes que fossem os homens daquelas eras, as fórmulas da administração da justiça,os princípios de direito que serviam já nos tribunais para a resolução dos pleitos e mil outrascircunstâncias da vida civil nos provam que o conhecimento dos diversos modos de possuir e
o desejo de fixar as condições da propriedade estavam mais ou menos generalizados.89
Em 1220 Afonso II instituiu as Inquirições Gerais, espécie de censo para levantar a
situação jurídica das diversas propriedades, direitos senhoriais e padroados da Igreja e da
Nobreza. Herculano vê esta medida em si positiva, pois o levantamento da propriedade e dos
privilégios fundiários era necessário para o controle do reino, mas critica a sua utilização
86 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 244.
87 Afonso II também se baseou nas leis sobre a não alienação dos bens públicos para amparar a contestação do testamento de
Sancho I. Cf. Ibidem. p. 244.88 Ibidem. p. 244.
89 Ibidem. p.244.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 150/199
148
como instrumento de pressão sobre o Clero e a Aristocracia, agravando ainda mais o
sentimento de insegurança jurídica existente no reino e a crise política entre o rei e as classes
privilegiadas, pois “as inquirições iam abalar directamente as fortunas dos barões,
cavaleiros e clérigos, fortunas que, a bem dizer, se estribavam unicamente na propriedade
territorial ”90.
O uso político não era a única crítica que Herculano tecia às Inquirições gerais. Os
critérios utilizados também eram questionados, pois a manutenção da propriedade podia ser
contestada com base em testemunhos falsos sem levar em consideração o testemunho do
proprietário ou a existência de documentos e registros que confirmassem o direito. Mesmo
havendo recurso à Cúria Real, “a falta de documentos escritos que se daria muitas vezes, as
delongas e os gastos das demandas e, em geral, a incerteza do direito faziam com que oremédio estivesse longe de ser completamente eficaz ”91. O direito de defesa do proprietário ou
detentor do direito não era garantido e os custos e os longos prazos legais restringiam-no
ainda mais.
Se, no início do reinado, Afonso II fez um trégua temporária com o clero, e “ Afonso II
soubera, ao menos, afastar com arte o perigo mais formidável, as discórdias com o clero”92,
novos embates reanimaram as rivalidades entre o rei e a Igreja. Além das Inquirições Gerais,
houve a intervenção de Afonso II no conflito entre o Bispo e o Deão de Lisboa, gerandodesconfiança entre o Clero por violar a promessa de não intervir em assuntos eclesiásticos
feita no início do seu reinado93. Utilizando a prerrogativa de protetor da Igreja portuguesa,
concedida por Inocêncio III, Afonso II impôs o seu domínio sobre o Clero, passando a cobrar
obrigações fiscais e jurídicas94 e anulou as mercês e doações feitas à Igreja e ao Clero,
cobrando impostos de propriedades das ordens militares, mosteiros e demais instituições
clericais95. Mesmo excomungado e com o reino colocado em interdito, Afonso II manteve as
suas determinações quanto ao clero e conseguiu evitar o estabelecimento da Inquisição emPortugal96.
90 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2 .Lisboa: Bertrand, 1981. p. 310 e 311.
91 Ibidem. p. 315 - 316.
92 Ibidem. p. 278.
93 Ibidem. p. 281 - 283.
94 Ibidem. p. 285.
95 Ibidem. p. 291.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 151/199
149
Se as divisões no seio da nobreza e as consequentes disputas entre os grupos foram
uma constante durante o reinado de Afonso II, tanto em virtude da insegurança jurídica
decorrente das disputas com os infantes pelo testamento de Sancho I, quanto pelo
estabelecimento das Inquirições Gerais, a predileção por grupos aristocráticos para o exercício
de cargos administrativos acirrava ainda mais o clima de tensão. Se “até o fim da vida, Afonso
conservou o génio ávido e ao mesmo tempo cioso de poder que nos revelam os actos capitais
do seu reinado”97, mantendo as diretrizes centralizadoras e as divergências entre o rei e a
Aristocracia e no interior desta, Herculano destacou que estes embates foram prolongados e
potencializados no reinado seguinte, contribuindo para a deposição de Sancho II98. As
disputas no seio da Aristocracia foram assim resumidas por Herculano no início do Livro V,
que versa sobre o reinado de Sancho II:
Assim os indivíduos que haviam tido mais influência e poder durante o governo de Afonso II;os ricos-homens que exerciam os principais cargos do Estado e os privados do monarcafalecido ficavam virtualmente revestidos da suprema autoridade, que só em nome pertencia ao príncipe ainda na puerícia: deve, portanto, o alvedrio deste considerar-se como alheio aossucessos daqueles primeiros anos da sua vida pública. Conforme vimos já, o sistema
administrativo do reinado anterior gerara necessariamente desgostos entre a nobreza. 99
Herculano encerrou a análise do reinado de Afonso II mencionando as poucas
referências ao monarca nas tradições portuguesas. Para o autor, este esquecimento resulta dofato de Afonso II ser “uma contradição, um anacronismo no meio da sua época, e a geração
que passava e a que vinha deviam esquecê-lo”, por contrariar as tradições e costumes da
sociedade portuguesa e por fugir das responsabilidades militares, delegando-as ao Clero e à
Aristocracia o “o duro mister da guerra, recuando como aterrado ante o reluzir das
espadas”. As poucas menções a Afonso II nas fontes, ainda de acordo com Herculano, diziam
respeito à conquista de Alcácer que, conforme vimos, foi resultado da iniciativa privada e,
portanto, “vitória na verdade de grande glória, mas que não lhe pertencia” 100
.
Afonso II foi um dos reis mais criticados por Herculano nas suas obras históricas. A
única menção positiva feita a Afonso II por Herculano foi na História da Origem e
96 HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América,[198-?]. p. 36 - 37. v.5.
97 Idem. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 326.
98
Ibidem. p. 231.99 Ibidem. p. 348 - 349.
100 Ibidem. p. 329.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 152/199
150
Estabelecimento da Inquisição em Portugal e versa sobre as resistências do monarca às
tentativas da Igreja em estabelecer a Inquisição em Portugal, menção que consideramos
positiva tanto pela defesa da tolerância religiosa quanto pelo contexto histórico trabalhado na
obra.
A tentativa de centralização política e as disputas familiares sobre o espólio de Sancho
I geraram grande instabilidade e acirraram as tensões com o Clero e com a Aristocracia, pois
geraram uma insegurança jurídica agravada pelas Inquirições Gerais que foram utilizadas
como instrumento de pressão contra estes grupos. O estabelecimento de poucos concelhos
durante o reinado de Afonso II pode ser associado às tentativas de centralização, fato que,
paradoxalmente, enfraqueceu o rei nas suas contendas com as classes privilegiadas, pois
restringiu a base de apoio político do rei.Em síntese, as tentativas de centralização empreendidas por Afonso II resultaram
numa tremenda instabilidade política e institucional que, aliada à delegação da guerra a
particulares, como setores da Aristocracia e do Clero na conquista de Alcácer e de tropas
concelhias na batalha de Navas de Tolosa ao lado do rei de Castela, relegaram Afonso II ao
esquecimento nas tradições portuguesas sendo, portanto, um exemplo a ser evitado.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 153/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 154/199
152
3.1.4 Sancho II - 1223/1248
Sancho II foi personagem da obra de Herculano apenas no Livro V da História de
Portugal. Antes mesmo de dedicar-se ao reinado de Sancho II, Herculano antecipou a sua
deposição quando ainda analisava o reinado de Afonso II101 ao indicar as tensões entre o rei e
a nobreza, aprofundadas a partir da ascensão de Sancho II ao trono. “Carregada e
melancólica rompia a aurora do reinado de Sancho II ”102 em virtude das disputas entre os
integrantes da aristocracia por espaço político na regência do novo rei, reproduzindo o “
sistema político dos ministros e privados do rei falecido (que) estribava-se no ciúme de poder
e na espécie de avidez febril que principalmente caracterizara Afonso II ”103.
A ênfase da análise do reinado de Sancho II por Herculano é o conflito entre o rei e asclasses privilegiadas e os confrontos no interior destes grupos, divididos diante da
instabilidade política estabelecida ainda no reinado de Afonso II e agravada no reinado de
Sancho II.
Herculano afirmou que, por ser menor de idade, contando com 13 anos por ocasião da
ascensão ao trono, Sancho II foi tutelado por “vassalos” de Afonso II que, no vigor da
regência, atuavam sem a fiscalização e controle do jovem Sancho, pois “o novo rei era
demasiado moço e não dava aos actos dos seus mais tutores que ministros a força moral da
própria vontade”104 e, por isso, os seus validos tinham total liberdade de atuação105.
Apesar de o silêncio das fontes nos primeiros anos da regência indicar paz interna e
estabilidade, Herculano aponta o inverso, uma instabilidade política em virtude das constantes
mudanças nos cargos administrativos, indicando um embate no seio da Aristocracia pelo
poder:
Sem chefe supremo que os contivesse a todos, cada um dos prelados, dos cortesãos e dos barões das províncias era levado naturalmente a pretender para si a suma preponderância e alançar mão dos variados elementos de desordem que a situação política do reino lhesfacultava. É assim que nós explicamos as rápidas mudanças dos indivíduos que aparecem aolado de Sancho, até o pobre monarca chegar a uma idade capaz de ter alvedrio próprio na
escolha dos seus conselheiros e ministros.106
101 HERCULANO, Alexandre. História de Portuga, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 231.
102 Ibidem. p. 347 - 348.
103 Ibidem. p. 347 - 348.
104
Ibidem. p. 348.105 Ibidem. p. 348 - 349; 357 - 358.
106 Ibidem. p. 359 - 360.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 155/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 156/199
154
As concessões feitas à Igreja portuguesa, contudo, não encerraram as disputas entre o
Trono e o Altar. Herculano destacou que a instabilidade política decorrente das disputas
internas da nobreza também envolveu clérigos portugueses que buscavam ampliar seus
poderes113. As tentativas de centralização empreendidas por Sancho II e os sucessos militares
do monarca diante dos sarracenos, fatos que Herculano relacionou e se dedicou a analisar e
que por isso serão destacados adiante, acirraram as disputas com o clero. Apesar de a nobreza
não ter oferecido maiores resistências ao ímpeto centralizador de Sancho II:
A Igreja, porém, guardava em reserva as suas mais fortes armas para sustentar o própriodireito ou o que ela considerava como tal; restavam-lhe a protecção de Roma e as censurascanónicas para defender os bens terrenos e os cómodos e as vantagens do estado eclesiástico.114
O contexto europeu não era favorável a Sancho II neste embate com o Clero
português, que se estendia desde o reinado de Sancho I. As disputas entre o Papado e o
Imperador Germânico tornavam-se mais violentas, e o Papa Inocêncio IV precisava reafirmar
a supremacia do poder espiritual sobre o poder temporal na Europa115 e a situação política em
Portugal era propícia para a demonstração de força da Igreja para as monarquias europeias
que “lutavam braço a braço (com a Igreja) para decidir a qual delas pertenceria o futuro das
nações” e, no caso português, esta disputa tinha mais força, segundo Herculano, devido àReconquista em que, pressupomos, a expansão territorial sobre o Gharb abria maiores
possibilidades de domínio territorial e político116. Outro fato mencionado por Herculano que
fortaleceu as críticas do clero a Sancho II foi a indicação de judeus para cargos na Fazenda
pública117.
Herculano aponta o ano de 1244 como o marco inicial das articulações clericais para
depor Sancho II sob o argumento de inabilidade política, sendo, portanto, necessário retirá-lo
do poder. Para atingir este objetivo, era necessário reforçar a imagem de incapaz; o pretextoutilizado foi a anarquia decorrente dos embates aristocráticos que se estendiam por toda a
sociedade desprotegida que sofria nas mãos da fidalguia. Mas também era necessário
encontrar um substituto para o rei inepto que fosse português para não ferir os brios
113 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 376-378.
114 Ibidem. p. 379.
115 Ibidem. p. 492 - 493.
116 Ibidem. p. 406.
117 Ibidem. p. 417 e 418 e Idem. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América,[198-?]. p. 58.v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 157/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 158/199
156
A exemplo dos monarcas analisados na História de Portugal , Herculano não poderia
deixar de lado os concelhos que, mesmo merecendo pouco destaque, foram mencionados
como possíveis instituições de suporte político a Sancho II.
Herculano mencionou que Sancho II e seus validos incentivaram o povoamento e o
surgimento de concelhos nas áreas fronteiriças do Alentejo com o Gharb124. Numa outra
passagem Herculano mencionou que, diante da ameaça representada pelos embates com o
clero e parte da Nobreza, “os conselheiros de Sancho” promoveram a expansão concelhia
apenas nos territórios próximos à fronteira com o Gharb, ou seja, expansão limitada que, se
fosse mais difundida, poderia servir de suporte à Coroa nas suas contendas contra os
poderosos125. Ao mencionar mais uma vez a atribuição política dos concelhos como
sustentáculo político do rei Herculano, cita Schaefer, que defende ser a primeira etapa dahistória de Portugal marcada pelo “desenvolvimento municipal” e pelas “contendas com o
clero”. Herculano inverte a ordem proposta por Schaefer ao afirmar que o desenvolvimento
dos municípios ocorreu em virtude das disputas reais contra o clero, sendo que o “aumento
rápido dos concelhos vinha depois; vinha, até, em parte, como consequência da primeira”126.
A vocação militar de Sancho II, “ príncipe dotado de nobres e guerreiros instintos,
mas pouco apto para o governo da paz ”127, foi outro aspecto mencionado por Herculano, e as
suas vitórias foram importantes para conter temporariamente os ímpetos da nobreza e tentarfortalecer a autoridade do monarca128. Para Herculano o caráter bélico da monarquia,
fundamentado no direito visigótico, tinha na expansão militar a sua fundamentação política e
mesmo religiosa, visto que exercia “um terrível sacerdócio”, principalmente em virtude da
face religiosa da Reconquista129 e para reforçar este ponto de vista Herculano citou a heroica
participação de Sancho II na conquista de Elvas, que contribuiu para “uma certa estabilidade,
mas que não foi assaz longa para impedir as fatais consequências das fases violentas e
destruidoras por onde durante três ou quatro anos a nação havia passado”
130
.
124 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 392.
125 Ibidem. p. 408.
126 Ibidem. p. 406.
127 Ibidem. p. 484.
128
Ibidem. p. 370 - 371.129 Ibidem. p. 408-410 - 427.
130 Ibidem. p. 376.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 159/199
157
Quanto à administração de Sancho II, Herculano mencionou que o monarca tentou
reproduzir, em menor escala, a política de incentivo ao povoamento de Sancho I e a
centralização fiscal e administrativa empreendida por Afonso II, bem como a retomada das
conquistas territoriais no Gharb, praticamente paralisadas no reinado anterior 131. A
implementação total destas medidas foi dificultada pelas constantes instabilidades políticas
acima descritas e que foram decisivas para a deposição de Sancho II e por dois outros fatores:
a personalidade do monarca, “ora rei, ora homem de armas, vacilante entre os impulsos
encontrados destas duas ideias”132 e a formação de uma nova elite administrativa que,
ascendendo dos estratos inferiores da Aristocracia, não tinha a habilidade necessária para
conduzir os negócios de Estado133, sendo este o principal “erro ou fraqueza” pois sem
ministros hábeis e capazes Sancho II não tinha suporte político contra as pretensões daAristocracia e, principalmente, do Clero e faltava a Sancho II o aparato burocrático para
suprir “os dotes de rei que a educação puramente militar e o próprio carácter tornavam
impossíveis nele, e cuja falta, se não foi a causa da sua ruína, deu ao menos para ela
pretextos e facilidade”134.
Nos últimos parágrafos destacamos uma longa observação feita por Herculano sobre a
relação entre os reinados de Afonso II e Sancho II que nos parece indicar uma questão que
transcende a aparência moralista e religiosa empregada por Herculano.
Chegado, porém, à conclusão deste livro, pôr-lhe-emos remate com uma reflexão, que, em proveito da família e da sociedade, nos parece deve ser meditada. Afonso II, o leproso, buscando pretextos para espoliar suas irmãs da herança paterna, proferira sobre as cinzasainda quentes de Sancho I a expressão insultuosa de mentecapto. Seu filho e sucessor eradespojado da coroa por um irmão, e os seus espoliadores, para anularem as mercês e dádivasque fizera, declararam-no insensato. Verificava-se, acaso, no rei desterrado essa misteriosasentença bíblica de que a punição de um pai criminoso vem muitas vezes recair sobre seusfilhos? Talvez: embora a sabedoria humana, que se crê mais profunda que a de Deus, sorria
dessa ideia, que lhe repugna, porque não sabe explicá-la!135
Nestes últimos parágrafos Herculano menciona que a desdita da Sancho II pode ter
relação com os pecados de Afonso II, seu pai, que, mesmo morrendo relativamente jovem e
acometido, como Herculano faz questão de lembrar, por uma moléstia incurável e fisicamente
degradante, legou ao filho a culpa pelos seus pecados, purgados com a deposição encabeçada
131 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. 392 et seq.
132 Ibidem. p. 444.
133
Ibidem. p. 442.134 Ibidem. p. 447 - 448.
135 Ibidem. p. 542.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 160/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 161/199
159
REI OBRA CARACTERÍTICASPOSITIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
CARACTERÍTICASNEGATIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
SANCHO II1223/1248
História dePortugal Tomo II
Livro V
Acordo com as irmãsde Afonso II
Conflitos com anobreza e no interiorda nobreza
Vocação militar eguerra como meio deafirmação do poderreal frente à nobreza
Conflitos com o clero
Povoamento econcelhos
Concessões ao clero
Presença de judeus naadministração régia Tentativas decentralizaçãoApoio popular ao rei
História da Origeme Estabelecimentoda Inquisição emPortugal Vol. 1
Presença de judeus naadministração pública.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 162/199
160
3.1.5 Afonso III – 1248/1279
Ainda no Livro V, Herculano começou a traçar a imagem de Afonso III, então Conde
de Borgonha. A passagem mais destacada sobre o Conde de Borgonha versa sobre o silêncio
das fontes quanto aos detalhes da guerra entre Sancho II e o seu irmão. Herculano entendeu as
poucas informações contidas nas fontes sobre este evento como um esquecimento forçado,
imposto pelo partido vencedor, e pelo seu líder, de um conflito em que os partidários de
Sancho II lutavam contra as “exagerações dos bispos” e “contra a linguagem hipócrita do
infante, a quem a resistência do reino estampava na fronte o ferrete de usurpador ”136.
No Livro VI, Herculano não repetiu a acusação de usurpador contra Afonso III, mas
em diversos trechos o autor se refere a Afonso III como Conde de Borgonha, título de que
Afonso III abriu mão ao assumir o trono português. A repetição desta referência por
Herculano é relevante, pois nos autoriza a pressupor que a alusão frequente ao título exercido
pelo monarca antes da deposição de Sancho II era uma forma de o autor lembrar a usurpação
do trono de Sancho II pelo seu irmão e, consequentemente, contestar a legitimidade de
Afonso III.
A análise de Afonso II e seu reinado, feita por Herculano, destacou muitos fatos que
ocorreram nos reinados de seus antecessores: conflitos com o clero, disputas com a nobreza,
campanhas militares e a importância dos concelhos. Começaremos a nossa exposição pelo
último elemento destacado, pois entendemos que Herculano vê a aproximação entre Afonso
III e os concelhos e os grupos concelhios como uma forma de legitimação buscada pelo
monarca, dadas as circunstâncias da sua ascensão ao poder.
O “ ferrete de usurpador ” estampado na fronte de Afonso III não era o único nem o
principal problema encontrado pelo monarca no início do seu reinado. Como vimos, ao
analisarmos a aliança formada entre o Papa, o clero português e o Conde de Borgonha paradepor Sancho II, o futuro rei de Portugal assumiu um compromisso pelo qual, para Herculano,
o poder civil se subordinava totalmente ao Clero137 e os fidalgos que lutaram ao seu lado
exigiam a contrapartida pelo apoio e os grupos que apoiaram Sancho II mostravam a sua
insatisfação. A situação interna portuguesa era marcada, segundo Herculano, pela “anarquia,
136 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.2. Lisboa: Bertrand, 1981. p. 519.
137 Cf. Ibidem. p. 516. Sobre as concessões feitas, cf. Ibidem. p. 513-515.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 163/199
161
filha dos ódios civis, (que) tinha dado espantoso incremento aos hábitos de violência e
rapina, que a bruteza da época bastava para alimentar ainda no remanso da paz ”138.
Restabelecer a ordem interna, criar condições para a expansão territorial portuguesa e
consolidar o Estado e a organização da sociedade portuguesa eram medidas necessárias que,
para verem a luz do dia, necessitavam de que o monarca tivesse um apoio sólido e fosse
legitimado pela sociedade e entendemos que Herculano destacou a aproximação entre Afonso
III e os concelhos, cujas funções foram enumeradas diversas vezes por Herculano nos
reinados anteriores, para explicar a forma como o novo monarca buscou apoio político e
legitimidade. No relato da chegada do Conde de Borgonha a Portugal para lutar contra Sancho
II, Herculano faz menção à conservação dos foros e costumes antigos do Concelho de Lisboa
pelo Conde de Borgonha, por ocasião da sua chegada à cidade em 1246, prometendo revogaroutros foros prejudiciais aos interesses dos habitantes do concelho lisboeta139. A “ Política
judiciosa” de Afonso III, que buscava a aproximação dos concelhos para fortalecer-se diante
de parte da fidalguia que o hostilizava, foi umas das primeiras observações feitas por
Herculano no início do Livro VI:
Estes primeiros actos do seu reinado (confirmação e acréscimos dos privilégios dos concelhosde Lisboa e Freixo), na verdade insuficientes para caracterizar com evidência qualquer
sistema de governo, indicam, todavia, até certo ponto, que Afonso III, inimizado com uma parte da fidalguia, como os factos anteriores e ainda alguns subsequentes o manifestam, buscava fortificar-se com a benevolência dos concelhos, que diariamente iam ganhando
importância, recursos e, portanto, influência política.140
As reformas administrativas e fiscais que buscou implementar, e que serão analisadas
mais adiante, também tinham nos concelhos, “ súbditos imediatos da coroa” e aliados de peso
de Afonso III, que implantou leis severas para coibir os abusos dos delegados régios nos
concelhos, proteger a população concelhia e “reconduzir os tributos ao seu legítimo
destino”141
. Numa outra passagem, Herculano teceu uma comparação entre a situação dosnobres e dos concelhos diante das reformas administrativas e fiscais e do desenvolvimento
econômico ocorridos durante o reinado de Afonso III. Para Herculano, “o futuro pertencia aos
Concelhos”, tendo em vista que o progresso econômico e os direitos estabelecidos nos forais
138 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.3. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 32 - 33.
139
Ibidem. p. 517 - 518.140 Ibidem. p. 16 - 17.
141 Ibidem. p. 112 - 114.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 164/199
162
que fortaleciam a burguesia enquanto as Inquirições Gerais e as decorrentes reformas de
Afonso III enfraqueciam a nobreza142.
A ampliação do poder de representação política dos concelhos ocorreu, no entender de
Herculano, nas Cortes de Leiria de 1254 em que o objetivo era “reparar os males públicos
agravados pela guerra civil (deposição de Sancho II e conflitos internos) e estrangeira
(conflitos com Castela pelo controle do Algarves)”143. Segundo o autor, estas Cortes contaram
com a participação de representantes dos concelhos, delegados do “ povo, constituído e
vigorizado lentamente, vê enfim assentarem-se os seus representantes no conselho dos reis, e
a voz do homem de trabalho patentear solenemente os seus agravos e invocar os seus direitos
contra as classes privilegiadas”, fato inédito na história do país144 e, por extensão, um reforço
na aliança política entre rei e concelhos, bem como um passo em direção à legitimação deAfonso III através do reconhecimento da importância das instituições municipais e da
“ garantia da sua conservação futura”145. A concessão de Afonso III para a representação dos
concelhos, que Herculano classifica como “ Progresso social ”, foi resultado da influência
sofrida pelo ex-Conde de Borgonha na corte de Luis IX de França, que oferecia “aos
príncipes eficazes exemplos da arte de reinar. De lá trouxera mais de uma ideia de progresso
social, que é visível no seu reinado”146. A afirmativa feita por Herculano no tocante à menção
de “ progresso social ”, associada à convocação de delegados burgueses para o parlamento, foifundamentada na observação feita por Guizot na obra Civilisation en France, sobre a
experiência parlamentar e representativa do povo francês147.
A conjuntura foi favorável aos concelhos e seus habitantes, na seara econômica
também, e as evidências de prosperidade do país consistiam no “acréscimo dos metais
preciosos, da riqueza monetária, não do rei nem da nobreza ou do clero, em cujas mãos
parecia dever achar-se acumulada essa riqueza, mas nas dos vilãos, principalmente dos
concelhos”
148
. De acordo com Herculano, foi a prosperidade econômica que possibilitou ocrescimento dos concelhos existentes e o surgimento de novos concelhos e não a iniciativa de
142 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal,t.3. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 145 - 146.
143 Ibidem. p. 49.
144 Ibidem. p. 51.
145 Ibidem. p. 52.
146
Ibidem. p. 73.147 Cf. nota 90 in Ibidem. p. 73.
148 Ibidem. p. 76 - 77.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 165/199
163
Afonso III, apesar do grande número de forais por ele outorgados, que regularizam uma
situação já existente, ou seja, normatizam o controle político e fiscal sobre povoações criadas
neste pico econômico e estabelecendo, em contrapartida, direitos e privilégios, buscando
ampliar a sua base de apoio149.
A reforma da administração pública foi uma preocupação de Afonso III, realçada por
Herculano, pela qual “ Desde o começo do seu reinado o conde de Bolonha procurara imitar,
pelo que tocava à fazenda pública, o sistema severo de seu pai na reivindicação e aumento
dos direitos reais”150.
No aspecto jurídico, uma medida instituída por Afonso III que mereceu destaque foi a
tentativa de revogação da Revindicta, costume que pode ser definido como exercício privado
da justiça em que o ofendido, ao invés de buscar os tribunais, atentava contra a vida doofensor e, uma vez morto o ofensor, o ofendido podia se apropriar de bens do ofensor 151.
Herculano destacou outra reforma jurídica considerada “uma comédia representada
com toda a solenidade”: a criação de uma instância na Cortes de Santarém de 1273, cujo
objetivo era reformar os atos e determinações do rei e de seus ministros considerados
injustos, sendo as suas determinações plenamente acatadas por Afonso III. Para Herculano
esta medida, implementada diante das determinações do Papa e impostas ao rei ao longo das
muitas contendas com o clero, não tinha efeito prático pois os integrantes dessa instância eramadministradores ligados diretamente ao rei e validos que decidiam sempre a favor de Afonso
III152.
Quanto à tributação, “as tendências, o pensamento característico da política interna
do seu reinado, é a simplificação e o acréscimo do tributo”153 e para atingir estes objetivos
Afonso III recorreu à modificação da cobrança tributária e a novas Inquirições Gerais.
Até o crescimento econômico ocorrido durante o reinado de Afonso III, o sistema
tributário era baseado na cobrança in natura, gerando um complexo e falho regime fazendário, possibilitando abusos e distorções154. Com a difusão da moeda, resultando do dinamismo
comercial, “adquiriu então certo carácter de generalidade que indica um pensamento
149 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.3. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 77.
150 Ibidem. p. 73.
151 Ibidem. p. 33 - 34.
152
Ibidem. p. 170.153 Ibidem. p. 108.
154 Ibidem. p. 77 - 78.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 166/199
164
administrativo, um cálculo fiscal ”155, criando condições para a simplificação da cobrança de
impostos:
A reforma na economia tributária que atribuímos ao reinado deste príncipe consistiu naredução das prestações em géneros e serviços a uma certa soma anual em dinheiro paga, porvia de regra, aos terços. Esta mudança operava-se por um contrato, e esses forais, que têm passado por verdadeiras cartas de povoação, vêm a ser, na realidade, apenas os títulos de tais
conversões.156
Voltamos a mencionar a importância dada por Herculano ao surgimento de novos
concelhos e o crescimento dos existentes. A afirmativa que a expansão concelhia foi resultado
da prosperidade econômica é reforçada pelo estabelecimento de novos forais que
normatizaram o controle político e fiscal sobre povoações criadas neste pico econômico eestabelecendo, em contrapartida, direitos e privilégios:
ao passo que a percepção dos impostos se facilitava e simplificava, os concelhos se iamconvertendo numa espécie de pequenas repúblicas unidas pelos laços da monarquia, e até asaldeias de pouca monta obtinham, a troco de semelhantes substituições, privilégios cuja
natureza era a de verdadeiras garantias políticas.157
Afonso III retomou as Inquirições Gerais instituídas no reinado de Afonso II como
instrumento de controle fiscal e administrativo
158
que resultaram nas mudanças fiscais e noestabelecimento de restrições nas explorações, posse e administração dos bens da Coroa e dos
concelhos resultantes das Inquirições de 1258159. Para Herculano, que havia criticado as
Inquirições de Afonso II, as Inquirições Gerais de Afonso III são formas legítimas e
ocorreram dentro da ordem legal, pois:
não obstante estribar-se na índole e natureza do delapidado património público e conter-serigorosamente nos limites das atribuições do rei, era um acto de certo modo revolucionário,que forçosamente havia de agitar todo o reino e em especial os distritos do Norte; porque feria
milhares de interesses e alterava milhares de situações, e porque o abuso, convertido pela sualonga existência em costume, era quase direito, ideias que na Idade Média facilmente se
confundiam. 160
155 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, t.3. Lisboa: Bertrand, 1980. p. 79.
156 Ibidem. p. 79.
157 Ibidem. p. 81.
158
Ibidem. p. 84 - 85.159 Ibidem. p. 110-116.
160 Ibidem. p. 117 - 118.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 167/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 168/199
166
aprovação dos delegados dos grupos sociais portugueses. Portanto, Herculano via nestas
Cortes o estabelecimento de princípios e práticas que ele defendia no século XIX e que
haviam sido tolhidas durante o Antigo Regime português. De posse dessa conjectura,
retomamos a questão da legitimidade de Afonso III que, pressupomos, estava implícita no
pensamento de Herculano, quando foi mencionada a aproximação do monarca com os
Concelhos e que, em nosso entender, também estava presente no reconhecimento da
representação política e na sua necessidade para referendar a criação de novos impostos.
As reformas e modificações administrativas e fiscais afetavam os interesses das
classes superiores que, mesmo mantendo e mesmo ampliando alguns privilégios, moviam
resistências contra Afonso III. A situação interna portuguesa permanecia, em linhas gerais,
inalterada em comparação ao final do reinado de Sancho II, sendo marcada pelas“Contestações com o clero, desbarato das rendas públicas, desenfreamento da fidalguia,
queixumes dos povos opressos, eis os factos que, exagerados, tinham trazido a deposição do
soberano.”166
O acordo assinado com o clero, antes de iniciar a luta contra seu irmão pelo trono
português, enfraquecia Afonso III mas o monarca “ para contrabalançar tantos elementos de
ruína havia o que faltara à coroa no reinado antecedente, (era) um príncipe igual ao perigo,
ousado, experiente e activo”167
. A implícita busca por legitimidade e o apoio dos concelhosdestacados por Herculano eram, ainda segundo o autor, suportes para Afonso III libertar-se
das limitações impostas pelo clero que, mais uma vez usando as armas empregadas para
ameaçar e punir os monarcas portugueses, entrou em choque com Afonso III que, neste
aspecto, mereceu uma observação respeitosa de Herculano:
Dir-se-ia que a nenhum rei de Portugal era lícito ir repousar no túmulo sem pelejar umarenhida batalha com a ordem sacerdotal; e Afonso III não soube ou não pôde evitar osresultados da inconciliável antinomia do poder real e da independência quase absoluta que o
corpo eclesiástico atribuía a si próprio. 168
Diante das reformas empreendidas por Afonso III, o clero reagiu como de costume169 e
utilizou pretensas queixas contra o rei, feitas pelos integrantes dos Concelhos portugueses,
que acusavam Afonso III de cometer abusos. Para opor-se às acusações feitas pelo clero
166 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal,t.3.Lisboa: Bertrand, 1980. p. 47 - 48.
167
Ibidem. p. 47 - 48.168 Ibidem. p. 107.
169 Cf. Ibidem. p. 120 - 121.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 169/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 170/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 171/199
169
REI OBRA CARACTERÍTICASPOSITIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
CARACTERÍTICASNEGATIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
AFONSO III
1211/1223
História dePortugal Tomo
II Livro V
Articulações com oclero para ascender aotrono português
História de
Portugal TomoIII Livro VI
Aproximação com osConcelhos
Situação interna einstabilidade política
Conquistas militares Conflitos com o CleroCentralização jurídica eabolição da justiça
privada
Má gestão dos recursosfinanceiros da Coroa
Representação dosconcelhos nas cortes e“Progresso Social”Expansão comercial ecrescimento econômicoControleadministrativo,reformas fiscais eInquirições GeraisExpansão econômica econcelhos
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 172/199
170
3.1.6 D. João II – 1481/1495
O quarto monarca da dinastia de Avis foi mencionado por Herculano apenas na
História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal como um marco divisor na
política de tolerância portuguesa com os judeus. Na obra citada, o objetivo de Herculano foi
traçar o processo que levou ao estabelecimento da Inquisição em Portugal, conforme o título
indica, e antes de descrever minuciosamente as negociações entre D. João III (1521-1557) e a
Santa Sé, foco principal da obra, Herculano remontou em linhas gerais o contexto europeu
que originou a Inquisição, a política de tolerância dos reis com os judeus e muçulmanos e a
presença destes grupos na sociedade portuguesa. Protegidos pelas Ordenações Afonsinas e
“regidos por um direito público e, em muitos casos, por um direito civil especiais, ao
começar o último quartel do século XV ”, os judeus viviam em bairros separados, sendo
considerados “uma nação, de certo modo, à parte” e as manifestações e violências contra eles
eram passíveis de severas punições estabelecidas pela legislação. Muitos judeus exerciam
cargos públicos e “eram compensados com mercês, como os súditos cristãos”173. Herculano
mencionou que nos reinados de D. João I (1385-1433)174 e de D. Afonso V (1438-1481)175 os
judeus eram protegidos pelos próprios reis. A Inquisição não existia em terras portuguesas e
“Se, no século XIV, a Inquisição era em Portugal uma cousa, a bem dizer, nula e, no XV, se
achava reduzida a uma ridicularia fradesca”176.
Contudo, a situação mudou no reinado de D. João II. Se o monarca manteve os
funcionários judeus que arrecadavam impostos177, costume comum entre os reis de
Portugal178, Herculano indicou duas medidas adotadas pelo monarca que marcaram a
mudança da política de tolerância da Coroa: a imposição de duras condições aos judeus
espanhóis que fugiam da perseguição empreendida no seu reino de origem e o povoamento da
Ilha de São Tomé por jovens judeus apartados compulsoriamente de suas famílias
179
.
173 HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal. Lisboa: Europa-América,[198-?]. p. 57-59. v.1.
174 Ibidem. p. 59.
175 Ibidem. p. 61.
176 Ibidem. p. 38
177 Ibidem. p. 64.
178 Ibidem. p. 58.
179 Sobre as condições impostas aos judeus por D. João II, cf. Ibidem. p. 67. Sobre o povoamento de São Tomé por jovens judeus, cf. Ibidem. p. 69.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 173/199
171
Herculano não dedicou muitas páginas a D. João II, mas podemos perceber que a
modificação da política de tolerância em relação aos judeus não foi o único elemento
destacado. Apesar de este ser o principal tema ressaltado pelo autor, há outra questão que
envolveu esta modificação e que está implícita no reinado de D. João II, mas torna-se clara
quando os reinados de D. Manuel I (1495-1521) e D. João III (1521-1557) são mencionados
no processo de estabelecimento da Inquisição em Portugal: o aumento da influência espanhola
nos assuntos portugueses. Portanto, não era apenas a quebra de uma tradição louvável como a
tolerância religiosa, que era criticada por Herculano, mas a ameaça que passou a pesar sobre
Portugal, a submissão à Espanha e o fim da soberania nacional.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 174/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 175/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 176/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 177/199
175
REI OBRA CARACTERÍTICASPOSITIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
CARACTERÍTICASNEGATIVAS
DESTACADAS PORHERCULANO
D. MANUEL1495/1521
História da Origeme Estabelecimentoda Inquisição emPortugal Vol. 1
Liberdade a escravos judeus
Ressalvas à tolerânciade D. Manuel
Proteção aos cristãos-novos
Casamento com viúvado Infante Afonso e
perseguição aos judeusResistências aoestabelecimento daInquisição
Perseguição aos judeus e conversõesforçadas
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 178/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 179/199
177
viviam opulentamente, sem se saber como”192, as dívidas interna e externa, as despesas com a
defesa e a exploração da África, Índias e Brasil, os gastos com a construção de conventos e o
sustento de religiosos comprometiam “a fazenda do Estado com mercês de dinheiro,
verdadeiramente pródigas, feitas a cortesãos e afeiçoados”, justificando a desconfiança
quanto aos interesses econômicos para o estabelecimento da Inquisição em detrimento dos
sentimentos religiosos193. Tais problemas eram:
as tristes consequências dos erros cometidos por um príncipe ignorante e fanático, dominado por frades e por hipócritas, e que tomara por principal mister de rei perseguir a porção maisrica e mais industriosa dos próprios súditos, embora tragando afrontas, arruínando o país,abrindo o campo a todo o gênero de imoralidades, caluniando o cristianismo e desobedecendo
aos preceitos da tolerância e da caridade evangélicas.194
Além de enterrar a tradicional tolerância religiosa da Coroa, desproteger parte dos seus
súditos diante das ameaças da perseguição e abrir mais espaços para a ingerência da Espanha,
então governada por Carlos V, nos assuntos portugueses e comprometendo a soberania
portuguesa, podemos indicar que a análise de Herculano sobre D. João III destacou mais dois
equívocos do monarca: o desleixo com a administração e a desatenção aos anseios da
sociedade portuguesa, relegados a segundo plano diante das preocupações fradescas e do ódio
de D. João III a uma parcela dos seus súditos que, protegidos pelos reis portugueses desde a
independência e atuantes em setores e atividades importantes para a nação e seu
desenvolvimento, como o serviço público e as atividades mercantis, e que foram objeto do seu
ódio e discriminação.
192 HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América,[198-?]. p. 104. v.1.
193 HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América,
[198-?]. p. 99. v.2.194 Ibidem. p. 116. No volume III desta obra Herculano mencionou estas e outras medidas de D. João III que agravavam acrise econômica. Cf. HERCULANO, Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal . Lisboa:Europa-América, [198-?]. p. 20 - 26. v.3.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 180/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 181/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 182/199
180
Imperador Afonso VII, fruto do empenho e da posição inflexível de Afonso I quanto à defesa
da nacionalidade recém-libertada e que precisava ser consolidada.
A manutenção da integridade territorial e, sempre que possível, a ampliação do
território para atender as necessidades nacionais era uma das virtudes do monarca. As
conquistas de Afonso I, Sancho I, Sancho II e Afonso III e as longas e penosas negociações
com os reinos de Leão e Castela, que muitas vezes foram resolvidas nos campos de batalha,
contribuíram para a formação do território português, concluída no século XIII.
Era necessário impedir toda e qualquer tentativa de ingerência externa na vida política
da nação. As difíceis relações entre Igreja e os reis portugueses, após o reinado de Afonso I,
assim como as constantes tensões envolvendo Portugal e os demais reinos ibéricos, muitas
vezes agravadas pela política matrimonial entre as casas dinásticas, são exemplos, muitasvezes malsucedidos, das tentativas de evitar a interferência externa. Um dos pontos negativos
mais apontados por Herculano no estudo dos monarcas portugueses foi o espaço concedido e
os esforços empenhados nos conflitos e embates com a Igreja Católica, o Clero português e o
Papa. Antecipando a questão ao mencionar a enfeudação de Portugal à Santa Sé durante o
reinado de Afonso I, Herculano tratou o conflito entre Trono e Altar como uma disputa pelo
poder em que ambos os lados envolvidos buscavam ampliar o seu poder e subordinar o
oponente e, partindo do princípio de que o monarca era o representante da sociedade emantenedor da ordem, Herculano via as pretensões hegemônicas do Clero como uma ameaça
à nação e à independência de Portugal. Apesar de não ter associado os Concelhos como
presumíveis aliados dos reis nestes embates, entendemos que as menções aos inúmeros
embates e concessões ao Clero, ao Papa e à Igreja poderiam ser minimizados, caso os
monarcas buscassem o apoio dos Concelhos, pois, conforme Herculano afirmou inúmeras
vezes na História de Portugal , os Concelhos eram o principal suporte político do rei contra as
pretensões das classes poderosas, ou seja, clero e nobreza. Portanto, esta ameaça à soberanianacional e à ordem social representada pelos conflitos com a Igreja poderia ser minimizada ou
mesmo encerrada de maneira favorável aos reis, se estes fortalecessem e buscassem o apoio
dos Concelhos.
No tocante à Inquisição, a intervenção da Igreja e da Espanha decorrente do
estabelecimento do Santo Ofício e as perseguições, restrições e conversões forçadas foram
criticadas por Herculano, pois marcaram a institucionalização da intolerância e a quebra das
tradições portuguesas. Outro aspecto relevante a ser destacado: as práticas intolerantes, o
estabelecimento da Inquisição e a abertura às ingerências externas foram iniciativas dos
próprios monarcas, que buscavam ampliar seu poder, como D. Manuel, ou seguiam princípios
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 183/199
181
irracionais como o ódio aos judeus, como D. João III. Portanto, os interesses nacionais
ficavam em segundo plano diante das pretensões pessoais dos monarcas.
Ao transpor a preocupação com a nacionalidade para o contexto histórico de
Herculano, qual deveria ser a atuação do monarca para defender a nação? Pensamos que a
tenacidade demonstrada por Afonso I para impor a defesa da nação era uma virtude que
Herculano desejava encontrar nos monarcas portugueses, principalmente no seu pupilo D.
Pedro V. A manutenção, restabelecimento ou criação de instituições que representam
segmentos da sociedade, com destaque para os concelhos, tão mencionados por Herculano,
era uma necessidade para os monarcas portugueses do século XIX manterem a boa
organização social e, por conseguinte, a ordem interna. No plano internacional, o monarca
tinha que adotar uma postura forte e soberana para defender os interesses e o território portugueses, tão ameaçados no século XIX em virtude do atraso econômico português diante
dos demais países da Europa Ocidental industrializada e em pleno processo de expansão
colonial, que colocava em risco as colônias portuguesas, vitais para a economia nacional. E
com o mesmo ímpeto, o rei tinha que impedir a ingerência externa nos assuntos portugueses,
que nos oitocentos tinha como exemplo a postura ultramontana da Santa Sé que tentava impor
restrições aos direitos e conquistas liberais, como no episódio das Conferências do Cassino.
Rei e representação política da sociedade
Ao mencionar que a independência de Portugal foi um ato resultante das vontades
pessoais do então Infante Afonso Henriques e da sociedade portuguesa e a convocação de
cortes por Afonso III, que passaram a contar com a participação de representantes concelhios,
para deliberar sobre impostos e temas nacionais, Herculano construiu os monarcas como
executores da vontade dos portugueses, governando de acordo com os anseios nacionais.Portanto, o poder do rei era exercido com o aval e apoio da sociedade, pois ele, o rei,
concretizava os anseios da sociedade e, simultaneamente, mantinha a ordem social por
delegação da própria sociedade. Na visão de Herculano o rei não era um autocrata, já que
concedia uma parcela de poder para a sociedade através de instituições representativas, que
eram um elo entre rei e sociedade, possibilitando que o monarca realizasse as vontades da
sociedade, desde que em acordo com as leis e tradições do país.
Conforme destacado inúmeras vezes ao longo do nosso trabalho, o rei era, na
concepção política liberal conservadora de Herculano, a chave de toda a organização
política. O papel central do rei não indicava um modelo caracterizado pela centralização nos
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 184/199
182
moldes absolutistas, remetendo às atribuições constitucionais do monarca que consistiam, em
síntese, em zelar pelo funcionamento ideal das instituições que representam os diferentes
grupos sociais e pela manutenção do equilíbrio destas instituições que, convém repetir,
representam os diversos grupos sociais e que, portanto, possuem capacidade política. Existem
os interesses divergentes no interior destas instituições representativas e entre elas devem ser
negociados, e os impasses resultantes devem ser equacionados pelo rei. Após o
estabelecimento do Estado Liberal português em 1834 o embate entre as diversas facções
políticas gerava constantes crises políticas e a função do rei era buscar o equilíbrio, moderar
as disputas e os conflitos de interesses entre as diversas facções através da convocação de
eleições, nomeações de gabinetes ministeriais, etc., atribuições estabelecidas por uma Carta
que, no entender de Herculano, buscava restabelecer as liberdades do reino, sendo o monarca,conforme a Carta, o avalista destas liberdades.
Povoamento e Concelhos
Os Concelhos formavam a principal instituição para Herculano e vimos em diversos
momentos as suas atribuições, importância e construção histórica. Os concelhos medievais
portugueses eram a solução para os problemas enfrentados por Portugal e pelos demais paíseseuropeus no século XIX, desde que adaptados às circunstâncias históricas oitocentistas. Os
concelhos, relembrando, eram instituições que, dentre outras atribuições e características
vistas anteriormente, representavam politicamente a classe média, forneciam o suporte
político necessário ao rei e possibilitavam o equilíbrio entre os dois princípios propostos pela
filosofia da História de Herculano, característicos do estágio ideal da vida social.
O crescimento do número de concelhos através das políticas de incentivo à ocupação,
povoamento e exploração de áreas conquistadas por Sancho I e em menor grau por Sancho IIe resultante do desenvolvimento econômico ocorrido no reinado de Afonso III era, portanto,
uma expansão do poder de representação da burguesia portuguesa e da sua valorização
política e institucional junto aos monarcas durante os reinados dos primeiros cinco monarcas
portugueses, principalmente no reinado de Afonso III, quando os representantes dos
Concelhos passaram a integrar as Cortes. Se no momento de consolidação da independência
nacional e do Estado português os municípios portugueses foram relevantes por garantir os
direitos dos seus integrantes e apoiar o rei, sua contribuição também era decisiva para o
estabelecimento e consolidação do Estado Liberal português que, segundo Herculano,
buscava resgatar as liberdades medievais portuguesas ofuscadas durante o Antigo Regime.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 185/199
183
Restabelecer os concelhos e suas atribuições como uma das bases do Estado português era
fundamental para resguardar os direitos da classe média e amparar o rei no desempenho das
suas funções constitucionais, com destaque para a manutenção da ordem social e do equilíbrio
entre os grupos sociais e as instituições que os representavam.
O incentivo ao povoamento das áreas conquistadas teve uma outra importância, além
de possibilitar a expansão concelhia. Ao tratar do tema durante a análise do reinado de Sancho
I, Herculano mencionou que os novos povoados também tinham como objetivo aumentar a
produção econômica do reino. O incremento das atividades econômicas, com destaque para a
produção agrícola, remete a uma preocupação econômica de Herculano de recuperar a
combalida economia portuguesa no século XIX através da difusão da pequena propriedade
rural através da enfiteuse e da criação das Caixas Econômicas. O fomento à produção agrícolafoi a solução proposta para resolver os problemas econômicos, expandir a propriedade e,
consequentemente, o direito de voto.
Tradições e Leis
A concepção romântica de Herculano preza o resgate das tradições portuguesas como
uma forma de encontrar as soluções para o conturbado momento histórico em que ele vivia. Aexemplo das características positivas destacadas pelo autor, que buscamos reconstruir, muitas
destas tradições são entendidas como uma necessidade para estabilizar as relações sociais
portuguesas. O rompimento destas relações através de mudanças bruscas, como a contestação
do testamento de Sancho I e o estabelecimento das Inquirições Gerais para fins políticos,
desestabilizava a organização social e gerava a sensação de insegurança jurídica, pois as
tradições guardam uma relação muito profunda com as leis e, no entender do liberalismo
conservador de Herculano, são estas tradições e leis que definem as relações sociais, políticase econômicas e possibilitam o equilíbrio no interior da sociedade.
No século XIX português, a defesa das tradições e das leis deve ser uma das
características dos monarcas, pois, atuando como guardião das regras que regem o
funcionamento harmônico da sociedade, o rei impede o estabelecimento de práticas estranhas
ao costume nacional, como o estabelecimento da democracia pela revolução setembrista de
1836, veementemente criticada por Herculano em A Voz do Profeta.
Uma tradição portuguesa que Herculano entendeu que tenha sido violada nos reinados
de D. João II, D. Manuel e D. João III, é a tolerância religiosa e o respeito e proteção à
diversidade de credo e opiniões. A denúncia da violação de uma tradição que remonta às
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 186/199
184
origens de Portugal foi feita na História da Origem e Estabelecimento da inquisição em
Portugal , obra que tem declarado objetivo de criticar setores tradicionalistas da sociedade
portuguesa, principalmente do clero, que contestaram a visão de Herculano sobre a Batalha de
Ourique. Sentindo-se atingido em sua honra e na sua capacidade intelectual, Herculano fez da
História da Origem e Estabelecimento da inquisição em Portugal uma espécie de libelo à
liberdade de consciência ao reconstruir os horrores da perseguição aos opositores e críticos,
implícita na perseguição religiosa e na institucionalização da intolerância através do
estabelecimento da Inquisição e a ameaça de restabelecimento destas práticas estranhas às
tradições portuguesas, como a Lei das Rolhas (1850), que restringia as condições para o pleno
exercício da liberdade de imprensa, e proibição das Conferências do Casino (1871), sob
influência do clero ultramontano que deveriam ser combatidas sem tréguas.
Centralização, Controle Administrativo e Aparato Burocrático
A centralização empreendida com o intuito de fortalecer o poder e buscar o
enriquecimento pessoal do rei foi criticada por Herculano, pois enfraquecia a sociedade e
retirava recursos necessários para o seu desenvolvimento. Ao tratar da centralização
administrativa e fiscal promovida por Afonso II e, em menor grau, por Sancho II, Herculanotratou a ampliação do controle régio como um artifício para enfraquecer clero e nobreza
questionando direitos e privilégios outorgados pelos monarcas anteriores através das
Inquirições Gerais e, com isso, violou costumes, tradições e leis. Portanto, a centralização nos
moldes de Afonso II dificultava o desenvolvimento da sociedade e gerava insegurança
jurídica.
Ao tratar das reformas administrativas de Afonso III, Herculano entendeu o aumento
do controle administrativo pelo rei como uma medida positiva, visto que era necessária pararestabelecer a ordem em Portugal após a deposição de Sancho II e as disputas com os grupos
que apoiavam o monarca afastado. Apesar das tentativas de depreciar o valor da moeda e de
estabelecer novos impostos, muitos deles considerados injustos por Herculano, a convocação
das Cortes para deliberar sobre estas medidas foi destacada como um fato altamente positivo
pelo autor.
As menções feitas por Herculano aos ministros, validos e funcionários régios apontam
para a importância de o monarca cercar-se de administradores competentes para o exercício
do bom governo e de controlá-los para evitar desvios e adoção de medidas prejudiciais aos
interesses do rei e da nação. A importância do aparato estatal eficiente destacada por
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 187/199
185
Herculano leva-nos a associá-la a um pressuposto liberal: a meritocracia. Ao analisar os
fatores que levaram à deposição de Sancho II, Herculano mencionou que um dos equívocos
cometidos pelo monarca foi cercar-se de administradores incapazes de contornar as disputas
internas da nobreza, relegando a segundo plano os ministros de seu pai, Afonso II, que
conseguiram manter a estabilidade política nos primeiros anos de seu reinado. Da mesma
forma, elogiou os burocratas de Afonso III, que souberam aproveitar o bom momento
econômico português para promover novos povoamentos. Portanto, o rei precisa contar com
funcionários competentes para auxiliá-lo no exercício do poder, independentemente da origem
social ou religiosa do funcionário, e evitar a escolha de administradores despreparados ou
interessados apenas em obter vantagens pessoais em detrimento da nação.
Esta preocupação com a escolha de um corpo burocrático capaz e qualificado pode serassociada às constantes mudanças nos quadros administrativos portugueses no século XIX,
em virtude das alianças e circunstâncias políticas cujas atribuições não eram cumpridas por
falta de interesse político ou do pouco conhecimento técnico necessário, tornando a nomeação
do funcionalismo moeda de troca dos gabinetes ministeriais, enquanto o país precisava
urgentemente de ações para sanear os graves problemas vividos, principalmente na gestão
financeira do Estado.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 188/199
186
CARACTERÍSTICASPOSITIVAS
EXEMPLOS REIS
1) Defesa da Nacionalidade portuguesa.
Defesa da Nacionalidade AFONSO IReferência ao sentimentode identidade nacional
AFONSO I
Alusão a Portugal comoterra do infante e dosnobres.
AFONSO I
Embates com o clero paradefesa da nacionalidade
AFONSO I
Defesa da Nacionalidade SANCHO I
2) Rei e representação política da sociedade
Rei como executor dosanseios e da vontade
popular
AFONSO I
Apoio popular ao rei SANCHO IIRepresentação dosconcelhos nas cortes e“Progresso Social”
AFONSO III
3) Habilidade militar ecapacidade de liderança
Habilidade militar AFONSO IAutoproclamação como rei AFONSO IReconhecimento pelosreinos ibéricos
AFONSO I
Sagração de AfonsoHenriques como cavaleirovista como ato deindependência política doinfante
AFONSO I
Concessão de apoio e deterras e castelos às OrdensMilitares
SANCHO I
Vocação militar e guerracomo meio de afirmação do
poder real frente à nobreza
SANCHO II
Conquistas militares AFONSO III
4) Povoamento econcelhos
Povoamento e concelhos AFONSO IImportância e participaçãoda população do Concelhode Guimarães naindependência
AFONSO I
Incentivo ao povoamentodo território e à criação deConcelhos
SANCHO I
Povoamento e concelhos SANCHO IIAproximação política comos Concelhos
AFONSO III
Expansão comercial ecrescimento econômicoassociado aos concelhos
AFONSO III
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 189/199
187
5) Tolerância religiosa
Demonstrações detolerância religiosa
SANCHO I
Inexistência da Inquisiçãoem Portugal e resistências
em estabelecê-la.
AFONSO II
Presença de judeus naadministração régia
SANCHO II
Manutenção dos judeus naarrecadação de impostos
JOÃO II
Liberdade a escravos judeus
D. MANUEL
Proteção aos cristãos-novos D. MANUELResistências aoestabelecimento daInquisição
D. MANUEL
6) Aparato burocráticocompetente
Ascendência dos validosnas questõesadministrativas
SANCHO I
Centralização jurídica eabolição da justiça privada
AFONSO III
Centralização, reformasfiscais e Inquirições Gerais
AFONSO III
7) Respeito às tradições esegurança jurídica
(respeito à ordem legal)
Respeito às doações e privilégios concedidos peloantecessor
SANCHO I
Acordo com as irmãs deAfonso II sobre o espóliode Sancho I
SANCHO II
Quadro das características positivas apontadas por Alexandre Herculano.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 190/199
188
CARACTERÍSTICAS NEGATIVAS
EXEMPLOS REIS
1) Relações com a IgrejaCatólica (Subordinação,Conflitos e Concessões)
Subordinação feudo-
vassálica ao Papa
AFONSO I
Críticas à aproximação esubordinação à Igreja.
AFONSO I
Conflitos com a Igreja ecom o Clero
SANCHO I
Concessões ao Clero AFONSO IIEmbates com o clero AFONSO IIEmbates com o clero SANCHO IIConcessões ao Clero SANCHO IIArticulações com o clero
para ascender ao trono português
AFONSO III
Embates com o clero AFONSO IIIReinado marcado pelolongo período deestabelecimento daInquisição
JOÃO III
Estabelecimento pleno daInquisição
JOÃO III
2) Pouca capacidademilitar, política eadministrativa
Pouca habilidadeadministrativa
AFONSO I
Participação das tropasconcelhias na Batalha de Navas de Tolosa (sem a presença do rei)
AFONSO II
Tensão com setores daAristocracia
AFONSO II
Inabilidade e pouca aptidãomilitar
AFONSO II
Críticas à limitada criaçãode concelhos
AFONSO II
Conflitos com a nobreza e
no interior da nobreza
SANCHO II
Situação interna einstabilidade política
AFONSO III
Críticas à capacidade de D.João III
JOÃO III
3) Centralizaçãoadministrativa paraaumento do poder pessoal
Centralização política eadministrativa
AFONSO II
Inquirições Gerais AFONSO IITentativas de centralização SANCHO II
4) Enriquecimento do rei àcusta da sociedade eaumento da carga tributária
Enriquecimento do rei à
custa da sociedade eaumento da carga tributária
SANCHO I
Aumento e ampliação da AFONSO II
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 191/199
189
tributação (aumentos dosimpostos existentes ecriação de novos impostos)
5) Má gestão financeira
Má gestão dos recursos
financeiros da Coroa
AFONSO III
Situação econômica doreino (em estado crítico)
JOÃO III
6) Rompimento dastradições e insegurançalegal
Disputas familiares quantoao testamento de Sancho I
AFONSO II
Insegurança jurídicaquanto ao direito de
propriedade
AFONSO II
7) Intolerância
Condições para imigraçãode judeus espanhóis paraPortugal
JOÃO II
Povoamento de São Tomé por filhos de judeus tiradosde suas famílias
JOÃO II
Perseguição aos judeus econversões forçadas
D. MANUEL
Ódio de D. João III aos judeus
JOÃO III
Estabelecimento pleno daInquisição
JOÃO III
8) Abertura às ingerênciasexternas – ameaças àsoberania nacional
Intervenção leonesa em
assuntos portugueses emconsequências das disputasfamiliares quanto aotestamento de Sancho I
AFONSO II
Articulações com o clero para ascender ao trono português
AFONSO III
Casamento com viúva doInfante Afonso, filha dosReis Católicos e
perseguição aos judeus
D. MANUEL
Influência da rainha (deorigem espanhola) noestabelecimento daInquisição
D. JOÃO III
Estabelecimento pleno daInquisição
D. JOÃO III
Quadro das características negativas apontadas por Alexandre Herculano.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 192/199
190
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Construído a partir de uma concepção de História Magistra Vitae, calcada em
documentos submetidos a uma criteriosa análise e num pressuposto teórico em que o
equilíbrio é a ideia fundamental, tendo a Classe Média definida como o grupo que tem a
propriedade e que trabalha como o principal agente social e “a mais poderosa, a única
verdadeira e eficazmente poderosa, das que compõem as sociedades modernas”1 como
sustentáculo, e as instituições que fundamentam o poder e representam este grupo, os
Concelhos e os Forais como instrumentos para o exercício do poder e contraponto para as
exigências das classes superiores, clero e aristocracia, o modelo de rei proposto por
Alexandre Herculano detém a soberania política e, mesmo em virtude deste fato, é “a chavede toda a organização política”, partilhando com as instituições representativas da sociedade a
administração do Estado.
Portanto, o modelo de rei proposto por Herculano, e o respectivo contra modelo, é
indissociável dos conceitos de História, Classe Média, Concelhos e Forais posto que estes
Atos discursivos são fundamentais nas intervenções de Herculano, no seu contexto linguístico
e na sua concepção de Estado.
Um Estado descentralizado, com base nos Concelhos, cujos atributos constam nosforais como forma de garantir a representatividade do grupo social que, no entender de
Herculano, é o mais relevante e poderoso e tem o potencial de promover a regeneração
nacional e cuja ampliação através da difusão da propriedade, é uma garantia para evitar o
conflito entre patrões e empregados, tão em evidência na Europa. Nesse Estado
descentralizado proposto por Herculano o rei tem uma função primordial: a manutenção do
equilíbrio. Esses concelhos, restaurados de acordo com a tradição medieval, porém adaptados
à conjuntura oitocentista, e os respectivos forais que os regulamentam são resultado de umacordo entre o rei e os moradores destes concelhos, onde a sanção real é pré-condição básica
para as suas promulgações.
Elaborado na História de Portugal e complementado na História da Origem e
Estabelecimento da Inquisição em Portugal , o modelo de monarca construído por Herculano
tinha como objetivo ser mais um projeto político para o Portugal Liberal.
Diversos autores, como Joaquim Barradas de Carvalho e Joaquim Veríssimo Serrão,
destacaram que os objetivos ou, seguindo as premissas de Skinner, as intenções destas duas
1 HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal . Lisboa: Europa-América,[198-?]. p. 11. v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 193/199
191
obras eram delinear a História da Classe Média, no caso da História de Portugal , e reconstruir
historicamente a Inquisição, de forma a desacreditar as forças absolutistas que tanto o
atacaram na Questão de Ourique na História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em
Portugal . Mesmo sendo estas as intenções, pensamos que ambas as intenções não poderiam
ser levadas a cabo sem transformar o rei num objeto de estudo, já que, para Herculano, nem a
História da Classe Média nem o estabelecimento da Inquisição seriam possíveis sem a
participação decisiva da instituição monárquica. Daí a promoção do Monarca como objeto de
estudo.
Observando ambas as obras, é nítido que as temáticas estudadas são, no ideário liberal
conservador e romântico de Herculano, antitéticas e excludentes: as liberdades burguesas
consagradas pelo advento concelhio na História de Portugal e a violação máxima aos valoresindividuais com o estabelecimento da Inquisição na História da Origem e Estabelecimento da
Inquisição em Portugal . Reforçando a antítese entre ambas, lembremos que foi uma polêmica
surgida com a publicação do Tomo I da História de Portugal que a História da Origem e
Estabelecimento da Inquisição em Portugal foi elaborada , ou seja, a Questão de Ourique,
que envolve a autodenominação de Afonso I como rei de Portugal. É sintomático que uma
questão envolvendo a origem da instituição régia em Portugal numa obra em que o Rei é
objeto de análise para deflagrar a elaboração de uma outra obra onde o Rei possibilita oestabelecimento da Inquisição. Portanto, pensamos que apesar de antitéticas, as duas obras se
completam como verso e reverso da uma moeda.
São obras complementares e que possuem como peculiaridade em comparação aos
romances e artigos o caráter histórico, embasadas teórica e metodologicamente e que, por
isso, possuem uma credibilidade maior, dada a sua presunção de Magistra Vitae. Vimos no
capítulo 2 a função da literatura como meio de divulgação dos valores e tradições nacionais
entre as camadas sociais, principalmente as menos letradas, transmitindo de forma maisacessível o conhecimento histórico produzido pelo autor. Já a produção de cunho histórico foi
direcionada para um público mais restrito, com maior ilustração e com maior capacidade de
intervenção na vida política e social e, neste grupo, um agente político no qual as esperanças
políticas de Herculano estavam depositadas: o jovem D. Pedro V. A História de Portugal foi
dedicada ao futuro rei de Portugal com o objetivo de fornecer subsídios para o exercício
político, pois “o conhecimento da vida anterior de uma nação é o principal auxílio para se
poder e saber usar, sem ofensa dos bons principios, do influxo que um rei de homens livres
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 194/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 195/199
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 196/199
194
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de estética e literatura. São Paulo: Unesp, 1993.BARREIROS, Daniel Pinho. Intelectuais e estrutura social: uma proposta teórica. SinaisSociais, n. 9, jan./abr, 2009. p.10- 45.
BASTOS, Lucia Maria et al. (Org.). Literatura, história e política em Portugal (1820-1856). Rio: EdUERJ, 2007.
BEAU, Albin Eduard. Considerações sobre Alexandre Herculano e a historiografiaalemã. Coimbra: publicações do Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1937.
______. O Conceito da história de Alexandre Herculano. Coimbra: Coimbra Editora,1938.
BEIRANTE, Cândido. Alexandre Herculano: as faces do poliedro. Lisboa: Vega, 1991.
______. A ideologia de Herculano: da teoria do progresso às reformas regeneradoras.Santarém: Editora da Junta Distrital de Santarém, 1977.
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder . São Paulo: UNESP, 1997.
BOTTOMORE, Tom; NISBET, Robert (Org.). História da análise sociológica. Rio deJaneiro: Zahar, 1980.
BURGUIÈRE, André (Org.). Dicionário das ciências históricas. Rio de Janeiro: Imago,1993. v.2.
CAEIRO, Francisco da Gama. Alexandre Herculano à luz do nosso tempo: ciclo deconferências. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1977.
______. A historiografia portuguesa de Herculano a 1950. Lisboa: Academia Portuguesade História, 1978.
CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987.
CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? São Paulo: Annablume, 2008.
CARVALHO, Joaquim Barradas de. As idéias políticas e sociais de Alexandre Herculano. 2. ed. Lisboa: Seara Nova, 1971.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
CHÂTELET, François et al. História das idéias políticas. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar ,1990.
COELHO, Antônio Borges. Questionar a história. 2.ed. Lisboa: Caminho, 1983.
ENGEL-JANOSI, Friedrich. Four studies in french romantic historical writing .Baltimore: J. Hopkins Press, 1955.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 197/199
195
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.
FRANÇA, José-Augusto. O romantismo em Portugal . 2. ed. Lisboa: Livros Horizonte,1993.
FUETER, E. Historia de la historiografía moderna. Buenos Aires: Editorial Nova, 1953.v.2.
GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 2.ed.Lisboa: Arcadia, 1975.
GOOCH, Georges Peabody. Historia y historiadores del siglo XIX . México: Fondo deCultura Económica, 1942.
GUERREAU, Alain. O feudalismo: um horizonte teórico. Lisboa: Edições 70, [198-?].
HADDOCK, B. A. Uma introdução ao pensamento histórico. Lisboa: Gradiva, 1989.
HOBSBAWN, Eric. A era das revoluções. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2009.
JASMIN, Marcelo Gantus. História dos conceitos e teoria política e social: referênciasPreliminares. Revista brasileira de ciências sociais, São Paulo, v. 20, n. 57, p. 27-38.2005.
KIRK, Russell. The conservative mind 7. Washington DC: Regnery Publishing, 2001.
LASKI, Harold Joseph. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973.
LE GOFF, J.; CHARTIER, R. & REVEL, J. (Org). A nova história. Coimbra: Almedina,[198-?].
LOPES, Marcos Antônio (Org.). Grandes nomes da história intelectual . São Paulo:Contexto, 2003.
LOPES, Marcos Antônio. Para ler os clássicos do pensamento político: um guiahistoriográfico. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
MACEDO, Jorge Borges de. Alexandre Herculano: polémica e mensagem. Amadora:
Bertrand, 1980.MANNHEIM, Karl. Ensayos sobre sociologia y psicologia social . Buenos Aires. Fondode Cultura Económica, [198-?].
MANNHEIM, Karl. Sociologia da Cultura. 2. ed., São Paulo: Perspectiva. 2008.
MARTINS, Oliveira. Alexandre Herculano. Lisboa: Horizonte, [198-?].
______. Portugal contemporâneo. Lisboa: Europa América, [198-?]. v.2.
MARQUES, Antônio Henrique de Oliveira. Antologia da historiografia portuguesa.Lisboa: Europa-América, 1974. v.2
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 198/199
196
MARQUES, Antônio Henrique de Oliveira. Guia do estudante de história medieval portuguesa. Lisboa: Estampa. 1988
MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e memória nacional (1846-1898). Lisboa:
Colibri, 1998.MATTOSO, José (Org.). História de Portugal . Lisboa: Estampa, 1993. v.5.
MOMIGLIANO, Arnaldo. Ensayos de historiografía antigua y moderna. México: Fondode Cultura Económica, 1993.
NISBET, Robert. Conservadorismo. Lisboa: Estampa, 1987.
OLIVEIRA, Barradas de. Alexandre Herculano: retrato político. Lisboa: Edições doTemplo, 1978.
POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
PRADO, Maria Emília e GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal (Org). O liberalismo no Brasil imperial . Rio de Janeiro: Revan, 2001.
RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
SANTOS, M.ª DE Lourdes Costa Lima dos. Intelectuais portugueses na primeira metadede oitocentos. Lisboa: Presença, 1988.
SARAIVA, Antônio José. Herculano e o liberalismo em Portugal. Lisboa: Bertrand,
1977.
SARAIVA, António José. Herculano desconhecido. 2. ed. Lisboa: Europa-América. 1977.
SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 12.ed. Porto:Porto Editora, 1982.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a consciência do liberalismo português.Lisboa: Bertrand, 1977.
______. História breve da historiografia portuguesa. Lisboa: Verbo, 1962.
______. Historiografia portuguesa: doutrina e crítica. Lisboa: Verbo, 1973. v.4.
SERRÃO, Joel (Org.). Liberalismo, socialismo e republicanismo: antologia do pensamento político português. 2.ed. Lisboa: Horizonte, 1979.
______. Dicionário da história de Portugal . 7.v. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1964.
______ ; MARQUES, A. H. de Oliveira (Dir.). Nova história de Portugal: portugal e ainstauração do liberalismo. Lisboa: Presença, 2002.
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português. Lisboa: CalousteGulbenkian, 1985. v.1.
7/22/2019 A monarquia portuguesa na obra de Alexandre Herculano.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/a-monarquia-portuguesa-na-obra-de-alexandre-herculanopdf 199/199