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A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO JESUÍTA FLORIAN PAUCKE:
UM REGISTRO VISUAL DOS MOCOVÍ NO SÉCULO XVIII
SCHEILLA GUIMARÃES DA SILVA
DOURADOS – 2019
SCHEILLA GUIMARÃES DA SILVA
A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO JESUÍTA FLORIAN PAUCKE: UM
REGISTRO VISUAL DOS MOCOVÍS NO SÉCULO XVIII
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) como
parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em
História.
Área de concentração: História Indígena e do Indigenismo
Orientador: Prof. Dr. Protásio Paulo Langer
DOURADOS – 2019
Silva, Scheilla Guimaraes da A Produção Iconográfica do Jesuíta Florian Paucke: Um Registro Visual dos Mocovís no Século
XVIII / Scheilla Guimaraes Da Silva. Dourados, MS: UFGD, PPGH, 2019.
133p
Orientadora: Protásio Paulo Langer.
Dissertação (Mestrado em História) -Universidade Federal da Grande Dourados, 2019.
Disponível no Repositório Institucional da UFGD em: https://portal.ufgd.edu.br/setor/biblioteca/repositorio
1. . Iconografia - Jesuíta - História - Séc. XVIII. 2. . Florian Paucke. 3. . Gran Chaco. 4. Registro
Visual. 5. Índios Mocoví - História. I. Langer, Protásio Paulo. II. Título
SCHEILLA GUIMARÃES DA SILVA
A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO JESUÍTA FLORIAN PAUCKE: UM
REGISTRO VISUAL DOS MOCOVÍS NO SÉCULO XVIII
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD
Aprovada em ______ de __________________ de _________
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
Professor Doutor Protásio Paulo Langer (UFGD)
__________________________________________
2º Examinador:
Alexandre Coello de La Rosa (Dr. UPF-Espanha)
_____________________________________________
3º Examinador:
Fabiano Coelho (Dr. UFGD)
_____________________________________________
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos meus filhos Laio, Marina e Vinício pelo imprescindível
incentivo e compreensão. À vocês a quem amo e dedico todos os meus esforços. Obrigado pela
paciência, apoio e força espiritual!
Ao Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD), onde pude contar com o estímulo de vários professores, dentre os quais o meu
orientador, Prof. Dr. Protásio Paulo Langer, a quem agradeço especialmente.
Aos colegas acadêmicos pelos momentos de companheirismo e partilha.
Ao companheiro de jornada e pai dos meus filhos José Daniel de Freitas Filho pelas
sugestões e críticas que muito contribuíram para conclusão desse trabalho.
Aos professores que aceitaram participar da banca examinadora e dedicar suas atentas
leituras a este trabalho.
“Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”
Manuel de Barros
RESUMO
O relato “Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocobíes -1749-1767”, do jesuíta
Florian Paucke, que foi missionário nas reduções mocoví de San Francisco Javier e de San
Pedro no Gran Chaco, constitui um rico material etnográfico que registra a cultura mocoví e
sua estada por dezoito anos na Redução de San Javier no atual território argentino. Além das
informações minuciosas, seus escritos são acompanhados de uma rica iconografia: Paucke
produziu 104 aquarelas em que os textos visuais se integram à descrição de uma rede de práticas
culturais e sociais que revelam importantes aspectos do funcionamento da sociedade colonial
espanhola assim como da vida vegetal, animal e humana do Gran Chaco no século XVIII. São
registros que nos permitem perceber a construção de conhecimentos sobre o outro, que
contemplam vários âmbitos no convívio entre Paucke e os mocoví. Este trabalho tem como
objetivo analisar o conteúdo das obras pictóricas de Florian Paucke em que ele representou as
festas e celebrações dos mocoví. A combinação entre as imagens dessas celebrações nos
permitem realizar uma confrontação entre aquelas que representam a “barbaridade’ e as que
representam a transição para uma “civilidade cristã”. Realizamos uma pesquisa bibliográfica e
documental tendo a obra de Florian Paucke como fonte para os nossos estudos. A problemática
que perpassa esse trabalho é avaliar o valor histórico e etnográfico dessa série de aquarelas
criadas por Paucke que, ao que tudo indica, foi produzida a partir da memória do autor, sete
anos após sua saída do continente americano.
Palavras-Chave: Florian Paucke. Cultura indígena mocoví. Imagem.
ABSTRACT
The account “Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocovíes -1749-1767”, by
Jesuit Florian Paucke, who was a missionary in the San Francisco Javier and San Pedro Mocoví
Reductions in the Gran Chaco, is a rich ethnographic material that records the Mocoví culture
and its stay for eighteen years in the San Javier Reduction, located in the present Argentine
territory. In addition to detailed information, his writings are accompanied by a rich
iconography: Paucke has produced 104 watercolors in which visual texts integrate with the
description of a network of cultural and social practices that reveal important aspects of the
functioning of the Spanish colonial society as well as plant, animal, and human life from the
eighteenth century Gran Chaco. These are records that allow us to perceive the construction of
knowledge about the other, which contemplate various areas in the interaction between Paucke
and the mocoví. This paper aims to analyze the content of the pictorial works of Florian Paucke,
in which he represented the parties that occurred in the Reduction and the celebrations of the
mocoví. The combination of the images of these celebrations allows us to make a confrontation
between those that represent "barbarity" and those that represent the transition to a "Christian
civility". We conducted a bibliographic and documentary research with Florian Paucke's work
as a source for our studies. The problem that permeates this work is to evaluate the historical
and ethnographic value of Paucke's work, which, it seems, was produced from the author's
memory, seven years after his departure from the American continent.
Keywords: Florian Paucke. Mocoví indigenous culture. Image.
RESUMEN
El relato “Hacia allá y para acá. Una estadía entre los indios Mocovíes -1749-1767”, del jesuita
Florian Paucke, quien fue misionero en las reducciones de San Francisco Javier y San Pedro en
el Gran Chaco, es un rico material etnográfico que registra la cultura mocoví y su estadía
durante dieciocho años en la reducción de San Javier en el actual territorio argentino. Además
de la información detallada, sus escritos van acompañados de una rica iconografía: Paucke
produjo 104 acuarelas en las que los textos visuales se integran con la descripción de una red
de prácticas culturales y sociales que revelan aspectos importantes del funcionamiento de la
sociedad colonial española, así como la vida vegetal, animal y humana del Gran Chaco en el
siglo XVIII. Estos son registros que nos permiten percibir la construcción del conocimiento
sobre el otro, que contemplan diversas áreas en la interacción entre Paucke y los mocovíes. Este
trabajo tiene como objetivo analizar el contenido de las obras pictóricas de Florian Paucke en
las que representó las fiestas que tuvieron lugar en la reducción y las celebraciones de los
mocovíes. La combinación de las imágenes de estas celebraciones nos permite confrontar a
quienes representan la “barbarie” y los que representan la transición a una “civilidad cristiana”.
Realizamos una investigación bibliográfica y documental con el trabajo de Florian Paucke
como fuente de nuestros estudios. El problema que impregna este trabajo es evaluar el valor
histórico y etnográfico de esta serie de acuarelas creadas por Paucke, que, al parecer, fue
producido de la memoria del autor, siete años después de su partida del continente americano.
Palabras clave: Florian Paucke. Cultura indígena mocoví. Imagen.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Os Trinta povos das Missões..................................................................... 30
Figura 2 – Planta Baixa de uma Redução................................................................... 31
Figura 3 – Mapa do Gran Chaco e a distribuição de alguns grupos indígenas........... 34
Figura 4 – Edição original da crônica de Florian Paucke.............................................. 48
Figura 5 – Florian Paucke. Carro de boi..................................................................... 55
Figura 6 – Florian Paucke. Indumentária mocoví....................................................... 58
Figura 7 – Florian Paucke. Índios levando cavalos para o curral............................... 61
Figura 8 – Florian Paucke. Tatuagem mocoví............................................................. 63
Figura 9 – Florian Paucke. Lapacho............................................................................ 66
Figura 10 – Florian Paucke. Tigres das Américas....................................................... 67
Figura 11 – Florian Paucke. Índios e missionários atravessando um rio.................... 68
Figura 12 – Florian Paucke. Pesca a cavalo.................................................................. 68
Figura 13 – Florian Paucke. Caçada de Tigres............................................................ 71
Figura 14 – Florian Paucke. Caça de gafanhotos e preparação de charque................... 72
Figura 15 – Florian Paucke. Arrebanhando cavalos..................................................... 74
Figura 16 – Florian Paucke. O cacique e sua esposa.................................................. 77
Figura 17 – Florian Paucke. Combate indígena.......................................................... 78
Figura 18 – Florian Paucke. Simulação de combate na Redução .............................. 82
Figura 19 – Florian Paucke. Vista de San Javier ........................................................ 100
Figura 20 – Florian Paucke. Celebração na praça de San Javier................................. 102
Figura 21 – Florian Paucke. A Borrachera ............................................................... 118
Figura 22 – Florian Paucke. A Borrachera II.............................................................. 119
Figura 23 – Florian Paucke. Construção na Redução................................................. 113
Figura 24 – Florian Paucke. Tatuagens e adornos de face mocoví............................. 114
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12
Capítulo 1
A COMPANHIA DE JESUS E O MISSIONEIRO DOS MOCOVÍ
1.1 A Companhia de Jesus no Novo Mundo................................................................ 24
1.2. As Reduções entre os Guarani............................................................................... 28
1.3. A Redução de San Javier....................................................................................... 33
1.4. Florian Paucke e as experiências entre os Mocoví............................................... 36
Capítulo 2
A ESCRITA NA ORDEM JESUÍTA: A CRÔNICA DO MISSIONÁRIO
2.1. A escrita na Companhia de Jesus.......................................................................... 42
2.2. A crônica de Florian Paucke.................................................................................. 45
2.3. Sumário da crônica de Florian Paucke................................................................. 52
Capítulo 3
OS MOCOVÍ NO SÉCULO XVIII
3.1. Caçadores e coletores............................................................................................. 71
3.2. A mobilidade e o território.................................................................................... 74
3.3. A organização social dos Mocoví e as lideranças................................................. 76
3.4. Elementos étnicos................................................................................................... 79
3.4.1. A guerra.......................................................................................................... 80
3.4.2. Os cativos....................................................................................................... 83
3.5. A redução dos Mocoví............................................................................................ 83
Capítulo 4
ICONOGRAFIA: A FESTA DE SAN JAVIER E AS ASSEMBLEIAS MOCOVÍ
4.1. História e imagem................................................................................................... 85
4.2. Visões do Passado: do visual ao imaginário........................................................ 89
4.2.1. O imaginário europeu do Ameríndio.............................................................. 91
4.3. Iconografia: lendo imagens.................................................................................... 97
4.3.1 A festa de San Javier....................................................................................... 100
4.3.2. As assembleias Mocoví.................................................................................. 108
CONCLUSÃO................................................................................................................ 117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 121
ANEXO – ÍNDICE DA OBRA HACIA ALLÁ Y PARA ACÁ, DE FLORIAN
PAUCKE........................................................................................................................
127
12
INTRODUÇÃO
A imagem sempre exerceu sobre mim estranho fascínio. Ela sempre desperta minha
curiosidade, me conta histórias para além da sua aparência factual. A necessidade de
compreender a imagem me fez cursar Artes Visuais e me tornar por mais de duas décadas
professora especialista da disciplina de História da Arte em um curso de graduação na cidade
de Dourados. Em 2014 resolvi ingressar no curso de História da UFGD, com o objetivo de dar
continuidade à minha formação e entrar em contato com possíveis áreas de estudo, buscando
assim, um orientador que me auxiliaria na pesquisa, visto que me encontrava há muito tempo
longe dos estudos acadêmicos. Devido à proximidade com a problemática das populações
indígenas, voltei meus interesses para História Indígena. Mas o que pesquisar frente a tantas
possibilidades e perspectivas? Foi estudando para uma das avaliações semestrais da graduação
que me surgiu a obra do jesuíta Florian Paucke. Quase por um acaso, as imagens feitas para
ilustrar sua crônica1 Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocobíes -1749-1767
apareceram na tela do meu computador. Sua obra, já nesse primeiro contato me suscitou
interesse devido ao caráter “primitivo” e ingênuo 2de suas imagens. Quanto mais lia, mais ficava
empolgada com a sua produção, principalmente pelo fato dele representar os modos de vida de
um dos grupos guaicuru – os mocoví3 no século XVIII, cuja existência desconhecia.
Ao investigar possíveis autores que pesquisavam sua obra no Brasil, descobri apenas o
livro de Bringman (2005), que traz fragmentos traduzidos para o português da crônica que
Florian Paucke escreveu em 1774. Quanto à análise de suas imagens, encontrei um artigo de
Marta Penhos (2007), pesquisadora da Argentina que analisa como as imagens dos corpos
indígenas foram concebidas por Paucke.
O tema das missões jesuíticas, que inclui as vivências dos missionários junto às
comunidades indígenas, as formas de vida daquelas sociedades indígenas, os contatos
1 Crônica – relato de fatos registrados em ordem cronológica, gênero literário onde os fatos são apenas narrados,
conservando-se sua ordem cronológica. Texto publicado em jornal ou outro tipo de periódico sobre fatos reais ou
imaginários da atualidade (LAROUSSE CULTURAL, Dicionário da Língua Portuguesa, p. 294). 2 O termo ingênuo que utilizei aqui, aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua,
original e/ou instintiva, produzida por autodidatas que não têm formação acadêmica no campo das artes. Essa expressão tenta descrever modos expressivos autênticos, originários da subjetividade e da imaginação criadora de
pessoas estranhas à tradição e ao sistema artístico. (ZANINI, História geral da arte no Brasil, p.808). 3 Mocoví – um dos grupos integrantes do tronco linguístico guaicuru. Por volta do século XV ocuparam a atual
província argentina do Chaco e parte de Santiago del Estero. Eles adotaram uma economia baseada na caça e coleta
de frutos, raízes e sementes. O cavalo foi um dos elementos mais significativos que incorporaram possibilitando
ampla mobilidade no território, ampliando os meios de subsistência e intervindo na configuração social e na forma
de relacionamento com outros grupos caracterizado por lutas constantes (CALVO; BENZI, Florian Paucke: un austríaco em tierras mocovíes p. 4).
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evangelizadores e suas relações com a sociedade colonial, constitui objeto de vários estudos na
elaboração da historiografia sobre as missões. Embora Paucke tenha mencionado em sua
crônica os contatos e as relações que estabeleceu com as missões guaranis, não encontramos
até o presente momento estudos sobre esse intercâmbio ou sobre o relato desse jesuíta em nosso
país. Acreditamos que nosso trabalho possa auxiliar futuras pesquisas devido a relevância do
tema na construção de uma História Indígena, pois observa-se um avanço significativo da
produção científica dos estudos indígenas no Brasil, assim como o crescimento da formação de
pesquisadores especialistas da área, e a ampliação do número de instituições envolvidas neste
tipo de pesquisa.
Os desenhos que mais despertaram nosso interesse foram aqueles que representam as
festas ocorridas na redução e as celebrações dos mocoví pois percebemos que essas imagens
estão a serviço de um discurso que contrapõe a barbaridade ao cristianismo. Tanto o texto como
as ilustrações das festas dos mocoví estão atravessados por um juízo negativo que essas práticas
mereciam segundo o olhar do missionário, que as percebeu como meras reuniões que os índios
realizavam com o objetivo de se embriagarem. Nos propusemos, então, a analisar o conteúdo
dessas obras pictóricas buscando elementos etnográficos e gráficos que representam a
barbaridade e aqueles que representam a transição para uma “civilidade alcançada” após a
cristianização indígena. Paucke relatou que escreveu e ilustrou sua crônica aproximadamente
sete anos após seu regresso à Europa devido à expulsão dos jesuítas da América espanhola.
Nosso olhar se volta para essa especificidade do seu relato e de suas ilustrações. Poderíamos
considerar suas imagens como um documento etnográfico mesmo que elas tenham sido feitas
de memória?
O primeiro capítulo deste trabalho dissertativo traz uma síntese da implantação,
organização e atuação da Companhia de Jesus na América espanhola e a biografia de Florian
Paucke. Quem foi Florian Paucke? Qual a sua formação? Qual o contexto sócio histórico e
cultural de que ele fazia parte? Como chegou ao continente americano? Quais foram suas
primeiras impressões ao chegar ao Novo Mundo?
No segundo capítulo evidenciamos a importância da produção escriturária para a
Companhia de Jesus como um método de informação e de união entre seus discípulos.
Apresentamos também, nesse capítulo, a crônica de Paucke: Hacia allá y para acá. Uma estada
entre los índios mocobíes (1749-1767) que relata desde a sua saída da Europa no ano de 1748,
passando por sua chegada às Índias Ocidentais, até o seu retorno em 1767, após a expulsão da
Ordem Jesuítica do continente americano. A primeira tradução para o castelhano da obra
completa de Paucke foi feita por Edmundo Wernicke e publicada entre 1942 e 1944 pela
14
Universidade Nacional de Tucumán e do Instituto Germano-Argentina. Para nossa pesquisa
utilizamos um exemplar de sua crônica publicado em 2010 pelo Ministerio de Innovación y
Cultura de la Provincia de Santa Fe. Abordamos aqui as seguintes questões: Em que condições
Paucke escreveu seu relato? Para quem e para que ele escreveu sua crônica?
A crônica escrita por Florian Paucke se configura como um testemunho da memória,
pois a escreveu em 1774, cerca de sete anos após regressar à Europa. Para desenvolver esta
questão da memória na concepção da escrita da história, se faz necessário construir um diálogo
fundamentado nas ideias de alguns autores que elaboraram uma reflexão teórica-conceitual a
respeito do papel da memória na construção historiográfica. A temática da relação entre história
e memória já foi examinada por vários pesquisadores. Trago aqui alguns autores que
contribuíram para nossas reflexões sobre as relações entre história e memória na construção de
narrativas, e que nos auxiliaram na construção de algumas análises sobre a produção escriturária
de Florian Paucke e sua relação com a memória.
O sociólogo Maurice Halbwachs, um dos pioneiros nos estudos sobre memória social,
traz como contribuição as análises quanto às diferenças entre memória e história, com realce ao
caráter social da memória. Em seu livro A Memória Coletiva, Halbwachs (2003) evoca o
depoimento da testemunha, que só tem significação em relação a um grupo do qual a
testemunha faz parte, pois o evento vivido em comum será reconstruído de acordo com o
contexto de referências no qual transita o grupo e o indivíduo que atesta esse evento.
Para Halbwachs o indivíduo participaria de dois tipos de memórias:
Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras:
tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de
vista, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são
imagens parciais (HALBWACHS, 2003, p.71).
Essa obra orienta nossas observações quanto aos processos que Paucke utilizou para
construir sua narrativa. Seu relato foi elaborado a partir de suas lembranças que teriam lugar no
contexto de sua personalidade ou vida pessoal, mas em certos momentos ele se comportou como
membro de um grupo evocando lembranças impessoais, na medida que estas interessaram a
esse grupo, lembrando que através dos seus escritos os jesuítas justificaram e demonstraram a
importância de sua missão: evangelizar o Novo Mundo.
Pierre Nora em seu livro Entre Memória e História (1993) traz uma análise das
diferenças entre história e memória e da fragmentação e desaparecimento das memórias
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grupais. Para o autor, os grupos se mantêm unidos pela memória mas essa memória é tanto
coletiva quanto individualizada, sofre alterações e modificações:
A memória é a vida sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em
permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente
de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações,
susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações (NORA, 1993, p. 9).
Nora nos faz perceber que a memória de Paucke foi a matriz de sua narrativa, sendo um
canal de reapropriação do passado narrado por ele, mas que sua memória foi instruída pelo
grupo ao qual pertenceu. A Paucke foi conferido, por seus superiores hierárquicos, o dever de
não esquecer e fazer de suas memórias uma afirmação de unicidade dos processos civilizatórios
prestados à coroa espanhola pela Ordem Jesuítica. Ele foi assim imbuído do dever moral da
memória, a fim de fazer “justiça” aos trabalhos desenvolvidos pela Companhia de Jesus. As
imposições retóricas da escrita de Paucke, presentes também em outros relatos jesuíticos,
forneceu legibilidade ao seu texto e visibilidade aos eventos que narrou, por vezes em
detrimento da complexidade e da opacidade do passado vivido por ele. Esse passado foi relatado
de um modo pacífico, sem cólera, por mais doloroso que tenha sido para ele. Paucke assumiu
o dever de não esquecer o passado vivido entre os mocoví exaltando sempre o trabalho
missionário realizado por ele e seus colegas.
Loiva Otero Félix (1998) sintetiza em sua obra História e Memória – A Problemática
da Pesquisa a relação entre a história e memória, construindo uma relação dialética entre as
duas, afirmando que a história capta e estuda a memória, construindo-se através da memória.
Segundo a autora, a temática da memória já habitava o imaginário das sociedades humanas
desde o século V a. C., sendo alvo de interesse de filósofos e historiadores gregos, mas será no
século XX que as reflexões sobre o tema ganharão relevância entre os objetos de estudo das
ciências humanas. Ao perguntar pelo passado, a história tenta responder a angústia da busca
pelo sentido de nossa vida individual e coletiva. E essas perguntas que fazemos ao passado
refletem a perplexidade do que estamos vivendo no presente. Mas o passado está morto, não
pode ser resgatado como um menino que se perdeu na mata, só pode ser revisitado e visto pelo
olhar do presente, e esse olhar será construído e direcionado pela memória. Para Loiva: “O
sentido da história, o olhar para trás, ir em busca do tempo, com as vivências do presente e
poder tomar conhecimento de que o passado se recria pela memória, única forma de retê-lo, de
apreendê-lo” (FÉLIX, 1998, p.33).
16
A obra de Loiva contribui para nossa compreensão de que a memória de Paucke, o “seu
olhar para trás”, liga-se à lembrança das suas vivências, e essas estão atadas por laços afetivos.
Em seu relato ele se colocou como pertencente também ao grupo mocoví. A dimensão do
pertencimento social, criado por esses laços afetivos mantêm essas lembranças no seu presente
gerando uma memória vivida e compartilhada. Embora o fator de diferenciação das fronteiras
socioculturais tenha sido demarcado de forma sistematizada na sua narrativa, ele organizou e
descreveu os referenciais de identidade presentes nos espaços sociais da família, do lazer, do
trabalho e da religiosidade dos mocoví.
Os conceitos de memória presentes na obra História e Memória de Jacques Le Goff
(2000) nos auxilia de forma significativa quantos aos aspectos sobre memória abordados nesse
trabalho de pesquisa. Nessa obra, Le Goff aborda vários conceitos em forma de verbete. São
ensaios que ele escreveu para Enciclopédia Einaudi entre 1977 e 1982. Para Le Goff o estudo
de memória envolve várias ciências: a psicologia, fisiologia, neurologia e a biologia.
O conceito de memória nos reporta a um fenômeno individual e psicológico que
possibilitaria ao indivíduo a revisão de vivências passadas: “A memória, como capacidade de
conservar certas informações, recorre, em primeiro lugar, a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, que ele representa
como passadas”. (LE GOFF, 2000, p.9).
A obra de Le Goff veio se juntar aos outros autores que colaboram para edificar nossas
ideias de que Paucke, no seu relato, recuperou informações, emoções e fatos vivenciados por
ele que indicaram que o aprendizado adquirido por meio da experiência pessoal persistiu através
do tempo. Os laços afetivos que ele criou na convivência diária com os mocoví e os apelos da
Ordem Jesuítica, presentes no momento em que Paucke escreveu sua narrativa, determinaram
as escolhas dos fatos passados que deveriam ser lembrados e registrados por ele em sua crônica.
O texto de J. H. Elliot, A Conquista Espanhola e a Colonização da América4 nos auxilia
na compreensão do contexto histórico da colonização da América a partir de elementos que
permitem caracterizar os principais processos de formação da sociedade colonial e as suas
dinâmicas de reprodução. Com o texto de Elliott nos foi possível ter uma visão mais ampla
sobre o processo colonizador espanhol, bem como o envolvimento dos indígenas nesse
processo, que nem sempre foi passivo. O autor faz um apanhado, desde os elementos que
4 ELLIOT, A Conquista Espanhola e a Colonização da América. In: Leslie Bethell (ed.) História da América
Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2001.
17
favoreceram a conquista, até seu processo de consolidação. Elliott apontou as relações de
trabalho na América Espanhola como a mita e a encomienda e o papel dos jesuítas nestas
relações. Este texto nos fornece a fundamentação teórica para nossas considerações sobre o
papel da Companhia de Jesus no Novo Mundo.
A obra de Klaas Woortmann (2004) – O Selvagem e o Novo Mundo, é fundamental para
nosso entendimento sobre o imaginário medieval, herdado do pensamento antigo, sobre os
habitantes das antípodas que veio a ser projetado sobre os povos da América. O capítulo As
representações europeias do ameríndio nos deu o respaldo teórico quanto ao processo de
percepção e interpretação dos indígenas pelos olhares europeus. O argumento central desse
capítulo, é expor a ambiguidade fundamental entre o novo olhar renascentista e o velho olhar
medieval, a partir da compreensão europeia desse “outro” que habitava o Novo Mundo. O autor
aborda como as noções de selvageria e a ausência de civilização e humanidade reaparecem para
caracterizar os indígenas americanos: canibalismo, demonologia, monstruosidade, tudo é
transposto para América. O texto de Woortmann, nos auxilia a compreender como os
estereótipos dos ameríndios foram criados. Esses estereótipos se espalharam por toda a Europa
e povoaram as imagens pictóricas dos indígenas entre os séculos XVI e XVIII. Ao buscarmos
os significados subjacentes, através da análise das aquarelas que Paucke criou sobre as
festividades que ocorriam na redução e as assembleias mocoví, as ideias de Woortmann sobre
selvageria e civilidade foram primordiais para trazer à luz esses conceitos inseridos nas
representações pictóricas do jesuíta, onde a imagem converte a expressão subjetiva em
comunicação objetiva.
Durante nossos estudos encontramos vários trabalhos de pesquisa que utilizaram como
fonte a crônica de Florian Paucke. Comentaremos aqui alguns desses estudos devido à
relevância que têm nas nossas reflexões sobre a narrativa de Paucke.
Las memorias de Florian Paucke: Uma crônica singular de las missiones jesuítas del
Gran Chaco Argentino é o título do artigo da Professora Susana Zanetti (2013) da Universidad
Nacional de La Plata e da Universidad de Buenos Aires. Nesse artigo, a autora traz uma síntese
da crônica de Paucke, sua biografia e alguns comentários de outros autores sobre as ilustrações
que compõem a obra deste missionário, que contribui para o nosso entendimento sobre sua vida
e o tipo de relações sociais que ele estabeleceu com os mocoví e a sociedade espanhola.
As pesquisadoras Rosso e Cargnel (2012) analisam em seu artigo Historiadores y
etnógrafos: escrituras jesuíticas en el siglo XVIII. Los casos de Pedro Lozano y Paucke como
18
os discursos foram construídos sobre o território do Gran Chaco5 a partir das obras dos jesuítas
Lozano e Paucke, demarcando as diferenças entre um espaço selvagem e outro civilizado, que
inclui tanto as cidades espanholas como as reduções indígenas. As autoras entendem que tanto
Paucke como Lozano podem ser entendidos como historiadores e etnógrafos e que seus escritos
constituem observações da realidade vivida por cada um deles. Segundo as autoras, Lozano é
considerado pela comunidade científica como historiador, devido à relevância de suas obras
como fontes de pesquisa na construção da historiografia colonial desta região. Pois em 1730 e
1752, Lozano foi designado para o ofício de historiographus provinciae dedicando-se aos
trabalhos históricos da Companhia. Quanto a conceber Paucke como proto-etnógrafo, as autoras
relatam que as produções jesuíticas são vistas por vários autores como “quase” etnográficas,
caracterizando a figura dos missionários como etnógrafos. A partir da ideia de Certeau de que
as crônicas dos viajantes constituem “proto-etnologias”, as autoras consideram que se pode
falar de Paucke como um etnógrafo. Esse artigo serve para fundamentar nossa ideia de que
podemos considerar as imagens criadas por Paucke como documentos etnográficos, sem deixar
de nos ater ao fato de que a memória de Paucke é instruída e que tem como objetivo realizar
um esforço de unidade física dos membros da Ordem Jesuítica que compartilhavam lembranças
singulares, como as que estão presentes na obra de Lozano e Labrador.
No terceiro capítulo apresentamos o grupo mocoví e suas principais características
étnicas enquanto caçadores e coletores habitantes do Gran Chaco. Esse grupo foi descrito em
várias crônicas jesuíticas, mas Paucke além da sua narrativa verbal sobre os mocovís, produziu
104 aquarelas que ilustram as formas da vida vegetal, animal e humana da região no século
XVIII. Os elementos etnográficos específicos dos guaicuru presentes em suas ilustrações
confere a elas, o status de documentos históricos e etnográficos.
Como fonte importante para estudos antropológicos e etno-históricos do grupo mocoví,
destacamos a obra de Florencia Sol Nesis (2005): Los grupos mocoví en el siglo XVIII. Essa
obra nos forneceu valiosas informações para a reconstrução da história cultural dos povos pré-
hispânicos. A autora contextualiza os grupos mocoví antes da fundação da redução de San
Javier e analisa as formas de mobilidade, territorialidade e assentamento desses grupos. Ela
5 O Chaco se estende em uma extensa planície. No oeste seus limites são as serras subandinas, para leste os rios
Paraná e Paraguai e ao sul com o rio Salado; para o norte, estende-se além do rio Pilcomayo. Os rios que cruzam
esta região longitudinalmente delimitam três zonas diferenciadas por sua vegetação. O Chaco Boreal há o
predomínio de bosques cerrados; o Chaco Central tem mais florestas abertas; o Chaco Austral com predominância
de estepe. O extremo oeste apresenta bacias fluviais de grande profundidade dada a força com que os rios descem
das montanhas. No extremo leste é mais seco, baixo e úmido. O clima é quente e as estações seca e chuvosa são
bem definidas. Em relação aos recursos, o Chaco apresenta uma grande variedade de fauna e flora (NESIS, Los grupos Mocoví em siglo XVIII, p. 13).
19
centraliza seu estudo no século XVIII e examina as relações que foram construídas entre a
sociedade hispanocriola, indígenas e jesuítas na instalação de San Javier. Nosso objetivo visa
realizar uma exploração historiográfica da sua obra, a fim de apresentar um panorama mais
amplo do olhar dos jesuítas sobre os grupos guaicuru e destacar os aspectos que Florian Paucke
evidenciou em seu relato.
No quarto capítulo deste estudo propomos um exame sobre a materialidade de algumas
de aquarelas criadas por Paucke, cuja temática são as festas ocorridas na redução e as
celebrações feitas pelos mocoví. Suas imagens, assim como o texto verbal, produziram ideias.
A imagem, tal qual o texto, é polissêmica: ela elucida aspectos que o texto não consegue
expressar, comunica de forma rápida detalhes de um processo complexo que o texto escrito
levaria maior tempo para descrever (BURKE, 2017, p. 125). Sendo suas ilustrações textos não
verbais, próprios do campo imagético e que requerem interpretações específicas, elaboramos
uma análise dos elementos visuais que o autor usou em suas composições e destacamos os
traços pictóricos que representam a barbaridade e os que representam a transição para uma
cristandade civilizada.
Um artigo que orienta nossa investigação sobre as celebrações desenhadas pelo jesuíta
Florian Paucke é Cuerpos de Fiesta: Entre el desfile y la borrachera en el testimonio del jesuíta
Florian Paucke (1749-1767), de Marta Penhos (2007), doutora em História e Teoria da Arte da
Universidade de Buenos Aires. Nesse artigo, a autora observa a combinação de texto e imagem
realizadas por Paucke, utilizando ferramentas específicas da História da Arte para avaliar os
desenhos do jesuíta. Esse estudo direciona nossa análise de como Paucke construiu o espaço
composicional e como ele distribuiu os elementos da composição dentro do campo pictórico.
Paucke criou representações segundo sua percepção e valorização dos espaços que
ocupava. Essas representações foram construídas a parti de uma relação entre o representante e
o representado. Segundo Ricoeur, podemos conceituar representação como:
Uma evocação de uma coisa ausente por meio de uma coisa substituída que é o seu
representante padrão, de outro lado, a exibição de uma presença oferecida aos olhos,
a visibilidade de coisa presente tendendo a ocultar a operação de substituição que equivale a uma verdadeira substituição do ausente (RICOEUR, 2007, p. 242).
Aqui os representados são os indígenas e as representações imagéticas criadas sobre eles
foram construídas através de uma longa tradição, já encontradas na cartografia que ilustram
vários livros e crônicas de viajantes desde o século XVI até o século XVIII. Supomos que
Paucke tenha tido contato com essas imagens, devido ao caráter de erudição que marca a
formação dos membros da Companhia de Jesus, e que esse imaginário tenha servido como fonte
20
inspiradora para a criação de suas aquarelas. A obra de Roberto Gambini (1988), O Espelho
Índio, é primordial para a compreensão das representações dos indígenas americanos no sentido
de fundamentar os aspectos por nós analisados das aquarelas que Paucke criou das festividades
mocoví. Gambini, em sua obra, analisa trechos de algumas cartas jesuíticas numa perspectiva
jungiana, constatando que os missionários viam nos indígenas, através da teoria de projeção,
tudo o que não conseguiam reconhecer em si próprios: erotismo, o sagrado feminino,
espiritualidade, a espontaneidade, entre outros aspectos. São dois universos, níveis de
consciência, duas partes opostas da humanidade que se encontraram e construíram uma relação
complexa e delicada ocorrida entre os jesuítas e os habitantes originários da América.
Outro aspecto que abordamos é que as intenções de Paucke na produção de suas imagens
estão, no nosso entendimento, condicionadas pelos fatores históricos e sociais de uma época
num determinado espaço e tempo.
Para Burke (2017):
Como no caso de retratos de indivíduos, representações da sociedade nos dizem algo
sobre uma relação, a relação entre o realizador da representação e as pessoas
retratadas. A relação pode ser igualitária, mas no passado ela frequentemente foi
hierárquica. [....] O que vemos é uma opinião “pintada”, uma “visão de sociedade” num sentido ideológico mas também visual. (BURKE, 2017, p. 181-182).
Suas imagens, inspiradas pelo meio social em que ele transitou, estão vinculadas às suas
percepções individuais, à sua intuição sensível e às suas impressões enquanto um ser social
inserido num determinado contexto que se apoiava numa espécie de lógica espacial, ideológica
e histórica. Da mesma forma, as nossas percepções de suas “intenções” estão também
vinculadas às nossas experiências individuais, bem como ao lugar que ocupamos no nosso
tempo histórico. Em sua obra Testemunha Ocular, Peter Burke (2017), estudioso da história
cultural inglesa, mostra o valor das imagens como evidência histórica. Assim, ele afirma que o
livro é “escrito tanto para encorajar o uso de tal evidência, quanto para advertir usuários em
potencial a respeito dos possíveis perigos” (BURKE, 2017, p.17). Burke faz referência aos
iconografistas da Escola de Warburg, dando destaque aos níveis pictórico pré-iconográfico,
iconográfico e iconológico de Erwin Panofsky. Lanço mão desse livro como suporte teórico
para minhas considerações de que as imagens das celebrações mocoví produzidas por Paucke
podem ser consideradas como evidências históricas e etnográficas.
A obra O Significado nas Artes Visuais de Erwin Panofsky (1976), é fundamental para
nossa interpretação e análise das imagens criadas por Paucke das celebrações. Panofsky criou
um método historiográfico e iconológico que consiste em realizar a interpretação dos objetos
21
artísticos, arquitetura, pintura ou escultura, a partir da decomposição das imagens e
reconstrução de seus percursos no tempo e no espaço. Panofsky identifica tanto nas imagens da
obra de arte, quanto nas imagens da vida cotidiana, três níveis de significado ou tema, criando
um quadro semiótico para interpretação da iconografia e da iconologia das imagens:
Quadro 1 – Quadro semiótico para interpretação da iconografia e iconologia das imagens.
OBJETO DA
INTERPRETAÇÃO
ATO DA
INTERPRETAÇÃO
EQUIPAMENTO PARA
INTERPRETAÇÃO
PRINCÍPIOS
CORRETIVOS DE
INTERPRETAÇÃO
(HISTÓRIA DA
TRADIÇÃO)
I. Tema primário ou natural- (A) factual, (B)
expressional –
constituindo o mundo
dos motivos artísticos
Descrição pré-iconográfica (e análise
pseudoformal)
Experiência prática (familiaridade com
objetos e eventos)
História do estilo (compreensão da
maneira pela qual, sob
diferentes condições
históricas, objetos e
eventos foram expressos
pelas formas)
II. Tema secundário ou
convencional,
constituindo o mundo
das imagens, estórias e
alegorias
Análise Iconográfica Conhecimento de fontes
literárias (familiaridade
com temas e conceitos
específicos)
História dos Tipos
(compreensão da
maneira pela qual, sob
diferentes condições
históricas, temas ou
conceitos foram
expressos por objetos ou eventos)
III. Significado
intrínseco ou conteúdo,
constituindo o mundo
dos valores “simbólicos”
Interpretação iconológica Intuição sintética
(familiaridade com
tendências essenciais da
mente humana),
condicionada pela
psicologia pessoal e
weltanschauung
História dos sintomas
culturais ou “símbolos”
(compreensão da
maneira pela qual, sob
diferentes condições
históricas, tendências
essenciais da mente
humana foram expressas
por temas e conceitos
específicos).
Fonte: Panofsky, 1976.
O autor entende que o mundo das imagens pode ser ordenado, sendo possível fazer uma
história das imagens. Panofsky propôs que a partir da imagem se pode reconstruir seu contexto
histórico, assim como seu processo de produção e elaboração.
Outro livro que nos serve de aporte teórico-metodológico para a análise das aquarelas
de Paucke é Imagem, de Jacques Aumont (2011). O autor analisa nesta obra a multiplicidade
de estruturas da análise visual que engloba desde os processos fisiológicos do olho na percepção
visual, a mecânica da luz, até aos fatores psicossociais que estão relacionados ao olhar e às
representações estéticas ao longo da história.
22
Para desenvolvermos a análise formal das imagens criadas por Paucke, a obra de Dondis
(2003), Sintaxe da Linguagem Visual, nos fornece informações sobre as maneiras de
apreendermos a informação visual, através do conhecimento da linguagem visual e seus
códigos. No tópico “Alfabetismo visual”, ela aponta a complexidade que envolve a linguagem
visual, e que compreender e criar mensagens visuais é algo natural até certo ponto, mas que é
preciso o estudo das teorias de análise das imagens para ampliar nossa percepção das
representações visuais.
Ao analisarmos as aquarelas das festas de San Javier, comparando com as
representações das celebrações dos mocoví, a obra de Dondis norteia nossa percepção dos
elementos visuais que Paucke usou para representar dois espaços: um espaço civilizado e outro
selvagem. As cerimônias dos mocoví são representadas como ocasiões em que todos os
excessos, comum aos seres selvagens, poderiam ser praticados. Observamos que as festas
mocoví serviam para fortalecer os laços sociopolíticos entre os vários grupos do tronco
linguístico guaicuru. Foram nomeadas por Paucke de assembleias e, em sua crônica, assim
como em suas imagens, essas práticas foram observadas pelo jesuíta segundo um juízo de valor.
No contexto das missões, essas festividades e as bebedeiras representavam obstáculos à
evangelização e à civilização. As bebedeiras causavam desordem que se opunha à ordem que
os jesuítas tentavam estabelecer nas reduções.
As imagens que Paucke criou para ilustrar sua crônica são abertas a várias
interpretações, necessitando, às vezes, do texto verbal a fim de direcionar o olhar e a leitura do
observador, mas mesmo sendo associada ao texto a imagem pode suscitar outras possíveis
associações e sentidos na sua recepção pelo leitor. Imagens são textos, mas textos cujos vários
sentidos são conferidos por nossas interpretações.
Uma peculiaridade que merece ser contextualizada no cenário da produção
científica/artística do século XVIII são as inscrições, à moda de legenda explicativa, que Paucke
inseriu em suas aquarelas. Dessa maneira, o jesuíta criou uma textualidade híbrida em parte
verbal e em parte visual ao fixar essas inscrições em seus desenhos. Sendo assim, seu texto
visual se justapõe à sua narrativa verbal. Ao inserir um texto explicativo em suas imagens teria
Paucke a intenção de levar o leitor de sua crônica a “ler” suas imagens de forma “correta”? Não
seria uma tentativa de controlar os significados dessas imagens para o leitor? Paucke estaria
induzindo a “recepção” exata que o leitor deveria ter frente a suas imagens? Supomos que
Paucke produziu essas imagens para conferir veracidade à sua narrativa verbal, mas a utilização
de verbetes explicativos nas imagens tem outros precedentes, busco como exemplo dessa
prática a ilustração que Oviedo fez, em 1535, do ananás em sua obra A História Geral das
23
Índias. Nessa obra vemos as relações entre escrita e imagem como forma de compor os sentidos
que rodeiam as circunstâncias comunicativas. No seu labor classificatório, Paucke manifestou
um interesse documental pela imagem. Mas suas representações de homens, animais e plantas
compartilham um mesmo lugar nas suas observações e nos seus registros. O curioso é que sua
obra não foi publicada. Ou seja, ele escreveu um livro à mão com aquarelas que, por sua vez,
têm legenda, seu texto verbal e visual se cruzam a todo o momento em sua narrativa.
Florian Paucke como humanista descreveu a terra e seus habitantes com detalhes de
paisagista e retratista. Na sua iconografia, observamos a diferença de forma ambivalente entre
natureza e cultura no tratamento dos personagens quanto a sua humanidade e ao lugar que
ocupam no mundo. As formas de expressão plástica que ele criou representam, ao mesmo
tempo, uma experiência de ordem estética e social, pelas quais nos possibilita investigar as
diferenças culturais, primordiais à concepção da identidade étnica. O interesse da história por
aspectos materiais e culturais dos grupos sociais encontra na imagem a representação de dados
fundamentais sobre a organização social e os modos de pensar dos sujeitos que dela fazem
parte. O método de estudo utilizado por historiadores e antropólogos se baseia na observação
dos coletivos humanos e suas construções sociais e culturais. Sendo assim, o conjunto de
criações imagéticas construídos pelos e sobre os coletivos humanos, nos permite pensar a
imagem como documentos visuais que levaria a reflexões históricas e antropológicas. Paucke
nos provoca com sua obra, e nos lança um desafio de compreendê-lo por meio de suas criações.
São registros etnográficos que nos revelam um mundo culturalmente rico e complexo em suas
relações de alteridade.
A associação entre essas imagens e a memória de Paucke é objetivada a serviço de sua
narrativa. Essas imagens dotadas de conteúdos da consciência sensível, têm a capacidade de
fixar estados de coisas e representar o passado vivido por Paucke. Só retemos na memória o
essencial, o que nos confere sentidos. No processo de criação de imagens enfatizamos certos
aspectos e excluímos outros. Esse conceito de ênfase e exclusão se aplica à memória sensorial
e nos auxilia na compreensão das representações de Paucke. O tempo, os espaços e as culturas
se encontraram em seus relatos e em suas imagens, marcadas pelo seu olhar sensível.
24
Capítulo 1
A COMPANHIA DE JESUS E O MISSIONEIRO DOS MOCOVÍ
Neste capítulo nos propomos a destacar a atuação da Companhia de Jesus na América e
o papel das reduções na transformação das formas de organização econômica, política e social
das sociedades indígenas do Gran Chaco no século XVIII. Apresentamos ainda a biografia do
jesuíta Florian Paucke, autor da crônica Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios
Mocobíes -1749-1767, fonte da nossa pesquisa.
1.1 A Companhia de Jesus no Novo Mundo
A organização e a instalação da Igreja católica na América espanhola no século XVI
seguiu as principais características da Igreja da Península Ibérica no período das conquistas dos
territórios americanos, as quais foram legitimadas pelo Conselho de Trento em 1545.
O papado, através das bulas do papa Nicolau V (1455) e do papa Calisto III (1456),
interveio nas expedições de conquista, centralizando seus interesses nos aspectos humanitários
e religiosos das populações submetidas à ocupação europeia enquanto conferia legitimidade às
ações conquistadoras e dominadoras de Castela e Portugal. A estrutura básica de como seria o
processo evangelizador na América foi definida nas bulas papais de Alexandre VI em 1493 e
1501; de Júlio II em 1508; e de Adriano VI em 1523, que outorgaram a Castela os direitos
reivindicados para tomada e exploração do continente americano. Em troca dessa concessão os
reis católicos deveriam promover a conversão dos povos ditos “bárbaros” e manter e proteger
a Igreja sob o regime do patronato real. O patronato era um privilégio que o papa concedia aos
monarcas espanhóis que outorgava à coroa o controle da Igreja na América, especialmente para
nomeação de bispos. Além da nomeação de bispos a coroa poderia indicar candidatos a todos
os outros cargos religiosos, mas deveria assumir os salários, a construção e manutenção das
catedrais, igrejas, mosteiros, colégios e hospitais através do recolhimento do dízimo cobrado
sobre as produções agrícolas e pecuária, estreitando os laços entre a política eclesiástica e a
política colonial coordenada pelo conselho das Índias em 1524 (BARNADAS,A Igreja católica
na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina: América
Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2001, p.186).
25
Segundo Barnadas:
À Igreja na América fora confiada uma missão prática: apressar a submissão e a
europeização dos índios e pregar a lealdade à coroa de Castela. Qualquer resistência
por parte da Igreja ao cumprimento dessa função era considerada um problema
político e seria tratada de maneira correspondente. (BARNADAS, A Igreja católica
na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília,
DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.186).
Esse ajuste não era muito desejável pela Igreja, mas sob o patronato real o clero
desfrutava de certa tolerância religiosa e era ouvido nos processos administrativos da coroa.
Um dos primeiros conflitos entre a Igreja e a coroa foi a legalização da encomienda feita pelo
rei Fernando. O regime de encomienda permitia que os índios fossem obrigados a trabalhar para
os colonos que poderiam exercer sobre eles direitos quase vitalícios, embora não fossem
considerados legalmente escravos. Muitos religiosos saíram em defesa dos indígenas como o
frade dominicano Antônio de Montesinos (1511) e Bartolomé de Las Casas (1514). A coroa
tentou intervir em 1512 com a Leis de Burgos que buscava mediar os conflitos e interesses
antagônicos. As duas décadas seguintes foram decisivas para Castela na consolidação do
domínio da América. A descoberta de sociedades complexas e organizadas a partir de sistemas
completamente estranhos ao europeu, além do conhecimento da extensão territorial, levaram a
Igreja a perceber a dimensão de sua tarefa evangelizadora no Novo Mundo. A conquista militar
e a espiritual eram simultâneas, mas as ordens religiosas só eram instauradas após o
estabelecimento da autoridade espanhola na região. Sendo assim, tanto a coroa quanto a Igreja
necessitavam uma da outra para executarem seus serviços. Para os missionários, conquistar as
populações indígenas significava servir a fé (Deus), ao monarca de quem eram vassalos, aos
indígenas, cujas almas salvavam, e a si próprios, como homens honrados (ELLIOT, Espanha e
América no século XVI e XVII, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina: América
Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2001, p.22).
A Península Ibérica viveu vários movimentos reformistas na segunda metade do século
XV e na primeira metade do século XVI. A própria Castela reformou o episcopado,
selecionando mais rigorosamente seus representantes e exercendo uma maior austeridade no
uso do padroado. No século XVI, com os primeiros sinais da cisma luterana, o catolicismo
espanhol tentou restaurar e revigorar a prática cristã. Para muitos o Novo Mundo se apresentava
como uma oportunidade de restauração da Igreja primitiva, cujo cristianismo se mostrava puro
e imaculado. A própria Companhia de Jesus era produto desse ideal reformador, procurando
26
desenvolver um cristianismo impoluto dos erros que se estabeleceram na Fé europeia. Essa
utopia floresceu nas Reduções jesuíticas principalmente do Paraguai no século XVII e a sua
estrutura hierárquica rígida condizia com o modelo de cristianismo indicado pelo Concílio de
Trento em 1545. Pode-se observar várias tendências assumidas pela Igreja na América
Espanhola do modelo apontado pelo Concílio como a liturgia realizada em latim, que restringia
o acesso a palavra de Deus pelos fiéis, mas que consolidava a ortodoxia teológica. Com a
ascensão do protestantismo a Igreja Católica reafirmou as crenças e práticas que o
protestantismo criticou e aboliu. Esse movimento foi chamado Contrarreforma. Essas práticas
consistiam em procissões, venerações aos santos, indulgências e a devoção às almas do
purgatório (BARNADAS, A Igreja católica na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell
(ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da
Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.189).
A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loyola em 1534 e em 1540 foi
aprovada pelo Papa Paulo III. Com o seu lema Ad Majorem Dei Gloriam (Para a maior glória
de Deus) as características da Ordem de Jesus assentavam-se numa metodologia de agir e estar
no mundo. Essa forma de agir é marcada por um romanismo: devoção ao papado, abnegação e
obediência total ao papa (CALVO; BENZI, 2016, p. 2).
Segundo Gambini:
Como se sabe, Inácio de Loyola destacava a obediência e a disciplina como sendo as
principais virtudes dos Soldados de Cristo, cujas vidas deviam ser guiadas pela mística
do serviço. A ação, para os jesuítas, é um imperativo categórico acima de qualquer
discussão (GAMBINI, 1988, p. 67).
Na ação evangelizadora, os jesuítas acreditavam que a guerra entre Deus e Lúcifer era
travada na alma dos indivíduos, sendo assim, a conversão ao cristianismo e divulgação da
mensagem Deus era a missão maior dos religiosos. A Companhia exerceu grande influência
por quase dois séculos, no campo político, religioso, social e cultural dos países em que esteve
atuando. “Seus membros tinham sólida formação acadêmica e forte disciplina intelectual
baseada em exercícios espirituais escritos pelo fundador” (CALVO; BENZI, 2016, p. 3).
Quanto à formação educacional de seus membros, a Companhia de Jesus elaborou o
Ratio studiorum (1551-1599) cujo programa determinava os conteúdos das humanidades latinas
considerados primordiais na instrução de seus discípulos. Com o surgimento de vários colégios,
principalmente na Europa, a Companhia elaborou esse plano de estudos a fim de unificar suas
ações, centralizar decisões e seguir uma única matriz filosófica. O Ratio studiorum entrou em
27
vigor em 1599, mas na sua elaboração as artes mecânicas ou ofícios não foram contemplados.
No entanto, já em 1570 a Monumenta pedagogica trazia a sistematização das regras que
deveriam ser aplicadas aos ofícios. Na América Espanhola, por imposição do meio, os jesuítas
tiveram que contar com as oficinas mecânicas. Eles possuíam fazendas, colégios, residências e
igrejas. Para garantir a manutenção dessas unidades se fez necessário criar as oficinas de ofícios.
As oficinas ensinavam os ofícios e fabricavam mercadorias, interligando o trabalho manual
com o intelectual. Os oficiais mecânicos eram compostos por colonos livres, indígenas,
escravos negros e pelos próprios jesuítas. Os membros da Companhia de Jesus eram formados
numa rígida disciplina de obediência aos cânones teológicos escolásticos para atuarem no
mundo temporal, mas para a prática do processo evangelizador era necessário ter uma sólida
condição material de existência, do contrário, o projeto de catequização não teria êxito. Para
sobreviver num meio condicionado pelas relações mercantis, a Companhia criou estratégias
para manter e adquirir propriedades produtoras de mercadorias manufaturadas com o objetivo
de produzir capital para financiar seus bens e suas ações (FERREIRA; BITTAR, 2012, p. 693-
704).
As ações dos jesuítas eram justificadas e legitimadas pela necessidade urgente de
evangelizar as almas que viviam tão distantes do criador. Para tal empreitada tiveram que
desenvolver estratégias e métodos para doutrinar os indígenas e implantar os conceitos cristãos
de céu e inferno, e para se alcançar o céu, o único caminho possível seria a obediência a um
Deus único representado pelos missionários. O sistema educacional implantado pelos jesuítas
foi essencial para a conversão dos grupos indígenas, mas o batismo seria o rito que garantiria o
sucesso da catequização, por conseguinte, a salvação eterna dos catecúmenos. Mas a
cristianização dos indígenas não ocorreu de forma voluntária e permanente. A manutenção de
práticas indígenas consideradas pecaminosas como a poligamia, nudez e bebedeiras
dificultaram a tarefa dos missionários.
Relatar por escrito as experiências vividas era uma das tarefas fundamentais que os
jesuítas deveriam realizar em suas missões. Essa orientação esteve presente desde a fundação
da Companhia de Jesus e se tornou obrigatória entre os membros da Ordem. O ato de escrever
tornou-se fundamental para os missionários. Esses escritos deveriam narrar os trabalhos
realizados pelos membros da Companhia, informando à sede da Ordem as decisões e os feitos
dos seus discípulos nas diversas províncias. Havia as cartas, as epístolas edificantes, epístolas
administrativas e as crônicas. Os relatórios de atividade que cada provincial enviava
periodicamente ao preposto geral da Companhia, as chamadas cartas anuais, eram aprimorados
e largamente divulgados. Surgiu, assim, uma extensa correspondência que mantinha a união da
28
nova ordem religiosa que ascendia rapidamente (ROSSO; CARGNEL, 2012, p. 63). O
intercâmbio epistolar entre missionários e seus superiores tinha como objetivo informar sobre
as dificuldades enfrentadas pelos religiosos na obra catequética e de tudo que ocorria nas
missões. Os jesuítas não se limitaram a só esse tipo de informação já que descreviam também
o clima, a geografia, a fauna e a flora e as especificidades dos costumes e modos de vida dos
nativos habitantes do Novo Mundo. Nesses escritos é possível observar as lentes que os jesuítas
usavam para descrever os seres que habitavam o Novo Mundo, qual seja: missionários europeus
enviados (jogados às feras) para salvar as almas de seres humanos que viviam como animais
mais ou menos mansos ou ferozes.
A Companhia de Jesus iniciou sua missão evangelizadora na América Espanhola em
1566, após várias restrições do Conselho das Índias. A primeira viagem foi para Flórida. Saindo
da Europa, os jesuítas enfrentavam nessas longas viagens, distintos infortúnios como
tempestades, aprisionamento por corsários, guerra e morte. Era escassa a periodicidade dessas
viagens por ordem da Coroa Espanhola a fim de resguardar sua frota dos inimigos. Geralmente
os barcos em que viajavam os missionários jesuítas eram protegidos por uma forte armada.
Essas viagens eram dirigidas por um Padre Procurador, eleito em sua província de origem.
Foram numerosos os embarques de jovens jesuítas que partiram para várias partes da América.
No caso do Paraguai, entre os séculos XVII e XVIII, foram realizadas cerca de 20 viagens com
a ida de mais de sessenta missionários (PAGE, 2007, p. 3).
1.2 As Reduções entre os Guarani
As reduções tiveram sucesso quanto à pacificação das constantes lutas entre os grupos
indígenas e os espanhóis, mas as reduções também se configuraram como espaços de controle
e proteção desses grupos contra a exploração e os maus tratos dispensados aos indígenas.
Protegiam os índios contra a encomienda ou qualquer outra forma de escravidão, isentando os
mesmos de tributos que deveriam ser pagos à coroa espanhola, do serviço pessoal prestado a
colonos e da mita.
Segundo Elliot (2001), uma das bases da colonização espanhola foi o sistema de
encomienda. Esse sistema fundamentava-se em conceder “povoações mouras a membros de
ordem militares na Espanha medieval”. No Novo Mundo, esse regime não incluía a distribuição
ou arredamento de terras, era uma concessão do Estado espanhol, que consistia no repartimento,
ou distribuição dos índios. Era um ato de favor da corroa concedido inicialmente aos
29
conquistadores como recompensa. A encomienda foi um regime de mão-de-obra compulsória
indígena confiada a espanhóis particulares que deveriam “cuidar dos índios e instruí-los na fé”:
A coroa deveria recompensar seus homens com mão-de-obra indígena perpétua, na
forma de encomienda hereditárias. Os encomenderos, de seu lado, teriam uma
obrigação dupla: defender o país, poupando à coroa as despesas de manutenção de
um exército permanente, e cuidar do bem-estar espiritual e material de seus índios
(ELLIOT, A Conquista Espanhola e a Colonização da América. In: Leslie Bethell
(ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da
Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.183).
Além do sistema de encomienda, de acordo com Elliot (2001) havia o princípio da mita:
tradicional nas sociedades andinas, baseava-se em turnos, tempo ou período, que os grupos
étnicos trabalhavam para os nobres, chefes, viúvas e órfãos. A mita era uma forma de tributação
instituída aos indígenas que deveriam pagar seus tributos com turnos trabalho a coroa
espanhola. Devido às lastimáveis condições de vida proporcionada por esse tipo de relação de
trabalho no período colonial, ocorreu uma severa diminuição das populações indígenas. Leis
foram criadas para restringir o trabalho compulsório dos índios, mas não puseram fim à
“escravidão” indígena. No século XVIII as reduções desempenharam o papel de proteger os
indígenas de tais abusos. Nas reduções, os caciques que ali se estabelecessem, juntamente com
seus índios, seriam reconhecidos como vassalos do rei da Espanha e defendidos de seus
agressores.
A atuação missionária da Companhia de Jesus no Novo Mundo é um tema relevante da
historiografia americanista analisado em sua dimensão cultural, econômica, social e política
Das várias missões fundadas pelos jesuítas nas Américas as missões guarani da Província do
Paraguai ocupam um espaço significativo como tema de investigações historiográficas. No
início do século XVII foram fundadas as primeiras reduções dos guaranis. Até o início do século
XVIII, índios e jesuítas fundaram um conjunto de povoados que foi chamado de Trinta Povos
das Missões. Alguns desses povoados prosperaram e se mantiveram estáveis, chegando a
concentrar um número considerável de indígenas. Os métodos administrativos, econômicos,
arquitetônicos e religiosos empregados pelos jesuítas nessas reduções tiveram êxito e serviram
de modelo para as futuras reduções que fundaram ao longo da primeira metade do século XVIII
na região do Gran Chaco. Portanto, sentimos a necessidade de dispor sobre as reduções guarani,
já que a experiência com os guarani reduzidos serviu de padrão para a fundação da redução de
San Javier, em 1743.
Os jesuítas fundaram as primeiras reduções entre os guarani no Guairá, em 1610, a
pedido do governador de Assunção Hernandarias de Saavedra. Nas reduções, os índios
30
deveriam jurar obediência aos reis católicos e à fé católica. A autoridade real era confundida
com a divina, pois os jesuítas ensinavam aos índios que o rei é a representação de Deus na terra.
A submissão dos indígenas à coroa espanhola requereu que fossem organizados em
comunidades regidas pelas leis espanholas e que aceitassem a hierarquia administrativa
imperial.
As reduções apresentavam uma disposição de seu conjunto de edificações bem
semelhantes umas das outras. O que as diferenciavam eram as condições de subsistência e de
produção de artigos e insumos que geravam riquezas pela comercialização desses produtos. Até
o momento da expulsão dos jesuítas, havia trinta reduções nos territórios do Paraguai, Buenos
Aires e Brasil que compunham os trinta povos das missões. Na figura 1, podemos observar a
localização no mapa dessas reduções.
Figura 1 – Os Trinta povos das Missões.
Fonte: Sete povos das Missões. pousadamissoes.blogspot, 2014. Acesso em 02/2019.
A igreja era ligada ao colégio dos missionários, havia dois pátios internos quadrados
bem espaçosos e os aposentos dos padres ficavam nos edifícios próximos à igreja. Ao redor do
primeiro pátio ficavam as oficinas de armas, armazéns e as escolas. As oficinas comunais
31
ficavam ao redor do segundo pátio. O cemitério e a casa das reclusas ficavam do lado oposto
aos pátios. Um grande quadrilátero central era a praça pública, onde se erguia uma escultura
do padroeiro da redução e quatro cruzes nos quatro cantos da praça. Ao redor da praça ficava
as casas dos indígenas. Esse modelo de distribuição arquitetônica dos edifícios estava de acordo
com a legislação colonial. A figura 2 mostra uma planta baixa de uma típica redução dos trinta
povos das missões. As ruas retas e largas diminuíam o perigo de incêndios e facilitavam a
vigilância por parte dos missionários. A divisão da redução em duas partes distintas deixava
estabelecido que, de um lado, se tinha o domínio de Deus, representado pelos jesuítas, e, do
outro lado, os indígenas, seus súditos (HAUBERT, 1990, p. 76-196).
Figura 2 – Planta Baixa de uma Redução.
Fonte: Noticias.leocavallini.com. Guaranis - parte-1-2017. Acesso em 02/2019.
Normalmente, a redução era administrada por dois padres que governavam esses
grandes vilarejos que as vezes comportavam de mil a oito mil índios. O encargo material para
se manter a redução era enorme, e isso explicava o sistema econômico implantado pelos
jesuítas. A terra para o plantio era distribuída entre os índios pelo cacique, mas, segundo os
32
missionários, poucos índios se dispunham a arar a terra. Isso tem a ver com a própria
organização social do trabalho guarani em que as mulheres atuavam predominantemente nas
práticas agrícolas. Os jesuítas instituíram funcionários que fiscalizavam o plantio de cada
família, pois o cristão tinha o dever de trabalhar para ter o pão de cada dia, e caberia aos padres
obrigar os índios a fazê-lo, para isso recorriam frequentemente aos castigos.
Comercializavam a yerba ou a erva dos jesuítas (erva mate) que, desde 1620, se
constituiu em um dos principais artigos de exportação. As reduções também vendiam artesanato
e artigos para montaria para sua subsistência. O abastecimento de carne era feito pelas suas
estancias de gado. Mas esse comércio não bastava para suprir todas as necessidades da redução,
pois era preciso adquirir o sal, produtos manufaturados como anzóis, facas, armas, medalhas,
vinho, cera, óleo e as vestimentas para o culto cristão. Praticava-se o escambo, pois a moeda
praticamente não circulava na região. Mas, como vassalos do rei da Espanha, os guarani
deveriam pagar tributo, se apresentar ao serviço militar ou poderiam trabalhar nas construções
públicas por ordem dos governadores. O valor do tributo era fixado em um peso por cabeça.
Eram obrigados a pagar o tributo todos os vassalos do sexo masculino de dezoito a cinquenta
anos. Apenas os caciques e seus primogênitos eram isentos, assim como também os magistrados
municipais, sacristãos e corregedores. Para o pagamento do tributo real, os jesuítas
supervisionavam os trabalhos necessários para a aquisição dos produtos que seriam vendidos
nas cidades coloniais. (HAUBERT, 1990, p. 201-204).
Segundo Haubert:
A organização das “reduções” não é original em si: nem a palavra, nem a coisa são
uma invenção dos jesuítas. Mas as reduções entre os guaranis constituem a legislação
imperial finalmente aplicada, no sentido mais favorável ao bem temporal e espiritual
dos indígenas e à glória da companhia, que nelas imprime a marca de seu totalitarismo,
enquanto a cultura e a história missionária dos guaranis pesam, com toda a sua
pressão, sobre a administração da cidade (HAUBERT, 1990, p. 197-198,).
A rotina nas reduções era austera, com horários rígidos para os serviços religiosos, as
cerimônias do culto cristão, as visitas aos doentes e a inspeção dos campos e das oficinas. Mas
a concepção geral é que os índios eram crianças, incapazes de gerir sua própria vida, seres sem
leis, sem escrita, e, por isso, sem história, incapazes para tudo. Assim, cabia aos jesuítas agirem
como tutores, verdadeiros pais de família, papel esse que lhes foi imposto pela legislação
colonial (HAUBERT, 1990, p. 202-268).
33
1.3 A Redução de San Javier
A Ordem Jesuíta se estabeleceu em Santa Fé – Argentina, em 1610. O centro das
atividades jesuíticas se localizava em Córdoba, que mantinha a comunicação e o controle das
atividades das reduções e das escolas do amplo território platino ou paraguaio. A Ordem se
destacou entre as ordens religiosas coloniais por causa da complexidade e transcendência de
seu trabalho, tendo participação ativa na conciliação da paz entre os espanhóis e os grupos
indígenas da região. Desse processo várias cidades e reduções foram fundadas. A redução de
San Javier, criada em 1743, no Gran Charco, foi uma das primeiras reduções mocoví.
O Gran Chaco abrange os atuais territórios da Bolívia, Argentina, Brasil e Paraguai.
Apresenta uma ampla diversidade de fauna, flora, tipos de solo e climas. É dividido em: 1)
Chaco Boreal, que se prolonga até o rio Pilcomayo, estendendo-se até territórios boliviano e
paraguaio e possui florestas densas; 2) Chaco Central, que compreende a área entre o rio
Pilcomayo e o rio Bermejo, abrangendo território boliviano e argentino contendo florestas mais
abertas e 3) Chaco Austral, que fica entre o rio Bermejo e a confluência entre o rio Salado e o
rio Paraná entre a Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil, com predominância de estepe. O clima
é quente, mas devido ao regime de ventos continental e sazonal que vem da Antártica possui
variação de temperatura entre o dia e a noite e entre as estações do ano. Os principais rios que
citamos nascem nos Andes e alcançam o rio Paraguai e Paraná. Nesse amplo território,
diferentes grupos indígenas coexistiam com suas práticas e costumes característicos, alguns
desses grupos desenvolviam práticas agrícolas e outros eram caçadores e coletores como o
grupo linguístico Guaicuru formado pelos Mocoví, Toba, Payaguá, Abipone e Mbayas-
Guaycurú. Os Payaguá, além de caçar e coletar alimentos, vivam também da pesca. O espaço
geográfico tradicional habitado por esses grupos era o Gran Chaco paraguaio, área onde
predominam planícies e abrange cerca de 7000.000km² nos territórios do Paraguai, Bolívia e
Argentina. Nas fronteiras orientais do Chaco paraguaio predomina a influência cultural dos
Guarani. No ocidente, temos a atuação dos indígenas andinos e no sul dos indígenas pampianos,
predominantemente falantes da língua guaicuru (SILVA, 2014, p. 42). Por terem adotado o
cavalo6, tiveram maior domínio do território e acesso aos meios de subsistência, conseguindo
também resistir fortemente às tentativas de colonização e manter sua autonomia por mais de
três séculos. Esses grupos, caçadores e coletores, sequestravam o gado dos colonos e, quando
6 Entre os séculos XVI e XVII o cavalo europeu foi inserido no território chaquenho e possibilitou o aumento do poderio bélico e do território dos grupos indígenas da região (SILVA, A Reserva Indígena Kadiwéu, 2014, p. 43).
34
perseguidos, rapidamente entravam na selva e dificilmente eram capturados (NESIS, 2005, p.
13).
Segundo Zanetti:
Los textos coloniales españoles coinciden en condenar los rasgos culturales de estos
grupos nómades, recolectores y cazadores, cuya enorme destreza para la guerra no
pudo evitar la expansión española de la frontera tucumano-chaqueña a comienzos
del siglo XVIII, y la consiguiente mutilación del territorio étnico original (ZANETTI,
2013, p. 181).
No início do século XVIII os grupos mocoví se estabeleceram na região oeste do Chaco
entre os rios Pilcomayo e o rio Bermejo. Praticavam ataques, na região fronteira de Tucumán,
que geraram entradas pelos colonos que possuíam um corpo de milícia para sua defesa. Em
1710, alguns grupos mocoví foram expulsos dessa região e se alojaram perto das cidades de
Santa Fé e Assunção no Chaco oriental. A figura 3 mostra, no mapa, a distribuição de alguns
dos grupos indígenas da região.
Figura 3 – Mapa do Gran Chaco e a distribuição de alguns grupos indígenas.
Fonte: Mapa-del-Gran-Chaco. researchgate.net ,2017. Acesso em 02/2019.
35
As cidades dessa região estavam localizadas às margens dos rios ou em torno deles e
possuíam uma área rural para as atividades agrícolas. Eram alvo de contínuas hostilidades dos
grupos indígenas chaquenho, sendo que as possibilidades defensivas da sociedade
hispanocriola7 não conseguia conter o avanço desses grupos sobre seus assentamentos. Quanto
aos indígenas, a invasão do seu território trouxe a degradação e o desiquilíbrio ambiental, assim
como o desenvolvimento de várias epidemias, como a da varíola, que causou a diminuição do
contingente populacional indígena. A ascensão espanhola no território indígena fez com que
esses grupos ficassem encurralados em áreas pequenas e propensas a inundações, gerando
constantes conflitos interétnicos. A necessidade de sobrevivência desses grupos forçou a
mobilidade dos mesmos, dificultando ainda mais a pacificação e a cristianização dos indígenas
(NESIS, 2005, p. 14).
Para conter o aumento das hostilidades, a sociedade hispanocriola usou como recurso
acordos de paz e a criação de reduções. Caberia aos jesuítas, encarregados das reduções,
pacificar os indígenas do Chaco. Florian Paucke relata em sua crônica os constantes conflitos
ocorridos entre os indígenas da região e os moradores da cidade de Santa Fé:
Estos indios que llevan el nombre amocovit y por los españoles son llamados también
mocovíes aunque también se quiere llamarlos guaicurru, vivían en la extremidad del
gran valle llamado Chaco, distante quinientas leguas de la ciudad de Santa Fe. Pero
esta distancia no les impedía asaltar frecuentemente la ciudad, matar a maza y lanza
varios vecinos, y llevar consigo los niños como esclavos. Si bien estos mocovíes eran
muy numerosos, se aliaban con otros indios colindantes, a saber con los abipones,
cuyo verdadero nombre es acallagaec y con los tobas que en realidad se llaman
natocovit. Así marchaban a hostilizar los contornos de la ciudad de Santa Fe y a
asesinar cuantos llegaban a su alcance (PAUCKE, [1774], 2010, p. 152).
Devido aos interesses econômicos e militares da região ficou estabelecido, na
implantação das reduções, que os indígenas manteriam os acordos de paz e forneceriam ajuda
militar contra os grupos de índios não reduzidos que costumavam assaltar as cidades. Quanto
aos moradores das cidades, ficou acordado que deveriam fornecer provisões necessárias a
pequenos grupos de indígenas e que os jesuítas teriam a tarefa de converter os “bárbaros” e
manter o sustento das reduções através das práticas agrícolas e da comercialização de produtos
fabricados nas reduções (NESIS, 2005, p. 16).
7 Sociedade hispanocriola – Grupo social formado por espanhóis e criolos na América espanhola no período
colonial. Os espanhóis nativos da Espanha eram chamados de peninsulares e os brancos nascidos nas colônias de
criolos (ELLIOT, Espanha e América no século XVI e XVII, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina:
América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.24).
36
Assim nasceu a redução de San Javier, em 1743, às margens do rio de mesmo nome, no
Norte da presente província de Santa Fé, Área Sul do Chaco argentino, pertencente à província
jesuíta do Paraguai. Em 1765, a redução mocoví de San Pedro foi incorporada à redução de San
Javier. As autoridades coloniais buscavam no trabalho civilizatório dos jesuítas a submissão
dos grupos indígenas de caçadores e coletores, abrindo assim, o caminho para a posse da região,
permitindo também satisfazer a cobiça dos colonos de obter o trabalho dos índios
“domesticados". Florian Paucke chegou em 1750, nos momentos finais do estabelecimento da
redução de San Javier. Quinze anos depois, ou seja, em 1765, Paucke iniciou a fundação de
outra redução, a de San Pedro, mas não pôde concluir seu assentamento pois, em 1767, chegou
a ordem do rei Carlos III, que determinou o exílio de todos os jesuítas do território americano.
O papa Clemente XIV, em 1773, dissolveu a Companhia através da carta papal Dominus ac
Redemptor. Paucke retornou à Europa e passou a viver no mosteiro de Neuhaus, na Boêmia,
onde escreveu sua crônica. Antes de sua morte, entregou seus escritos ilustrados ao prior do
mosteiro de Zwettl na Áustria, no qual se encontram preservados em sua biblioteca (CALVO;
BENZI, 2016, p. 8).
1.4 Florian Paucke e as experiências entre os Mocoví
Quem foi Florian Paucke? Foi um jesuíta oriundo da Europa Central que, tão logo
ingressou na Companhia de Jesus, solicitou sua ida aos territórios hispano-americanos a fim de
desenvolver suas atividades missionais. Preparou-se para executar suas missões com a
aprendizagem de vários ofícios, mas sua especialidade foi a música. Foi compositor, interprete
de órgão, violino, trompa marinha e flauta transversal. A ele coube ir à Província do Paraguai,
onde permaneceu por dezoito anos no país dos Mocobíes, situado ao norte da atual Província
de Santa Fé. Sua estadia na América foi suspensa devido à ordem de expulsão da Companhia
de Jesus, em 1767, que afetou milhares de missionários jesuítas das colônias hispano-
americanas, como já havia ocorrido com os missionários que estavam nos domínios
portugueses.
Sobre sua biografia Bajo enuncia:
Posiblemente la más exacta síntesis cronológica de la vida de Florian Paucke es la
que nos ha llegado por intermedio del Padre Guillermo Furlong S.J.: Entre los
Mocobíes de Santa Fe. (Según las noticias de los Misioneros Jesuitas Joaquín
Camano,. Manuel Canelas, Francisco Burgés. Romáll Arto, Antonio Bustillo y
Florian Baucke), Buenos Aires, 1938. Los datos fueron extraídos del trabajo del "[...]
Padre José Vrastil, historiador checoslovaco, algunas noticias interesantes [...]
Archivos de Austria y publicados en la revista mensual Dobroslav (1922-1923) [...]"'
37
(pág. 208, in fine). A la información básica de J. Vrastil, se le pueden incorporar los
datos obtenidos por investigaciones especializadas, las de G. Furlong, R.W. Staudt,
Edrnundo Wernicke, C. Leonhardt, Vicente Sierra, etc. (BAJO, 1995, p. 226).
Florian Paucke nasceu em 24 de setembro de 1719 em Winzig, Silésia, região que
pertencia ao Império Austríaco. Winzig, é uma vila de Wolów County, localizado a 48 km de
Wroclaw, Baixa Silésia, agora no sudoeste da Polônia. No século XVIII, essa região da Silésia
pertencia ao reino da Boêmia e à Casa da Áustria. Após várias guerras, Frederico, o Grande, rei
da Prússia, arrebatou a Silésia e toda a Áustria.
Aos dezessete anos, em 9 de outubro de 1736, Paucke ingressou na Companhia de Jesus
em Brün, capital da Moravia. Entre 1739 e 1741 estudou filosofia em Praga, capital da Boêmia.
Em 1743 e 1744 ensinou letras em Breslau, capital da Silésia e em Neisse na Alta Silésia, onde
também lecionou a disciplina de gramática. Em 1745, foi professor de Sintaxes. Nos anos de
1746 a 1748, estudou Teologia em Breslau e em Olmütz. Para R. W. Staudr, Paucke deve ter
estudado essa disciplina em latim ou alemão, pois o ensino secundário e universitário na Áustria
no século XVIII não utilizava outro idioma e o checo estava excluído desde 1620.
Em 1747, obteve permissão do Vaticano para viajar à América. Ordenou-se sacerdote
em Brün (atualmente a maior cidade da República Checa) em 6 de janeiro de 1748. No dia 20
do mesmo mês, ainda devendo seis meses de curso, recebeu a permissão de partir para a
província Paraquaria, nome dado ao extenso território que compreende as atuais repúblicas do
Paraguai, Argentina, Bolívia e do Uruguai.
Florian Paucke chegou ao porto de Livorno em Toscana (Itália) em onze de fevereiro
de 1748, e partiu com destino à Lisboa. Nessa jornada, o grupo se deslocava a pé ou às vezes a
cavalo, e Paucke descreveu a ribeira espanhola, as paisagens amenas e perfumadas de Portugal,
a comida, a beleza das procissões religiosas, pois se encontrava em plena quaresma, a
arquitetura das cidades e o famoso porto de Cádiz, importante centro de importação de ouro e
prata da época, considerado o primeiro e mais rico porto da Espanha (PAUCKE, [1774], 2010,
p. 26-30).
Em 18 de setembro, Paucke partiu de Lisboa em um buque espanhol juntamente com
uma frota de cinquenta e três embarcações em direção a Colonia del Sacramento, as margens
do estuário do Prata a cinquenta quilômetros de Buenos Aires. A colônia foi fundada pelos
portugueses no século XVII durante as constantes lutas entre Portugal e Espanha pelo domínio
do rio da Plata. Os portugueses fundaram um forte para defesa da costa do rio da Prata e controle
sobre as entradas aos rios Uruguai e Paraná. A região foi alvo de várias disputas entre os
portugueses e espanhóis por quase um século. Após quatro meses de navegação, além da
38
viagem por terra a cavalo ou em carretas puxadas por bois, chegou a Buenos Aires em primeiro
de janeiro de 1749.
Paucke residiu por um pequeno período no Colégio Jesuíta em Buenos Aires. Logo
depois, Paucke viajou em direção à cidade de Córdoba e permaneceu no Colégio Máximo de
Córdoba por quatro anos para completar seus estudos em teologia. Ficou por quinze anos na
redução de San Javier entre os anos de 1752 e 1767. Em 1765, participou da fundação do Pueblo
de San Pedro, a oeste da redução de San Javier.
Paucke relatou que o encontro com os mocoví, tão ansiosamente aguardado, o fascinou.
Em suas aquarelas representou os índios, seu cotidiano, suas festas e ritos nos possibilitando
pensar em outras culturas, outras formas de agir e estar no mundo. Em suas reflexões sobre as
diferenças do outro, percebemos um processo de comparação que termina por qualificar esse
outro como menos instruído, menos civilizado ou menos desenvolvido, que perturbava o olhar
europeu por sua excentricidade.
Nos primeiros contatos, o desconhecimento do idioma mocoví dificultou a comunicação
entre ele e os indígenas. Com a ajuda do Pe. Burges, o cura da redução de San Javier, ao término
de dois anos, Paucke pôde, enfim, ensinar no idioma mocoví o catecismo às crianças indígenas.
Após três anos na redução, o missionário tornou-se professor, ensinando leitura, escrita e
música, organizando assim a primeira escola daquela região. Formou também a primeira
orquestra de vinte rapazes mocoví que, em 1755, se apresentou na cidade de Buenos Aires.
Paucke relatou todos os contratempos que teve que enfrentar para realizar essa viagem e a
dificuldade de obter a permissão dos pais para viajar com seus filhos. Descreveu com orgulho
a admiração do bispo de Buenos Aires e dos ouvintes em perceberem que seres bárbaros
poderiam possuir habilidade para uma arte tão harmoniosa e delicada como a música.
Paucke relata:
La música de mis muchachos fue para la admiración y diversión de todos los
huéspedes y [éstos] hubieran creído jamás que entre semejantes bárbaros se
encontraría tal habilidad para un arte armonioso tan difícil si ojos y oído no los
hubieran convencido. (PAUCKE, [1774], 2010, p. 359).
A representação do indígena como um bárbaro já se encontrava presente nos primeiros
relatos da colonização. A pintura, a cartografia e as crônicas de viagens produzidas desde o
século XVI reproduziram os combates ferozes entre os europeus e os nativos das Américas. O
índio foi concebido como selvagem de semblantes demoníacos em rituais canibalescos ou em
disputas animalescas (RAMINELLI, 1996, p. 56). Como contraponto, veio a admiração geral
39
que indígenas tivessem a capacidade musical, ou seja, uma arte tão sutil e requintada para seres
tão brutalizados e incivilizados. Acreditamos que essas representações imagéticas dos indígenas
serviram também para justificar o domínio, a violência, a espoliação e o aprisionamento dos
povos americanos.
Os argumentos de Paucke foram construídos em confrontação às críticas provenientes
dos grupos que exerciam o poder colonial. Em sua crônica evidenciou que conhecia outros
textos jesuíticos sobre a conquista do Chaco, mas realçou a importância de sua missão,
apresentando a riqueza da fauna, flora, do território, valorizando seus habitantes, se
contrapondo, algumas vezes, às avaliações negativas e ao imaginário europeu que concebia o
homem americano como fraco, doentio e bárbaro. Segundo Raminelli (1996), no decorrer dos
primeiros séculos da colonização, inúmeros relatos procuravam destacar a natureza bestial e
bárbara dos índios. Raminelli cita como exemplo de uma dessas “avaliações negativas”, os
depoimentos do padre Simão de Vasconcelos que, em sua Crônica da Companhia de Jesus
(1668), descreveu os índios como feras desumanas, vivendo:
Sem fé, sem lei, sem rei, correndo soltos na natureza como manadas, nus, possuidores
de inúmeras perversões, dados à preguiça, à mentira, à gula e à bebedeira. São brutos,
sátiros com orelhas, faces e beiços esburacados onde encaixavam paus e pedras de
várias cores (RAMINELLI, 1996, p. 27).
Paucke trabalhou na introdução da agricultura no cultivo da erva-mate e cana-de-açúcar.
Ao longo de sua estadia na redução, Pe. Florian criou várias oficinas. Os produtos
manufaturados nessas oficinas contribuíram para melhoria das condições de vida na redução,
como a criação de novas construções de alvenaria e na produção agrícola devido ao uso de
ferramentas fabricadas pelos indígenas. Os produtos excedentes produzidos na redução como
mantas, cobertores, artefatos de couro, alimentos e gado vacum, eram comercializados com as
missões dos Guarani, mantendo relações comerciais constantes com os mesmos, pois trocava
anualmente o gado por tabaco, algodão e erva-mate (ZANETTI, 2013, p. 182).
Com o aumento das tensões nas relações entre os jesuítas e os fazendeiros que queriam
utilizar a mão de obra indígena em suas fazendas em regime de semiescravidão, a rejeição e a
rivalidade entre os espanhóis e os jesuítas aumentaram. Na Espanha, as perseguições à
Companhia de Jesus se iniciaram em 1765 e, em 1767, por decreto do rei Carlos III, os jesuítas
foram expulsos da América e da Europa. Portugal decretou a expulsão dos jesuítas em 1759 e,
a França, em 1764. Da América partiram muitos jesuítas, que tiveram que sair apressadamente
do continente americano (CALVO; BENZI, 2016, p. 2). A expulsão de Paucke das Índias
40
ocorreu em setembro de 1767. Sob escolta militar, chegou em Buenos Aires em outubro do
mesmo ano. As autoridades espanholas permitiram o retorno aos seus países originários dos
padres nativos da Europa Central em 1769 e, em 1770, Paucke estava de regresso a Bohemia.
Paucke relembrou com pesar de sua expulsão e de seus companheiros jesuítas.
Segundo Barnadas (2001), para os regalistas reformadores ilustrados, o amplo poder dos
jesuítas no campo educacional e na orientação das consciências representava um empecilho
para o poder estatal sobre a Igreja. As raízes do ódio aos jesuítas desenvolvido pelas classes dos
governantes não se encontravam apenas no campo teórico das discussões ideológicas, ou seja,
entre o despotismo ilustrado e a tradição escolástica da doutrina jesuítica. Para o autor, outra
possível explicação seria “a compacta estrutura hierárquica da Companhia” que a isolava das
manipulações políticas vinda de Madrid e a tornava resistente à burocracia real. Os jesuítas
também eram independentes do poder episcopal e mais devotos ao papado, poderosos tanto nas
colônias como nas metrópoles. O “estado jesuítico” paraguaio seria mais um pretexto político
criado pelos acusadores da Companhia do que uma realidade em si. Os jesuítas construíram um
sólido patrimônio socioeconômico – missões, colégios e fazendas - sua ruína interessava ao
governo espanhol e a vários outros setores da sociedade e do clero (BARNADAS, A Igreja
católica na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina:
América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF:
Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.205).
A “Pragmática Sanção” de 27 de fevereiro de 1767, promulgada por Carlos III, que
atendendo aos seus ministros, expulsou todos os inacianos de seus domínios na Europa e na
América.
De acordo com Barnadas (2001):
As Universidades, colégios e missões se viram privados de mais de 2.500 padres que
formavam parte de seu pessoal, a maioria crioulo, cosmopolitas, bem qualificados,
disciplinados e eficientes. Em realidade a derrota dos jesuítas foi a derrota de uma das
forças da Igreja que melhor podia lutar contra as aspirações autoritárias do novo
regalismo (BARNADAS, A Igreja católica na Hispano América colonial, In: Leslie
Bethell (ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I.,
Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão,
2001, p.205).
Sendo assim, sem o poderio jesuítico, nas últimas décadas do governo colonial, a Igreja
e o seu alto clero espanhol se mostraram subordinados ao poder do Estado. Sem os inacianos,
a Igreja adentrava praticamente indefesa à “etapa pré-independentista”.
De retorno a terra natal em 1771 Paucke tornou-se diretor da Congregação Mariana de
Olmütz.
41
Segundo Calvo e Benzi:
Quando a Companhia de Jesus é suprimida por Clemente XIV, ele se mudou para
Neuhaus, também no sul da Boêmia, onde vive modestamente com uma pensão
concedida pela imperatriz Maria Teresa da Áustria. Durante esses anos, ele escreve
seus registros etnográficos e desenha as folhas que o acompanham (CALVO; BENZI,
2016, p. 7).
Começou a receber sua pensão do governo de Viena em 1774 e tornou-se hóspede do
mosteiro de Zwettl. Por solicitação de seus protetores, iniciou a escrita de suas memórias.
Paucke, já idoso, reviveu suas lembranças e escreveu sua crônica. Ao lermos sua obra, a
imagem mental que obtemos de Paucke é a de um sujeito curioso e zeloso no registro de suas
experiências de viagem e de vivência entre os indígenas. Suas imagens revelam atitudes e
auxiliam na reconstrução da cultura dos mocoví e nos permite imaginar o passado desse grupo
de forma mais vívida.
Antes de morrer, o autor entregou seu manuscrito ao Prior Plácido Assem do mosteiro
de Zwettl, em cuja biblioteca sua crônica se encontra até hoje. Florian Paucke faleceu em 14 de
abril de 1780, na cidade de Neuhaus, Bohemia, aos 61 anos de idade (ZANETTI, 2013, p. 181).
Seu relato traz um passado que toca nosso tempo. Como cronista, Paucke cumpriu sua missão:
descreveu e informou sobre o novo mundo americano, tarefa imprescindível para os membros
da Companhia de Jesus.
42
Capítulo 2
A ESCRITA NA ORDEM JESUÍTA: A CRÔNICA DO MISSIONÁRIO
Neste segundo capítulo delineamos a importância da escrita para a Companhia de Jesus
observando que na produção escriturária estaria a base de um método missionário para manter
a união, informar, estimular e enaltecer a Ordem Jesuíta. Nessa perspectiva, apresentamos a
obra de Florian Paucke e elaboramos um breve sumário da sua extensa crônica para que se tome
conhecimento dos assuntos abordados por ele.
2.1 A escrita na Companhia de Jesus
A Companhia de Jesus nasceu sob o domínio da escrita como forma de comunicação,
ação e registro. O seu próprio fundador, Inácio de Loyola, era um homem de ação e das letras,
escreveu seis mil oitocentas e quinze cartas entre 1524 e 1556, e acreditava na comunicação
como forma eficaz de ação. Escreveu as Constituições que continham as diretrizes
regulamentadoras da Ordem, as Instruções aos membros da Companhia para manter a unidade
e os Exercícios Espirituais, a fim de ensinar aos padres a prática espiritual que deveria nortear
seus apostolados. Escreveu também seus diários, na busca de compreender sua própria
espiritualidade. A escrita, para os membros da Ordem, além de informar, tinha o objetivo maior
de unir todos em torno da procura da vontade de Deus em suas obras e ações apostólicas.
Segundo Londoño:
Incluindo o próprio Loyola, os primeiros jesuítas eram todos mestres em letras. Nas
gerações seguintes já estariam presentes também os doutores. Os chamados primeiros
companheiros valorizaram desde o início os aspectos relacionados com as letras, o que compreendia escrever e ler em vernáculo e em latim, ter conhecimento de outras
línguas e de textos existentes em grego e latim. Assim, obrigações comuns aos padres
de maior grau, os chamados professos, como o de viver de esmolas, não se aplicava
aos jovens que deveriam dedicar-se ao estudo. Para isto, se buscou doações e
proteções que foram constituindo um patrimônio destinado a ser investido na
formação dos jovens (LONDOÑO, 2002, p.15-16).
Portanto, a Companhia de Jesus desde a sua formação era constituída por homens
letrados e se configurava como uma Ordem descentralizada mas também hierárquica, onde a
escrita era uma das tarefas fundamentais de seus membros. Tal prática foi encorajada por seu
fundador desde o início. Nas Constituições da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola (1539-
1540) expôs os ideais jesuíticos e os princípios norteadores da organização e estruturação da
43
Ordem. Loyola estabeleceu: o vínculo entre súditos e superiores através da obediência (número
659); o incentivo do “espírito de corpo”; a uniformidade de vida e doutrina e o combate às
divisões (números 663-665 e 671-672); a chamada “união dos ânimos” e a comunicação
permanente através de cartas (números 662 e 673-676). As Constituições complementam os
Exercícios Espirituais8, escritos também por Loyola, que cuidam da parte espiritual dos seus
componentes9 (LONDOÑO, 2002, p. 14).
Inácio de Loyola havia determinado que todos os jesuítas deveriam manter uma
correspondência frequente, informando sobre suas tarefas missionais, os lugares onde estavam
e como eram recebidos nessas regiões. Os primeiros escritos tinham o propósito de formar uma
identidade e foram regulamentados dentro das Constituições, mas também trazia os objetivos
da Companhia no Novo Mundo. Além disso, a comunicação escrita entre os missionários servia
para enfrentar o desafio da dispersão dos seus membros em situações tão diversas no
cumprimento de suas missões. As cartas escritas pelos membros da Ordem informavam sobre
suas residências, sobre os afazeres cotidianos, sobre o modo de vida dos colonos e dos
indígenas. Outras relatavam aos superiores eclesiásticos e ao governo espanhol as necessidades
da colônia como a criação de residências, o envio de padres, a nomeação de superiores, a
carência de auxílio e de algumas correções face a abusos e desvios. Mas, além de informar, as
cartas deveriam primeiro edificar e consolar mostrando aos padres e irmãos a glória da missão
divina que cabia à Companhia. Essas cartas eram lidas e interpretadas por muitos, por isso
aquele que escrevia deveria se conter ao relatar suas inquietações espirituais e seu cotidiano,
pois essas cartas seriam lembradas e usadas como estímulo para jovens discípulos em suas
missões (LONDOÑO, 2002, p. 15).
8“Os Exercícios tinham a finalidade principal de purgar os pecados do discípulo e ajudá-lo a descobrir o que Deus
queria dele - o que em muitos casos consistia exatamente em entrar na Companhia, onde todos conheciam a
vontade de Deus. Trata-se de um pequeno livro sem maiores sofisticações intelectuais, antes um manual destinado
a ser usado. Já houve quem chegasse a considera-lo um guia de ginastica espiritual. Mas como salienta Jung em
seu seminário, os Exercícios podem causar um profundo impacto na consciência porque giram em torno de alguns
dos mistérios centrais do cristianismo, constituindo-se num dos poucos equivalentes europeus das técnicas
orientais de meditação, tanto que já foram chamados de ioga ocidental. Esse aspecto e sem dúvida procedente, mas
na minha opinião os Exercícios Espirituais contribuíram, quando seus praticantes são missionários com a ideia
fixa de converter indígenas, não para uma ampliação da consciência, mas para uma imputação fácil aos índios, via
projeção, de tudo aquilo que supostamente deve o meditante confrontar e trabalhar em si mesmo - e não no Outro”
(GAMBINI, O Espelho Índio,1988, p. 99). 9“Os Exercícios Espirituais eram na verdade um método escrito para disciplinar o espírito daquele que o praticava.
O praticante dos Exercícios deveria meditar sobre três pecados ligados a desobediência: Os anjos rebelados, Adão
e Eva e o homem no inferno. Para isso era necessário o praticante ficar em retiro espiritual por um mês e ter um
mentor para orientar em caso de dúvidas e apoiar nas suas experiências místicas mais intensas” (GAMBINI, O
Espelho Índio, 1988, p. 103).
44
As Regras da Companhia de Jesus não só regulamentavam a vida dos jesuítas mas,
também, como deveriam escrever. Os escritos jesuíticos, segundo Martín Morales10, se
caracterizavam por um “mostrar e encobrir”. Essas Regras definiam o que era autorizado narrar,
o que era permitido ser mostrado e profícuo para a Ordem, omitindo os conflitos e oposições
internas. Para Morales, toda produção escrita pela Companhia era regulamentada, exceto as
cartas entre os padres, embora estas também fossem revisadas. Assim sendo, todas as cartas,
relatórios, livros e crônicas fizeram circular informações e conhecimentos que comunicavam
uma imagem de uma ordem religiosa unida e compacta (ROSSO; CARGNEL, 2012, p. 66).
Esta importância dada à escrita pela Companhia gerou uma grande quantidade de
manuscritos, relatos e livros que circulavam entre as províncias e a sede da Ordem em Roma.
Esses escritos registravam as experiências vividas pelos padres ante o desconhecido, assim
como a convivência com os nativos do Novo Mundo. Todavia, além dos registros, os
missionários descreviam o meio ambiente, a flora e fauna, as características físicas e os
costumes dos indígenas. Sendo assim, os escritos tornaram-se fontes de informação e
documentação que foram e são usadas para reconstruir o passado colonial referentes aos séculos
XVI, XVII e XVIII. Os jesuítas tinham a missão de evangelizar, classificar e informar a Europa
sobre a América, construindo, através das letras, um Novo Mundo.
Ernesto Maeder11classificou de forma didática essa documentação separando os escritos
de acordo com suas funções e objetivos. Nesse sentido, dividiu esses documentos em: 1) Cartas
Annuas que eram informes anuais, bianuais e trianuais que os provinciais deveriam enviar à
Roma. 2) Las primeras crónicas y testimonio: os diários de viagem dos primeiros missionários.
3) Las historias de la Compañia: as quais foram escritas por padres designados oficialmente
para essa tarefa e, finalmente, 4) Las obras escritas en el exilio: é nessa categoria que a crônica
escrita por Floriam Paucke é classificada. A literatura de exílio é caracterizada pela necessidade
de justificar a atuação da Companhia ante sua expulsão das Américas (ROSSO; CARGNEL,
2012, p. 67).
10 MORALES, Martín María SJ. A mis manos han llegado Cartas de los PP. Generales a la Antigua Provincia
del Paraguay (1608-1639), Monumenta Historica Societatis Iesu. Nova Series, vol. I, Madrid-Roma,
Universidad Pontificia Comillas, Institutum Historicum Societatis Iesu, 2005, p. 45. 11 MAEDER, Ernesto J. A. Manual de História Argentina Colonial. Cuadernos Docentes. Resistencia - Chaco, Instituto de Investigaciones Geohistóricas (IIGHI) CONICET - UNNE, 2018, p. 330.
45
2.2 A crônica de Florian Paucke
O termo crônica tem origem grega: khronos – tempo, sendo um gênero literário que se
caracteriza por ser uma narrativa dos acontecimentos humanos em ordem cronológica. Nas
crônicas históricas o conteúdo era documental e o cronista era um documentarista da sua época,
do seu contexto social e histórico. Com o passar do tempo, o gênero se afastou da ideia de
documento mas manteve uma relação com a temporalidade, se firmando como relato que narra
o cotidiano sendo um testemunho de uma vida ou um documento de uma época. O cronista tem
liberdade de escrita e o cotidiano será registrado por meio de uma linguagem prosaica, simples,
estabelecendo, às vezes, uma interlocução com o leitor (BECKER, 2013, p. 12).
A crônica escrita por Florian Paucke utiliza o recurso do diálogo para argumentar
propondo uma relação entre o escritor e o leitor, mas as vezes ele narrou os acontecimentos
como num conto. A figura do autor é fortemente delineada e mostra uma apropriação dos
indígenas e do espaço da redução quando escreve “mis indios, mi Reducción”, mas, em alguns
momentos de sua narrativa, sua imagem é silenciada e o indígena é mostrado como um ser
capaz de dialogar desde que conduzidos por um interlocutor capacitado como é o jesuíta, seu
guia e mestre.
Para Certeau (1982, p. 191) a série de relatos de viagens que foram escritos pelos jesuítas
demarca “uma arqueologia da etnologia”, sendo eles os protos-etnólogos que construíram os
primeiros textos sobre a vida social e os seres que habitavam o Novo Mundo. Sendo assim,
alguns pesquisadores consideram Paucke como um etnógrafo.
Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocobíes -1749-1767, é o título da
crônica que Florian Paucke escreveu em 1774. O título completo do manuscrito resume os
sentimentos mistos de suas memórias ao descrever a sua permanência de dezoito anos na região
do Charco argentino:
Hacia allá (fuimos) amenos y alegres, para acá (volvimos) amargados y entristecidos.
Noticia fielmente dada por un misionero en su partida desde Europa en el año 1748
hacia la América Occidental, en particular a la provincia del Paraguay y en su
retorno a Europa en el año 1769 por la cual él relata especialmente su estada por
dieciocho años en la Provincia Gran Chaco entre los Indios Mocobíes o llamados
Guaycurúes, su labor, el paganismo y cristianismo de los mencionados Indios; viaje
de retorno a Europa como también el clima, terreno, aguas, productos, bosques,
animales (cuadrúpedos), aves, peces, sabandijas reptantes y voladoras, junto con
otras exóticas y especiales condiciones, intercalada con diversos grabados, dividida
en seis partes (PAUCKE, [1774], 2010, p. 7).
“Hacia allá (fuimos) amenos y alegres, para acá (volvimos) amargados y
entristecidos”. Nessa frase o autor expressa um sentimento de amargura, impotência, tristeza e
46
frustação que provinha da expulsão violenta e do exílio forçado a que se viu submetido. Além
do fato da proibição de exercer suas práticas missionárias até o fim dos seus dias, devido à
determinação da monarquia da Espanha em relação à Companhia de Jesus. Mas esse “allá” e
esse “acá” também indicam a organização do seu relato. Inicialmente, o oceano Atlântico
representa o corte entre o “cá” e o de “lá”, ele divide o mundo Antigo do Novo: o autor iniciou
contando a história da travessia: as tempestades, a pirataria, os navios. Cada capítulo relatou a
estranheza frente à agua, ar, peixes, pássaros, homens etc. A diferença se apresentou como
princípio gerador da sua narrativa. Nos capítulos em que o autor relatou os modos de viver dos
indígenas ele manifestou o mesmo princípio marcando a dissemelhança de maneira sistemática
ao longo texto. A comparação com as formas e os modos europeus criou uma cisão entre os
universos de cá e de lá. O conjunto da narrativa apresentou a divisão desses universos em toda
parte e mostrou que no trabalho de regressar à Europa o autor retornou ao mesmo.
A sua crônica se configura como um testemunho da memória, pois a escreveu cerca de
sete anos após regressar à Europa. O texto de Paucke, como todos os escritos produzidos pelos
jesuítas do século XVIII após a supressão da Companhia de Jesus, reafirma a todo o momento
o êxito da evangelização e o trabalho civilizatório das reduções. Vale lembrar que, nessa
situação, os atos de memórias não são inocentes, pois se caracterizam como tentativas de
convencer o leitor, do sucesso do empreendimento sacerdotal dos jesuítas nas Américas e assim
formar a memória de outrem. Além disso, as memórias são transformadas através das regras da
escrita. A ação principal da memória de Paucke se apresentou no comportamento narrativo que
ele criou para comunicar a outrem informações de acontecimentos ausentes. A sua narrativa
possui uma função social de informar, através da linguagem escrita, o que foi armazenado em
sua memória. As suas lembranças e os seus esquecimentos foram influenciados de forma
consciente ou inconsciente pelos seus interesses e as do grupo a que pertencia, por sua
afetividade, inibições e censuras que acabaram por direcionar sua memória individual.
Para Chartier (2009, p. 23-24), no reconhecimento do passado pela memória e na
representação do passado através do relato, deve-se considerar as figuras de retórica, imagens,
estruturas narrativas e metáforas, que irão determinar o regime ao qual o texto descritivo está
submetido. A memória assegura a certeza da existência do passado e se configura como “matriz
da história”, mas os paradigmas estruturais que regem a operação narrativa e a memória são
irredutíveis. Não se pode conceber prioridade ou superioridade de uma sobre a outra. Portanto,
o conhecimento histórico produzido através da memória se afigura como um dos aspectos das
relações que as sociedades mantêm com o passado. Através de seus instrumentos, suas
convenções e suas técnicas, a narrativa construída por Paucke criou sentidos através da forma
47
linguística empregada por ele. A sua memória individual é a fiadora da existência de um
passado em que o discurso produzido encontra certificação imediata e evidente.
A primeira tradução da obra completa de Paucke foi feita por Edmundo Wernicke entre
os anos de 1942 e 1944, mas, segundo Bajo (1995, p. 228.), até a década de quarenta daquele
século havia sido publicado, em diferentes momentos, apenas alguns textos que foram
selecionados do seu manuscrito como mostramos no quadro abaixo:
Quadro 2 – Textos da obra de Paucke publicados até a década de quarenta do século XX.
ANO AUTOR OBSERVAÇÕES
1829 Padre Juan Frast É a chamada Edição de Viena, o padre Frast era do convento de
Zwettl e tratou de melhorar a linguagem antiquada dos textos que ele
selecionou da crônica de Paucke.
1870 Padre A. Koblers A Edição Alemã, as anotações do padre Koblers consistem de
uma transcrição livre e com uma linguagem mais moderna de fragmentos
textual da obra de Paucke.
1908 Padre Augustín Bringmann
Edição de Friburgo de Brisgovia nessa edição os conteúdos etnográficos e de história foram excluídos, Bringmann deu ênfase a ação
missional de Paucke.
1900 Padre Juan
Auttweiller
Publicou Memorias del Padre Florian Baucke, missioneiro de la
Companía de Jesús(1748-1767).
1935 Padre Guillermo
Furlong
Furlong publicou em Buenos Aires: Iconografia colonial
Rioplatense. 1749-1767. Costumbres y trajes de españoles, criollos e
índios. Nesse fragmento publicado por Furlong da crônica de Paucke o
autor retrata as especificidades dos tipos humanos que compunham a
sociedade colonial espanhola e os grupos indígenas que manteve contato.
Essa edição contém algumas reproduções em preto e branco de seus
desenhos.
1938 Padre Guillermo
Furlong
Furlong publicou Entre los Mocobís de Santa Fe. Según las
noticias de los missioneiros jesuítas Joaquín Camaño, Manuel Canelas,
Francisco Burgés, Román Arto,Antonio Bustello y Florian Paucke.
1942-1944
Edmundo Wernicke
Wernicke publica em castelhano a obra completa de Florian Paucke pela Universidade Nacional de Tucumán, Departamento de
Investigaciones Regionales com a colaboração da Institucíon Cultural
Argentino-Germana de Buenos Aires, a obra está dividida em três
volumes contendo 706 páginas, com a reprodução de todas as 104
aquarelas feitas por Paucke, respeitando as medidas originais.
Fonte: Bajo, 1995.
Em 2016, tivemos acesso à edição de Edmundo Wernicke quando visitamos a biblioteca
da Universidade Nacional del Nordeste – UNNE, que é uma universidade pública da Argentina
com sede nas cidades de Corrientes e Resistencia, Províncias de Corrientes e de Chaco,
respectivamente.
Page pontua que:
A extensa obra de Paucke apenas se publicaria na sua língua em 1959, com
reproduções nas cores originais, ainda que o texto tenha sido alterado. Só dois tomos,
copiados da edição Argentina, foram publicados em 1999 e 2000, até à publicação da
48
obra completa em 2010, composta pelas 104 ilustrações, que se conservaram, exceto
uns rascunhos em lápis, junto com um CD dos textos da tradução de Wernicke (PAGE,
2019, p. 408).
Utilizamos na nossa pesquisa a edição de 2010, publicada por Espacio Santafesino
Ediciones, Argentina.
Nas primeiras páginas de sua crônica, Paucke relatou que, atendendo a um pedido de
seus favorecedores12 do mosteiro de Zwettl na Baixa Áustria, escreveu sobre sua viagem à
América e seu trabalho durante dezoito anos nas reduções:
Hasta ahora no había tenido ningún impulso para tomar la pluma y dar a conocer a
alguien mi viaje a la lejana América; pero después, a causa de las múltiples
solicitaciones de mis muy estimados y apreciados favorecedores, me he dejado
animar a acceder a su pedido dentro de mis posibles y darles a conocer tanto mi viaje
hecho por el mar mediterráneo y el mar Grande [océano atlántico] como también por
tierra en América Occidental hacia las provincias de Buenos Aires, Tucumán y
Paraguay, pero principalmente para relatarles mi actitud durante diez y ocho años en las reducciones (PAUCKE, [1774], 2010, p. 9).
Em sua crônica, o missionário descreveu vários momentos da sua vida sacerdotal, suas
relações com a sociedade colonial, as formas de vida dos mocoví, assim chamados de guaicuru,
e as campanhas evangelizadoras e conquistadoras que empreendeu naquele espaço geográfico.
Além das informações escritas, Paucke produziu 104 aquarelas, todas inseridas na edição
original, como se observa na figura 4. A edição original se encontra na Biblioteca del Convento
Cisterciense de Zwettl na Áustria.
Figura 4 – Florian Paucke. Edição original da crônica de Florian Paucke.
Fonte: Serie signos santafesinos. espaciosantafesino.gob.ar, 2016. Acesso em 03/2019.
12 Segundo Furlong em sua: Notícias biográfica e bibliográfica do Padre Martín Dobrizhoffer edição de 1967-
1970, teria sido Dobrizhoffer, através de suas boas relações com a coroa Austríaca quem consegui uma pensão
para Paucke. Pressupõe-se que Dobrizhoffer tenha incentivado Paucke a escrever suas memórias a fim de justificar o subsídio público que ele recebia.
49
O jesuíta construiu, assim, dois textos: um escrito e outro visual. Suas imagens, além de
ilustrar seu texto verbal, exercem também a função de contribuir para o entendimento e
interpretação do texto escrito. Concebemos e analisamos o texto visual e escrito como duas
linguagens independentes, possuidoras de códigos específicos que circulam nos processos da
comunicação.
Ao lermos a obra de Paucke, os detalhes do seu relato nos leva a pensar que ele levava
um diário onde tudo anotava e que essas anotações tenham sido usadas na construção de sua
narrativa. Embora ele tenha afirmado que, quando foi expulso de Buenos Aires, em 1767, todos
os seus bens foram sequestrados:
Yo tenía muchos libros que en parte había traído conmigo desde Europa, en parte
adquirido en Las Indias o había recibido de regalo por buenos amigos. Yo tenía tres
lindos fusiles de los cuales uno solo había costado veinte y cinco pesos fuertes; yo
tenía también muchos instrumentos musicales desde Europa como ser violín, flauta
traversa, mandora, viola d’amour327 y otros más los que los presentes se
repartieron entre ellos; a la par de éstos tenía yo mucha herramienta para trabajos
de ebanista y escultor. Todo esto junto com aquello que yo tenía de otras cosas como ser instrumentos matemáticos un instrumental entero con el círculo proporcional
[¿compás?] que por sí solo costó seis ducados en Augsburgo y era completamente
dorado, todo me fue quitado y en mi presencia secuestrado; sólo se me dejaron el
crucifijo, un antiguo breviario y dos pequeños libritos eclesiásticos (PAUCKE,
[1774], 2010, p. 470-471).
É difícil aceitar, sem questionamentos, que ele não tenha preservado anotações feitas
durante sua viagem e permanência na missão. Isso porque é capaz de descrever datas, horários,
graus náuticos, o clima, a flora e fauna e a geografia dos terrenos em que transitou. Podemos
supor que ele tenha enviado essas anotações e que, ao retornar ao mosteiro de Zwettl, tenha tido
acesso a elas enquanto escrevia sua crônica. Caso contrário, devemos considerar que o cronista
possuía uma memória notável, muito acima da normalidade. Finalmente, nesse exercício de
crítica das fontes é importante aventar a hipótese de que, ao tramar sua obra, o autor recria
cenários supondo e acreditando que assim tenha sido.
O texto de Paucke apresenta, em alguns momentos, imprecisões que são apontadas por
Bajo (1995, p. 230). Mas essas incorreções não desqualificam o trabalho de Paucke. Trata-se
de um relato construído pela sua memória que nos atraiu pelo rico material etnográfico que
compõe seu informe e o amplo conjunto de aquarelas que foram feitas para ilustrar os temas
que tratou em sua narrativa: a fauna e flora, os costumes dos indígenas, as vestimentas, os
transportes, os personagens das diversas castas existentes na América espanhola, os povoados,
as fortificações, as festas cristãs e pagãs, os desfiles militares, as lutas entre os grupos indígenas,
as armas, os vasilhames, os artefatos de montaria fabricados pelos indígenas, as práticas da
50
tatuagem entre os mocoví, as técnicas de construção etc. Paucke relatou sua experiência de
viver em um mundo distante e desconhecido. Seu olhar sensível sobre os seres e as coisas que
o rodeavam indicam que Paucke era um personagem de vasta formação artística e cultural. A
vastidão de temas abordados e o esmero do relato tornam sua obra valiosa para diversas áreas
do conhecimento como História, Geografia, Botânica, Zoologia etc.
Eduardo Bajo (1995, p. 231) assinala algumas questões que poderiam ter influenciado
no atraso da publicação da obra completa de Paucke. As dificuldades na tradução devido a
expressões idiomáticas e regionais da época utilizada por Paucke levaram os primeiros
tradutores de sua obra a classificar seu estilo como deficiente. Bajo também supõe que Paucke
teve pouco tempo para escrever sua extensa obra, além da quantidade e qualidade dos seus 104
desenhos que deve ter exigido dele um período de tempo mais prolongado comprometendo,
assim, a qualidade gramatical do seu manuscrito. Podemos então pensar que o manuscrito de
Paucke pode ter sido visto como um esquema geral para sua obra e que possivelmente o autor
esperava que ele seria corrigido, revisado, aprimorado e ampliado. Sua morte, em 1780, afetou
o curso de sua obra que deveria ser concluída e editada, mas o texto ficou incompleto e não
havia ninguém que possuía interesse pessoal em gerenciar a edição de sua obra. Além disso, as
mudanças políticas, econômicas e sociais que ocorriam na sociedade e nos mosteiros poderiam
ter contribuído para a demora da tradução e edição da crônica de Paucke.
Outra questão apontada por Bajo (1995, p. 234) é que a expulsão da Companhia de Jesus
em 1767 e, posteriormente, sua dissolução em 1773, foram medidas que envolveram muitas
monarquias europeias e o papado de Roma. Sendo assim, nos anos que se seguiram a essas
deliberações, a Companhia manteve em seus escritos e publicações uma atitude evasiva e
cautelosa sobre esse assunto. Como exemplo dessa atitude podemos citar o livro do padre
Domingo Muriel S. J.13, que trabalhava na obra de Pedro Francisco de Charlevoix S. J.,
“História do Paraguai”, entre os anos de 1586 a 1747, mas Muriel acrescentou a “Continuação”
que cobria o ano de 1747 a 1766. Em 1779, o conjunto das obras de Charlevoix foi traduzido
para o latim e publicado em Veneza. Sobre o tema da expulsão, o editor de “História do
Paraguai”, edição de 1910, aponta que: “De la expulsión no habló, porque era materia que
podía impedir la impresión de lo restante y acarreara todavía mayores disgustos [...]” (Nota
do Editor, em Charlevoix, 1910, p. 10).
13 O padre Domingo Muriel foi o último provincial da Província do Paraguai e o último Procurador a voltar para
Europa, coube a ele o doloroso ministério de ouvir e aceitar o ofício de intimação da extinção do papa Clemente XIV (“Advertência” do editor contida no livro “História do Paraguai” de Charlevoix, 1910).
51
Por sua vez, o livro História de los Abipones. Una nación ecuestre y belicosa de
Paracuaria, de Dobrizhoffer, que foi publicado alguns anos depois do livro do padre Muriel,
traz poucas informações sobre a questão da expulsão da Companhia do Paraguai. O autor
pontua que:
Aunque el decreto real por el que se nos ordenaba regresar a Europa por causas
todavía desconocidas y que estarán ocultas en el corazón del Rey, nos pareció más acerba que cualquier muerte [...] A nosotros que desterrados de Paracuaria vivimos
incólumes hasta hoy por Gracia de Dios, nos es muy dulce recordar los trabajos en
que estuvimos sumidos cuando por espacio de muchos años [...] (DOBRIZHOFFER,
[1783], 1967, p. 377-378, tomo III).
Portanto, Dobrizhoffer, assim como T. Falkne, em 1774, J. Jolis, em 1789, e J. Sanchez
Labrador, em 1772, que tiveram suas memórias publicadas após a expulsão, não abordaram o
assunto da expulsão de forma contundente e descritiva como Paucke o fez em sua narrativa
(BAJO, 1995, p. 234).
Paucke dedicou a esse tema a quinta parte da sua crônica, com cerca de sete capítulos e
64 páginas, com o título Los jesuitas expulsados de Paracuaria. O autor descreveu as
dificuldades enfrentadas na prisão, na viagem de regresso e a tristeza que assolava a todos diante
de um futuro de incertezas. Paucke ([1774], 2010, p. 482) questionava a todo o momento do
porquê dessa decisão real: “¿Cuál fue el motivo? No lo conocían ni ellos ni nosotros”, ou seja,
ele sabia que estava enfrentando um exílio por problemas políticos, não fez concessões ao poder
real que o punia, não aceitou as limitações nem censuras. Supomos que talvez tenha sido esse
um forte motivo para que sua obra não tenha sido publicada em seu tempo. Se observarmos o
título significativo de sua obra “Hacia allá (fuimos) amenos y alegres, para acá (volvimos)
amargados y entristecidos” percebemos que estamos diante de um caso típico de um exilado
por questões ideológicas.
A obra de Paucke é uma crônica de exílio, segundo a classificação de Maeder, e como
já dissemos, se afigura como um testemunho da memória, ele foi testemunha dos fatos que
narrou, ele relatou o vivido por ele naquele espaço e tempo buscando na sua memória os
referenciais para construir sua narrativa. Nesse contexto, Halbwachs (2003, p. 29-71) afirma
que as memórias são recordadas pelos indivíduos que determinam o que é memorável, como e
quais eventos deverão ser lembrados, ou seja, os acontecimentos públicos de importância para
o grupo. Para Halbwachs, o relato criado pela testemunha só tem significação se a mesma tiver
participado do evento real junto a um determinado grupo. As lembranças da testemunha
dependerão do contexto de referência em que ela transita e das representações coletivas de sua
52
própria cultura no momento de reconstruir o passado. Paucke na construção da sua memória
escolheu os fatos a serem lembrados ou esquecidos de acordo com as razões políticas e
históricas do grupo a que pertencia. Através de suas memórias, Paucke realizou um esforço de
unidade com os membros da Ordem Jesuíta que compartilhava com ele lembranças singulares,
vemos isso nas obras de outros jesuítas como na de Sánchez Labrador.
É no exílio que Paucke recebeu incentivo para consagrar através de suas lembranças o
grupo a que pertencia. Os apelos do seu exílio explicam porque sua memória retirou do passado
apenas alguns elementos que puderam lhe dar uma configuração ordenada e coerente na
construção de uma identidade de grupo, principalmente quando situações externas tentam
danificar ou caluniar os elementos que unem esse grupo. Ou seja, “as memórias são marcadas
pelas fronteiras do poder e passíveis de manipulações por interesses políticos e de grupos”
(FÉLIX, 1998, p. 97).
2.3 Sumário da crônica de Florian Paucke
Florian Paucke representou em sua crônica várias personalidades como militares,
padres, marinheiros, administradores coloniais e os indígenas. Esses registros das
peculiaridades culturais e o exotismo dos povos que viviam no continente americano ajudaram
a construir uma concepção política, social e religiosa do outro que caracterizou o tipo de
relações que os europeus que vieram para a América a fim de colonizá-la ou de evangelizar
mantiveram com os povos originários. Sua crônica está dividida em seis partes14. Para cada
parte ele atribuiu um título que, por sua vez, dividiu em uma série de capítulos. Cada capítulo
difere um do outro em número de páginas. Ao lado de suas narrativas verbais o autor inseriu
seus desenhos ilustrativos feitos em aquarelas. Além disso, quando descreveu as tatuagens na
terceira parte de sua crônica, ele representou na lateral esquerda do texto descritivo os modelos
de desenhos que os mocoví usavam para tatuar seus corpos.
O seu relato é um testemunho e como tal necessita ser analisado dentro de uma série de
contextos: cultural, político, econômico e religioso. Além disso, devemos levar em
consideração as questões da retórica, da função do texto, da credibilidade concedida à
testemunha ocular dos fatos e da memória. Quanto à questão da memória, Flamarion e Vainfas
(2012, p.325) assinala que os historiadores iniciaram seus estudos sobre memória e história oral
na década de 1960, e foram aprofundando seus estudos na década seguinte sob inspiração da
14 O Índice da obra Hacia allá y para acá, de Florian Paucke, está no Anexo deste trabalho.
53
historiografia francesa. A crítica tradicional imposta aos documentos históricos serviu de
parâmetro para averiguação e elaboração de críticas confiáveis da reminiscência. A memória
também será estudada como um fenômeno histórico, levando-se em consideração que é preciso
identificar os fatores de seleção, as interferências sofridas pelos grupos nas relações do espaço
e o passar do tempo.
Quanto ao caso do testemunho e da relação de credibilidade outorgada à testemunha dos
fatos e suas declarações, Paucke, já na introdução de sua crônica, solicitou o “status de verdade”
e de credibilidade ao seu relato:
Pero a lo que yo me obligo especialmente durante el transcurso de este relato e información será a observar la sincera verdad de mi informe, la que no se basará
sobre noticias ajenas recogidas sino sobre la experiencia propia. si acaso se
incluyera algo que fuera conocido por informes extraños, será mi deber el no
ocultarlo al lector y dejar establecida la verdad de aquellas cosas allí donde y por
quien me han sido comunicadas (PAUCKE, [1774], 2010, p. 9).
Mas a aceitação da palavra do seu testemunho como verdadeira só ocorrerá após passar
pelo crivo crítico dos pesquisadores de sua obra que utilizaram os critérios de validação e
regimes de provas encontrados em outras fontes de pesquisa.
A Primeira Parte da crônica tem como título: Partida desde Europa hacia las Indias
Occidentales de América. Essa parte é composta por quinze capítulos e 137 páginas onde o
autor relatou sua saída da Europa até sua chegada em primeiro de janeiro de 1749 na redução
de San Javier, ao norte da província de Santa Fé, no atual território argentino. Paucke tinha 29
anos e navegou por quatro meses com outros missionários, entre eles, Martín Dobrizhoffer15.
Paucke descreveu o buque, as condições da alimentação e da água oferecida à tripulação, as
grandes tormentas que sofreram na passagem do Mediterrâneo e na chegada ao trópico de
Capricórnio e as dificuldades que enfrentaram na travessia do Estreito de Gibraltar. Nessa parte
se ocupou também de especificar as condições do tempo, da água do mar, de descrever alguns
tipos de peixes e de explicar como os marinheiros captavam água da chuva para consumo:
El 15 de octubre el cielo estaba cubierto por fuerte nublazón [y] comenzó a llover.
Nos alegramos entonces por haber podido captar bastante agua para nuestra bebida.
Pudimos a la vez asear nuestra ropa pues el agua de mar quema mucho el lienzo y tampoco limpia tanto como el agua dulce. Para captar el agua cada uno usaba su
sábana blanca que se ataba de las cuatro puntas en los cabos y se colocaba debajo
una vasija en la cual se escurría el agua. Hoy fue imposible hacer una observación
mediante el cuadrante. Poco antes de medio día experimentamos de nuevo una calma.
A mediodía nos visitaron otra vez muchas tuninas que trajeron con ellas un fuerte
15 Martín Dobrizhoffer é autor da História de los Abipones. Uma nación ecuestre y belicosa de Paracuaria (1783) onde relatou seu trabalho evangelizador na Província Paracuaria.
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chaparrón; también los manteles tuvieron que ayudar entonces a captar el agua y
captaron lo suficiente para beber pues el agua que se daba en la mesa consistía de
dos vasos cerveceros lo que era muy poca para tanto calor que día y noche nos
exprimía bastante sudor (PAUCKE, [1774], 2010, p. 60).
Observamos no relato de Paucke que ele citou a data dos acontecimentos, isso é uma
redação de diário e reforça a ideia que ele deva ter feito anotações escritas desses pormenores.
O autor relatou a escassez de água doce e potável, além das péssimas condições em que a mesma
era armazenada, causando problemas intestinais na tripulação. Essa forma de obter água que o
autor descreveu, as dificuldades enfrentadas nas viagens marítimas e a situação insalubre em
que os tripulantes eram submetidos durante a travessia entre a Europa e a América estão
presentes em vários relatos de jesuítas, como nas cartas do padre Antônio Sepp:
No quiero hablar mucho aquí del agua potable, que a menudo hedía como un chaco.
¡Cómo hemos agradecido al Cielo genereso cuando llovía y podíamos recoger el
agua de lluvia en sábanas, sombreros y vajilla! Tampoco quiero hablar mucho de las
otras molestias que nos deparaban los mosquitos, chinches, pulgas y la “menta
blanca” de los soldados, piojos e ladillas. Nos molestaban día y noche […] (SEPP,
[1691], 1972, p. 117).
A carta do padre Antônio María Fanelli sobre sua viagem de 1698 também descreveu
como era a captação de água da chuva no navio e as condições de seu armazenamento. Ou seja,
há diversos relatos de jesuítas que descreveram as várias situações a que se sujeitavam na
passagem do Atlântico, desde as tempestades, aprisionamento por corsários, guerras, a
insalubridade e a escassez de água e comida, as péssimas acomodações até o clima, a fauna
marinha e a cor da água do mar. O relato de Paucke faz parte dessa tradição narrativa dos
membros da Companhia de Jesus.
Em cada cidade que aportou, Florian Paucke descreveu sua arquitetura e suas belezas
naturais, narrou pormenores das cidades de Málaga, Lisboa e seu porto, Córdoba, Tucumã,
Santa Fé e a cidade de Buenos Aires, que o impressionou de certa maneira:
Buenos Aires es en todo el territorio de Paraquaria la más grande y más notable
ciudad, mayor que Praga en Bohemia pero no tan magnífica aunque más ordenada pues las calles son rectas como a cordel de modo que desde la plaza puede mirarse
hasta la campaña y desde esta hasta la plaza sin obstáculo (PAUCKE, [1774], 2010,
p. 95).
Em relação às descrições que Paucke fez dos vários espaços que percorreu, abordamos
a importância do espaço na transmissão e na construção das memórias. Para Halbwachs (2003,
p. 159) cada pormenor, cada detalhe de um lugar tem um sentido que só é compreendido para
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o membro de um determinado grupo, porque os espaços que ele ocupou condiz a outros aspectos
diferentes e estáveis da vida de sua coletividade. Para o autor “não há memória coletiva que
não aconteça em um contexto espacial” (2003, p. 170), pois o espaço é uma realidade que dura.
O ambiente material em que o Paucke viveu, os espaços que ocupou, percorreu, foram fixados
em seu pensamento e que através das lembranças desses espaços Paucke pode em sua
imaginação, revisitar o passado e assim reconstruí-lo por meio da escrita.
O caminho para Córdoba foi feito de carroça, sendo que Paucke desenhou e narrou esse
meio de transporte de forma pormenorizada. Na aquarela da figura 5, além do desenho do carro
puxados por quatro bois e das lanças com adornos coloridos, ele criou um verbete explicativo.
Figura 5 – Florian Paucke. Carro de boi.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
Ele mostrou interesse pelas singularidades e costumes locais nos seus registros e essa
conduta sustenta em grande parte o interesse por seu manuscrito. Foram essas singularidades
que levou o pesquisador e professor da Universidade Nacional de Córdoba, Eduardo Bajo, a se
interessar pela obra de Paucke. Ele nos informa:
Hace aproximadamente un tercio de siglo accedí a la obra de Florian Paucke, parte
de un amplio conjunto de memorias y descripciones de viajes que estaba consultando
en razón de una investigación histórica sobre las vías de comunicación y los medios
de transporte en el territorio cordobés (BAJO, 1995, p. 225).
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Além dos meios de transporte, Bajo encontrou na obra de Paucke informações sobre a
toponímia, metrologia e cartografia do período colonial do que hoje se constitui o território
argentino. O conjunto de aquarelas que compõe a crônica de Paucke despertou em Bajo o desejo
de analisar de forma particularizada sua obra e, em 1995, ele publicou o artigo La Obra del
Padre Florian Paucke S.J. pela revista Estudios do Centro de Estudios Avanzados de la
Universidad Nacional de Córdoba. Nesse artigo, Bajo analisa várias possibilidades da não
publicação da crônica de Paucke em sua época e aborda a estrutura geral e as soluções narrativas
de sua obra enaltecendo seu trabalho.
No capítulo XV, Paucke descreveu as condições da redução de San Javier. Caracterizou
as construções cujas paredes feitas de couro de gado com telhado de palha exalavam um odor
desagradável. Expôs as condições precárias da aldeia, a falta de limpeza do terreno, os inúmeros
cachorros, galinhas e bois que circulavam livremente pela redução. O calor constante, os
barulhos noturnos que os animais faziam, os insetos e as moscas que ele referiu como o quinto
elemento existente no Chaco. Mas contou que “A pesar de todas estas incomodidades yo no
puedo decir que me fuera difícil permanecer en esta región desiert” ([1774], 2010, p. 150).
Essa frase de Paucke evidencia aqui um caráter contraditório de sua prosa, pois apesar das
péssimas condições em que se encontrava a aldeia, ele não sentiu dificuldades para executar
sua missão, estava preparado para tal empreitada. Observamos que as descrições de tais
empecilhos serviram para que o leitor de seu manuscrito percebesse o tamanho dos obstáculos
e incômodos enfrentados pelos jesuítas e o quanto eles estavam aptos para suas missões. A
despeito de todos os riscos e desconfortos a que foram submetidos, seus trabalhos missionários
foram realizados com êxito.
Aqui a memória de Paucke se fundamenta no espaço, no gesto, na imagem, no objeto,
nos fatos vividos por ele, mas ela aflora de um grupo que ela une – os jesuítas. As narrativas
são sempre seletivas e, às vezes, contraditórias, devido à própria configuração que o texto
narrativo oferece, Paucke não pode lembrar de tudo e é incapaz de tudo narrar. Na composição
do seu trabalho narrativo encontram-se as estratégias do esquecimento, como a evasão e fuga
de alguns assuntos. Paucke se deparou com a dificuldade de narrar a ele próprio, seus
sentimentos, na maioria das vezes, estão ausentes no seu relato. Sua prosa nos transmite a ideia
de que ele observou os fatos de um lugar que a superioridade de sua condição de civilizador e
evangelizador lhe conferiu. Mas, segundo Pierre Nora, a memória é afetiva, é a vida sempre
carregada pelos sujeitos, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento:
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A memória é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam;
ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares
ou simbólicas, sensíveis a todas transferências, cenas, censura ou projeções. A
história, porque operação intelectual e laicizante demanda análise e discurso crítico.
A memória instala a lembrança do sagrado, a história a liberta, e a torna sempre
prosaica (NORA, 1993, p.9).
Sendo assim, Paucke fez uma reconstrução parcial e problemática do passado, de algo
que não existia mais no momento em que ele escreveu sua crônica, mas sua memória é atual na
altura de sua escrita e mantém uma conexão com o seu presente. A distância temporal e espacial
entre o momento em que ele escreveu seu relato e a experiência vivida no continente americano
é marcada pela necessidade de validação do trabalho missionário presente nas crônicas
jesuíticas escritas no exílio. No texto de Paucke notamos que a história do seu passado pessoal,
as referências à sua terra ou aos eventos após os anos americanos praticamente estão ausentes,
ele se concentra em relatar seu apostolado e só no título de sua crônica “para acá” ele se refere
ao retorno à sua casa.
A Segunda Parte da narrativa de Paucke se intitula Mi estada y trabajo en Paracuaria.
Possui dezesseis capítulos e 103 páginas em que o autor narrou a fundação de San Javier, em
1743. É uma narrativa histórica que Paucke fez segundo o relato de seu fundador, o padre
Francisco Burges, que o recebeu quando ele chegou à redução. Ao narrar esse começo de San
Javier, Paucke acentuou a sua importância, pois com a redução dos mocoví os ataques à cidade
de Santa Fé por esses indígenas diminuíram consideravelmente. As forças militares apoiaram a
fundação de San Javier, pois os militares não tiveram sucesso para impedir os ataques indígenas,
que logo que se viam perseguidos entravam nas matas, pois conheciam muito bem o território
e isso lhes asseguravam proteção e subsistência. Os textos coloniais ou os relatos jesuíticos
rejeitam as características culturais dos grupos nômades, coletores e caçadores como os mocoví,
que embora possuindo destreza para guerra, não conseguiram evitar a expansão do domínio
espanhol na fronteira Tucumán-Chaco no início do século XVIII. Essa expansão diminuiu o
território indígena e os deslocou para as zonas inundáveis do Chaco. Com o encolhimento do
território e a necessidade de melhorar os meios de subsistência, os conflitos entre os grupos
indígenas chaquenho aumentaram e forçou a mobilidade constante desses grupos, dificultando
o controle e a pacificação dos assentamentos jesuítas (ZANETTI, 2013, p. 181-182).
Paucke enfatizou a necessidade de ensinar aos mocoví as várias práticas culturais
europeias a fim de sedentarizar os indígenas, ajudar na sua manutenção e na da redução,
facilitando a incorporação dos índios à sociedade espanhola, pois relatou que frequentemente
os indígenas eram enganados, explorados e mal tratados pelos espanhóis. Para isso ressaltou os
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ofícios, como meio de domesticação e inserção dos nativos. Paucke ensinou música e organizou
oficinas de carpintaria, sapataria, olaria, tecelagem, escultura, pão, fabricação de tijolos, sabão,
velas e nos trabalhos de construção. Como já citamos no primeiro capítulo, a produção dessas
oficinas mantinha boa parte das necessidades da redução e o excedente era comercializado para
pagar tributos à coroa, comprar materiais religiosos, roupas para os padres, vinho, anzóis etc.
No capítulo XIII ele descreveu o labor diário dos mocoví na agricultura. Mas
observamos que, com o processo de colonização e a redução do seu território, estes grupos
acabaram por incorporar os produtos europeus provocando, assim, mudanças políticas,
econômicas e sociais nas relações interétnicas. Segundo Calvo e Benzi (2016, p. 5), os guaicuru
aproveitaram o desenvolvimento da economia colonial, baseada principalmente na pecuária, e
inseriram a bovinocultura e a criação de cavalos nos seus usos e costumes. Passaram a utilizar
o couro bovino na construção de suas casas, nas vestimentas e a carne bovina na alimentação.
Anteriormente, usavam o couro de onças ou veados somente para confecção de suas
indumentárias. Paucke criou uma série de aquarelas representando a vestimenta, tanto da
sociedade colonial, como as dos mocoví. A figura 6 mostra os adornos coloridos de cabeça,
confeccionados em couro, enfeitados com penas de pássaros da região e o tipo de túnica de
couro que os homens mocoví usavam.
Figura 6 – Florian Paucke. Indumentária mocoví. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
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Paucke narrou que, além da pecuária, os mocoví pescavam e passaram a praticar a
agricultura introduzida pelos missionários baseada em corte e queimada, aproveitando a clareira
para o plantio de várias espécies vegetais.
Esta segunda parte o autor termina com a descrição do cacique Nalangain e a sua
aceitação ao batismo. Em relação ao estilo textual da narrativa, vale destacar que Paucke
utilizou, nalgumas passagens, o recurso de um suposto diálogo: “si las preguntas se siguen em
buen orden, la capacidade memorativa podrá contestar con mayor facilidade”16. Supomos,
como já havíamos comentado, que Paucke utilizou esse recurso para demonstrar aos europeus
que os indígenas podiam dialogar, desde que conduzidos por ele. Muitos diálogos entre Paucke
e os indígenas apareceram em sua narrativa em formato de reflexões quase filosóficas. Vale
exemplificar com o debate que manteve com o cacique Nalangain.
Segundo Paucke, esse cacique o informou que em sua terra selvagem os seus
companheiros também acreditavam que suas almas não morriam e que seria preciso buscar
alimentos nos bosques, mas, para que a alma pudesse caçar, era necessário ter em sua sepultura
a lança e as armas para caça. Além do mais, seria necessário o cavalo que durante a vida serviu
ao índio, por isso abatiam também o cavalo que seguiria seu dono no além. Paucke continua
através do diálogo com o cacique Nalangain a ponderar sobre a animalidade dos indígenas antes
da redução, as concepções da vida após a morte dos mocoví, as diferenças entre os índios, os
animais e a superioridade do Deus cristão:
Yo he reflexionado bien todo —dijo él— y en muchas noches en vez de descansar he
comparado nuestra vida salvaje con la vida cristiana; he encontrado también la gran
diferencia entre nuestra vida y la vida cristiana y conocido que nosotros no somos
gentes sino animales que no tienen leyes. Pero he observado también que no somos
animales sino algo mucho más elevado porque somos los amos de todos los animales
que deben obedecernos y en parte servir para nuestra alimentación, en parte ayudar
a buscar nuestra alimentación. Ahora si somos amos de ellos no debemos vivir como
los animales sino como sus amos que no tienen un modo de vivir igual a los animales;
ahora como somos diferentes a los animales en el vivir, no debemos tampoco ser iguales a ellos en la muerte. Yo bien he oído de ti que nosotros, los seres humanos,
somos completamente diferentes en el alma pues cuando éstos son muertos o crepan
[revientan] ha terminado todo tanto su cuerpo como su alma, pero cuando nosotros
morimos, permanece viva nuestra alma que jamás ha de morir (PAUCKE, [1774],
2010, p. 249-250).
O argumento que Paucke coloca na fala dos indígenas se traduz numa força que legitima
sua própria fala, que através da cristianização dos indígenas eles se tornariam humanos, saindo
do estado animalesco e que assim teriam suas almas salvas. Como já foi dito, a narrativa de
16 PAUCKE, F. Hacia allá y para acá – 1ªed. - Santa Fe: Ministerio de Innovación y Cultura de la Província de Santa Fe. Parte III, p. 258, 2010.
60
Paucke foi construída durante seu exílio. Suas memórias tinham uma finalidade pedagógica e
estavam condicionadas às situações do seu presente. Ao narrar os diálogos que manteve com o
cacique Nalangain, essas lembranças que foram fragmentadas e selecionadas são apresentadas
como se fossem o próprio acontecimento e não uma versão deste construída após vários anos
do ocorrido.
Na Terceira Parte da crônica de Florian Paucke – De la manera de vivir, usos y
costumbres de los indios americanos en el paganismo, o autor faz uma descrição De la figura
y color dos indígenas da região do Gran Chaco. Esta parte da crônica possui vinte capítulos e
146 páginas. Em todos os capítulos Paucke descreveu os modos de ser e viver dos mocoví. As
comparações com o modelo europeu permeiam todo o texto e se justificam pela tentativa do
autor de tornar o desconhecido conhecível a partir de um modelo preexistente. Apesar das
diferenças descritas por Paucke em relação ao modelo europeu, ele se reconheceu nelas, pois a
diferença é o elemento fundamental na percepção da igualdade entre os homens e mulheres. Ao
se deparar com os costumes dos indígenas, Paucke se deparou com os seus próprios costumes.
Como exemplo das diversidades descritas por ele trazemos esse trecho de sua crônica
no qual iniciou seu relato com o questionamento: “¿Los indios son pues, hombres como
nosotros?” Sua resposta é afirmativa quanto aos aspectos físicos dos índios, mas apontou as
distinções em relação aos valores culturais e espirituais dos europeus:
Lo que concierne a su alma y a la conformación de los miembros del cuerpo, ellos
son hombres como todos nosotros aunque tengan escaso parecido con nosotros en su
color, modo de vivir y otras costumbres porque se han desarrollado en selvas
conforme a sus impulsos sin la menor instrucción, mientras nosotros hemos sido
inducidos a una conducta moral por la educación y la enseñanza, por la vida moral
de otros, por lectura de las historias y hechos de nuestros antepasados. (PAUCKE, [1774], 2010, p. 258)
Segundo Todorov (1996, p. 100), nas relações de alteridade, a diferença percebida parte
antes de tudo na busca de semelhanças, mas, para buscar a igualdade entre os seres, se faz
necessário um olhar interior dos nossos próprios modos de viver e de se relacionar com esse
outro. Ou seja, é a partir do conhecimento de nós mesmos que concebemos o outro e suas
especificidades. As relações com o outro se dão em vários aspectos. De início, tende-se a fazer
um julgamento de valor: o outro é igual a mim ou inferior a mim, o outro é bom ou mau, gosto
ou não gosto do outro. Num segundo momento, há aproximação ou distanciamento do outro,
nessa ação pode ocorrer a identificação com o outro ou assimilação do outro, ou ainda a
submissão do outro impondo a imagem daquele que quer subjugar, ou a submissão ao outro.
Num terceiro momento nas relações de alteridade, pode haver indiferença ou neutralidade ao
61
outro, ou seja, conheço mas ignoro a identidade do outro. Sendo o mocoví, o outro que deveria
ser subjugado ao europeu colonizador e evangelizador. Habitante tradicional do Gran Chaco
paraguaio, era conhecido na época colonial como índios cavaleiros. A adoção do cavalo por
esse grupo possibilitou uma grande mobilidade que facilitou a subsistência e determinou certo
tipo de organização social caracterizado por lutas com outros grupos indígenas. Na figura 7
Paucke representou os mocoví no trato com os cavalos, e, da forma como ele construiu a
composição, percebemos a mobilidade pelo deslocamento dos personagens sobre linhas
diagonais, que induz o olhar do observador para o canto esquerdo do quadro onde ele pintou o
curral.
Figura 7 – Florian Paucke. Índios levando cavalos para o curral. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
Paucke reconheceu, em seus registros, a habilidade dos índios no manejo das armas e
nas caçadas, sua inteligência, seus corpos e rostos bem formados, seus cabelos e olhos negros,
sua indumentária, seus adereços, suas capacidades manuais, sua vida familiar, sua organização
social e sua doçura habitual quando não estavam borrachos. Esse ato de reconhecimento das
qualidades dos indígenas é um pensamento que se insere na corrente renovadora da Companhia
62
de Jesus no século XVIII (ZANETTI, 2013, p. 183). Ele relatou que os índios foram aceitos
pela Ordem como “niños de tutela y mediante muchas prescripciones reales, mandamientos y
decretos fueron libertados de semejante esclavitud” (PAUCKE, [1774], 2010, p. 375), então
destacou essa atitude da Ordem diante dos indígenas por se contrapor ao julgamento que os
espanhóis faziam dos nativos como declarou neste trecho de seu relato:
Al principio en el descubrimiento y la conquista de estos países no fueron
considerados gentes sino animales y así también se condujeron los españoles para
con ellos pues los viajeros les echaron sobre los hombros la carga; ellos debieron
hacer viajes de larga duración y el calor más grande; si algún indio quedaba padeciente de sed y la carga lo echaba al suelo, retiraban la carga de él, la echaban
sobre algún otro y abandonaban en el campo al debilitado (PAUCKE, [1774], 2010,
p. 374).
O governo espanhol ou o português utilizava o argumento em que negava a inteligência
e a capacidade de aprendizagem dos índios para justificar a exploração do trabalho indígena.
Paucke enalteceu o seu trabalho missionário quando contou que enfrentou constantes riscos por
se opor a essa justificativa.
Nesta parte da crônica o autor relatou sobre as tatuagens e os adereços corporais que os
mocoví ostentavam. Seu relato são registros que transmitem informações da cultura desses
indígenas. Mas as tatuagens corporais dos indígenas foram descritas por outros jesuítas, como
Sanches Labrador17, que descreveu em sua crônica o gosto que os índios tinham pelos grafismos
que enfeitavam seus corpos. Labrador relatou que essas tatuagens corporais eram traços
indicativos de castas, comunicando o status e o prestígio que o indivíduo possuía dentro da
sociedade Guaicuru. As cativas, por exemplo, traziam como marcas de sua condição raias na
face que eram feitas com espinhas de peixes. Sendo assim, a relação entre as cativas e seus
senhores deveriam ser representadas pelo grafismo corporal e regras de convivência. Mas
Paucke não faz essa associação das tatuagens como meio de comunicação do status que o
indivíduo ocupava na estrutura social do seu grupo. Assim ele descreveu as tatuagens:
Los hombres se hacen tatuar tres rayas entre los ojos por sobre la nariz, dos debajo
de cada ojo como también dos al lado del ojo izquierdo y derecho. Luego se hacen
tatuar la barba inferior junto con el labio inferior a comenzar desde el interior del
labio hasta debajo del mentón o hasta el comienzo de la garganta en derechura hacia
abajo de manera que conforme a la anchura de la boca se ven una raya tras la otra
de las cuales hay a veces de doce a quince (PAUCKE, [1774], 2010, p. 262).
17 José Sánchez Labrador - autor de o El Paraguay Natural Ilustrado e El Paraguay católico (1760-1766). A
partir do volume 3, há uma edição datada de Buenos Aires em 1910 e, posteriormente, outras edições foram feitas.
63
Além de detalhar as tatuagens, a técnica utilizada pelos mocoví e como pigmentavam
os pontos feitos na pele, ele desenhou os padrões que os índios tatuavam em seu rosto e no
corpo. Na figura 8 ele representou duas mulheres mocoví: uma delas com padrões tatuados no
colo e nos braços, usando longos brincos feitos de rodelas de madeira como adereço, tatuando
outra que se encontra deitada no solo.
Figura 8 – Florian Paucke. Tatuagem mocoví. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
Sobre a tatuagem feminina ele relatou os cuidados e a alimentação que as mulheres
deveriam ter a fim de não infeccionar os pontos tatuados. Comparou essa forma de ornamento
com os enfeites e adereços que as mulheres europeias utilizavam e comentou que “Ahora yo
preguntaría qué diferencia habría entre una locuela por las modas europea y una india
americana. Yo digo: [no hay] ninguna porque ambas son fantaseadoras y quieren ser bellas
mediante la fealdade” ([1774], 2010, p. 263). Aqui o autor confrontou universos culturais
distintos, compostos por diferentes códigos e significações mas que se fundiam na ideia
equivocada, segundo o jesuíta, da beleza feminina de ambos os continentes.
Em relação a borrachera, dedicou dois capítulos nesta terceira parte, em que descreveu
as plantas utilizadas no preparo das bebidas, as técnicas de fabricação e como era o índio quando
ficava embriagado. Assembleias foi o nome dado por Paucke às reuniões entre os mocoví e
outros grupos guaicuru, em que havia troca de conhecimentos, disputas de jogos e a realização
64
de tatuagens. O que aqui apontamos é que o que ele relatou sobre esses encontros não tem
referência alguma com as duas aquarelas que ele produziu para ilustrar essa parte do seu texto18.
O autor relatou a dificuldade em aprender o idioma mocoví, repetiu o seu desejo de ser
proficiente na linguagem. O que assinalamos aqui é que em seu relato reproduziu suas
conversas com os indígenas e inseriu frases no idioma mocoví, revelando as impressões da
experiência que viveu através da lembrança e as tensões de argumentar os sentimentos diante
da memória da coisa vivida. No prefácio de sua crônica ele afirmou que foi o conhecimento da
língua mocoví que possibilitou que ele narrasse o que havia vivido com “sincera verdade”, mas
compreende a diversidade dos povos e línguas no espaço em que habitou. Em um ponto,
referindo-se a língua, mostrou os seus limites de compreensão da alteridade, descrevendo de
forma discriminatória o idioma mocoví como primitiva e bárbara.
A Quarta Parte da crônica traz como título: Del cristianismo de los indios. Consta de
dez capítulos e 53 páginas. Paucke especificou as questões relacionadas ao processo
evangelizador e explicou como ocorria a aceitação do cristianismo pelos indígenas. Relatou as
estratégias que utilizou no processo de cristianização e a atitude dos mocoví face às pautas
culturais que desejava impor a eles. Para Paucke, a transferência dos mocoví de suas aldeias
tradicionais modificou suas relações e os tornaram “limpos” para receber a mensagem cristã.
Apesar desse desarraigamento sofrido pelos mocoví já no século XVIII, eles conseguiram,
segundo o autor, agarrar-se à parte de sua cultura e de suas memórias. Para o jesuíta, esses
fatores prejudicavam sua tarefa civilizadora e evangelizadora. Hoje esses fatores são fatores de
resistência, pois os membros desse grupo indígena se identificam como Mocoví com seus
modos de ser, pensar e fazer. Muitos ainda falam sua língua, e atualmente existe um forte
movimento de recuperação cultural e de seus territórios (ZAMUDIO, 2017, p. 1).
Ele finalizou essa parte de sua crônica contando sobre a fundação da nova redução de
San Pedro: as dificuldades do terreno, as negociações com o governo espanhol e as dificuldades
nos trabalhos de construção. Paucke não chegou a concluir esse projeto, estava trabalhando
quando chegou a ordem de expulsão dos jesuítas do continente americano.
A Quinta Parte: Los jesuitas expulsados de Paracuaria possui sete capítulos e 64
páginas, e nela Paucke contou todos os infortúnios que teve que passar durante sua viagem de
retorno à Europa: a revolta e o choro dos mocoví com sua partida, os incômodos das viagens,
sua prisão, o sequestro de todos seus bens, suas tristezas e lágrimas. Paucke começou um dos
seus comentários sobre a expulsão questionando o motivo para tal. Ele sabia que estava
18 Sobre esse assunto, trataremos com maior profundidade no quarto capítulo deste estudo.
65
chegando ao fim o trabalho dos jesuítas nas missões da América espanhola e através de sua
crônica procurou afirmar e legitimar o bom trabalho que ele e seus companheiros haviam
realizado no Gran Chaco como podemos observar nesse fragmento de seu relato:
Yo no quiero detenerme más en un mayor relato de los servicios que los indios han
prestado al Rey y su país, son suficientes estas pruebas para que se extermine la
conspiración que en la Corte se había producido contra las misiones y se reconozca
claramente cuán vano ha sido el rumor que los jesuitas con sus indios trataban de
cercar los españoles para destruirlos finalmente. Ningún español que ha estado en
Paracuaria y que ha observado las reducciones de los indios, los incansables trabajos
y peligros de los misioneros, podrá decir que él hubiera notado la menor señal por la
cual él podría deducir que estas misiones fueren más para el provecho propio de los
jesuitas y no para la utilidad de las almas y del Rey (PAUCKE, [1774], 2010, p. 402).
Paucke relatou os benefícios que os indígenas deram à coroa e o quão importante foram
os serviços prestados pelos jesuítas. Novamente o missionário valorizou sua missão expondo
os constantes riscos que enfrentava ao se opor aos interesses coloniais de explorar o trabalho
indígena. Quanto aos missionários jesuítas enviados à América, ele destacou o conhecimento e
as condições físicas dos mesmos, como pontua nesse fragmento do seu relato:
Tal vez se cree que un misionero de Indias no precisa otra cosa que realizar una
buena doctrina cristiana porque se considera a los indios unas gentes incapaces y de
ningún modo inteligentes. ¡No! se necesita algo más pues los indios incapaces pueden
dar también buenos bocados a mascar tanto en lo que concierne a la ciencia y la
virtud del maestro, como también a la paciencia y la mansedumbre [del mismo]
(PAUCKE, [1774], PV Cap.VI, 2010, p. 517).
Nesta quinta parte de sua crônica, Paucke voltou a reconhecer a capacidade intelectual
dos indígenas, legitimando o esforço do trabalho missionário. Ele revelou também os problemas
enfrentados com o governo de Santa Fé e, quando as hostilidades com a Companhia de Jesus
se fizeram presentes de forma mais contundente, ele discutiu abertamente as acusações de que
a Ordem pretenderia ter um reino próprio na Paracuaria. Por fim, narrou o cumprimento da
ordem real de expulsão pelo governador de Buenos Aires, que com a chegada dos missionários
jesuítas na cidade, dispôs da prisão dos mesmos até serem embarcados para o exílio. No entanto,
insistiu em apontar a dor dos seus índios e a comoção dos moradores da cidade: “Entretanto se
originó un alboroto general en la ciudad; el pueblo se reunió en la plaza donde estaba el
Collegium; todo fue pleno clamor llorar y lamentarse; otros maldecían de tal proceder para
con los jesuitas y compadecían íntimamente nuestro destino” (PAUCKE, [1774], 2010, p. 460).
66
O reconhecimento do papel pacificador das missões por parte de uma parcela da
população não diminuiu a rejeição daqueles que queriam o controle sobre a não de obra
indígena, acentuando a rivalidade entre os comandantes da Coroa e a poderosa e rica
Companhia de Jesus.
A Sexta Parte finaliza a crônica de Paucke, que tem como título: Descripción del Gran
Chaco en Paracuaria e é a maior parte do seu relato, possuindo vinte três capítulos e 180
páginas. Paucke mostrou em sua narrativa um pesquisador, amante das ciências naturais.
Relatou sobre o rio Paraná, o rio da Prata, o espaço geográfico, e solo que compunha o Chaco.
Os tipos de plantas que descreveu e desenhou: as terrestres, as silvestres. A figura 9 mostra que
ele pintou um Lapacho, árvore da América do Sul, que no Brasil é conhecido como Ipê ou Pau
d’arco e nessa aquarela ele também criou um verbete explicativo, à moda das enciclopédias
ilustradas.
Figura 9 – Florian Paucke. Lapacho. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
O jesuíta também descreveu e pintou as plantas comestíveis, as medicinais, as plantas
que se encontravam nos campos, nas selvas e os frutos que ele encontrou no Chaco. Descreveu
67
o clima, os ventos e as tormentas que o assustaram tanto. Quanto à fauna, criou uma série de
ilustrações e um texto verbal rico em detalhes: os peixes, os répteis, os porcos, os animais de
caça, as aves como a ema, que ele chamou de avestruz, e os louros. Na aquarela da figura 10
ele representou as onças que ele nomeou no seu relato como “o tigre das Américas”. Na imagem
vemos duas onças pintadas: uma bebendo água e outra que descansa nas margens de uma lagoa.
Figura 10 – Florian Paucke. Tigres das Américas. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Serie signos santafesinos. espaciosantafesino.gob.ar, 2016. Acesso em 03/2019.
Enfim, Paucke descreveu com originalidade e intensidade os habitantes do Chaco no
século XVIII. Se a tarefa do cronista é descrever e informar, Paucke o fez de forma assertiva.
Descreveu a natureza, mas também as cidades e seus edifícios, os costumes de seus habitantes
e as instituições religiosas que visitou com seus músicos indígenas.
Mas o que se percebe no relato de Paucke é que ele foca o seu interesse nas formas
típicas que os habitantes do Gran Chaco encontravam para solucionar questões práticas do
cotidiano, tais como o tipo de carro de madeira puxado por bois que usavam para transporte
que ele descreveu e desenhou ou, ainda, as construções da redução feitas de couro ou um tipo
de bolsa de couro que os indígenas usavam para atravessar o rio.
Descreveu também uma estranha embarcação mocoví de couro de boi que ele utilizou
para atravessar os rios da região como representou na figura 11. O que nos chama a atenção
nesta aquarela é que somente os missionários foram representados vestidos, os indígenas estão
nus juntos aos cavalos e bois.
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Figura 11 – Florian Paucke. Índios e missionários atravessando um rio. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
A habilidade dos indígenas em atirar bolas para caçar onças e emas, como também a
pesca a cavalo também foi narrada e desenhada por Paucke com riqueza de detalhes. Na figura
12, vemos a pesca a cavalo, a cidade no plano de fundo da composição e, a frente, dois carros
puxados por bois. Esse meio de transporte causou certo espanto e curiosidade ao jesuíta, tanto
que ele descreveu e pintou de forma detalhada esses carros de madeira usados na região.
Figura 12 – Florian Paucke. Pesca a cavalo. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
69
Em sua narrativa, dois territórios separados pelo tempo e pelo espaço se uniram, duas
culturas, diferentes modos de vida, diferentes crenças que se juntam em seu escrito.
O Gran Chaco é o que a escrita de Paucke diz ser, esse espaço natural se faz presente no
mosteiro de Zwettl, o espaço onde o autor escreve, de onde ele se lembra da experiência vivida
entre os mocoví. Sua narrativa é moldada pelos deslocamentos da viagem de ida e de volta à
Europa, para depois emergir na experiência que viveu naqueles espaços de coisas estranhas e
belas.
Para Zanetti (2013, p. 188), “cuando el texto relata la vida en la reducción, muy pocas
veces se vuelve hacia el espacio propio del narrador, sólo permanece en los paradigmas
culturales que dirigen su mirada y sus juicios”. Paucke afirmou que a obra evangelizadora só
seria garantida se os indígenas vivessem nas reduções sob a obediência dos jesuítas. A sua ação
envolveu interações impostas pela sua própria concepção cultural. Sua crônica deixa poucos
espaços para os conceitos próprios dos mocoví. Quando menciona os caciques, sempre o faz
acentuando as diferenças entre os indígenas mansos e evangelizados em oposição aos não
subjugados. Enrique Palavicino (1964), em sua “Breve noticia sobre los mocovíes actuales”
informa que, após a expulsão dos jesuítas, as missões declinaram, os indígenas voltaram às
florestas e aos seus antigos costumes. Trinta anos depois San Javier não existe mais. Essa
resistência cultural dos mocoví mostra que a interação cultural que Paucke descreveu foi por
ele compreendida de forma limitada e equivocada (ZANETTI, 2013, p. 188).
Florian Paucke criou um texto histórico a partir de sua memória. Ankersmit (2016, p.
243) analisa o texto histórico e suas relações com a realidade, compreendendo-o como uma
representação, utilizando a filosofia da linguagem para o entendimento da narrativa histórica.
A narrativa histórica deve estabelecer pontes com a realidade através da investigação e do
estudo da representação de aspectos do mundo. A crônica escrita por Paucke representou o
imaginário suscitado nas relações sociais estabelecidas pelo jesuíta, mas, segundo Ankersmit
(2016, p. 253), as representações históricas mantêm certo grau de acesso ao passado. Este autor
entende que representar é uma operação mais ampla do que apenas descrever, pois cria sentidos
e requer a participação do leitor em relação a certos conceitos e áreas do conhecimento. No
texto narrativo de Paucke, segundo reflexões da linguística apontada por Ankersmit, se pode
perceber diferentes componentes: descrição, explicação e representação do passado. Ankersmit
assinala que a representação é uma ação que compõe três estados: 1) uma representação define
o que é apresentado, interferindo no modo de como o outro vê o que foi representado; 2) a
representação é relacionada à metáfora, que confere atributos e conceitos ao que é representado,
interferindo na atitude do espectador frente aos sujeitos representados e 3) o texto é concebido
70
como metáfora, uma ponte entre o olhar de quem lê o mundo. Sendo assim, a construção de
diferentes narrativas amplia a compreensão do passado.
A lembrança de tudo que Paucke viu, ouviu, experimentou, aprendeu e adquiriu evoca
uma experiência ausente por meio de uma coisa substituída, ou seja, um representante, que no
caso seria a sua escrita e o desenho. A memória de Paucke é a matriz de sua escrita e também
um canal de representação do seu passado. Mas sua memória estava ligada a um
posicionamento sócio-histórico à instituição que lhe conferiu autoridade. Seu discurso
expressou sua formação ideológica e os sentidos históricos e sociais que ele conferiu à situação
de contato com os grupos indígenas do Chaco. Sua fala é de autoridade, pois ele se colocou na
posição de portador de uma verdade única, superior, civilizadora e progressista. Essa autoridade
lhe foi atribuída pela Instituição Jesuítica que permitiu que ele desenvolvesse essa função. Seu
relato tem o propósito de transmitir informações e conhecimentos bem aos moldes do século
XVIII.
Sua narrativa nos remete a aspectos do passado vivido por ele e as suas descrições ele
requisitou o status de veracidade. Mas fazer história sob a perspectiva da memória implica uma
ideia de construção do passado através da escrita e da leitura. Esse fazer é uma operação
intelectual, que permite a crítica e a reflexão sobre as narrativas memorialistas. A memória é
afetiva, particular, se liga ao meio físico, à vivência. A história tem caráter universal, se agrega
às relações das coisas e nas continuidades temporais. Portanto, a história se utiliza de diferentes
memórias para sua construção, mas história e memória não se equivalem. A obra de Paucke é
o registro de suas memórias, suas representações imagéticas funcionam como metáforas pois
as evidências pertencem ao mundo. São representações que jogam com nossos sentidos e
rompem o espaço demarcado entre linguagem e realidade. Através da análise e investigação do
passado, enquanto uma experiência vital, das relações com outras memórias e através do
exercício de questionar e pensar dos historiadores da atualidade, sua obra foi transformada em
registro histórico que possibilita a compreensão dos modos de ser e viver da sociedade colonial
espanhola e seu convívio com os mocoví no Gran Chaco no século XVIII.
71
Capítulo 3
OS MOCOVÍ NO SÉCULO XVIII
No Gran Chaco, os Mocoví, Tobas, Mbayá-Guaicuru, Abipones e Payaguás
compunham os grupos integrantes do tronco linguístico Guaicuru. O Chaco tornou-se um
espaço multiétnico de grande mobilidade interna. No início do século XVIII os grupos mocoví
se estabeleceram na região oeste do Chaco entre os rios Pilcomayo e o rio Bermejo. Neste
capítulo apresentamos alguns dos componentes étnicos característicos dos grupos mocoví.
3.1 Caçadores e coletores
Entre os mocoví a caça e a coleta eram formas de subsistência, que mesmo após o
contato com os europeus foram mantidas. Essas atividades baseavam-se no padrão tradicional
da divisão sexual do trabalho. Os homens caçavam os grandes animais (onças, antas, jacarés,
porco do mato e veados) enquanto as mulheres se ocupavam da coleta ou da caça de pequenos
animais (cobras, pássaros, gafanhotos e larvas de insetos). Usavam em suas caçadas, laços,
boleadeiras, o arco e flecha e lanças. Florian Paucke em seu relato aponta indícios da atuação
das mulheres nas grandes caçadas junto aos homens, mas normalmente a caça era uma atividade
masculina, relacionando-se com o tipo de organização social dos mocoví. Na aquarela que ele
representou a caçada às onças (Figura 13) vemos os mocoví executando uma de suas práticas
tradicionais. Três indígenas são representados nus e estão a pé, enquanto os que estão a cavalo,
um animal trazido pelo europeu, estão vestidos.
Figura 13 – Florian Paucke. Caçada de tigres. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
72
Paucke representou a nudez indígena de forma seletiva: quando os indígenas estavam
executando tarefas na redução, ou seja, num espaço civilizado, eles os pintou usando suas
vestimentas; quando faziam seus rituais ou suas práticas tradicionais, eles estavam nus, como
homens naturais e selvagens. O uso das linhas curvas que ele utilizou nessa composição sugere
o movimento e o dinamismo das caçadas indígenas.
Os caçadores distribuíam livremente os produtos da caça, comumente aquele que abateu
o animal ficava com o quarto posterior e a pele, o restante repartia com seus companheiros. Não
havia qualquer tipo de autoridade, como os caciques e seus familiares, que fossem beneficiados
na partilha. A carne era consumida logo após a caçada, ou era transportada e consumida em um
tempo mais ou menos curto. Para conservar e armazenar a carne por um período maior as
mulheres se ocupavam de secá-la ao sol sem o uso do sal (NESIS, 2005, p. 53).
Os couros eram utilizados pelas mulheres na confecção de roupas ou para trocas
comerciais. Os couros de onça eram usados como parte do pagamento de uma noiva. Era
símbolo de bravura do homem e de sua aptidão para caça, além de significar que ele era capaz
de sustentar a família. As penas dos pássaros eram usadas na fabricação de flechas, armadilhas
e como tornozeleira, pois acreditavam que as penas nos tornozelos tornariam os caçadores mais
velozes. Os dentes de jacaré eram apreciados devido a crença de que eles possuíam capacidades
curativas.
As mulheres eram responsáveis pela coleta de frutos, raízes e a caça de gafanhotos. A
figura 14, representa no primeiro plano as mulheres mocoví preparando a charque, ao fundo do
plano pictórico estão as mulheres e crianças capturando gafanhotos, que podiam serem
consumidos imediatamente ou conservados.
Figura 14 – Florian Paucke. Caça de gafanhotos e preparação de charque. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
73
Paucke descreveu como as mulheres caçavam e preparavam os gafanhotos:
Los indios cazan de la siguiente manera las langostas nuevas que aún no pueden volar
sino que sólo saltan por el campo: ellos cubren un sitio grande con paja, las mujeres
y los niños se colocan en derredor, desde una distancia comienzan a arrear las
langostas hasta que todas han llegado a la paja extendida; encienden luego la paja
por todos lado y asan las langostas. Luego se sientan ahí al lado y las devoran completamente o medio quemadas cuantas pueden [comer], juntan las restantes, las
llevan en bolsas a sus chozas y se mantienen con ellas mientras tienen existencia
(PAUCKE, [1774], 2010, p. 297).
As mulheres atuavam também na coleta de mel e das frutas (chañar e algarroba)
utilizadas para produção de bebidas alcoólicas. Elas ocupavam um lugar importante nessa
atividade, mas quanto a consumir a bebida temos os relatos de Lozano e Paucke, nos quais não
ficou claro essa questão. De acordo com Lozano ([1745], 1941, p. 86), o que diferencia as
mulheres mocoví das outras mulheres indígenas do Chaco é sua disposição para embriaguês:
“En la nación de los Mocobíes llega a ser el exceso en la embriaguez más notable que en las
demás pues no solo se embriagan los varones, sino también las mujeres contra lo que las demás
estilan”.
Ao contrário de Lozano, Paucke ([1774], 2010, p. 219) indicou que em princípio, as
mulheres se abstinham de beber, no entanto, após esta afirmação sugeriu que as mulheres mais
velhas se embriagavam: “Muchas mujeres, especialmente las más viejas, tenían también a veces
un buen “habemus”19 y comenzaban a librar entre ellas una ‘batalla’ en la plaza pública”.
Entretanto, em outro momento do seu relato, ele informou que as mulheres mais velhas
ocupavam um lugar importante dentro do grupo mocoví e eram encarregadas da preparação das
bebidas que seriam usadas nas reuniões festivas dos indígenas ([1774], 2010, p. 308).
A partir do século XVII, a criação de gado e cavalos nos campos veio se juntar às
atividades de caça, coleta e pesca, sendo a carne bovina logo inserida na dieta dos mocoví. Os
indígenas souberam aproveitar o desenvolvimento das economias coloniais, baseadas
principalmente na pecuária. As áreas de criação de gado e cavalo pelos espanhóis tornaram-se
espaços de negociação e pilhagem, não apenas com relações pacíficas, mas também violentas.
No início do século XVIII, os grupos mocoví conseguiram se inserir à rede comercial
colonial, abastecendo a demanda pecuária de militares e proprietários de terra; modificando
assim sua própria economia. Segundo Nesis (2005, p. 62) uma das modificações que ocorreram
na economia indígena foi a comercialização de couros de onças. Como já mencionamos, esses
couros firmavam o “preço da noiva”. Com a demanda por esse produto pelo comércio colonial
19 O editor esclarece que esse termo foi usado no jargão da época para designar uma embriaguez.
74
e a introdução da criação de gado e cavalos, o preço da noiva sofreu modificações, segundo
Paucke ([1774], 2010, p. 324): “el pago son ya algunos cueros de tigre, ya uno o dos caballos;
si ellos tienen vacas, dan también una o dos”. Ou seja, os mocoví buscaram bens novos e
diversificados, que dentro do seu grupo, assumiram não só valores econômicos mas também
simbólicos. Os grupos indígenas do Chaco, mesmo mantendo seus padrões tradicionais,
conseguiram desenvolver relações, embora muitas vezes conflitantes com a sociedade
hispanocriola, adaptando-se as novas realidades.
3.2 A mobilidade e o território
No final do século XVI o cavalo foi adotado pelos Guaicurus, ocasionando várias
mudanças nas relações econômicas, políticas, sociais e interétnicas. Com a mobilidade
conferida pelos cavalos, os guaicurus desenvolveram uma superioridade militar e econômica
sobre os grupos que permaneceram pedestres.
Na figura 15, Paucke representou os indígenas no trabalho com os cavalos utilizando o
laço com boleadeiras. Nesta composição as linhas diagonais marcadas pela cor do solo,
contrastam com as linhas horizontais e verticais da moldura do papel. As linhas diagonais
determinam a direção do olhar do observador, tornando a composição mais dinâmica e
sugerindo movimento.
Figura 15 – Florian Paucke. Arrebanhando cavalos. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
75
Com a mobilidade as atividades de caça deixaram de dar origem aos rituais, pois os
grupos se dispersavam durante o inverno para captura de animais. A primavera passou a marcar
os rituais, os acordos, as alianças, os casamentos, os torneios de jogos e o intercâmbio entre
diferentes grupos. Como já assinalamos, era na primavera que ocorria a coleta de frutas e mel
para fabricação das bebidas usadas nesses agrupamentos. Paucke ([1774], 2010, p. 307)
comentou: “Cuando comienza la primavera suelen los indios acercarse más entre sí que en
tiempo de invierno donde se ocupan más de la caza que del beberaje”.
As epidemias também ocasionavam a mobilidade e dispersão das famílias. Os
constantes movimentos dos grupos não implicavam no domínio dos espaços, mas sim na
aquisição de recursos e sobrevivência. No entanto os guaicurus reivindicaram direitos
exclusivos sobre certos territórios de caça e coleta exercendo efetivo controle dessas áreas.
Segundo Lozano os Abipones:
Son muy dados a la milicia, ejercitándose de continuo en la guerra sobre leves causas, que las más ordinarias son sobre si vino a pescar o cazar dentro de sus límites. Estos
los amojonan con unos horcones largos, y en ellos cuelgan las cabezas de los muertos,
por haber violado los términos de ajena jurisdicción (LOZANO [1745], 1941, p. 94).
A questão da territorialidade é abordada por Lozano como um limite demarcado para a
exploração dos recursos naturais, sendo a invasão desse limite causas para guerra entre os
grupos indígenas. Mas Paucke em seu relato, embora tenha narrado vários episódios em que
percorre com os mocoví amplas distâncias do território chaquenho, não mencionou a entrada
de territórios demarcados por outros grupos da região. Para Nesis (2005, p. 65-66), as alianças
estabelecidas pelos guaicuru determinaram locais de livre circulação nos quais a caça e a coleta
eram realizadas sem gerar conflitos.
A territorialidade também é marcada pelo local de sepultamento de seus mortos. De
acordo com Paucke:
Ellos entierran sus muertos en un lugar [fijo] aunque dista algunas leguas. Si ellos
distan más del lugar, entierran entonces el cuerpo en un bosque en dondequiera que
fuere. Después del tiempo en que ellos creen que el cuerpo se pudre y sólo quedan los
huesos, viajan al sitio, sacan los huesos y los trasladan al lugar donde están sus
compañeros de estirpe […] Cuando los indios parten a un distante lugar español o a un diferente dominio indio para librar allá un combate y tienen que emprender la
huída, dejan echados sobre el campo sus muertos […] luego se ponen en movimiento
los amigos de los muertos y viajan por tan largo camino para juntar únicamente los
esqueletos de sus compatriotas para transportarlos a su Gólgata (PAUCKE, [1774],
2010, p. 340).
76
Segundo o autor dessa citação, o enterro dos ossos dos ancestrais demarcavam um
território fixo pertencente aos parentes dos mortos. Esse espaço agora se tornava a aldeia dos
mortos, o mundo dos antepassados. Na concepção indígena, na morte o índio iniciava uma nova
existência, desligava-se quase que totalmente dos vivos, inaugurava um novo espaço marcado
por festas e pela relação com seus parentes consanguíneos.
3.3 A organização social dos Mocoví e as lideranças
Nos grupos mocoví, o indivíduo se constrói por relações de identidade que estabelece
com os outros membros do grupo. Os mecanismos sociológicos constituídos pelos líderes de
linhagem se articulam a vida social e a história do próprio do grupo. A organização social dos
mocoví se estabeleceu a partir de um sistema constituído por um grupo de líderes de linhagem.
A adoção do cavalo fortaleceu esse grupo por aumentar sua mobilidade, seu domínio bélico e
poder econômico, determinando os modos de relacionamento entre os líderes e os membros da
comunidade mocoví.
A sociedade mocoví era composta por um grupo de linhagem, um grupo de indivíduos
comuns e cativos20. Os nobres (aqueles que demonstravam coragem na guerra) usava o sufixo
“in” em seus nomes como: Aletin e Cithaalin. Os nomes dos seus filhos também traziam essa
marca de distinção social (NESIS,2005, p.78). O casamento constituía outro meio de
diferenciação social, desde que não fosse realizado com pessoas de diferentes estratos sociais.
Os relatos jesuíticos afirmam as restrições impostas aos casamentos entre nobres mocoví com
pessoas “comuns”, ou com cativos ou ainda com indivíduos pertencentes a outros grupos
indígenas. Segundo o relato de Bustillo:
Los nobles no se juntan con consorte de menor gradación y mucho menos con gente
plebeya: celando por decoro el extremo sus familias. Los indios plebeyos toman
fácilmente mujer de otra nación: no así los nobles, porque colocan parte de su
nobleza en no mezclarse con sangre extraña [...] Loado un indio noble su linaje, no
produjo otra prueba de su nobleza que ascender solo de mocobíes, sin que se divisase
en toda su ascendencia sangre extraña. Tanto prevalecía en su juicio esta pureza. Y
era indio en la realidad tal a quien nadie le disputaba su nobleza y todos le respetaban
por ella (FURLONG21 1938, p. 90).
20 Segundo Paucke ([1774], 2010) havia dois tipos de cativo dentro dos grupos mocoví: aqueles que foram
aprisionados de outros grupos, e aqueles que sendo mocoví foram presos por outros grupos de indígenas ou por
espanhóis e retornaram ao seu grupo de origem. 21 FURLONG, Guillermo. Entre los mocovís de Santa Fe. Buenos Aires, S. de Amorrortu. 1938.
77
O casamento dos nobres era restrito a linhagens de prestígio. Na figura 16, Paucke
representou o cacique, sua esposa e seu filho com a indumentária típica dos mocoví. O cacique
se encontra no lado esquerdo da composição, usando uma túnica e um chapéu como adorno de
cabeça; sua esposa veste uma pantalona, segundo Paucke, com o rosto e o corpo tatuados, sinal
de sua nobreza.
Figura 16 – Florian Paucke. O cacique e sua esposa. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
Os líderes e seus filhos podiam ter várias esposas, enquanto os demais homens só tinham
uma esposa, embora pudessem ter algumas concubinas. A esposa, diferente das concubinas,
moravam com o marido, enquanto aquelas residiam com sua família e continuavam ligadas ao
seu grupo de origem. As restrições entre uniões com indivíduos de grupos indígenas diferentes
ou com cativos só se aplicava ao grupo de líderes de linhagem nobre.
Paucke relatou essas peculiaridades em relação aos casamentos:
Mientras los indios son hombres jóvenes, quedan con una sola mujer, excepto los
hijos de los caciques o los que ya antes en sus años de jóvenes son valientes y
animosos; pero cuando son hombre en sus mejores años toman una o dos concubinas
pero por lo general él vive con una [sola] la que él tiene consigo en su choza, las
otras quedan con sus padres (PAUCKE, [1774], 2010, p. 326).
A endogamia parece ter continuado no período das reduções. Segundo o relato de
Paucke ([1774], 2010, p. 324) os líderes Aletin, Cithaalin e Nevedagnac mantiveram seu
parentesco político e de sangue quando foram viver na redução. Os três eram parentes pois
78
Cithaalin casou-se com uma irmã de Aletin e desposou também a irmã de Nevedagnac. Paucke
narrou sobre o casamento de Sebastián filho de Cithaalin e Estefanía, filha de Nevedagnac, que
como observamos, eram cunhados. Havia os laços consanguíneos, mas para se tornar uma
liderança efetivamente, os líderes deveriam possuir outras qualidades.
Nos relatos jesuíticos sempre afirmaram a falta de governo civil e político em que os
grupos indígenas do Chaco viviam. As narrativas aludem que só havia algum tipo organização
política no período de guerra. Segundo Lozano: “Generalmente no tienen gobierno alguno
civil, ni observan vida política; sólo en cada tierra hay un cacique, a quien tienen algún respeto
y reverencia, que solo dura mientras se les da alguna ocasión de disgusto” (LOZANO, [1745],
1941, p. 62).
Paucke também se referiu em seu relato a falta de uma liderança política e sua relação
com as atividades bélicas entre os mocoví: “Sólo en ciertas circunstancias cuando el cacique
los invita a cometer un robo o a pelear contra otros o a invadir las estancias españolas y matar
los habitantes, entonces todos corren junto a él” (PAUCKE, [1774], 2010, p. 335).
A capacidade de organizar guerras ou grupos de caça conferia prestígios aos guerreiros
e caracterizava sua liderança. Na figura 17, Paucke representou a guerra entre os mocoví e
outros índios que ele denominava de “pagãos e selvagens”. O que nos chama atenção é que só
os líderes são representados com sua indumentária e seus adornos, o restante dos personagens
se apresentam nus, num todo que se mistura. As linhas diagonais vigorosas das lanças sugerem
intenso movimento e conferindo dinamismo à composição.
Figura 17 – Florian Paucke. Combate indígena. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
79
A associação entre a liderança e a organização dos assaltos, aparece nos relatos
jesuíticos sobre os grupos caçadores e coletores, apropriado ao grupo mocoví para o período
anterior ao estabelecimento das reduções.
Os líderes faziam longos discursos acompanhados de uma linguagem gestual. A maneira
cordial nas petições, o tratamento amável e o reconhecimento dos sinais de repulsa entre aqueles
que estavam ouvindo os discursos, eram elementos nos quais os lideres deveriam saber como
lidar (NESIS, 2005, p. 82).
Os elementos que qualificavam os indivíduos para a liderança política entre os mocoví
eram a linhagem nobre, a coragem e a capacidade de comando nas guerras e nas caçadas, a
eloquência para os discursos e a prática da distribuição igualitária entre os membros do grupo.
Portanto, os grupos Mocoví possuíam uma organização política, mas devido à
necessidade dos grupos se afastarem em determinados períodos do ano, em busca de
subsistência ou em situações de conflito, suas relações sociais eram instáveis.
3.4 Elementos étnicos
Os critérios de identificação de um grupo foram socialmente definidos e modificados
ao longo do tempo. O estabelecimento desses critérios dependerá das diferentes definições que
são estabelecidas pelo grupo ou por agentes externos. Os elementos étnicos servem para
delimitar as características do grupo, mas não enrijece seu conteúdo cultural, pois a cultura está
sempre se transformando pela incorporação de novos elementos ou pelo desaparecimento de
outros.
Os jesuítas adotaram como critério étnico para classificar os indígenas do Chaco o
idioma, os traços fisionômicos, as marcas físicas, a cor da pele, as tatuagens, as perfurações,
adereços e vestimentas. Nesse fragmento de sua crônica, Paucke descreveu as diferenças das
faces de vários grupos indígenas:
También se puede deducir más o menos de la forma de la cara de qué nación es el
indio. Los mocovíes que eran mis hijos espirituales, tenían cara alegre y bien
formada. Los abipones y jaucanigos se conocían por sus ojos que estaban
notablemente mas hundidos. A los quichicaches se les conocía por su corta estatura
pues toda la nación se constituye por puras personas chicas; ellos llevan siempre un cabello desgreñado porque jamás se peinan ni sacan la roña de la cabeza, tienen
caras cortas y anchas y la nariz en manera de los calmucos. Los guaraníes, tapes y
tobatines se reconocían también por sus caras porque en su mayor parte tenían unas
caras como si fueren impresas en una misma forma (PAUCKE, [1774], 2010, p. 261).
80
Paucke também utilizou, além das características físicas, as tatuagens, perfurações e
adereços utilizados pelos mocoví, reconhecendo e estabelecendo atributos étnicos por meio
dessas práticas:
A más los indios no admiten ningún pelo en sus caras; ellos arrancan de raíz las
cejas, la barba y aún los pelos de las pestanas [...] los hombres se hacen tatuar tres
rayas entre los ojos por sobre la nariz, dos debajo de cada ojo como también dos al
lado del ojo izquierdo y derecho [...] Las mujeres padecen un martirio aún más
grande, Por sobre la frente tienen también su seña tatuada. Después que la cara está
tan llena de puntos y sangre que no tiene lugar ninguna otra figura, se hace la
operación sobre el pecho desde un hombro al otro y por ambos brazos[...]En el labio inferior de la boca tienen una pequeña abertura que atraviesa de un lado al otro; en
ésta meten una larga astilla de madera o algunas largas plumas de avestruz, no para
ser bellos sino para hacerse terroríficos ante los otros.[...] Las mujeres llevan
también sus pendientes pero tan grandes y redondos como una gran caja redonda de
tabaco (PAUCKE, [1774], 2010, p. 263-264).
Dobrizhoffer ([1783], 1968, p. 44) também qualificou etnicamente os Abipones por
esses trabalhos no corpo (tatuagens, perfurações, adornos com plumas e ossos, etc.): “Aquellas
pinturas y punciones son familiares entre los abipones para distinguirse entre unos y otros
pueblos y respetan las costumbres de sus mayores”.
Os critérios adotados pelos jesuítas para classificação dos grupos indígenas não foram
aplicados uniformemente. Eles foram sobrepostos uns aos outros e multiplicaram os nomes
dados aos agrupamentos. Além dos critérios físicos para identificação dos grupos, os temas da
guerra, das relações com os cativos e dos casamentos, nos possibilitam abordar outras
características étnicas das relações dentro dos grupos e com os outros grupos indígenas do
Chaco.
3.4.1 A guerra
A guerra entre os grupos indígenas do Chaco no século XVIII constituiu uma das formas
de organização social e permitiu a redefinição das próprias identidades. Nos escritos jesuítas as
descrições sobre a guerra destacam a importância da bravura para esses grupos e indicam a
realização de rituais e cerimônias antes dos confrontos tais como: a existência dos troféus de
guerra como: escalpos, cabeças, orelhas, narizes, bem como o canibalismo ritual.
Quando os guerreiros mocoví voltavam com seus troféus de guerra, impulsionava uma
dinâmica que retroalimentava a excitação guerreira e conferia prestígio aos guerreiros e
afirmava a posição dos líderes de linhagem que organizavam a expedição, configurando-se
como uma rede de relações e hierarquia social (NESIS, 2005, p. 134).
81
A coragem era expressada nos rituais pela realização de tatuagens que marcavam a
entrada na idade adulta dos homens, a incisão da língua, a unção dos braços e pernas com o
sangue que também era ingerido pelo grupo no ato do corte na língua:
En cuanto se perforan con él la lengua, no pueden retirar más el aguijón porque los
dientes no son derechos sino inclinados; por esto ellos deben arrancar el aguijón
cortando la lengua de modo que los dos pedazos cuelgan separados. Con la sangre
de esto untan su pecho y brazos [y] dicen que con ella quedan resistentes contra la
bala y la lanza. Otros expelen la sangre dentro de una vasija, beben de nuevo la
sangre ya ellos, ya algún otro que al igual de un copero saca en tales borracheras el
beberaje y lo brinda (PAUCKE, [1774], 2010, p. 317).
Segundo Paucke, esses rituais serviam para demonstrar a capacidade de suportar a dor
e a coragem dos guerreiros. Para Lozano ([1745], 1941, p. 73) as nações do Chaco travaram
uma guerra "com crueldade bárbara”. Paucke ([1774], 2010, p. 391) relatou que os grupos se
reuniam e celebravam a borracheira, durante as quais se realizavam os rituais e danças. Os
homens contavam suas façanhas como guerreiros e celebravam suas vitórias. Antes dos ataques
os líderes faziam discursos aos seus seguidores e as “índias velhas” realizavam suas danças
acompanhadas de cantos e gritos.
Quando os mocoví retornavam das expedições vitoriosos, havia também celebrações
onde os troféus tradicionais de guerra obtidos nos confrontos circulavam entre os participantes.
As cabeças dos vencidos eram entregues pelos guerreiros a suas mulheres que os colocavam
em frente as suas cabanas. Os troféus eram sinais importantes de superioridade dos guerreiros
na guerra.
A prática de antropofagia ritual foi descrita por vários jesuítas. Para Lozano, os mocoví
eram “caribes”, ou seja, comedores de carne humana:
Al tiempo que los varones de noche se ocupan de asar al fuego las carnes de sus
enemigos, para darles sepulcro racional en sus brutales vientres, suelen estar las
viejas, que son ordinariamente hechiceras, y las veneran como sacerdotisas,
cantando toda o casi toda la noche los triunfos contra sus enemigos (LOZANO,
[1745], 1941, p. 85-86).
Essa questão foi possivelmente um tabu para os jesuítas, eles não compreendiam bem
essa prática e seu valor na guerra. Paucke também fez alusões a essa prática:
En esta ocasión a un anciano, de nombre Paulus Conoquin, un generalmente muy
devoto y buen cristiano (que era manuductorde los muchachos y diariamente estaba
presente con ellos en la doctrina cristiana) le instigó el antiguo apetito de comer
carne humana, buscó entre los muertos los más gordos, les cortó la piel de la frente junto con la carne la tiró sobre el fuego y la comió así asada. (PAUCKE, [1774],
2010, p. 401).
82
A narrativa de Paucke contrasta, em certa medida, com a descrição de Lozano. Paucke
mencionou que o consumo do corpo dos vencidos era feito após a batalha, mas sem a
participação de outros indivíduos. Os mocoví acreditavam na possibilidade de incorporar as
forças dos guerreiros que eram temidos ou tidos em alta estima.
No contexto das reduções esse retorno das expedições vitoriosas foi recriado nas
festividades de San Javier onde a dinâmica social associada à guerra era reativada, como
podemos observar na figura 18. Nessa imagem, vemos em primeiro plano dois personagens que
simulam uma batalha, ao fundo do quadro os personagens lidam com os cavalos, todos estão
vestidos, pois se encontram no espaço civilizado da redução.
Figura 18 – Florian Paucke. Simulação de combate na Redução. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.
Segundo Paucke:
Al lado de la iglesia estaban parados a ambos lados todos los niños de la aldea; de
un lado los varones, del otro las niñitas, pero las mujeres esperaban la entrada en el
centro de la plaza, en parte con calabazas huecas en las cuales tenían granos de
cucurus [maíz] y hacían un ruido; en parte con las cabezas de sus enemigos muertos
en la mano o sobre varas, bailaban en derredor de la entrada y cantaban victoria en su lengua (PAUCKE, [1774], 2010, p. 415).
83
Paucke na sua narrativa, nos permite perceber como os rituais da guerra, da vitória e o
prestígio conferido aos bravos guerreiros fora reconfigurados no contexto da redução, em que
as celebrações indígenas foram redefinidas seguindo o padrão configurado no âmbito colonial.
3.4.2 Os cativos
Os relatos jesuíticos nos informam que os mocoví faziam seus prisioneiros de guerra de
escravos. Mas Lozano afirma que normalmente os mocoví matavam os que foram capturados:
En el primer encuentro a cuantos pueden haber a las manos, excepto a los muchachos, que reservan para criarlos conforme a sus costumbres y aumentan así su nación
casándolos con sus hijas, y si de las mujeres adultas dejan alguna con vida, es para
venderlas después a otras naciones, a quienes sirven de criadas (LOZANO, [1745],
1941, p. 73).
Essa afirmação de Lozano confronta às de Paucke relativas ao tratamento dos cativos
na redução de San Javier. De acordo com Paucke os cativos viviam com os mocoví, não eram
maltratados, mas era um grupo separado dentro da sociedade indígena. Mesmo sendo um
mocoví que foi aprisionado pelos espanhóis e retornou ao grupo, ele não era reintegrado ao seu
grupo de origem. Os cativos pertenciam ao nível social mais baixo, e não podiam ascender
socialmente dentro grupo.
3.5 A redução dos Mocoví
No processo de conquista, o contato dos grupos indígenas do Chaco com os invasores
coloniais não pode ser circunscrito ao binômio extermínio e mestiçagem. Desde as primeiras
relações de trocas, o desespero das epidemias, as alianças guerreiras, cada grupo reagiu ao
contato de forma particularizada, dinâmica e criativa. O contato criou novos desafios e novas
possibilidades para esses grupos, exigindo iniciativas de seus líderes em defesa dos interesses
de seus grupos. Com a limitação dos seus territórios devido a invasão espanhola, esses grupos
sofreram intensas mudanças nas relações econômicas, políticas, sociais e interétnicas. Para
sobreviverem incorporaram novas mercadorias e estabeleceram novos vínculos com a
sociedade hispanocriola e indígena. Como já citamos, a admissão do cavalo foi significativa no
estabelecimento dessas novas conexões.
O estabelecimento das reduções permitiu o desenvolvimento de novas atividades
produtivas, além da pecuária, da criação de cavalos e do comércio de peles e penas de animais
84
que já era praticado pelos mocoví antes das reduções. A produção agrícola missioneira das
reduções gerou novas atribuições ao cacique: a distribuição de terra para o plantio para as
famílias e disponibilização do trabalho dos indivíduos do grupo. Na redução os líderes não
foram liberados de suas atribuições tradicionais, mas a aquisição de bens de prestígios e a
responsabilidade de fornecer informações quando solicitados pelos agentes coloniais, foram
aspectos que os posicionaram em um novo lugar de destaque na redução.
A redução, os novos meios de produção e a implantação de redes comerciais, acabaram
por gerar mudanças no plano social dos grupos indígenas reduzidos. Com a expulsão da
Companhia de Jesus, os grupos se dispersaram, fato esse que supomos, contribuiu para
desintegração social dos grupos Guaicuru do Gran Chaco.
No século XX, as atividades de caça e coleta foram substituídas pelo trabalho em
fazendas ou em obras nas cidades. Devido a integração cultural e a invisibilidade étnica,
segundo Calvo e Benzi (2016, p. 6), é difícil saber com segurança os lugares onde os grupos
mocoví estão assentados, no entanto apontam para algumas colônias indígenas do Chaco:
Departamento Veinticinco de Mayo, alguns bairros de Rosario, o bairro Mocoví de Recreo em
Santa Fé e alguns pontos da província de Buenos Aires, como a Comunidade Mocoví de
Berisso. Nas cidades de Santa Fé, Rosario, Venado Tuerto, Recreo, Reconquista, Melincué,
Firmat, Casilda e em algumas cidades menores, as comunidades mocoví ainda falam seu
idioma, embora estejam cada vez mais sujeitos à influência do castelhano. Na Colônia de
Dolores eles representam 90% da população urbana e procuram manter sua cultura. “Em San
Javier, onde existe também uma comunidade importante, eles conservaram as transmissões
orais históricas de El Último Malón. Seus artesãos se destacam por seus trabalhos manuais, sua
destreza e seu valor de identidade” (CALVO; BENZI, 2016, p. 6).
85
Capítulo 4
ICONOGRAFIA: A FESTA DE SAN JAVIER E AS ASSEMBLEIAS MOCOVÍ
A imagem nos leva à descoberta do visível. Tem como função consolidar e precisar a
nossa relação com esse visível. Essa relação é fundamental à nossa atividade intelectual, pois a
imagem permite aperfeiçoar e dominar as funções do intelecto como a memória e o raciocínio,
como também as funções sensoriais.
A obra de Florian Paucke é objeto de numerosos trabalhos que analisam diferentes
questões, a partir de objetivos e perspectivas diversas, para obter informações sobre o passado
colonial e a vida missionária dos jesuítas. Além das descrições, o autor criou uma rica
iconografia que complementa sua narrativa. O relato do jesuíta é um dos poucos trabalhos que
apresentam imagens que ilustram o cotidiano das missões e as atividades indígenas, sendo suas
imagens utilizadas para ilustrar várias obras.
Neste capítulo vamos centrar nossa atenção na temática das festividades, em que o autor
construiu um discurso pictórico em relação aos espaços, através do uso e da distribuição dos
elementos visuais dentro de suas composições, diferenciando um espaço selvagem e outro
civilizado, que incluem tanto as festas ocorridas na redução como as assembleias mocoví.
Utilizando como referência o método criado por Panofsky para interpretação de imagens, nosso
objetivo é desvendar os significados intrínsecos contidos nestas imagens.
Outro aspecto que levamos em consideração é que podemos, a partir do pensamento de
Certeau (1982, p. 191), que sugere que as crônicas dos viajantes constituem “proto-etnologias”,
falar de Paucke como um etnógrafo. Portando, concebendo a imagem como um texto que
também pode ser lido, fundamentamos nossa ideia de que podemos supor que as imagens
criadas por Paucke são documentos etnográficos, mesmo que tragam os estereótipos de
selvageria e civilidade, construídos ao longo do tempo pela sociedade europeia.
4.1 História e imagem
Imagem – do latim imago, significa a representação22 visual de um ser ou de um objeto.
Na Grécia antiga, a palavra imagem corresponde ao termo eidos que constitui a raiz etimológica
da palavra idea ou eidea. Esse conceito foi formulado por Platão, que considerava a ideia de
22 Abordaremos aqui a representação como um processo pelo qual se institui um representante que, num certo contexto limitado, tomará o lugar do que representa (AUMONT, A Imagem, 2011, p. 201).
86
algo, e a imagem que a representava, como sendo uma projeção mental. Para Aristóteles, a
imagem era a representação mental de um objeto real que era apreendida pelos nossos sentidos.
A imagem, como representação mental e visual dos seres e dos objetos, pode apresentar
vários sentidos. Ela se abre a várias significações, e uma leitura da imagem terá que levar em
conta essa polissemia, tornando mais complexa a ordenação das informações do texto verbal e
da produção de conhecimento na interação entre o pesquisador e a imagem. Nesse contexto, a
leitura de imagens se configura na construção de um olhar compartilhado, resultado da interação
e do confronto entre universos culturais e temporalidades distintas entre aquele que produziu
as imagens e aquele que agora as lê. A leitura de imagens oferece alternativas nos modos de
ver, de elaborar e de construir o conhecimento.
Se levarmos em conta que as representações visuais são construções culturais e sociais,
o conjunto de códigos e significações fundamentados na experiência visual construído pelas
sociedades nos permite pensar a imagem como um objeto fértil para a reflexão histórica e
antropológica. As imagens criadas pelos grupos sociais representam os modos de pensar dos
sujeitos que compõem esses grupos e revelam dados sobre sua organização social. Portanto,
para a história cultural, a imagem acrescenta novas dimensões às interpretações do universo
simbólico criado pelos grupos sociais. Ao lermos a crônica de Florian Paucke observamos que
a representação de suas relações sociais e de suas práticas são registros de alteridade do
imaginário suscitado na situação de contato entre Paucke e os mocoví.
Segundo Porto Alegre (1994, p. 66), os primeiros mapas produzidos no século XVI
traziam representações de seres humanos, símbolos e alguns elementos da cultura material dos
povos americanos. As xilogravuras contidas nos livros de André Thévet (1556), Hans Staden
(1557) e Jean de Léry (1558) estão entre as primeiras representações imagéticas dos homens e
mulheres que habitavam o continente americano. Em 1593, o gravador Theodore de Bry editou
um livro de viagem contendo várias gravuras fantasiosas dos ameríndios. Foi através desse
conjunto de gravuras que o imaginário europeu foi projetado sobre os povos da América:
canibalismo, promiscuidade, ritos sanguinários, idolatria, tudo era transposto para o Novo
Mundo.
No século XVII, Frans Post, Albert van der Eckhout e Zacharias Wagener que
acompanharam Maurício de Nassau (1637-1644), criaram representações mais naturalistas dos
indígenas, da flora, fauna e do espaço geográfico em que habitavam. Albert Eckhout morou no
Brasil e pintou grandes telas de casais indígenas. Esse fato originou um mito de que suas obras
representavam uma imagem fidedigna dos índios. Acreditava-se que ele havia criado essas
imagens in loco, legitimando essas imagens como registros documentais e fiéis do natural. Isso
87
raramente acontecia, pois a maioria dos pintores nunca tinha visto um índio. Entretanto, havia
aqueles que estiveram na América, mas só criavam suas imagens após o regresso à Europa,
como aconteceu com as ilustrações das primeiras edições das obras de Staden, Thevet e Léry.
Embora a construção dessas imagens dos índios seguisse as convenções estéticas do século
XVII, tais imagens serviram como modelo para uma nova visualidade até o surgimento dos
pintores viajantes no final do século XVIII.
Os pintores viajantes objetivavam criar imagens documentais e históricas dos
ameríndios, mas vários fatores interferiram no valor documental dessas obras, pois vários
desses desenhos não foram feitos através da observação direta. Muitos foram feitos a partir de
descrições de terceiros, ou mesmo da imaginação do autor. Essas imagens também sofreram
deformações provocadas pelos processos de reprodução ou foram adulteradas para causar
impacto nos leitores europeus, agravando assim o debate sobre a humanidade dos indígenas e
sua ascendência satânica. Mas apesar destas questões, foi no século XVIII que a imagem visual
começou a afirmar o seu potencial intelectivo.
Segundo Meneses (2012, p. 251), o Século das Luzes manifesta um interesse
documental pela imagem, principalmente na França, com a Encyclopédie, de Diderot e
D’Alambert (1759-1795), que utilizou a imagem para esclarecer e validar informações contidas
em verbetes, como técnicas e ferramentas de trabalho. As imagens relativas à Revolução
Francesa também foram coletadas e arquivadas servindo, mais tarde, de fontes para os
historiadores.
No século XIX, os novos viajantes eram artistas, escritores e homens de ciência que
lançaram um novo olhar sobre os ameríndios. Observavam e detalhavam o meio natural,
procurando decifrar os signos exteriores, as relações sociais e as mentalidades. Representavam
os corpos com exatidão anatômica, definindo alteridades.
Segundo Porto Alegre:
[...] o pintor-etnógrafo do século XIX é um observador que classifica indivíduos a
partir da morfologia do crânio, desenha corpos, sistematiza traços, investiga e constrói
a representação da identidade através do corpo humano, buscando na superfície o sentido da interioridade invisível (PORTO ALEGRE, 1994, p. 67).
A imagem transporta um valor de documento, quase forçado, mas variável. As imagens
representativas buscam imitar as características da visão natural, mas são sempre construções
visuais que se utilizam de processos geométricos e analógicos. Portanto, nenhuma imagem,
assim como o texto verbal, é uma representação verdadeiramente fiel da realidade, ela fornece
88
um traço fiável da realidade, mas são indícios da realidade. As imagens dos indígenas
produzidas pelos pintores etnógrafos do século XIX serviram para construir plasticamente, a
partir do estudo da face e da anatomia dos selvagens americanos, o conceito do homem
degenerado justificando, assim, a discriminação e o controle desses povos pelas classes
dominantes.
Com o aprimoramento das técnicas fotográficas, no final do século XIX, a imagem
assume um novo papel.
Meneses assinala:
Mas somente no século XIX que a imagem assume com intensidade sua capacidade documental, em especial com a rápida divulgação da fotografia, abundantemente
empregada em geografia, antropologia, etnografia, arqueologia, ciências biológicas,
astronomia, história da arte, arquitetura e urbanismo, e assim por diante (MENESES,
2012, p. 251).
Essas imagens darão origem aos arquivos fotográficos que assumem o compromisso de
serem evidências históricas. No século XX, com o grupo dos Annales, a imagem visual foi vista
como fontes históricas e os termos iconografia e iconologia foram relançados. O termo
“iconologia” foi lançado pela primeira vez no livro intitulado Iconologia de Cesare Ripa em
1593, já o termo iconografia só entrou em uso no século XIX. Na década de 1930, iconografistas
de Hamburgo compartilharam o interesse pelas formas simbólicas, dentre eles, Erwin Panofsky,
que publicou em 1939 seu famoso ensaio Studies in Iconology, onde distingue três níveis de
interpretação da imagem: a descrição pré-iconográfica, a análise iconográfica e a interpretação
iconológica (BURKE, 2017, p. 56-57).
Embora o grupo dos Annales tenha concebido a imagem como uma fonte histórica, um
documento visual, segundo Meneses (2012, p. 252), o que se observa ainda hoje é o uso da
imagem como ilustração de textos, como se a visualidade não produzisse conteúdo. A imagem
é tratada como mera perfumaria, enfeite, como que desprovida do conteúdo simbólico que
carrega e que representa das sociedades humanas.
Portanto, as representações imagéticas sobre os ameríndios foram construídas através
de uma longa tradição. Presentes na cartografia e nos primeiros relatos da colonização, essas
representações transformaram-se em clichês que se espalharam por toda a Europa, deixando
raízes de longa duração em nossa memória social, que tanto remetem à busca de um passado
original, como a questões atuais sobre o lugar da identidade étnica nas culturas latino-
americanas.
89
4.2 Visões do passado: do visual ao imaginário
No século XVIII, a Idade das Luzes, os filósofos pregavam o evangelho da razão e da
lógica. Os cânones estéticos europeus da época estabeleciam a construção naturalista das
formas. A representação da natureza seguia a maneira clássica e idealista. Os artistas desse
período possuíam uma formação específica nas academias de artes, a fim de poderem desenhar
com “exatidão” as formas naturais.
A arquitetura e a arte da América Ibérica refletiam as tradições predominantes nas
metrópoles peninsulares. No entanto, a observação direta, a análise racional e experimental da
natureza e do espaço cultural e geográfico difundida pelo Iluminismo europeu deu início ao
processo de secularização na arte. Esse processo propagou-se e se fez sentir na produção
artística das missões do Novo Mundo. Se por um lado, a arte continuava servindo à Igreja no
processo de evangelização indígena, por outro, a secularização foi representada pela arquitetura
e pela configuração do espaço urbano (ADES, 1997, p. 86)
As nações europeias no século XVIII, em busca de informações confiáveis para a
exploração das riquezas americanas, passaram a enviar expedições que combinavam a
exploração geográfica com os trabalhos de artistas que objetivavam registrar as formas
desconhecidas da vida vegetal, animal e humana. A arte e a ciência se tornaram interesse da
aristocracia europeia a fim de facilitar o entendimento e a percepção daquele mundo novo.
No entanto, o imaginário construído pelos europeus sobre os ameríndios converteu a
expressão subjetiva em comunicação objetiva, criando as formas que povoam as imagens
pictóricas dos indígenas entre os séculos XVI e XVIII. Para Aumont (2011, p. 49) “no sentido
corrente da palavra, o imaginário é o terreno da imaginação, entendida como faculdade criativa,
produtora de imagens interiores eventualmente exteriorizáveis”. A pintura, a cartografia, as
crônicas de viagens reproduziram em detalhes os combates ferozes entre os europeus e os
nativos das Américas. O índio foi concebido como selvagem de semblante demoníaco em
rituais canibalescos ou em disputas animalescas (RAMINELLI, 1996, p. 56).
Os jesuítas, além da educação religiosa, estudavam latim, teologia, gramática e retórica,
e deveriam ter o domínio de simples atividades manuais como, por exemplo, a carpintaria. A
formação nas chamadas artes plásticas não fazia parte do currículo dos jesuítas. Mas dentro do
espírito iluminista, alguns missionários jesuítas como Sánchez Labrador, Ignacio Tirsch e
Florian Paucke buscaram objetivamente representar, através do desenho, a vida animal, vegetal
e humana dos habitantes da América. Nas ilustrações deixadas por esses missionários se
90
observa a carência de uma formação própria para o desenho realista. São representações de um
realismo sublimado onde os seres são representados por analogia e não por duplicação.
Nas aquarelas de Paucke, essas analogias são construídas ordenando elementos do
espaço onde se dá o contato intercultural e as relações de domínio entre jesuítas e indígenas.
Na construção de suas aquarelas o jesuíta utilizou sua memória sensorial. Os modos de
representação que ele utilizou derivaram de uma estrutura sensorial organizada pela sociedade
da qual ele fazia parte, pois a memória é ativada por atos e por uma prática material que é
culturalmente mediada. As imagens criadas por ele se inserem numa tradição iconográfica que
persiste ao longo do tempo. Por conseguinte, sua memória visível opera na esfera de uma prática
cultural estabelecida.
Florian Paucke produziu suas aquarelas com o intuito de ilustrar sua crônica. Entretanto,
a visualidade de suas imagens também produziu conteúdos além daqueles que sua produção
textual postulou. Com efeito, o texto verbal e o texto visual pertencem a sistemas de
representação diferentes, logo, comunicam informações e significados diversos. Há um conflito
entre palavras e imagens, e esse confronto se dá entre razão e emoção, racionalidade e
sensorialidade, pensamento lógico e pensamento mítico. Esse conflito está na base da sociedade
europeia e derivou do movimento medieval iconoclasta. Com a ideia do Deus único o panteão
antigo dos deuses e suas imagens foram rejeitadas. O suporte que representará esse Deus será
a palavra sagrada, o livro sagrado, em que todas as verdades são reveladas, com um repertório
definitivo e imutável. A sensorialidade, ou seja, a percepção, foi relegada a um nível inferior
em comparação com as funções reflexivas da razão. A valorização da racionalidade residiu no
pensamento de que o que distingue os seres humanos de outros animais são suas faculdades
cognitivas, o que sugere a depreciação das capacidades que os humanos compartilham com os
animais, ou seja, a percepção dos sentidos (MENESES, 2012, p. 252-253).
Outra peculiaridade que podemos citar entre o texto verbal e o visual de Paucke é que
suas imagens foram construídas no espaço onde os seres, objetos, os eventos e suas relações
são revelados de imediato em sua totalidade; já o seu texto verbal se construiu dentro de um
tempo, em pequenas partes sequenciais, em que as relações temporais são exploradas com
maior eficácia. Logo, o seu texto verbal e o visual descortinaram aspectos diversos de sua
narrativa.
Os desenhos de Paucke constituem um acervo de aquarelas, como já citamos, que podem
ser agrupadas em séries: são representações da fauna, da flora, da vista da San Javier, dos
desfiles oficiais, do vestuário dos espanhóis, das roupas e adereços dos mocoví, das borracheras
dos indígenas, dos afazeres diários na redução, das caçadas, da pesca a cavalo, do lazer, das
91
tatuagens, dos adornos de corpo dos mocoví etc. Os indígenas foram representados ora como
uma alegoria da domesticação e, por isso, humanizados, ora como uma alegoria da selvageria
e da barbárie. Ao selvagem, esse semelhante distante, muitas vezes opaco e exótico, se atribuiu
valores opostos, e é essa ambivalência que torna a obra de Paucke tão instigante até hoje.
4.2.1 O imaginário europeu do Ameríndio
A partir da descoberta do Novo Mundo, uma nova humanidade surgiu no horizonte
mental europeu. A descoberta do ameríndio fez surgir um novo selvagem, com a transposição
para a América do selvagem já existente no pensamento medieval europeu: o antigo irlandês.
Mas como explicar essa nova humanidade?
Segundo Woortmann (2004, p. 58-59), no século XVI, embora a história da humanidade
estivesse fundamentada na Queda e no Dilúvio bíblico, as Sagradas Escrituram passaram a ser
objeto de discussão, pois os fatos naturais contradiziam os fatos revelados no Gênesis. Nos anos
de 1500 ressurgiu a ideia de que o final dos tempos estava próximo e o encontro dessa nova
humanidade foi visto como um sinal de que o fim do mundo estava perto. Portanto, para
entender a existência dos indígenas americanos em face ao dilúvio, se fez necessário retornar
ao pensamento medieval.
Para Santo Agostinho, a Arca de Noé era um símbolo da Igreja. A arca havia recebido
animais irracionais que perpetuaram essa irracionalidade, mas a Igreja recebeu homens que,
embora brutos e irracionais, foram transformados por ela.
Woortmann assinala que:
No interior da arca, tal como no interior da Igreja, eram proibidas as relações sexuais.
O corvo, o cão e Cam, filho maldito de Noé, foram punidos por terem infringido o
interdito. Os filhos de Cam teriam se tornado negros, e os negros africanos foram
percebidos como amaldiçoados. Filhos de Cam seriam também os ameríndios, num
dos registros de sua apreensão (WOORTMANN, 2004, p. 60).
Os ameríndios, assim como os negros, seriam os descendentes de Cam, portanto,
possuíam uma linhagem maldita. O encontro com os ameríndios suscitou novas interpretações
bíblicas e a história da humanidade foi revista. Com o aumento da escatologia e da demonologia
no pensamento europeu, a associação entre maldição e monstruosidade se mostrou mais intensa.
Os monstros foram identificados no continente americano. O exotismo tradicional foi uma das
tentativas de domesticar e explicar esse novo ser humano: o ameríndio. O imaginário medieval
sobre os habitantes que viviam do outro lado da Terra, um mundo diametralmente oposto à
92
Europa, veio a ser lançado sobre os povos americanos. Devido a esse imaginário, ficou difícil
buscar uma objetividade nos relatos renascentistas, mesmo por parte de autores que defendiam
o indígena, como Bartolomeu de Las Casas.
A fim de caracterizar os indígenas da América, as noções de selvageria e da inexistência
de humanidade e civilização, tais como os gregos descreveram os Citas23, os romanos que
especificaram os germânicos e os medievais que descreveram os distantes irlandeses,
reapareceram nas concepções da Renascença. Demonologia e monstruosidade, tudo foi
transportado para o Novo Mundo. Daí a profusão de relatos sobre ilhas habitadas por monstros
acéfalos, tribos de mulheres guerreiras, como as Amazonas, seres com semblantes caninos, que
obviamente nunca existiram, mas que estavam presentes nos relatos da Antiguidade e da Idade
Média e que retornaria a existir nas representações dos ameríndios. Mas, apesar do debate sobre
a humanidade dos indígenas, se eles possuíam ou não uma alma que pudesse ser salva do
domínio de satã pela conversão ao cristianismo, um novo pensamento renascentista surgiu. O
pensamento humanista da Renascença formaria uma nova visão sobre o indivíduo, a
humanidade, a religião, a cultura, a civilização, e sobre a barbárie e a selvageria. Essas questões
foram analisadas na época, estabelecendo um diálogo com as fontes clássicas e os relatos sobre
os povos americanos, postulando uma nova moral e uma crítica à sociedade europeia, como na
obra de Montaigne sobre os Tupinambá do Brasil (WOORTMANN, 2004, p. 98-100).
Os conceitos civilizado, bárbaro e selvagem foram construídos a partir de características
do comportamento, usos, costumes e atributos físicos dos povos ditos civilizados em relação
aos ditos não civilizados. O selvagem foi relacionado ao deserto, à selva, lugar maligno e
maldito, onde moram as bestas e as feras. O civilizado é o morador da Civita. O selvagem se
opõe ao civilizado: enquanto este prospera e é agricultor sedentário, o selvagem destrói pois, é
caçador, não planta, posto que é errante. O selvagem tem feições grosseiras, é feio e violento e
feiura e violência são provas da maldição. Ele é feio porque sua herança é maldita, veio daquele
que se rebelou contra Deus, ele representa a corrupção da espécie em contraposição às espécies
perfeitas e puras da ordem, o selvagem representa a desordem. Um exemplo é o gigantismo,
pois a existência de gigantes poderia ter sido o motivo que teria levado Deus a provocar o
Dilúvio. Os selvagens possuem uma linguagem indecifrável, confusa, gutural como a de certos
animais. Uma linguagem que podia expressar sentimentos, mas não ideias. O selvagem andava
nu ou vestia peles de animais e comia alimentos crus. O homem civilizado usava roupas
23 Citas - Designação genérica dos povos nómades do norte da Europa e da Ásia (LAROUSE, Dicionário da língua
Portuguesa, 1992, p. 227).
93
confeccionadas com tecidos coloridos, sua comida era cozida, e expressava suas ideias através
de uma linguagem compreensível.
Para o pensamento medieval, o universo físico era ordenado por princípios morais numa
concepção teológica. O mundo era dividido entre civilizados e selvagens, cristãos e pagãos.
Civilizados e cristãos possuíam história e estavam dentro dela. Os selvagens e pagãos estavam
fora da história. O cristianismo, em face aos que caíram ao estado selvagem, apresentava uma
oportunidade de redenção através dos Sacramentos. Essa atitude caridosa era, no entanto,
etnocêntrica e teocêntrica. Ou seja, aqueles que surgiram a partir da Queda dos anjos podiam
ser perdoados, desde que aceitassem a autoridade da Igreja e o domínio europeu. Portanto, os
selvagens e pagãos só eram importantes como candidatos à cristianização, pois mesmo com a
degeneração física e moral a alma permanecia em sua graça e poderia ser reconduzida à luz
divina. Redimidos pela graça divina, mesmo monstruosos, seriam inscritos na história. As raças
monstruosas: homens com os pés voltados para trás, pigmeus, os que possuíam os olhos e boca
no tórax, ou os que tinham orelhas tão grandes que se cobriam com elas, todos possuíam uma
humanidade essencial, portanto, poderiam ser redimidos pela conversão ao cristianismo. A
força desse imaginário das raças monstruosas permaneceu por séculos. Na segunda metade do
século XVIII Florian Paucke informou a seus leitores que nunca viu esses seres:
Mas de aquellos que (como se quiere creer en nuestros países) se sirvieran de una
oreja para sábana pero de la otra para frazada durante el sueño o que tuvieran el ojo
sobre el pecho, [que tuvieren] las rodillas atrás y no delante [que] también pudieran correr ligeros como los avestruces, no he oído durante toda mi estada hasta cerca de
veintiún años24 en Las Indias americanas [y] menos los he visto (PAUCKE, [1774],
2010, p. 257 - 258).
Possivelmente, Paucke supunha que seus leitores queriam saber a sua posição a esse
respeito. Ou seja, tanto para ele, como para seus leitores, esse era um tema pertinente.
Segundo Woortmann, as raças monstruosas foram imaginadas pelos antigos gregos que
descreveram os akephaloi, que viviam em lugares distantes como a Índia ou na Etiópia. Mas na
medida que essas regiões se tornaram mais familiares e os monstros não foram encontrados
nelas, os europeus dos séculos XV e XVI, recolocaram no Novo Mundo as raças monstruosas:
Homens sem cabeça, com a boca e os olhos no peito ou no estômago, os gastrocéfalos
eram tão populares quanto os centauros, cinocéfalos homine caudatis ou monoculi.
Com os gigantes, eles reaparecem na América. Em 1500, o homem sem cabeça é
retratado no mapa múndi de Juan de la Cosa. É o primeiro mapa onde aparece o
continente americano, construído segundo o conhecimento geográfico da época. Onde
24 Paucke conta os anos desde sua saída e a volta à Europa.
94
deveriam estar as ilhas encontradas por Colombo, estava o reino de Gog e Magog25,
este último descrito como sem cabeça, canibal e nu, num significativo retrato do
homem selvagem medieval (WOORTMANN, 2004, p. 77).
Vários mapas do século XVI localizaram as raças monstruosas na América, entre eles
citamos o mapa Piri Reis, de 1513. Em 1615, num mapa do Brasil, surgiu Magog transfigurado
em um índio. Numa gravura de Neive Welt und Amerikanische Historien, de 1615, Magog
tornou-se um habitante da Amazônia, sem cabeça, que vivia na terra de Iwaipanoma. Os
monstros sobreviveram por séculos. Em 1724, Lafitau, um jesuíta francês, etnólogo e
naturalista, afirmava que na América do Sul existiam homens sem cabeça (WOORTMANN,
2004, p. 77).
Portanto, não podemos estranhar a percepção distorcida e estereotipada de Paucke dos
ameríndios no século XVIII, visto que está alicerçada em uma longa tradição icnográfica. A
ideia das raças monstruosas foi aceita e divulgada por vários séculos. Podemos ver as imagens
atuais de alienígenas, como um desdobramento do estereótipo das raças monstruosas. Desse
modo, continuamos a conceber o outro culturalmente distante de nós em termos estereotipados.
O indígena americano, embora visto como ser selvagem, originário de algum lugar entre
a humanidade propriamente dita, cristã e civilizada e os monstros ou bestas, ao longo dos
séculos, passou a ser classificado como primitivo, uma evidência dos primeiros humanos,
pertencentes a uma ancestralidade ampliada, não só aquela citada no Velho Testamento.
Os selvagens incapazes de pensar e falar, que praticavam o canibalismo, que
executavam ritos sanguinários, viviam em promiscuidade sexual e que eram idólatras, eram, no
entanto, passíveis de salvação. Paucke definiu em vários momentos da sua narrativa a natureza
selvática do indígena:
[...] Porque aun sin esto el indio en sus hábitos asemeja a un animal indómito, en su
índole se muestra sanguinario, vengativo, iracundo y belicoso. [...] yo no debo
nombrarlos gentes sino animales salvajes, indómitos e iracundos, hasta mulares y
burros que no tienen entendimiento alguno. [...] (Se encuentran entre ellos unas
lenguas tan confusas e incomprensibles que el misionero sin la real ayuda de Dios
pudiera aprenderlas casi imposiblemente. Apenas si se entiende una sílaba o una letra
de ellas cuando conversan y uno cree que sólo fuere un graznido de gansos o de otros
animales (PAUCKE, [1774], 2010, p. 85 - 307).
25 Magog era um neto de Noé (Gênesis 10:2) p 22. Os descendentes de Magog se estabeleceram no extremo norte
de Israel, provavelmente na Europa e no norte da Ásia (Ezequiel 38:15). Magog eventualmente se tornou o nome
da terra onde os seus descendentes se estabeleceram. O povo de Magog é descrito como guerreiros habilidosos
(Ezequiel 38:15; 39:3-9). Gog é o nome de um futuro líder em Magog que irá liderar um exército para atacar Israel.
O Senhor prediz a condenação de Gog: "Filho do homem, volve o rosto contra Gog, da terra de Magog… profetiza contra ele" (Ezequiel 38:2) (BÍBLIA SAGRADA, 1999, p. 1129-1130).
95
Encontramos várias contradições no relato de Paucke sobre a aparência física dos
ameríndios. Ele afirmou que, quando pintados e ornados para guerra, eram horrorosos e se
pareciam com o diabo (Paucke, [1774], 2010, p. 267). Mas no capítulo “La forma y color de
los indios”, Paucke descreveu os mocoví, os comparando com os tipos europeus: “bem
formados”, brancos ao nascer, com feições e corpos harmoniosos. Narrou as várias
características físicas dos povos chaquenho: a cor dos olhos, o formato do rosto e dos cabelos,
a cor da pele e o feitio dos corpos. Outra ambivalência que assinalamos é entre como ele
apresentou os corpos indígenas em sua narrativa e como ele os representou nas duas de suas
aquarelas em que ele ilustrou as celebrações mocoví. Nas assembleias, seus rostos são
grotescos, os corpos são apresentados distorcidos, os gestos são extravagantes, não são
monstros, são seres bestiais. O que se destacam são os glúteos. As diversidades físicas e étnicas
desapareceram. Todos possuem o mesmo traçado para representar seus corpos, todos têm a
mesma cor de pele e o mesmo tipo de cabelo, não usam nenhum adereço, não estão raspados e
tatuados. Não se pode identificar nem sexo ou idade dos participantes. Mas sua aparência física
bestial e sua índole selvagem foram atenuadas pela cristianização, quando são representados
nas aquarelas que retratam as festas ocorridas na redução. No contexto da cristandade são mais
homens em seu estado natural do que bestas.
Portanto, para Paucke, o selvagem era um pagão, não porque recusava a palavra de
Cristo, mas porque a desconhecia. Era mais um humano bestial do que um monstro ou um
demônio, tendo sido cristianizado pelo pensamento teológico europeu. De acordo com
(WOORTMANN, 2004, p. 68-106), os sinais demoníacos foram transladados para a América.
Tal como a mulher selvagem foi transformada em bruxa, os xamãs e pajés eram vistos como
agentes de satã. Paucke reafirmou esse pensamento ao se referir as mulheres idosas como
bruxas e aos pajés como feiticeiros que influenciavam negativamente os índios, dificultando
seu trabalho evangelizador.
Para Burke (2017, p. 184-186), no encontro de grupos culturalmente diferentes ocorrem
duas reações opostas: Uma seria a negação das diferenças e assimilação do outro a nós mesmos
através de analogias. Por meio da analogia esse outro exótico se torna decifrado e domesticado.
A segunda atitude é construir consciente ou inconscientemente a cultura do outro como oposta
a nossa própria cultura. Criam-se imagens mentais do outro que são antíteses das nossas. Mas
para reconstruir essas imagens mentais é necessário criar imagens visuais. Enquanto o texto
escrito pode esconder as diferenças sob uma descrição impessoal, a imagem visual da forma
que é concebida adota uma posição clara na qual representa o outro e sua cultura como
96
semelhante ou diferente daquele que criou a imagem. Nesse contexto, é provável que a imagem
que cada cultura criou da outra seja estereotipada.
Burke assinala que “a palavra ‘estereótipo’ (originalmente uma placa da qual uma
imagem podia ser impressa), como a palavra clichê (originalmente o termo francês para a
mesma placa), é um sinal claro da ligação entre imagens visuais e mentais” (BURKE, 2017, p.
185).
O estereótipo amiúde exagera nos traços ou esconde outros, que às vezes não são
totalmente falsos, mas podem ser violentos e rústicos. Entretanto, o mesmo modelo pode ser
usado em situações diversas culturalmente uma das outras, como no caso de algumas gravuras
europeias combinarem aspectos de índios de várias etnias para criar uma única imagem geral.
Segundo Jung (1964, p. 20), o ser humano utiliza, além das palavras, sinais e imagens
para expressar o que deseja transmitir. A imagem torna-se símbolo26 quando expressa algo além
do seu significado imediato. O imaginário, como terreno da imaginação, cria imagens
representativas e simbólicas que nos permite visualizar o mundo imaginário. A imagem, como
objeto material que contém traços de similaridade com o real, mantém uma relação ambígua
com o imaginário. A imagem representativa, embora sendo objetiva, ocupa o lugar do
imaginário, da imaginação. Mas a noção de imaginário remete à relação do sujeito com as suas
identificações formadoras. A imagem provoca redes identificadoras que suscitam a
identificação do observador consigo mesmo. Paucke, ao representar as festas ocorridas na
redução e as celebrações dos mocoví, reproduziu através dos elementos plásticos o imaginário
que foi construído dos ameríndios. Portanto, os conceitos de selvagem e civilizado são
expressos através de suas imagens, os quais podemos identificar através do uso e da distribuição
dos elementos visuais em suas composições. Ao analisar tais imagens, não podemos esquecer
o conceito “olhar” numa perspectiva lacaniana em que se considera as intenções daquele que
produziu as imagens, ou sobre as diferentes maneiras que os grupos olhavam para essas imagens
(BURKE, 2017, p. 186).
Portanto, podemos aqui pensar sobre o olhar dos membros da Ordem Jesuíta, o olhar
colonial, o olhar de cunho científico ou etnográfico. Não existe um olhar inocente ou neutro. O
olhar do espectador pode expressar atitudes que podem não ser conscientes para ele, como os
medos, ódios, repulsas ou desejos que são projetados sobre o outro: esse ser desconhecido.
26 O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida
diária, embora possua conotações especiais além do significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós (JUNG, O homem e seus símbolos,1964, p. 20).
97
4.3 Iconografia: lendo imagens
O termo iconografia, em sua raiz etimológica: eikon, imagem; grafia, descrição, é o
estudo descritivo das imagens que busca classificações, comparações, tradições, meios de
circulação, a identificação dos elementos visuais e dos significados interno através dos
significados externo das imagens. O termo iconologia (eikon, imagem; logia, estudo), surgiu
antes que o termo iconografia. A iconologia se dedica a analisar a iconografia de um modo
interpretativo no contexto histórico e social e não apenas estético.
Portanto, “e assim como a exata identificação dos motivos, é o requisito básico de uma
correta análise iconográfica, também a exata análise das imagens, estórias e alegorias é requisito
essencial para uma correta interpretação iconológica (PANOFSKY, 1976, p. 54).
Tanto a iconografia quanto a iconologia tratam a imagem como um suporte sígnico e
tentam identificar peculiaridades intrínsecas que se mantêm estáveis nas imagens. Ampliando,
assim, a compreensão do uso da expressão visual no contexto cultural das sociedades.
Para os iconografistas, as imagens não foram criadas para serem apenas vistas, mas para
serem lidas. Mas antes de ler as imagens e de usá-las como evidência histórica, é importante
compreender seu sentido: elas foram feitas para comunicar.
A leitura de imagens, hoje uma ideia muito comum, remonta a um longo tempo. Na
Idade Média, a arte tinha uma função pedagógica, as imagens nas paredes das catedrais serviam
não apenas para embelezar o espaço sagrado, elas ilustravam as histórias bíblicas, sendo
utilizadas como ferramenta para a educação religiosa da população. Poucas pessoas sabiam ler,
mas a Igreja estava interessada em evangelizar o maior número de pessoas. O papa Gregório
Magno explicou que “as pinturas podem fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que
sabem ler”; ou seja, as pessoas simples poderiam receber, através das imagens, as mensagens
divinas (WOODFORD, 1983, p. 8).
O método criado por Panofsky (1976, p. 50-52) de interpretação de imagens, a partir da
decomposição de suas partes, se insere no que ele chamou de “ato de interpretação”. Ele
distinguiu três níveis de significações para o processo de interpretação das imagens.
O primeiro nível ou descrição pré-iconográfica é a análise descritiva da temática e dos
elementos da composição. É voltada para o significado natural consistindo na identificação de
objetos e eventos. O segundo nível é o da análise dos conceitos, convenções, cânones, motivos
e temas. É orientada para o reconhecimento do significado convencional das imagens ou dos
eventos. O último nível é o da interpretação iconológica e se volta para o significado intrínseco,
oculto, que revela formas simbólicas, que representa uma realidade reconstruída, crenças
98
religiosas ou filosóficas, um pensamento, uma cosmovisão do inconsciente coletivo, de um
período ou de uma classe social. Para Panofsky, as imagens são parte de uma cultura e não
podem ser entendidas sem o conhecimento daquela cultura. Logo, para iniciarmos uma análise
das aquarelas produzidas pelo jesuíta Florian Paucke se fez necessário apresentar o contexto
cultural em ele viveu e as condições em que produziu sua obra. Portanto, o terceiro nível de
análise foi construído ao longo do nosso trabalho. Neste capítulo, além trazermos algumas
informações do contexto cultural em que Paucke produziu suas aquarelas das festividades de
San Javier e das assembleias mocoví, realizamos uma análise descritiva ou pré-iconográfica
dessas pinturas.
Ao longo do tempo, o termo iconologia foi empregado pelos historiadores da arte de
forma distinta. Foram inseridos na análise pré-iconográfica o reconhecimento dos elementos
formais das composições artísticas que carregam em si sentidos subjacentes estudados pela
comunicação visual.
Segundo Dondis (2003, p. 3) para se ter um conhecimento mais amplo das
características essenciais que compõem a expressão visual, se faz necessário examinar os
elementos visuais básicos, as estratégias e opções das técnicas visuais e suas implicações
psicológicas na composição.
Ao buscarmos o significado das aquarelas de Paucke abordamos também os níveis mais
simples na construção das formas como a cor, a linha, a textura, a proporção, a perspectiva e o
contexto dos meios que atuaram como cenário visual para as decisões relativas às
representações criadas pelo jesuíta. Como ele manipulou essas unidades básicas na construção
de suas aquarelas, revelam também, através da relação formal e compositiva, os significados
que ele pretendia consciente ou inconscientemente comunicar. Portanto, os elementos básicos
da composição pictórica podem ser aprendidos e compreendidos, melhorando assim a
compreensão das mensagens visuais criadas por Paucke.
Numa tentativa de compreender melhor as representações que Paucke construiu sobre
as festividades no espaço reducional e as celebrações indígenas, incluiremos na nossa descrição
pré-iconográfica uma análise formal de suas imagens, a fim de facilitar e direcionar o nosso
objetivo. Para tanto, utilizamos os critérios estabelecidos por Heinrich Wölfflin, que no início
do século XX criou alguns princípios que ajudaram a caracterizar as diferenças entre os estilos
artísticos. Esses critérios nos fornecem categorias objetivas que nos permitem articular nossas
observações de forma menos imprecisas e genéricas. Wölfflin criou conceitos que se
apresentam em pares, as categorias analíticas são comparativas e opostas como: linear e
99
pinturesco27, planar e recessional28, forma aberta e forma fechada, multiplicidade e unidade.
(WOODFORD, 1983, p. 90-91). Para análise formal das aquarelas de Paucke utilizaremos
alguns desses critérios, não de forma comparativa, pois não se trata aqui de comparar e analisar
dois estilos opostos de pintura. A utilização dessas categorias analíticas pode frequentemente
aguçar nossa visão e ajudar-nos a perceber as estruturas de suas obras.
A representação dos desfiles civis, celebrações e rituais que Paucke construiu compõe
um rico material vinculado à temática das festividades. Essa temática ele representou em uma
série de quatro de suas aquarelas. Nosso objetivo é analisá-las quanto a sua materialidade e seus
princípios formais, procurando desvendar os conceitos de civilidade e selvageria inseridos
nessas composições.
A técnica utilizada pelo jesuíta foi a aquarela29. A técnica de desenhar a cores diluída
em água foi utilizada por navegadores, topógrafos e naturalistas, que ilustravam seus diários de
viagem ou suas crônicas. Supomos que a preferência pela aquarela seria por ser
economicamente mais viável que a tinta a óleo, fácil de transportar e de secagem rápida. Por
secar rapidamente, a aquarela não permite correções, sendo portanto, uma técnica de expressão
mais livre. Na pintura a óleo o pintor pode corrigir imperfeições e reconsiderar sobre como irá
expressar aquilo que deseja. Nesse processo seus pudores estéticos e seu compromisso com
aqueles que irão ver seu trabalho se comportam como formas de censura. O pintor de aquarela,
devido à característica própria do material30, não tem tempo para esse repensar. Sua expressão
é mais solta, livre, instintiva e emocionalmente mais verdadeira.
27 Esse termo segundo Wölfflin significa tudo que é característico de um pintor e de sua técnica na aplicação
maciça de cores com uma textura superficial espessa e áspera, em contraste com a qualidade lineares que realçam
o delineamento e o contorno das formas (WOODFORD, A Arte de ver a Arte,1983, p. 90). 28 Relaciona-se à disposição das figuras dentro do quadro. Na construção recessional as figuras colocadas em
ângulo em relação ao plano do quadro vão se distanciando do plano frontal a parti de uma linha diagonal que se
desloca de uma ponta a outra do quadro (WOODFORD, A Arte de ver a Arte, 1983, p. 91). 29 Não há uma data precisa do surgimento da aquarela. Suas raízes estão ligadas ao grafismo oriental, a descoberta
dos pinceis de pelo de coelho usado na escrita chinesa, e a história do papel. Na China era executada sobre seda,
tábuas ou papel. Na antiga Persa foi utilizada na criação de iluminuras de seus incunábulos. No Egito antigo foi
usada para decorar as paredes dos monumentos, estelas, papiros e objetos de madeira. Muitos artistas do
Renascimento realizaram aquarelas como Rubens e Dürer. Também no século XIX Daumier e Rodin fizeram desenhos coloridos com aquarela. Os mestres impressionistas e pós-impressionistas do final do século XIX,
também usaram a aquarela como forma de expressão. No século XX, Matisse, Picasso, Kandinsky, Miró, Klee e
outros executaram trabalhos utilizando essa técnica. No Brasil, os artistas estrangeiros e viajantes como Rugendas
e Debret cultivaram essa técnica criando belas composições das nossas paisagens e da nossa vida cotidiana. Os
artistas nacionais como Porto Alegre, Meireles, Bernadelli e Visconti praticaram a aquarela esporadicamente. Na
atualidade muitos artistas e ilustradores utilizam a aquarela e ela é hoje, matéria obrigatória no ensino das artes
visuais (MOTTA, Iniciação à pintura, 1976, p. 95-97). 30 A tinta da aquarela consiste de um pigmento no qual é adicionado um aglutinante extraído da árvore acácia: a
goma arábica. É adicionado ao aglutinante água, glicerina ou mel de abelhas e um fungicida natural como o extrato
de alho. O suporte tradicionalmente utilizado na aquarela é o papel. É essencial a transparência na pintura com
aquarela, por isso só é admitido o emprego de três aplicações de cor sobre as figuras, a fim de não perder sua pureza e luminosidade (MOTTA, Iniciação à pintura,1976, p. 98-99).
100
4.3.1 A festa de San Javier
Vamos analisar duas aquarelas de Paucke sobre as festividades ocorridas na redução: a
festa de San Javier (Figura 19) e a Celebração na praça de San Javier (Figura 20). Em primeiro
lugar vamos fazer algumas considerações como Paucke aborda a representação do espaço na
figura 19.
Figura 19 – Florian Paucke. Vista de San Javier. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.
.
Ele representa o espaço através de uma perspectiva31 linear, as formas são distribuídas
a partir de uma linha de base que se desloca no plano conferindo a ilusão de profundidade. Não
lhe interessa a representação de um espaço tridimensional ou a ilusão de um espaço real. Os
planos são rebatidos e cobertos de detalhes que se espalham por toda a folha do papel. O recurso
de duplicação ou rebatimento dos planos foi utilizado amplamente nas estampas e mapas a fim
de resolver a questão representativa do espaço. Para mostrar San Javier, ele utilizou uma
31Método de representar a ilusão de profundidade espacial numa superfície plana. A perspectiva linear reproduz
os fenômenos óticos pelos quais os objetos parecem menores, e as linhas paralelas convergem, à medida que a
distância aumenta. A perspectiva aérea imita o efeito pelo qual os objetos distantes parecem mais claros e
esmaecidos (CUMMING, Para entender a Arte,1995, p. 101). Paucke utilizou uma linha de base, e a partir dela distribuiu as figuras no espaço bidimensional da folha de papel.
101
perspectiva topográfica: a redução é vista do alto, não há uma linha demarcatória do horizonte
e o espaço representado ocupa todo o papel.
É uma visão de amplitude que abarca essa pequena área do vasto território americano:
uma maneira eficiente de representar seu controle e domínio sobre a redução. O desfile que
acontece na redução se encontra no centro da composição e ocorre no mesmo sentido, é o
momento em que acontecem as homenagens ao rei da Espanha.
Segundo Penhos (2007, p. 183-185), no mundo hispânico as celebrações associadas à
monarquia espanhola eram ocasiões destacadas no calendário laico. Essas festividades duravam
vários dias com apresentação de desfiles, peças teatrais, banquetes e bailes. As festas serviam
para reforçar a autoridade real ausente, assim como o poder hierárquico que elas simbolizavam.
Outro meio utilizado para o poder monárquico se fazer presente, era através da exposição do
retrato do rei em espaços públicos e privados. Na América espanhola, devido a distância da
sede da monarquia, a invisibilidade real se tornava mais intensa. Desse modo, as comemorações
de feitos militares, nascimentos, batizados, matrimônios e o dia do padroeiro das cidades
tornaram-se um meio de confirmar os vínculos de lealdade entre os vassalos e seu rei.
Nas reduções as chamadas festas reais não eram tão grandiosas e luxuosas como as que
ocorriam nas cidades coloniais. Para os jesuítas era de grande importância o culto religioso e
mesmo em eventos sociais se cumpria um programa cerimonial religioso. O relato do jesuíta
Antônio Sepp ([1691], 1972, p. 7) nos informou sobre as danças, os trajes e adornos, e outros
elementos utilizados nessas ocasiões: “Aquí es particularmente necessário entusiasmar a los
infieles com tales cosas, transmitirles e inculcarles, junto con la pompa cristiana exterior, un
inclinación interior hacia la religión cristiana”.
Um dos marcadores de civilidade era a religião. Paucke não representou as festas reais,
mas sim as festas religiosas dedicadas ao patrono da redução San Francisco Javier. O
missionário dedicou o capítulo três da parte quatro de sua crônica: Del cristianismo de los indios
para descrever essa festa:
Al uso de las ciudades españolas yo comencé a introducir en mi pueblo la costumbre
de realizar anualmente una procesión a objeto y fin que los indios como vasallos
españoles presentaran al Rey de España una especie de homenaje. Hay la costumbre
en Las Indias y sus ciudades españolas que en el día del patrono de su ciudad que en
Santa Fe era el Santo Hieronymus (PAUCKE [1774], 2010, p. 414).
Essa festividade na redução foi uma iniciativa inovadora de Paucke ([1774], 2010, p.
417): “Tal costumbre no la hubo aun en ninguna de las nuevas reducciones que fueron
establecidas en este valle del Chaco”. Mas, para organizar essa festa, ele buscou referências
102
nas festas dos padroeiros que se realizavam na Espanha e nas cidades da América espanhola.
Porém, na redução essas celebrações assumiram um caráter singular. Ele representou o desfile
equestre (Figura 19) no plano médio32 do papel, acentuado a sua importância na cena. Esse
desfile era liderado por um cacique, a quem Paucke nomeou de Alferes Real:
[...] se realice una procesión por todos los habitantes y las personas del Magistrado
que aparecen todas a caballo en compañías con sus oficiales nombrados entre los cuales ha sido elegido uno de los más nobles que representa la persona real y se
denomina Alférez Real o Köeniglicher Faehndrich [y] que tiene también durante el
año una diferencia y excepción entre los otros (PAUCKE, [1774], 2010, p. 414).
Segundo Paucke ([1774], 2010, p. 414), nos desfiles participavam de quinze a dezesseis
companhias, formadas por vinte e cinco cavaleiros e um oficial que cavalgava sobre um cavalo
de cor diferente da dos outros. As companhias dos vassalos tinham cavalos da mesma cor, assim
como suas vestimentas. Havia a presença de mulheres e de crianças que acompanhavam o
desfile. Destacamos aqui a diferença quanto à representação dos corpos dos mocoví (Figura
20).
Figura 20 – Florian Paucke. Celebração na praça de San Javier. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.
32 Plano médio: é a área que fica entre o primeiro plano e o plano de fundo da composição (CUMMING, Para entender a Arte, 1995, p. 101).
103
Nas festividades ocorridas na redução, os homens apareciam vestidos à moda europeia,
enquanto que as mulheres eram exibidas seminuas, no meio da procissão, executando suas
canções e danças que faziam parte dos rituais guerreiros da vitória, como indicado pela presença
dos maracás em suas mãos, objetos sagrados utilizados na prática do xamanismo; além de
trazerem as cabeças dos inimigos33 nas mãos, cantando vitória em sua língua.
Não é de admirar a aparente indiferença com que Paucke se refere aos troféus macabros,
porque os jesuítas foram muito cautelosos em remover, pouco a pouco, os costumes tradicionais
dos indígenas. Essas festividades não eram uma mera reprodução das festas para padroeiro que
ocorriam nas cidades espanholas. Elas possuíam no contexto reducional um sentido maior: era
uma adaptação e uma ressignificação de alguns dos rituais indígenas em que havia a formação
de alianças entre os grupos indígenas e a consolidação das lideranças. Esse novo ritual trazia
elementos significativos dos antigos e tradicionais rituais indígenas. As tradicionais batalhas
indígenas eram representadas durante os festejos como batalhas ritualizadas a cavalo e a pé,
que os mocoví executavam para o assombro dos presentes e orgulho do jesuíta.
Paucke representou o cacique que foi corporificado como sendo o alferes real (Figura
19), rodeado por seus ajudantes, assistindo a apresentação dos cavaleiros das diferentes
companhias. Os cavaleiros estão dispostos em duas linhas diagonais paralelas. As linhas
diagonais normalmente são utilizadas para representar a profundidade do espaço em que as
figuras diminuem de tamanho à medida que se afastam do plano frontal do quadro. Mas Paucke
usou as linhas diagonais nessa composição para indicar uma direção, pois as figuras não
diminuem de tamanho, o objetivo é levar o observador a olhar diretamente para o alferes real.
Observamos ainda que os personagens levavam bandeiras reais para homenagear o cacique.
Esse recurso técnico que Paucke utilizou demonstra o quão importante e honroso era esse cargo
nos festejos. Portanto, o jesuíta soube adaptar o ritual indígena de fortalecimento das lideranças
em proveito dos seus objetivos missionais.
Durante as festividades, o comandante espanhol e sua comitiva, vindos de Santa Fé,
eram recebidos solenemente e se confessavam e comungavam antes dos indígenas. Havia a
entrega de vários presentes aos caciques. Se faziam vários brindes com vinho e Paucke,
preocupado que o vinho espanhol despertasse a “fúria índia”, o diluía com água, a fim de aliviar
as borracheras. Afinal, era necessário manter a ordem, pois todos estavam num espaço onde
33 Paucke não especifica quem eram esses inimigos, nem como essas cabeças eram conservadas. Não encontramos
em outras fontes essas informações. Na terceira parte de sua crônica, nos capítulos: Servicios de los indios en la
guerra e De los enseres y armas de los indios ele se refere as “contienda con indios salvajes y paganos”, não nomeando os inimigos dos mocoví.
104
predominava a civilidade cristã. O missionário representou em sua aquarela uma cena onde se
vê claramente a ordem, dentro de um evento onde há bebidas alcoólicas, no qual possivelmente,
poderia ocorrer conflitos e desordens (PAUCKE, [1774], 2010, p. 419-420).
O jesuíta representou todos os homens vestidos com roupas coloridas, adornos e chapéus
vistosos, à moda da Alemanha e da Espanha. As mulheres foram representadas com o dorso
desnudo e, segundo o missionário, emitiam “gritos jubilosos”. Como já citamos, a vestimenta
é própria do homem ilustrado, sendo um traço de distinção entre a selvageria e a civilidade. A
dialética entre o vestido e o desnudo está presente em várias imagens criadas por Paucke. Ele
representou a vestimenta como sinal de identidade étnica, diferenciação social e civilidade. Em
oito de suas aquarelas ele apresentou as vestimentas usadas no Gran Chaco, como os álbuns de
trajes e costumes que estavam em uso na Europa no final do século XVIII (PENHOS, 2007, p.
185). Paucke representou as figuras de homens e mulheres aos pares e inseriu legendas que nos
permite identificar os modelos e as cores que eram usadas pelos vários atores sociais: criolos,
galegos, alunos dos colégios, jesuítas, militares e os indígenas. Embora o vestuário esteja
associado ao modelo social europeu, a vestimenta reforçou o valor do ornamento para os
mocoví. Segundo Penhos:
Respecto del significado general del vestido em Paucke y como funciona em las imágenes podemos decir que éste distingue a los españoles de acuerdo com su origen
o lugar em la sociedade colonial, señalando a la vez em los indios el éxito de la
cristianización y su incorporación a la misma (PENHOS, 2007, p. 185).
A representação cuidadosa que Paucke fez (Figura 20) do vestuário indica o lugar de
destaque que o traje dos indígenas representava no âmbito dos festejos. Os mocoví utilizavam
suas tatuagens, adornos de penas, ossos e madeira para destacarem sua posição entre os grupos
de indivíduos. Esses sinais eram vistos como marcas de selvageria, que nesse contexto, foram
resignificados pelo uso de vestimentas e adornos coloridos, transferindo assim o código social
europeu para o universo cultural indígena.
Outra forma de expressão que o missionário aplicou foi a representação de texturas
(Figura 20). Ele empregou a textura ótica34 nas roupas, adornos e nos cavalos. A pintura da
aquarela35, devido à especificidade da diluição dos pigmentos, só permite operar esse tipo de
34 A textura é o elemento visual que com frequência serve de substituto para as qualidades de outro sentido: o tato.
Na verdade, porém, podemos apreciar e reconhecer a textura tanto através do tato quanto da visão, ou ainda
mediante uma combinação de ambos. É possível que uma textura não apresente qualidades táteis, mas apenas
óticas, como no caso das linhas de uma página impressa, dos padrões de um determinado tecido ou dos traços
superpostos que preenchem a imagem (DONDIS, Sintaxe da Linguagem Visual,2003, p. 70). 35 A pintura com aquarela, consiste em aplicar pigmento em forma líquida a uma superfície, a fim de colori-la, atribuindo-lhe matizes, tons e texturas.
105
textura. Ao texturar esses elementos, Paucke nos reafirma a importância que ele conferiu ao
vestuário dos mocoví.
As figuras representadas no desfile (Figura 20) se agregam ao espaço. A luminosidade36
é difusa, não há um foco de luz definido, pois no espaço da religião reina a luz como num todo:
a luz da verdade, a luz dos seres ilustrados e iluminados. Essa luminosidade difusa ajuda a isolar
as figuras, o que Wölffin chamou de multiplicidade das formas, ou seja, cada figura é composta
por partes distintas, cada uma plena, acabada per se, com sua cor própria e local determinado
(WOODFORD, 1983, p. 92).
Através do efeito da luminosidade podemos perceber os matizes37. Paucke coloriu de
forma uniformizada as imagens. Para dar ideia de volume, ele usou muito pouco os sombreados,
obscureceu algumas zonas, mas não apelou para um foco de luz definido. As variações de luz
ou de tons são meios pelos quais distinguimos a complexidade da informação visual do
ambiente. A luz acentua o colorido das formas, as cores são quentes, representando a
luminosidade e o calor dos trópicos, a vida, o trabalho e um mundo vivo, em movimento e
construção.
Para dar a noção de distância (Figura 19), ele dispôs os personagens em linhas
horizontais paralelas ao plano frontal do quadro, deslocando sequencialmente as formas,
levando o olhar do observador para o fundo da cena. Não se observa uma relação ilusionista
entre as figuras humanas e outros elementos como as construções ou árvores que possa
completar a aclimação da cena. Ele construiu a cena a partir da visão do rio Dulce, hoje San
Javier, no qual vemos a redução em uma de suas margens. A imagem introduz o observador
num mundo regido por uma ordem. Essa ordem é percebida pelo equilíbrio em que os seres são
representados no plano pictórico38. Paucke usou aqui uma composição equilibrada, calculada e
geométrica39. Esse tipo de composição e o uso de formas fechadas40 transmitem uma impressão
de estabilidade e equilíbrio e há uma tendência para disposição simétrica, embora ela não seja
36 A luminosidade é a propriedade de refletir a luz. Através desse efeito o ser humano configura, percebe e imagina
aquilo que reconhece e identifica no meio ambiente, isto é, todos os elementos visuais: linha, cor, forma, direção, textura, escala, dimensão e movimento (DONDIS, Sintaxe da Linguagem Visual,2003, p. 30) 37 Por matiz, me refiro aqui, à cor “pura”, sem adição dos tons de preto e branco. 38 Plano pictórico: A superfície plana na qual o quadro é pintado. O plano vertical é imaginado como uma janela
entre o observador (ou o pintor) e a cena representada no quadro (CUMMING, Para entender a Arte,1995, p. 101). 39 Esse tipo de composição foi utilizado como método científico no Renascimento que estipulava regras fixas para
disposição das imagens. O método consiste em dividir ao meio o plano pictórico através de uma linha vertical e
outra horizontal. Ambos os lados, direito e esquerdo, superior e inferior, devem conter o mesmo número de
imagens, com valores tonais e pesos visuais opostos mas que se equilibram (LETTS, O renascimento, 1981, p.
38). 40 Na forma fechada, todas as figuras estão equilibradas dentro da moldura do quadro. A composição baseia-se em
verticais e horizontais que repetem a forma da margem do papel e sua função delimitadora (WOODFORD, A Arte de ver a Arte, 1983, p. 91).
106
rígida, como se nota na aquarela Celebração na Praça de San Javier (Figura 20). Sabemos que
Paucke, assim como outros jesuítas, não possuía uma formação acadêmica em artes visuais,
mas pressupomos que ele tenha tido acesso à visualização de obras artísticas e gravuras
religiosas em que esse tipo composição era utilizada.
Dondis, em relação a questão do equilíbrio na composição pontua que:
A mais importante influência tanto psicológica como física sobre a percepção humana
é a necessidade que o homem tem de equilíbrio, de ter os pés firmemente plantados
no solo e saber que vai permanecer ereto em qualquer circunstância, em qualquer
atitude, com um certo grau de certeza (DONDIS, 2003, p. 32).
Portanto, a referência visual mais estável na percepção humana seria o senso intuitivo
de equilíbrio. Ao fazer avaliações visuais, o ser humano, consciente ou inconscientemente,
percebe de forma exata, rápida e automática o equilíbrio. O equilíbrio na composição, assim
como o uso de linhas retas, representa estabilidade. Ou seja, essa estabilidade é construída por
uma lógica matemática. O uso de linhas retas representa o domínio da razão sobre as emoções
naturais, representada pelo uso de linhas curvas e sinuosas41. Na vista da redução (Figura 19)
as linhas retas foram utilizadas para construir a igreja e suas dependências e na representação
do desfile. Mas esse mundo seguro, equilibrado e racional é colocado dentro de um círculo que
é marcado pelo rio e pela vegetação. A representação da curvatura do horizonte, nas respectivas
áreas, foi utilizada para unir o espaço representado com o mundo terrestre.
Para Penhos (2007, p. 187), o uso da forma circular que envolve a redução poderia estar
relacionado com o imaginário da natureza selvagem e indomada do Gran Chaco. O círculo, para
Aniela Jaffé (1964, p. 240), “expressa a totalidade da psique em todos os seus aspectos,
incluindo o relacionamento entre homem e a natureza”42. Paucke utilizou em muitos das suas
aquarelas a forma circular, principalmente naquelas onde ele representou os modos de vida
tradicionais dos mocoví. Nas aquarelas das celebrações indígenas (Figuras 21 e 22) ou da caça
de gafanhotos (Figura 14) podemos ver as mulheres sentadas em círculo para trabalhar e manter
41 Nas artes visuais, a linha tem, por sua própria natureza, uma enorme energia. Onde quer que seja utilizada, é o
instrumento fundamental da pré-visualização, o meio de apresentar, em forma palpável, aquilo que ainda não
existe, a não ser na imaginação. Sua natureza linear e fluida reforça a liberdade de experimentação. Contudo,
apesar de sua flexibilidade e liberdade, a linha não é vaga: é decisiva, tem propósito e direção, vai para algum
lugar, faz algo de definitivo. A linha, assim, pode ser rigorosa e técnica, servindo como elemento fundamental na
comunicação visual. A linha pode assumir formas muito diversas e expressar uma variedade de estados de espírito.
Pode ser imprecisa, delicada, ondulada, curva, reta, ou grosseira. A linha reflete a intenção do artista, seus
sentimentos e emoções mais pessoais. (DONDIS, Sintaxe da Linguagem visual, 2003, p. 55-56). 42 O círculo está presente na religião, na arte, na arquitetura, nos mitos, nos sonhos, na astrologia e na astronomia,
ele indica sempre o mais importante aspecto da vida: sua extrema e integral totalização (JAFFÉ, O Simbolismo nas artes plásticas. In: Jung, C.G.(Org.) O Homem e seus símbolos,1964, p. 240).
107
o fogo. As mulheres mocoví mostradas pelo jesuíta, seriam, nessa contextura, as guardiãs das
antigas tradições.
A festa de San Javier se mostra, no relato de Paucke, uma experiência sincrética: os
mocoví tocavam seus chocalhos (maracás) feitos de cabaças com grãos de milho, um
instrumento usado nas práticas xamânicas, o que contrastava com os instrumentos musicais
europeus que Paucke introduziu na redução.
De acordo com Gambini (1988, p. 162), os jesuítas treinavam os indígenas para
reproduzirem o gestual religioso que deveriam executar durante os ofícios sagrados, mas não
compreendiam que o maracá representava a própria voz do espírito, logo, um objeto sagrado.
Portanto, o toque dos chocalhos na festa de San Javier possuía um caráter ritualístico, embora
Paucke ([1774], 2010, p. 414) considerasse que eles serviam apenas para fazer ruídos:
“calabazas huecas en las cuales tenían granos de cucurus [maíz] y hacían un ruído”.
Outro aspecto do sincretismo da festa de San Javier está no fato das mulheres carregarem
as cabeças dos inimigos, mortos em batalhas, nas mãos ou em varas, cantado a vitória, como
Paucke relatou:
Al lado de la iglesia estaban parados a ambos lados todos los niños de la aldea; de
un lado los varones, del otro las niñitas, pero las mujeres esperaban la entrada en el
centro de la plaza, en parte con calabazas huecas; [...] en parte con las cabezas de
enemigos muertos en la mano o sobre varas, bailaban en derredor entre la entrada y
cantaban victoria en su lengua especialmente cuando llegaba el Alférez Real
(PAUCKE, [1774], 2010, p. 414-415).
São elementos de práticas antigas indígenas, aceitas numa festa religiosa cristã. Nessas
celebrações públicas, os indígenas eram considerados vassalos do rei. Usavam roupas europeias
e realizavam uma parada militar. O jesuíta permitiu que os mocoví reduzidos desenvolvessem
alguns dos seus rituais, mas de forma ordeira e planejada, talvez querendo mostrar aos
espanhóis como estavam civilizados.
Portanto, a festa ao patrono de San Javier se situa na confluência de uma celebração
simultaneamente religiosa, laica e indígena. Na densa presença de elementos simbólicos desse
universo reside a riqueza do registro verbal e iconográfico de Paucke.
108
4.3.2 As assembleias Mocoví
Paucke produziu duas aquarelas que ilustram as celebrações mocoví: A Borrachera –
Figura 21 e a Borrachera II – Figura 22. Em contrapartida, e de uma maneira analógica às
representações das festas em San Javier, essas aquarelas reproduzem os excessos e a selvageria.
Na terceira parte de sua crônica: De la manera de vivir, usos y costumbres de los indios
americanos en el paganismo, Paucke dedicou o décimo capítulo as “Sus ceremonias durante la
borrachera”. Ele nos informou sobre o estado em que ficavam os indígenas após embebedar-
se: “Las ceremonias que ellos usan al tiempo de beber en exceso a emborracharse consisten en
cosas inhumanas y muy deshonestas” (Paucke, [1774], 2010, p. 309).
Figura 21 – Florian Paucke. A Borrachera. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.
109
Figura 22 – Florian Paucke. A Borrachera II. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.
Em seu texto se referiu várias vezes ao quanto os indígenas em geral apreciavam as
bebidas fermentadas, esclarecendo seus esforços para erradicar seu consumo na redução. Uma
das suas táticas foi introduzir o té paracuario. Outra estratégia que ele utilizou foi designar
alguns meninos para informá-lo quando em uma choça seria preparado o napé ou chicha, a fim
de impedir sua fabricação. O jesuíta associou a embriaguez à violência, e os rituais à selvageria
e à imoderação:
Lo mismo que en la comida los indios son muy entregados a la inmoderación también al beber: cuando ellos [tienen] los materiales para susodichas bebidas y mientras
tienen una existencia de ellas, beben de continuo. Lo más se emborrachan tan
inhumanamente que la naturaleza expulsa de si por todas las vías lo superfluo y ellos
se asemejan más a una bestia que hombres (PAUCKE, [1774], 2010, p. 309).
As cerimônias de bebidas ocorriam na primavera, nas quais participavam outros grupos
indígenas, além dos mocoví. A elaboração do napé era feita por mulheres. Elas maceravam as
sementes de chañar e as da algarroba secas ao sol, misturavam com água e deixavam fermentar
sob o sol. As bebidas exalavam um forte odor e Paucke sabia de antemão em qual choça elas
estavam sendo preparadas. As bebidas feitas de sementes de milho eram preparadas pelas índias
110
velhas que mascavam suas sementes e depois acrescentavam água e as colocavam também ao
sol para fermentar. Também faziam o napé ou chicha da fermentação do mel silvestre ou
campestre. Elas pegavam um couro cru de tigre (onça pintada) ou veado, esticavam em quatro
estacas de madeira, de modo que o couro formasse uma espécie de sacola. Derramavam o mel
com a cera e deixavam fermentar sob sol por cerca de três a quatro dias (PAUCKE, [1774],
2010, p. 307-308).
Nesses encontros ocorriam jogos e desafios verbais, em que as habilidades e a coragem
dos guerreiros eram demonstradas. Sobre os jogos, Paucke inicia seu texto afirmando:
Pregunta: “¿tienen los mocovíes también un juego para su diversión? Respuesta: en
semejantes ocasiones de borracheras no tienen ni danza ni juego sino que únicamente, cuando
han llegado a reunirse, comienzan a golpearse lastimeramente a puños entre ellos” (PAUCKE,
[1774], 2010, p. 323).
Mais adiante em seu relato ele se contradiz informando que:
En general tienen la costumbre de tirar sus nepun, o sea garrotes (con los cuales
matan caza silvestre y gentes); aquel que tira más lejos, gana lo dispuesto. El premio
consiste en lazos, boleadoras, flechas, corales de vidrio o cosas semejantes. [...] Pero
cuando después mis mocovíes se habían conocido mejor con los españoles, habían
tratado más frecuentes veces con ellos y visto diversos juegos, ya se veían juegos de
naipes, dados, bolos y otros semejantes juegos de pasatiempos (PAUCKE, [1774], 2010, p. 323).
Além dos jogos, havia também duelos ritualizados. Os caciques e seus guerreiros se
submetiam à feitura de tatuagens e escarificações. As escarificações eram uma maneira de
demonstrar coragem e adquirir as forças animais, como por exemplo, ao usar o osso de uma
arraia, as qualidades desse animal seriam incorporadas ao guerreiro. O uso do sangue nos rituais
poderia estar relacionado com a aquisição de força e bravura e proteção durante a guerra
(SCALA, 2019, p. 77).
As cerimônias também eram acompanhadas de música:
Ellos tienen también su música durante esto pero ningún baile. Los instrumentos
musicales son silbatos, cuernos de buey y tambores. Los tambores son una olla llenada de agua a la mitad, cubierta arriba por un cuero de oveja. Cuando se toca se
le oye desde lejos pero no tiene el sonido igual al de un tambor común y se parece
más a un [tambor] turco pero no tan ressonante (PAUCKE, [1774], 2010, p. 317).
Embora o missionário considerasse essas reuniões, que ele chamou de “asamblea”,
como meras reuniões de borrachos, Scala (2019, p. 76-77) nos informa que esses encontros
111
serviam para reforçar as lideranças políticas e fazer novas alianças. Esses novos acordos
também eram celebrados com os antepassados mortos, celebração essa possivelmente baseada
em rituais xamânicos. Mas ao nomear esses encontros de assembleias, Paucke percebeu o
significado coletivo dessas reuniões, pois identificou a participação de outros grupos externos,
como os mataguayos.
Dessas festividades, segundo o jesuíta, as crianças não participavam, pois se escondiam
dos violentos participantes do ritual e as mulheres escondiam as lanças de seus maridos:
Frecuentemente los emborrachados chocan tan furiosamente que por no hallar lanzas
algunas (porque las mujeres se las han escondido y han apartado cuanto fuere útil
para herir) van con el puño los unos contra los otros, se arañan lastimeramente y se
golpean las caras (PAUCKE, [1774], 2010, p. 309).
Em sua crônica, assim como em duas de suas aquarelas (Figura 21 e 22), Paucke
representou essas práticas festivas segundo um juízo negativo. De acordo com Gambini (1982,
p. 127), numa perspectiva junguiana da teoria da projeção, os jesuítas viam suas “sombras”
refletidas no “espelho dos índios”. Esse processo seria o contra movimento interno do ideal
sagrado dos missionários da Companhia. O jesuíta, ao olhar para o indígena, esse espelho
obscuro, de uma maneira mais consciente, iria realçar as diferenças entre ambas as partes, e
levar à identificação da bondade e retidão43de uma e à condenação da outra. Mas
inconscientemente, nesse espelhar-se, o jesuíta via o seu ideal e seu lado obscuro refletidos no
índio.
Num primeiro momento, observamos nas aquarelas um discurso que se contrapõe à
selvageria com o cristianismo. Visto que para o missionário essas assembleias eram a
personificação da selvageria. Porquanto, para ele o índio quando borracho retornava ao seu
estado primitivo e animalesco.
Na representação da festa de San Javier o desfile ocupa todo o plano pictórico (Figura
20), plasmando visualmente o universo controlado, ordeiro e civilizado da redução. Na festa
religiosa, cada participante tinha uma função e um lugar pré-determinado no desfile. Cada
momento desse dia especial era regulado. A festa organizada por Paucke pretendia suplantar as
celebrações mocoví, na qual, para o jesuíta, ocorria toda espécie de atos desumanos e
degradantes.
43 “Nos Exercícios Espirituais o meditante era incentivado a usar seus sentidos imaginários para visualizar o
Inferno com todos os detalhes climáticos, temperatura, sons, odores etc. Psicologicamente, esse exercício
corresponderia a uma projeção através da função de sensação, isto é, trata-se de um treino da sensação para
produzir uma percepção do mundo dogmaticamente prescrita ao invés de realista” (GAMBINI, O Espelho Índio, 1988, p. 162)
112
Como na maioria de suas composições plásticas, o jesuíta empregou o recurso do plano
rebatido para representar as reuniões festivas dos mocoví (Figuras 21 e 22). A composição da
cena da figura 21 foi feita a partir de um movimento centrípeto, isto é; os participantes da festa
estão dispostos dentro de um círculo44. Na cena da figura 22, a composição foi elaborada com
base num círculo maior e pequenos semicírculos de bebedores, músicos e participantes.
As composições que retratam as assembleias foram construídas usando formas
circulares e linhas curvas que sugerem intenso movimento e são mais dinâmicas do que aquelas
que são criadas com base em linhas retas e figuras que se fecham em uma forma retangular.
São composições, segundo os critérios de Wölfflin, abertas, ou seja, as figuras não estão
contidas na moldura do papel, observamos que alguns personagens (Figura 21) são cortados
nos lados das margens verticais e da margem horizontal inferior. As figuras distribuídas em
círculo aparentam estar em um movimento contínuo, de certa forma, desordenado. A função e
o lugar dos participantes não foram determinados, a festa transcorre livremente, não existe
controle nesse mundo natural e selvático.
Paucke representou a nudez feminina de forma parcial em várias de suas aquarelas
(Figuras: 8-14 e 16-20), mas nas aquarelas das assembleias a nudez é total e comum a todos os
participantes. Para Gambini (1982, p. 128), o preconceito cristão contra o corpo e a sensualidade
reside no paradigma do homem natural, por isso associado aos instintos animais e ao mal. O
jesuíta, tendo excluído essa particularidade do seu próprio eu, vê no outro esse aspecto de forma
negativa. Portanto, tenta destruir no indígena aquilo que destruiu em si.
Observamos uma ambivalência em respeito à representação da nudez segundo a
percepção e valorização dos indígenas por parte do missionário. O jesuíta representou a nudez
índia de diferentes modos. Nas cenas em que os índios executam trabalhos na redução só há um
indígena desnudo. A composição é equilibrada, há o uso intenso de linhas retas e os elementos
visuais estão numa ordem, que representa o espaço civilizado (Figura 23).
44 O círculo expressa a união dos opostos, a união do mundo pessoal com o mundo impessoal. É o símbolo da
psique. Representa movimento, os ciclos da natureza, da vida e a transformação trazida pela morte. É a primeira
forma abstrata que o ser humano percebe: o óvulo e o útero materno têm forma circular. O círculo está relacionado
com a representação da leveza, pois ele está no céu, no alto: é a forma do sol e da lua cheia (JAFFÉ, O Simbolismo
nas artes plásticas. In: Jung, C.G.(Org.) O Homem e seus símbolos,1964, p. 249).
113
Figura 23 – Florian Paucke. Construção na Redução. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.
Nas, nas cenas em que representou as práticas tradicionais dos mocoví, como as caçadas
(Figura 13), três personagens estão despidos. Na cena de guerra (Figura 17), só os líderes estão
com suas vestimentas e adornos de cabeça, os demais estão todos nus, assim como nas cenas
das assembleias. Como representação iconográfica a nudez servia para demonstrar as virtudes
próprias de uma humanidade em seus primórdios, ou como critério determinante de selvageria
animal. Em toda a sua narrativa, Paucke se refere aos indígenas em geral como selvagens e
bárbaros, negando sua condição humana, principalmente quando descreve o índio embriagado:
“yo no debo nombrarlos gentes sino animales salvajes” ([1774], 2010, p. 309).
Nas aquarelas das cerimônias de bebidas (Figuras 21 e 22), os corpos indígenas
representados contrastam fortemente com o relato de Paucke em que ele descreveu a aparência
física dos indígenas: “La forma y color de los índios”. Na figura 21, se pode identificar, devido
114
ao relato de Paucke, algumas mulheres sentadas em círculo, no canto inferior direito45 do papel,
ocupadas com a fabricação da bebida cerimonial, ou seja, uma tarefa tradicionalmente feminina
dentro da sociedade indígena. São, também, as únicas figuras nessa aquarela que estão
parcialmente vestidas.
Paucke não utilizou nenhum modelo no qual pudéssemos caracterizar os personagens
das aquarelas que retratam as cerimônias mocoví. Supomos que o jesuíta, de forma consciente,
representou os indígenas em suas assembleias e operando suas práticas tradicionais,
desprovidos de suas marcas pessoais, como se fossem um uno selvático. O que não ocorreu na
aquarela em que ele representou os mocoví tatuados e raspados com seus atributos físicos
singulares (Figura 24).
Figura 24 – Florian Paucke. Tatuagens e adornos de face mocoví. Século XVIII. Aquarela sobre papel.
Fonte: Serie signos santafesinos. espaciosantafesino.gob.ar, 2016. Acesso em 05/2019.
45 A colocação de figuras no canto inferior direito intensifica a percepção do observador. As figuras, por estarem
fora do centro do plano pictórico, atrai mais atenção do observador (DONDIS, Sintaxe da Linguagem Visual, 2003, p. 38).
115
A divergência entre o texto verbal e o visual de Paucke sobre a aparência dos indígenas
é marcante. Entretanto, ele dedicou alguns parágrafos, e duas de suas aquarelas, para detalhar
as características específicas e étnicas dos homens e mulheres mocoví (Figura 24). Essas
aquarelas se configuram como registros etnológicos do grupo mocoví no século XVIII.
Observamos nessa aquarela (Figura 24) um domínio maior do desenho das faces e dos detalhes
do rosto que conferem personalidade aos retratados. Tanto no seu texto escrito, como nessa
imagem, o jesuíta nos revelou a técnica de tatuagem utilizada pelos mocoví.
Se compararmos as aquarelas da festa de San Javier, o vestuário disciplina os corpos
mocoví, determina seu pertencimento ao sistema civilizado e cristão. O círculo desordenado de
figuras nuas em que não se identifica idade ou sexo, em várias posições grotescas, com gestos
brutalizados (Figuras 21 e 22), demostra visualmente o olhar de Paucke sobre essas cerimônias
tradicionais indígenas, que ele denominou de bestiais, em que o indígena perdia sua condição
de humanidade. De acordo com Gambini (1988, p. 129), durante os Exercícios Espirituais, os
jesuítas deveriam lutar contra os seus instintos e pecados: como o da gula e o gosto para as
bebidas e danças. Portanto, para o autor, seria essa a explicação para o olhar do jesuíta sobre as
assembleias:
O animal repudiado (o instinto) está também por trás da incapacidade missionária de apreciar e compreender a alegria de viver do índio ao brincar, cantar, dançar e beber.
Não seria nem preciso penetrar no significado ritual de tais práticas, bastaria aceita-
las pelo que são - mas isso só consegue quem de alguma forma lhes conhece o gosto.
Quem já não sabe brincar não admite mais brincadeira alguma (GAMBINI, 1988, p.
129, grifo nosso).
O imaginário do selvagem e do civilizado estão inseridos plasticamente nas
representações pictóricas de Paucke. Como animais, ele nos apresenta os indígenas, não com
suas identidades próprias, mas como parte de um conjunto, de uma espécie. Para ele, homens
ainda vivendo de forma comunal, em harmonia com o ambiente era um traço de animalidade.
Para Gambini (1988, p. 133), “os jesuítas, vivendo numa comunidade exclusivamente
masculina baseada em votos e hierarquia, sentem-se chocados com a vida comunal dos índios”
Não há nenhuma marca, sinal exterior, vestimenta ou ornato da cultura mocoví descrito e
representado em sua crônica (Figuras 6 e 16) que tenha sido mostrado nas cenas das
assembleias. Paucke relatou que suportava essas assembleias porque elas funcionavam como
um chamariz para atrair os índios infiéis que perambulavam pelas matas para a vida na redução
(PAUCKE, [1774], 2010, p. 318).
116
Através das imagens das cerimônias mocoví, o homem primitivo foi visto e representado
pelo olhar “civilizador” do missionário. Ao analisarmos essas imagens em seus elementos
constitutivos, trouxemos à superfície os estereótipos que Paucke possuía dos mocoví. Portanto,
uma leitura social, cultural e estética das aquarelas que ele criou sobre as festividades, amplia
o sentido da leitura verbal de sua narrativa. Flexibilidade, fluência, elaboração, todos esses
processos mentais envolvidos na criatividade do missionário, são mobilizados no ato de
decodificação dessas aquarelas.
As relações entre o tempo e as aquarelas do jesuíta se estabelecem, se conservam e se
transformam, pois cada pessoa em cada época tem direito à sua interpretação, desde que
justificada formalmente; portanto, é necessário ler claramente os elementos formais e de
composição. Essa leitura formal auxilia na busca de conceitos e significados mais profundos ou
mais abstratos que o jesuíta consciente ou inconscientemente quis comunicar. Logo, a descrição
dos conceitos sobre civilidade e selvageria elaborados pela sociedade europeia demarcou a
diferença entre ver e ter um olhar sobre a obra de Florian Paucke: a diferença entre ver, sentir
e compreender os significados intrínsecos que suas imagens carregam.
Por fim, a obra de Paucke pode dar satisfação, agradar ou não, surpreender, ampliar
nossa compreensão de um tema ou enriquecer nossa percepção de formas. Mas acima de tudo,
ela nos revela todo um novo mundo de sentimentos e visão. Qualquer pessoa que queira
explorar os significados de sua obra ficará surpresa com a quantidade de pontos de vista
apresentados, pois sua obra é fonte para várias áreas do conhecimento. Mas cada indivíduo tem
o direito de levar para suas composições plásticas o que quiser levar através do olhar e de sua
experiência, e guardar o que decidir, no nível pessoal. O conhecimento da história, das
habilidades técnicas e o acesso à visibilidade das obras artísticas ampliam essa experiência
pessoal. Mas se a dimensão pessoal ou mesmo espiritual se perder, então olhar a obra de Paucke
não é mais significativo do que olhar um problema de palavras cruzadas e tentar resolvê-lo.
Paucke, em suas representações, não obedeceu a regras fixas, ele simplesmente intuiu o
caminho a seguir para adentrar nesse mundo excitante, com suas estranhas leis, em suas próprias
aventuras. Para apreciarmos as suas composições, devemos ter o espírito leve, prontos a captar
qualquer indício sugestivo oculto em suas imagens. Um espírito que não esteja petrificado por
palavras e frases feitas. Propomos aqui a abrir os olhos, não soltar línguas. Mas cada um ver
aquilo que deseja ver. Olhar uma imagem com olhos de novidade é uma aventura, uma viagem
de descobertas. Não é uma tarefa fácil, mas compensadora. É imensurável o que se pode trazer
de volta dessa jornada.
117
CONCLUSÃO
Nosso interesse neste trabalho foi ampliar a disposição para o uso de fontes não
tradicionais, como a imagem, na pesquisa histórica. A imagem cada vez mais vem conquistando
seu lugar ao lado de textos literários e testemunhos orais. A história do corpo, da cultura
material e das mentalidades tornar-se-ia virtualmente inviável sem as evidências de imagens. A
imagem, devido ao seu caráter polissêmico, que motiva várias interpretações, ainda é pouco
aceita como evidência histórica (BURKE, 2017, p. 18). Há poucas pesquisas que usam arquivos
fotográficos e imagens pintadas ou impressas, comparadas ao número de pesquisas que fazem
uso de repertórios de documentos escritos. Relativamente, poucos pesquisadores aproveitam a
oportunidade de utilizarem a imagem como um documento histórico. Quando o fazem, tratam
as imagens como meras ilustrações, que reproduzem em suas pesquisas, sem nenhuma análise.
Mas, apesar disso, alguns pesquisadores já se valeram da evidência das imagens, principalmente
aqueles que pesquisam épocas em que os documentos escritos eram escassos ou inexistentes.
Portanto, as imagens são indícios do passado no presente, que nos permite imaginar o passado
de forma vívida.
Há muitas maneiras de olhar para uma pintura. Podemos começar a indagar a finalidade
de uma pintura. No caso das aquarelas produzidas por Paucke, ele as criou para ilustrar seu
texto narrativo. Através do método criado por Panofsky de interpretação de imagens, a partir
da decomposição de suas partes, analisamos as aquarelas que representam a festa de San Javier
e a Assembleia dos mocoví, não só como imagens ilustrativas, mas sim, como representações
que transmitem uma máxima moral: a ordem e o equilíbrio do mundo civilizado e o caos e os
excessos do mundo selvagem.
Realizamos uma análise formal das pinturas do jesuíta, que Panofsky chamou de pré-
iconográfica, na qual descrevemos os elementos da composição e a temática. Examinamos, em
termos de construção, o modo como formas, linhas e cores foram usadas para comunicar as
diferenças entre o espaço civilizado da redução e o espaço natural e selvático dos mocoví.
Seguindo os níveis de significações criados por Panofsky, trouxemos os aspectos históricos,
políticos, sociais e religiosos da época em que Paucke produziu sua obra. Suas aquarelas não
só ilustram seu relato, ela nos fala de forma expressiva e significativamente como um membro
da Companhia de Jesus, uma sociedade religiosa intelectualmente refinada, que usou a escrita
e as imagens para justificar e validar seu projeto civilizador no Gran Chaco. Embora, em
primeiro lugar, nós vejamos suas imagens primordialmente em função do tema, nos
118
123
concentramos em mostrar aspectos de forma e composição que não são facilmente apreendidos
ao primeiro olhar. Pelo caminho, expusemos conceitos subjacentes, que foram vitais para uma
compreensão e fruição de suas pinturas.
Desenvolvemos uma análise das aquarelas que representam as borracheras, associando
os aspectos rituais e políticos da vida dos mocoví, fazendo algumas referências às partes do
relato de Paucke que estão relacionadas com elas. Confrontamos os significados do seu relato
escrito sobre o assunto com as imagens dessas cerimônias. As aquarelas de Paucke representam
a percepção dos corpos indígenas e o papel da vestimenta como fatores civilizadores do espaço
das reduções. Sua narrativa, assim como estas aquarelas, refletem uma realidade intermediada
por um contato intercultural e das relações de poder entre o jesuíta e os indígenas.
Demonstramos a ambivalência na maneira como ele representou as festividades: de um lado,
podemos perceber suas limitações acerca da interação cultural, religiosa e política, que as
Assembleias significavam para os mocoví, e, de outro, o desfile da festa de San Javier, uma
celebração religiosa cristã que permitia elementos sincréticos, funcionando como um
estratagema para evangelização e para as práticas civilizadoras que os indígenas deveriam
executar.
Cremos que este tipo de análise contribui para abrir novas e amplas perspectivas na
produção historiográfica sobre as relações sociais que se estabeleceram entre os jesuítas e os
grupos indígenas do Gran Chaco no século XVIII.
O tema das missões jesuíticas, as relações entre os missionários e as comunidades
indígenas, as formas de vida das sociedades indígenas, constitui objeto de vários estudos na
elaboração da historiografia sobre as missões e na construção de uma História Indígena. Neste
contexto, as imagens produzidas destes contatos, trazem uma multiplicidade de significados e
podem ser tratadas como elementos constitutivos das sociedades representadas, sendo, portanto,
documentos históricos. Desse modo, procuramos trazer nesse trabalho algumas criações
produzidas por Florian Paucke, analisando também suas imagens como formas importantes de
evidência histórica, no que se refere aos aspectos étnicos dos mocoví. Ele nos apresentou vários
traços étnicos dos mocoví em suas aquarelas, que comparamos com outras fontes históricas
escritas por jesuítas sobre os grupos guaicuru no século XVIII.
Convém ressaltar que limitar a imagem apenas a uma função documental diminui as
inúmeras variáveis que definem sua natureza e a sua importância em várias áreas do
conhecimento. Portanto, acreditamos que nosso trabalho possa auxiliar futuras pesquisas
quanto ao estudo da imagem permitindo, assim, novas concepções na produção de
conhecimento histórico. Pois, é possível observar que, à medida que a visualidade foi sendo
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percebida como fonte capaz de encaminhar a problemática histórica, os estudos sobre a
dimensão visual e seus efeitos têm mostrado um avanço significativo da produção científica
envolvida no estudo de fontes visuais.
O jesuíta Florian Paucke acreditava que na América encontraria seres sub humanos e
que a sua missão seria transformá-los em seres cristianizados e civilizados. O nosso trabalho
foi seletivo, optamos por analisar algumas aquarelas criadas por Paucke em busca de vestígios
ocultos, onde através de suas representações plásticas dos modos de vida tradicionais dos
mocoví, pudéssemos desvendar os estereótipos construídos acerca dos atributos do que seria o
ser humano civilizado ou selvagem.
Numa perspectiva jungiana, o mecanismo de projeção ocorre quando nos defrontamos
com o desconhecido. Segundo Gambini (1988, p. 127), os jesuítas projetaram na figura do
índio, num processo de espelhar-se inconsciente, seus ideais e suas sombras. Foram essas
sombras, ou esse contra- movimento inconsciente do sublime ideal cristão que criaram os
preconceitos contra os ameríndios, expressão arquetípica do homem natural, sempre associado
ao mal, ao selvagem e ao bárbaro. Os jesuítas, com seu projeto civilizador, cujas bases estavam
apoiadas na religião cristã, acumularam suficientemente saberes, através da convivência que
mantiveram com os povos indígenas, para produzir tratados doutrinários que justificavam,
conforme a religião, a escravização dos negros e a exploração dos selvagens primitivos das
Américas.
Paucke deixou claro em seu relato a crença de que a única proteção relativa que os
mocoví poderiam encontrar, seria se tornando cristãos e participando, tanto economicamente,
quanto na execução de trabalhos produtivos para sociedade colonial espanhola.
Portanto, não nos limitamos a ver passivamente as pinturas de Paucke. Ao descrever e
analisar suas aquarelas, nosso olhar se tornou ativo e discernido. Cremos que atingimos nosso
objetivo, visto que, a proposta essencial que a nossa pesquisa defendeu e ilustrou, é a de que as
imagens trazem conteúdos, as vezes consciente ou inconsciente, dos modos de ver e perceber o
mundo, tanto daquele que produziu as imagens, como daquele que as vê. Não concordamos
com a frase que afirma que uma imagem vale por mil palavras, pois acreditamos que uma
imagem é uma imagem, com um sistema de elementos próprios da linguagem visual, e palavras
são palavras. Estamos pois, lidando com sistemas de códigos diferentes, que necessitam de
ferramentas diferentes para serem decifrados. Uma imagem, as vezes comunica o que não pode
ser dito por palavras. Através de sua plasticidade é que a comunicação se faz de forma mais
efetiva, abrangente e específica.
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Toda imagem pintada é, essencialmente, uma pincelada de cor num plano
bidimensional, um efeito de luz que nossa retina capta, que dispara a ilusão da descoberta ou
de uma recordação de quem somos. De todo modo, esse fenômeno não explica, nem nos oferece
pistas sobre o que ocorre em nossa mente quando vemos as aquarelas de Florian Paucke, que
implacavelmente, parecem exigir de nós uma reação, uma tradução, um entendimento. Só temos
uma certeza: essa jornada que fizemos para entender e analisar suas obras nos trouxe um tipo
de aprendizagem única, nos levou para um mundo distante do nosso, no tempo e no espaço.
Pelas inquietações que o olhar de Paucke nos suscitou, viajamos para países distantes, visitamos
os lugares por onde ele andou, vimos as mesmas e distintas paisagens mais de duzentos anos
depois dele. Tentamos, levando em consideração os limites de nossas possibilidades e dessa
empreitada, sentir o que ele sentiu e ver o encanto e a beleza que seu olhar vislumbrou.
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