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CONTROLO DO CONSUMO DE ÁLCOOL E ESTUPEFACIENTES NO CONTEXTO LABORAL I O problema 1. Quando, em meados da década de 90 do século passado, fui solicitado a intervir em seminário internacional levado a efeito por IPSS da cidade de Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, sobre o problema do consumo de drogas em geral e do álcool em particular no meio laboral, precisamente para abordar a questão dos testes de despistagem e controlo desses consumos no âmbito da execução do contrato de trabalho, aceitei o desafio e encarei a questão, respondendo-lhe, sem hesitações, no sentido da legitimidade da entidade patronal para proceder a esse controlo, nomeadamente mediante a realização de testes, que à época os conhecimentos técnico científicos já permitiam, mesmo sem sujeição a análises sanguíneas e/ou à urina. Não me atemorizei perante a inexistência de normas específicas sobre a matéria, nem pela ideia de tais testes e exames poderem interferir com direitos de personalidade ou fundamentais dos trabalhadores, nomeadamente o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada, nos termos dos artigos 70º a 81º do Código Civil (CC) e 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e também nas pertinentes normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em particular no seu artigo 8º. Também não me esqueci da condição de pessoas e de cidadãos que os trabalhadores preservavam, apesar de vinculados a uma relação jurídica caracterizada pela ideia de superioridade/subordinação entre as partes, cabendo o poder de direcção e disciplinar ao empregador e aos trabalhadores o dever de obediência às ordens e instruções daquele, nomeadamente em matéria de conformação e execução da prestação de actividade a que se obrigavam pelo contrato de trabalho. O desassombro da posição ali sustentada, assentou na ideia de que não há direitos absolutos, mesmo os fundamentais, e que, em caso de conflito entre direitos da mesma natureza e igual dignidade constitucional ou legal, o dilema se resolve com recurso à regra estabelecida no artigo 335º do CC para a colisão de direitos, que vale também, com as necessárias adaptações, para os direitos fundamentais com assento constitucional ou análogos, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira 1 , por força do princípio da “concordância prática”, doutrinal e jurisprudencialmente afirmado e estabilizado. 1 Cfr. Constituição da República Anotada, Volume I, 1ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, em especial a anotação ao artigo 18º.

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CONTROLO DO CONSUMO DE ÁLCOOL E ESTUPEFACIENTES NO

CONTEXTO LABORAL

I O problema

1. Quando, em meados da década de 90 do século passado, fui solicitado a intervir em

seminário internacional levado a efeito por IPSS da cidade de Lisboa, na Fundação Calouste

Gulbenkian, sobre o problema do consumo de drogas em geral e do álcool em particular no

meio laboral, precisamente para abordar a questão dos testes de despistagem e controlo desses

consumos no âmbito da execução do contrato de trabalho, aceitei o desafio e encarei a

questão, respondendo-lhe, sem hesitações, no sentido da legitimidade da entidade patronal

para proceder a esse controlo, nomeadamente mediante a realização de testes, que à época os

conhecimentos técnico – científicos já permitiam, mesmo sem sujeição a análises sanguíneas

e/ou à urina.

Não me atemorizei perante a inexistência de normas específicas sobre a matéria, nem

pela ideia de tais testes e exames poderem interferir com direitos de personalidade ou

fundamentais dos trabalhadores, nomeadamente o direito à integridade pessoal e à reserva da

intimidade da vida privada, nos termos dos artigos 70º a 81º do Código Civil (CC) e 25º e 26º

da Constituição da República Portuguesa (CRP) e também nas pertinentes normas da

Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em particular no seu artigo 8º.

Também não me esqueci da condição de pessoas e de cidadãos que os trabalhadores

preservavam, apesar de vinculados a uma relação jurídica caracterizada pela ideia de

superioridade/subordinação entre as partes, cabendo o poder de direcção e disciplinar ao

empregador e aos trabalhadores o dever de obediência às ordens e instruções daquele,

nomeadamente em matéria de conformação e execução da prestação de actividade a que se

obrigavam pelo contrato de trabalho.

O desassombro da posição ali sustentada, assentou na ideia de que não há direitos

absolutos, mesmo os fundamentais, e que, em caso de conflito entre direitos da mesma

natureza e igual dignidade constitucional ou legal, o dilema se resolve com recurso à regra

estabelecida no artigo 335º do CC para a colisão de direitos, que vale também, com as

necessárias adaptações, para os direitos fundamentais com assento constitucional ou análogos,

como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira1, por força do princípio da “concordância

prática”, doutrinal e jurisprudencialmente afirmado e estabilizado.

1 Cfr. Constituição da República Anotada, Volume I, 1ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, em especial a

anotação ao artigo 18º.

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Na verdade, aqueles direitos do trabalhador individualmente considerado, cuja

universalidade e força vinculativa horizontal, no sentido de se imporem às pessoas e entidades

públicas e privadas, também se não discutia, conflituavam com direitos de igual natureza dos

outros trabalhadores e mesmo de terceiros que por qualquer razão tivessem que se deslocar ou

permanecer nos locais onde decorria a execução do contrato de trabalho, nomeadamente o

direito à protecção da saúde e segurança, constituindo mesmo dever do empregador

proporcionar tais condições de trabalho a todos quantos sob a sua direcção desenvolvessem

actividade, como impunham diversas normas dispersas pela legislação extravagante que então

vigorava, em particular nos artigos 19º, al. c), e 41º do DL n.º 49408, de 24.11.1969 (LCT), e

4º, n.º 1, e 8º, n.º 1, do DL n.º 441/91, de 14.11, mas igualmente a CRP, no seu artigo 59º, n.º

1, al. c).

Por outro lado, no mesmo sentido concorriam razões de ordem prática, como as

relacionadas com a necessidade de dotar a entidade patronal de instrumentos capazes de lhe

permitir concretizar aqueles deveres, nomeadamente mediante a vigilância e controlo das

ordens e instruções emanadas a propósito, assim como de fazer prova da sua

irresponsabilidade na eclosão de certos acidentes de trabalho, cujos resultados danosos lhe

caberia de outro modo reparar, mesmo com agravamento.

Com efeito, a legislação nessa altura vigente no domínio da prevenção e da reparação

dos acidentes de trabalho, condensada, essencialmente, na Lei n.º 2127, de 03.08.1965, e seu

Decreto Regulamentar n.º 360/71, de 21.08, em conjugação com a LCT (cfr. artigo 19º, al.

e)), impunham ao empregador o dever de reparar os danos emergentes de acidente de

trabalho, com a obrigação de transferência dessa responsabilidade para entidades seguradoras.

A omissão desse dever ou o seu cumprimento defeituoso, podia, inclusive, fazê-lo

incorrer em responsabilidade contraordenacional e penal, como resultava do DL n.º 491/85,

de 26.11, que estabelecia o regime geral das contraordenações, e dos artigos 152º, n.ºs 1 e 4, e

277º, n.ºs 1, als. a) e b), 2 e 3, do Código Penal, com as alterações introduzidas,

respectivamente, pelas Leis n.º 65/98, de 02.09, e 48/95, de 15.032.

Todavia, ocorrendo violação das regras de segurança, higiene e saúde estabelecidas na

lei, em regulamento ou decididas pela entidade patronal, as seguradoras podiam declinar a

responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente, cabendo nessas hipóteses

em primeira linha ao empregador assumir directamente e com agravamento essa reparação,

salvo se pudesse demonstrar que ele se ficara a dever a culpa grave, exclusiva e indesculpável

2 Regimes sancionatórios ainda vigentes, apesar das muitas alterações sofridas pelos correspondentes diplomas

instituidores, como pode ver-se das correspondentes normas do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º

7/2009, de 12.02 (CT 2009), em conjugação com as dos seus artigos 548º e ss., e dos artigos 152º - B e 277º do

Código Penal.

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do sinistrado, ou a privação permanente ou acidental do uso da razão do mesmo, situações em

que, por descaracterização, a sua obrigação de reparação ficaria arredada.

Além de poder, em caso de acidente causado por um trabalhador com repercussão

danosa noutros trabalhadores, sem prejuízo do seu dever de indemnizar os danos por estes

sofridos, sub-rogar-se no seu direito à reparação perante o trabalhador lesante3.

Estranho seria, por conseguinte, que, perante este quadro normativo impositivo de

obrigações rigorosas à entidade patronal no âmbito da prevenção e reparação dos riscos e

sinistros laborais, de cuja inobservância podia, inclusive, decorrer a sua responsabilização

contraordenacional e/ou penal, o mesmo ordenamento jurídico não lhe facultasse, em

contrapartida, a possibilidade de demonstrar o seu efectivo cumprimento e o eventual

incumprimento dos demais obrigados, nomeadamente no sentido de afastar as referidas

imposições indemnizatórias e sancionatórias.

Tanto mais quanto se afigurava indiscutível, segundo estudos sociológicos nacionais e

internacionais disponíveis, que a prevalência do consumo de drogas, álcool e outros produtos

estupefacientes e psicotrópicos em contexto laboral atingia cifras elevadas, constituindo

mesmo percentagem significativa do total dos consumidores, ocasionais e dependentes, bem

como a sua danosidade física e psíquica propiciadora de diminuição das capacidades de

atenção e concentração na execução das tarefas inerentes a qualquer actividade profissional,

quando não mesmo totalmente impeditiva, com o acrescido risco de actuações potencialmente

lesivas da segurança e da saúde dos próprios e dos demais trabalhadores e terceiros presentes

no mesmo serviço ou dele beneficiários e de bens de grande valor, material e imaterial, dos

próprios empregadores.

Desse balanceamento concluí, em suma, ser legítimo ao empregador realizar testes de

despistagem e controlo de consumos de drogas, lato sensu, actuação que estaria também

legitimada e era cabível nos seus poderes de direcção, com a única ressalva de impedir

práticas persecutórias e discriminatórias relativamente a determinados trabalhadores ou que se

traduzissem em claras violações do princípio constitucional da proibição do excesso, nas suas

dimensões de adequação, proporcionalidade e necessidade, se bem que em termos bastante

amplos face ao quadro fundamentador traçado.

3 Regime que, “mutatis mutandi”, se manteve inalterado no essencial do que aqui interessa, nos regimes de

reparação posteriores, aprovados pelas Leis n.ºs 100/97, de 13.09, e 98/2009, de 04.09, e diplomas

complementares, assim como nos sucessivos Códigos do Trabalho e diplomas definidores do regime jurídico da

promoção da segurança e saúde no trabalho, como pode ver-se, actualmente, nos artigos 126º a 129º e 281º a

284º, do CT 2009, e no DL n.º 102/2009, em particular os seus artigos 1º, 15º e 103º e ss.

Todos com cobertura constitucional, conforme estabelece o artigo 59º, n.º 1, al. f), da CRP, desde a revisão

constitucional de 1997.

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Essa foi também a posição de Silvestre Sousa4, assim como da maioria da

jurisprudência que até aí se tinha debruçado sobre questões relacionadas com o consumo de

drogas em contexto laboral, em particular do álcool, embora quase raramente apreciando a

legitimidade ou legalidade das pesquisas efectuadas, circunscrevendo a sua pronúncia ao

impacto descaracterizador ou não dos acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores sob a

sua maior ou menor influência, daí se retirando a ilação de que aquelas eram questões cuja

resposta positiva se tinha por pacífica e adquirida.

A excepção pode encontrar-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de

24.06.1998, proferido no processo n.º 97S243, publicado no BMJ n.º 478, pp. 171, relatado

pelo Conselheiro Matos Canas, no qual, além da afirmação da legalidade e legitimidade dos

testes se aprecia também em sentido positivo a constitucionalidade de regulamento interno de

empresa que determinava a submissão dos seus trabalhadores a testes de alcoolémia

aleatórios, por não violação dos referidos direitos de personalidade e/ou fundamentais,

admitindo ainda a virtualidade de uma eventual recusa dos trabalhadores em submeter-se à

sua realização poder erigir-se em justa causa de despedimento, por desobediência intolerável

às ordens legítimas do empregador5.

2. Apesar desse relativo conforto, pouco tempo decorreu até ganhar a consciência da

verdadeira dimensão do problema e, consequentemente, das insuficiências e candura da

abordagem que dele tinha empreendido.

Com efeito, aquela posição, também estribada no pressuposto de que todos os

intervenientes nas relações jurídico - laborais agiriam de boa – fé e com respeito pelos

aludidos princípios constitucionais, como é mister em qualquer contrato, da sua formação à

sua execução e cessação, foi abalada pelas crescentes práticas, timidamente denunciadas por

candidatos a certos empregos, trabalhadores no activo e algumas associações de defesa dos

grupos sociais envolvidos, com algum eco na comunicação social, de empresas e empresários

que não olhavam a meios para se intrometer na esfera íntima dos interessados em

determinados postos de trabalho e pelos titulares de outros já preenchidos, com a conivência

4 Cfr. “Problemática da embriaguez e da toxicomania em sede de relações de trabalho”, in RDES – Ano XXIX

(II da 2ª Série), Julho – Setembro, n.º 3, pp. 399 a 448. 5 O sumário do acórdão pode ser consultado no site http://www.gde.mj.pt/jstj/nsf, sob o número convencional

00033889 e como documento n.º SJ199806240002434.

Pode também ser consultado no BTE, 2ª Série, n.º 4-5-6/99, pp. 708 e ss., para onde nos remete Carlos Perdigão,

que o cita e comenta no trabalho “Testes de Alcoolémia e Direitos dos Trabalhadores”, in Minerva – Revista de

Estudos Laborais, Ano I, n.º 2, Março de 2003, pp. 9 a 59.

O autor, de resto, tira conclusões coincidentes com a orientação sufragada no aresto, o que não invalida a

utilidade da leitura do trabalho, entre o mais, pela vasta e valiosa informação proporcionada quanto à

morbilidade do fenómeno, em termos pessoais e sócio – laborais, mas também pelas suas conclusões

propositivas.

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de laboratórios, empresas de selecção e recrutamento e profissionais de saúde e do direito, a

par de uma relativa incapacidade das autoridades competentes para fiscalizar e impedir tais

comportamentos, perguntando o que, obviamente, se não devia nem podia perguntar, pelo

menos do modo generalizado como o faziam, sobre doenças anteriores, próprias e familiares,

estado de gravidez e planos futuros sobre a maternidade e paternidade e outras informações

sobre hábitos de vida, além de submeterem esses candidatos e trabalhadores a testes e exames

de todo o género, despistando propensões genéticas e consumos de drogas, sem lhes prestar

qualquer informação sobre o respectivo âmbito ou justificar a necessidade e acedendo aos

respectivos resultados, que depois serviam para fundamentar a selecção e o recrutamento ou

mesmo para condicionar as carreiras dos trabalhadores já em actividade.

Essas práticas, aliás, parecem ter constituído a campainha que despertou a doutrina

nacional para o problema, tendo começado a surgir, em ritmo crescente, trabalhos de diversos

autores sobre o assunto6, num movimento que viria a culminar com a consagração legal

expressa de normas relativas aos direitos de personalidade dos trabalhadores e dos candidatos

a essa qualidade, com a publicação e início de vigência do Código do Trabalho de 2003,

aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.08, nesse corpo normativo se incluindo o artigo 19º, que,

sob a epígrafe “Testes e exames médicos”, veio precisamente introduzir uma disciplina

normativa própria e específica sobre a realização de exames e testes para efeitos de admissão

e permanência no emprego, para além dos já previstos na legislação relativa à segurança e

saúde no trabalho, consagrando inequivocamente essa possibilidade, mas com carácter

excepcional e estabelecendo diferentes níveis de exigência, consoante a maior ou menor

intromissão na esfera privada dos trabalhadores e candidatos ao emprego que da sua

realização pudesse advir.

6 Seria injusto neste ponto não destacar a vastíssima reflexão de José João Abrantes, que, desde o início da

década de 90, tinha já dado à estampa vários escritos sobre a matéria e sempre no sentido da afirmação da

cidadania dos trabalhadores, mesmo enquanto tal e no âmbito da execução do contrato de trabalho, conforme se

pode ver na resenha efectuada por Rui Assis, em “O Poder de Direcção do Empregador – Configuração geral e

problemas actuais”, Coimbra Editora, 2005, a pp. 263 e ss. em que indica a bibliografia de suporte à sua obra.

Nela, de resto, pode ver-se grande parte da doutrina a propósito produzida em finais daquela década, em grande

medida condensada, in “AAVV, II Congresso Nacional de Direito do Trabalho – Memórias, Coord. António

Moreira”, Almedina, Coimbra, 1999, e “AAVV, III Congresso Nacional de Direito do Trabalho – Memórias,

Coord. António Moreira”, Almedina, Coimbra, 2001, designadamente António Menezes Cordeiro e António

Nunes de Carvalho.

Mas também in “AAVV, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho”, Vol. II, Coord. Pedro Romano Martinez,

Almedina, Coimbra, 2002, de que saliento, pela pertinência e profundidade, o texto intitulado “Justa Causa e

Esfera Privada”, pp. 35-91, da autoria de Guilherme Machado Dray.

Nessa altura, por outro lado, começou a germinar a ideia de que os testes de despistagem e controlo dos

consumos de droga se traduziam ou poderiam traduzir na recolha e tratamento de dados pessoais de saúde e,

como tal, sensíveis, nos termos e para os efeitos do regime da Lei n.º 67/98, de 26.10, que estabeleceu entre nós

o regime de Protecção de Dados, como sustentou Catarina Sarmento e Castro, em “A protecção de dados

pessoais dos trabalhadores”, publicado na Revista Questões Laborais, n.º 19, Ano IX – 2002, pp. 27 a 60.

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Estavam, pois, lançadas as bases para um recomeço do debate, agora em torno da

oportunidade e necessidade da consagração legal, aplaudida por quase todos, mas sem

unanimidade quanto à sua verdadeira novidade e mesmo necessidade e ainda menos quanto à

respectiva qualidade, por se considerar que, mesmo constituindo um importante factor de

travagem das práticas denunciadas, padecia ainda de um certo grau de incerteza e

indeterminabilidade a carecer de densificação e consolidação doutrinária e jurisprudencial7,

senão mesmo legal.

Desse renovado debate e perante a prática que se foi institucionalizando e

generalizando no tecido empresarial português, associado aos programas governamentais

plurianuais sobre a prevenção e combate ao fenómeno, em resultado de consensos obtidos na

concertação social, com o envolvimento, portanto, das associações patronais e sindicais, assim

como o de outras entidades ligadas à prevenção da toxicodependência e à fiscalização das

condições de trabalho, a algumas orientações internacionais sobre a matéria, incluindo o

direito da União Europeia e conclusões de grupos de trabalho constituídos no seio do

Conselho da Europa, nasceu a convicção de que a opção feita em 2003 tinha sido acertada, era

de manter e podia ser melhorada, pelo que, se procedeu a uma revisão do Código do Trabalho

de que resultou o citado CT 2009, cujo artigo 19º sofreu também alterações de pormenor

relativamente à versão de 20038, no sentido de melhorar a sua disciplina em matéria de

exames e testes que vão além dos exames de acesso, ocasionais e periódicos previstos na

legislação relativa à segurança e saúde no trabalho, essencialmente aos que se encontram

definidos no artigo 108º da Lei n.º 102/2009, de 10.09.

2. As interrogações e algumas respostas

7 Por essa altura, a Inspecção – Geral do Trabalho (IGT) e o Centro de Estudos Judiciários promoveram jornadas

geograficamente dispersas e com juristas do foro, da academia e da actividade inspectiva, cujas intervenções

compilaram e publicaram em Dezembro de 2004, pela Coimbra Editora, em obra intitulada “A reforma do

Código do Trabalho”.

Nela podem consultar-se trabalhos pertinentes ao tema que aqui nos ocupa, da autoria de, respectivamente, Luís

Manuel Teles de Menezes Leitão, José João Abrantes e Maria Regina Redinha, sob os títulos “A Protecção dos

Dados Pessoais No Contrato de Trabalho”, pp. 123-138, “O Novo Código Do Trabalho E Os Direitos de

Personalidade Do Trabalhador”, pp. 139-160, e “Os Direitos De Personalidade No Código Do Trabalho:

Actualidade E Oportunidade Da Sua Inclusão”, pp. 161-171.

Sobre a matéria vale ainda a pena ler o que escreveram Rui Assis, in ob cit., em especial a pp. 207-262, Teresa

Alexandra Coelho Moreira, in “Da Esfera Privada do Trabalhador e o Controlo do Empregador”, STVDIA

IVRIDICA 78, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra Editora, 2004, em especial pp. 199-203,

219-238, 358-365 e 476-478, e Júlio Manuel Vieira Gomes, in “Direito do Trabalho, Volume I, Relações

Individuais de Trabalho”, Coimbra Editora, 2007, particularmente pp.350-352. 8 Essencialmente de redacção, mas também de substância, nomeadamente na parte em que eliminou do nº 3 o

segmento “salvo autorização escrita deste”, o que nos reconduz para a discussão sobre a relevância ou

irrelevância do consentimento do trabalhador no acesso e divulgação da informação recolhida nos exames e nos

testes.

A introdução do n.º 4, quanto ao sancionamento da violação do estatuído nos n.ºs 1 e 2, foi essencialmente de

ordem sistemática, na medida em que a mesma estatuição no CT 2003 se encontrava no artigo 641º, n.º 1.

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Aqui chegados, importa conferir as interrogações que a normatividade vigente em

matéria de testes e exames para despistagem e controlo de consumo de drogas no contexto

laboral ainda comporta.

Numa primeira aproximação, parece não fazer já qualquer sentido a pergunta que

constituiu o ponto de partida desta abordagem, pois é hoje inequívoco que a lei permite a

realização desse tipo de exames e testes, embora o faça pela negativa e lhe introduza fortes

restrições, conforme resulta do artigo 19º, n.º 1, do CT 2009.

Da sua redacção, mesmo persistindo alguma indeterminabilidade com potenciais

efeitos impeditivos em sede sancionatória, parece resultar definitivamente arredada qualquer

ideia de realização desse tipo de testes e exames à generalidade dos trabalhadores e em

qualquer actividade, ainda que com respeito pelos princípios da igualdade e da não

discriminação e da proibição do excesso, apenas em função das razões de ordem prática

inicialmente enunciadas e dos poderes de direcção do empregador, que, nesta matéria sofre,

assim, acentuadas limitações.

Parece, por outro lado, resultar daquele normativo, lido à luz dos referidos princípios

constitucionais e em atenção à natureza dos direitos fundamentais aqui em jogo,

designadamente o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada,

também eles objecto de previsão e protecção legal directa, nos termos dos artigos 15º e 16º do

CT 2009, em que se inscrevem as questões de saúde e os hábitos de vida de todas as pessoas,

que em caso de dúvida sobre a admissibilidade ou não da realização de exames e testes

destinados ao controlo de consumo de drogas em contexto laboral, deve prevalecer o

entendimento mais restritivo, ou seja, o da salvaguarda daquele direito, com exclusão dos

testes e/ou exames.

Além disso, afigura-se evidente também que os testes e exames devem ser precedidos

de informação escrita sobre a sua fundamentação a facultar ao(s) indivíduo(s) a sujeitar aos

mesmos, assim se lhes garantindo a possibilidade de oposição igualmente fundada e

esclarecida, e que a sua realização deve ser assegurada por pessoal de saúde ou por técnico

para tanto habilitado, sempre sob a vigilância de médico responsável e em regime de

confidencialidade, estando o resultado subtraído ao conhecimento do empregador, a que

aquele apenas pode entregar ficha de aptidão ou de inaptidão para o desempenho da

actividade em causa, salvo consentimento daqueles validamente prestado9.

9 Como se viu, o CT 2009 eliminou do n.º 3 do artigo 19º o segmento relativo ao consentimento nele

estabelecido no CT 2003, o que reconduziu a discussão doutrinária sobre a admissibilidade e valor do

consentimento do trabalhador neste âmbito ao disposto no artigo 81º do CC e 18º e ss. da CRP, só o admitindo

em circunstâncias muito limitadas e desde que assegurada a sua prestação em condições de absoluta liberdade,

precisamente porque, em contexto laboral, isso se apresenta sempre eivado de dúvidas, face ao estado de

subordinação jurídica e, muitas vezes também, económica do trabalhador perante o empregador, o mesmo se

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Sendo também indiscutível que a violação do regime estatuído no n.º 1, quanto aos

testes e exames passíveis de realização e algumas das formalidades a observar, constitui

contraordenação muito grave, punível nos termos dos artigos 548º e ss. do CT 2009.

Por outro lado, o regime aqui estatuído é aplicável também aos trabalhadores em

funções públicas, por força do artigo 4º, n.º 1, al. b), da Lei Geral do Trabalho em Funções

Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20.06, assim como aos trabalhadores

sujeitos a outros regimes especiais e equiparados ao contrato de trabalho, nos termos do artigo

10º do mesmo código, nomeadamente aos praticantes desportivos profissionais, cujos

contratos estão sujeitos ao regime jurídico estabelecido na Lei n.º 28/98, de 26.06.

Fora destas certezas, no entanto, restam muitas dúvidas sobre a adequada resposta a

dar a um conjunto alargado de outras interrogações que o problema em análise suscita,

designadamente:

a) A informação escrita a fornecer pelo empregador está sujeita a qualquer outra

formalidade especial, deve observar um determinado conteúdo mínimo, pode ou tem que ser

feita a todos os trabalhadores por escrito individualizado ou comum e mediante ordem de

serviço geral ou regulamento interno da empresa?

b) Pode a realização dos testes e exames, as formalidades a que estão sujeitos, modo e

conteúdo da informação escrita a facultar aos trabalhadores, assim como as respectivas

consequências em caso de resultado positivo ou de recusa ser estabelecidas em instrumento de

regulamentação colectiva de trabalho?

c) Podem os trabalhadores, individual ou colectivamente, impugnar a validade e o

conteúdo desses regulamentos internos e instrumentos de regulamentação colectiva?

d) O resultado dos exames ou testes, sendo positivo, mesmo que obtido noutro âmbito,

tem alguma consequência disciplinar directa ou pode ser usado, nomeadamente como

elemento de prova, em procedimento disciplinar aberto na sua sequência ou dos factos que

determinaram a realização do exame?

e) E de natureza civil, designadamente em matéria de recusa da prestação pelo

empregador e caducidade do contrato ou outra modalidade de cessação, ou em processos de

acidente de trabalho e de doença profissional?

f) E de natureza contraordenacional e criminal?

g) E pode ainda, nesses casos, ser acessível ao empregador e a terceiros, que não as

autoridades públicas de saúde ou de fiscalização e repressão da legalidade, mesmo sem

consentimento dos trabalhadores?

podendo dizer, com as necessárias adaptações, relativamente à posição do candidato ao emprego, como referem

vários autores, entre os quais Rui Assis, in ob. cit..

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h) O resultado pode ou deve ser valorado da mesma forma quer se trate de consumo

ocasional, reiterado ou de dependência, dentro ou fora do local e do tempo de trabalho ou

mesmo depois da morte?

i) E relativamente a todos os trabalhadores por conta de outrem a quem o regime é

aplicável, nomeadamente os adstritos ao exercício de funções públicas e aos profissionais do

desporto?

j) Quais as consequências de eventual recusa do trabalhador em submeter-se aos testes

e/ou exames determinados pelo empregador, fundadamente e segundo as regras legais e

regulamentares, mas que aquele conteste, ou mesmo sem qualquer contestação?

k) Quais os meios de reacção ao dispor dos trabalhadores nessas circunstâncias ou

noutras em que pretendam impugnar a decisão patronal de os submeter aos testes ou exames

de controlo e despistagem do consumo de drogas?

l) Implicando a realização de tais exames e/ou testes a recolha e tratamento de dados,

estes podem ou devem ser considerados dados de saúde e da vida privada e, como tal,

sensíveis, determinando que aquele fique dependente da prévia autorização, notificação e

controlo pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD)?

Enfim, muitas interrogações para as quais a lei parece não fornecer resposta imediata,

segura e aplicável de modo geral e uniforme a todas as situações em que elas podem colocar-

se.

Ainda assim, deve dizer-se que a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e

o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), celebraram um protocolo relativo à

“Prevenção de Riscos em Meio Laboral”, na sequência de um trabalho conjunto em que

contaram com a colaboração da CNPD, das associações patronais e sindicais, da Direcção –

Geral de Saúde e da Sociedade Portuguesa de Medicina no Trabalho, em que definiram um

conjunto de princípios orientadores da sua actuação neste domínio, à luz de uma interpretação

do regime legal, que se afigura encontrar nele arrimo e que, em boa parte, responde a muitas

daquelas questões, que também a CNPD aprovou10

.

Nessa sequência a CNPD emitiu uma Deliberação em que desenvolveu esses

princípios e definiu regras de actuação uniforme para o tratamento dos dados neste âmbito11

.

10

O documento aprovado intitulou-se “Segurança e Saúde do Trabalho e a Prevenção do Consumo de

Substâncias Psicoactivas: Linhas Orientadoras para a Intervenção em Meio Laboral”, o qual foi também

aprovado pela CNPD, através da Deliberação n.º 440/2010, de 14 de Junho.

11 Trata-se da DELIBERAÇÃO Nº 890 /2010, de 15.11, aplicável aos tratamentos de dados pessoais com a

finalidade de medicina preventiva e curativa no âmbito dos controlos de substâncias psicoactivas efectuados a

trabalhadores, passível e consulta na página web da Comissão.

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Revendo-me nesses princípios e regras, aqui os reproduzo, com a devida vénia,

começando pelos primeiros:

«Os princípios orientadores da intervenção em meio laboral sobre a matéria de

consumo de substância psicoactivas deve assentar em:

a) Promover a prevenção e o tratamento com programas de informação, formação e

qualificação sobre as substâncias psicoactivas integrados em programas de saúde mais

amplos;

b) Garantir a confidencialidade de toda a informação em todos os pontos do processo

de detecção, tratamento e reabilitação;

c) Inexistência de qualquer forma de discriminação, por parte dos empregadores, dos

trabalhadores que se querem sujeitar a tratamentos, sendo-lhes garantidos o posto de

trabalho e as mesmas oportunidades de promoção considerando-se, enquanto durar o

tratamento, a sua eventual transferência para funções que não constituam risco para a

segurança do próprio ou de terceiros, sem perda de direitos ou outras regalias;

d) Absoluta aceitação voluntária por parte do trabalhador não se lhe podendo impor

qualquer tratamento contra a sua vontade;

e) Consideração de que o problema do consumo de substâncias psicoactivas deve ser

entendido como uma questão de saúde e tratado como tal no que respeita a todos os aspectos

nomeadamente incapacidade temporária, subsídio de doença e outros benefícios sociais;

f) Procedimentos integrados exclusivamente no âmbito da medicina do trabalho não

devendo existir em qualquer outro contexto;

g) Procedimentos estatuídos em regulamento onde constem: as substâncias alvo da

detecção, as categorias profissionais que se justifica serem alvo dos testes, as circunstâncias

da aplicação dos testes, os profissionais envolvidos sendo sempre obrigados a sigilo e

submetidos à responsabilidade do médico do trabalho, a frequência dos testes, a

homologação dos aparelhos de teste, a oportunidade da contra-prova e sua gratuidade, os

procedimentos a adoptar em caso de teste positivo, a comunicação à entidade patronal

unicamente por ficha de aptidão com a menção de apto ou não apto, a sujeição a processo

disciplinar face a uma prestação laboral considerada fraca e inaceitável independentemente

do consumo;

h) Reconhecimento de que os testes se destinam exclusivamente a verificar a aptidão

do trabalhador para o desempenho das suas funções e só podem ser efectuados no estrito

cumprimento da lei (Código do Trabalho e Lei 102/2009, de 10 de Setembro);

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i) Reconhecimento de que os testes de despistagem de consumos de substâncias

psicoactivas põem em causa direitos, liberdades e garantias consagrados nos artigos 25.º e

26.º da Constituição da Republica Portuguesa, nomeadamente o direito à integridade pessoal

e à reserva da intimidade da vida privada;

j) Condenação da criação de sanções à margem da lei como seja considerar justa

causa de despedimento o mero consumo de substâncias psicoactivas em si.».

Quanto às regras, elas incidem sobre todos os aspectos pertinentes no domínio da

recolha e tratamento de dados sensíveis, como pode observar-se:

«Controlo prévio

Os tratamentos de dados com a finalidade de medicina preventiva e curativa no âmbito dos controlos

de substâncias psicoactivas efectuados a trabalhadores incidem sobre dados sensíveis, pelo que, nos termos da

alínea a) do artigo 28º da LPD, estão sujeitos a controlo prévio.

Consequentemente, tais tratamentos não poderão iniciar-se antes da obtenção da respectiva

Autorização da CNPD, a emitir nos termos e condições fixadas após notificação do tratamento a esta Comissão.

Responsável pelo Tratamento

Nos termos da alínea d) do artigo 3.º da Lei 67/98, o responsável pelo tratamento é “a pessoa singular

ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, individualmente ou em conjunto

com outrem, determine as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais”.

A entidade responsável pelo tratamento de dados decorrentes de controlos de alcoolemia ou de

consumos de droga é a entidade empregadora, sem prejuízo da obrigatoriedade de o tratamento se efectuar no

âmbito dos Serviços de Segurança e Saúde no Trabalho ou de prestação de serviços neste sector.

Finalidade do tratamento

A finalidade destes tratamentos de dados tem, necessariamente, de ser subsumida à finalidade de

medicina preventiva e curativa no âmbito dos controlos de substâncias psicoactivas efectuados a trabalhadores.

No entanto, admite-se a sua utilização para efeito de prova no âmbito de procedimento disciplinar em

curso, cuja fundamentação assente nas causas tipificadas no Código de Trabalho.

Ressalva-se que o consumo de substâncias psicoactivas em si não constitui justa causa de

despedimento, mas antes o comportamento que dali, eventualmente, possa ser subsumido no âmbito do disposto

no artigo 351.º do Código de Trabalho.

A utilização dos dados para finalidade diversa tem de ser objecto de autorização da CNPD, nos termos

do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 28.º da Lei 67/98.

Qualidade dos dados

Os dados pessoais tratados devem ser adequados, pertinentes e não excessivos relativamente à

finalidade de medicina preventiva e curativa no âmbito dos controlos de alcoolemia e de droga efectuados a

trabalhadores (cfr. artigo 5.º da Lei 67/98).

Neste contexto devem, ainda, ser respeitados os seguintes pressupostos no tratamento de dados em

causa:

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a) Que o âmbito de aplicação seja restrito às categorias de trabalhadores cuja actividade possa pôr

em perigo a sua integridade física ou de terceiros, desde que concretamente justificadas em nome de razões

ponderosas de interesse público relevante ou que estejam em conflito com outros direitos constitucionalmente

consagrados;

b) Que o tratamento de dados esteja enquadrado em programa de saúde ocupacional com carácter de

medicina preventiva e curativa; e

c) Que seja elaborado regulamento para o efeito, de acordo com as orientações constantes nas “Linhas

Orientadoras para a Intervenção em Meio Laboral” (IDT/ACT) já referidas, onde tenha sido assegurada a

participação dos representantes dos trabalhadores.

Condições de legitimidade

A legitimidade para estes tratamentos decorre do interesse público importante subjacente ao

tratamento, indispensável ao exercício das atribuições legais ou estatutárias do responsável, atentos os

pressupostos supra mencionados, com «garantias de não discriminação» e sendo adoptadas as «medidas de

segurança» adequadas (cf. n.º 2 do artigo 7.º da Lei 67/98).

O interesse público previsto no n.º 2 do artigo 7º da Lei 67/98 é qualificado, pelo que apenas releva o

interesse público se este for importante.

Nos tratamentos de dados pessoais com a finalidade em análise é o perigo para a integridade física do

próprio ou de terceiros que justifica o interesse público importante, assente em nome de motivos ponderosos

quando existam razões objectivas em função da segurança para o próprio, para outros trabalhadores, para os

utentes dos serviços ou para a comunidade em geral, não bastando a alegação de perigo indirecto, reflexo ou

remoto, ou quando, os riscos sejam mínimos.

Categorias de dados tratados

Mostram-se necessárias para a prossecução desta finalidade as seguintes categorias de dados:

circunstâncias da aplicação dos testes;

sigilo);

o controlo;

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Estas informações, quando necessárias para a avaliação da aptidão dos trabalhadores, enquadram-se

no conceito de informação médica, tal como descrito no artigo 5.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro.

Decisões individuais automatizadas

Não são admitidas, nos termos do n.º 1, do artigo 13º, da Lei n.º 67/98, decisões que produzam efeitos

na esfera jurídica do trabalhador ou que o afectem de modo significativo, tomadas exclusivamente com base

num tratamento automatizado de dados destinado a avaliar determinados aspectos da sua personalidade,

designadamente a sua capacidade profissional.

Tratamento efectuado por subcontratante

Caso o empregador, responsável pelo tratamento, na organização dos serviços de segurança e saúde

no trabalho opte pela contratação, para a prestação destes serviços, de uma entidade externa, deve essa

prestação de serviços ser regida por um contrato ou acto jurídico que vincule a entidade (subcontratante) ao

responsável pelo tratamento.

Nesse contrato ou acto jurídico, o qual deverá revestir a forma escrita, com valor probatório

legalmente reconhecido, deve constar que o subcontratante apenas actua mediante instruções do responsável

pelo tratamento e que lhe incumbe a obrigação de pôr em prática as medidas técnicas e organizativas

adequadas para proteger os dados pessoais contra a destruição acidental ou ilícita, a perda acidental, a

alteração, a difusão ou acesso não autorizados, bem como para garantir um nível de segurança adequado em

relação aos riscos inerente ao tratamento e à natureza dos dados a proteger (cf. artigo 14.º da Lei n.º 67/98).

Medidas de Segurança

Em relação à segurança da informação – e porque estão em causa dados sensíveis, designadamente

dados de saúde – importa considerar as medidas previstas no artigo 15.º da Lei 67/98.

Tais medidas devem aplicar-se tanto aos dados contidos em ficheiros automatizados, como aos dados

manuais.

Importa ainda ter em atenção os procedimentos concretos quanto às formas de recolha, processamento

e circulação da informação.

Em primeiro lugar, e quanto aos dados automatizados, o sistema deve garantir uma separação lógica

entre os dados referentes à saúde e os restantes dados pessoais, de natureza administrativa (artigo 15º nº 3 da

Lei 67/98).

Nesse sentido, o sistema informatizado deve estar estruturado, de modo a permitir o acesso à

informação de acordo com os diferentes níveis de acesso dos utilizadores, sendo atribuídas palavras-passe de

software que disciplinem as autorizações de acesso.

Tais palavras-passe devem ainda ser periodicamente alteradas e eliminado perfil utilizador logo que

este deixe de ter privilégios de acesso.

Devem, pois, ser adoptadas medidas de segurança que impeçam o acesso à informação a pessoas não

autorizadas.

As observações clínicas relativas à informação de saúde são anotadas em ficha própria que serve de

base ao preenchimento da «ficha de aptidão», a qual, sendo remetida ao responsável pela área dos recursos

humanos, não pode conter elementos que envolvam segredo profissional (n.º 3 do artigo 110.º da Lei n.º

102/2009, de 10 de Setembro);

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A informação de saúde deverá ser de acesso restrito ao médico do trabalho ou, sob a sua direcção e

controlo, a outros profissionais de saúde obrigados a sigilo profissional. A informação de saúde, na qual se

incluem os resultados dos testes, em caso algum poderá ser comunicada ao empregador, apenas sendo dado

conhecimento do estado de aptidão do trabalhador em termos de apto, não apto ou, ainda, apto com

restrições.

Sempre que haja circulação da informação de saúde em rede, a transmissão dos dados deve ser cifrada

(nº 4 do artigo 15.º da Lei 67/98).

Ainda no âmbito das condições de segurança, deve ser garantido um acesso restrito, sob o ponto de

vista físico e lógico, aos servidores do sistema, que devem manter um registo de auditoria de acesso à

informação sensível.

De igual modo, devem ser feitas cópias de segurança (back-ups) da informação, as quais deverão ser

mantidas em local apenas acessível ao administrador de sistema.

No que diz respeito aos dados contidos em suporte de papel, devem ser adoptadas medidas

organizacionais, que garantam um nível de segurança idêntico, impedindo o acesso e manuseamento indevidos.

Quando a recolha de dados pessoais referentes à saúde não for efectuada directamente pelo

profissional de saúde (por exemplo, preenchimento de um questionário directamente pelo titular dos dados), têm

de ser tomadas medidas concretas quanto à circulação dessa informação, que impeçam a visualização dos

dados por pessoa não autorizada (alíneas b) e h) do nº 1 do artigo 15.º da Lei 67/98), designadamente mediante

a entrega directa ao profissional de saúde ou entrega nos serviços, em envelope fechado, endereçado ao

profissional de saúde.

Independentemente das medidas de segurança adoptadas pela entidade responsável pelo tratamento, é

a esta que cabe assegurar o resultado da efectiva segurança da informação e dos dados tratados.

Note-se que o teste de controlo terá sempre de ser efectuado por profissional de saúde.

Comunicação de Dados

Sem prejuízo das comunicações legalmente previstas, não pode haver comunicação de dados.

A ficha clínica só pode ser facultada às autoridades de saúde e aos médicos da Autoridade para as

Condições de Trabalho (cf. n.º 2 do artigo 109.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro).

Prazo de conservação da informação

Nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 5º da Lei 67/98, os dados pessoais apenas podem

ser conservados durante o período necessário para prossecução das finalidades da recolha ou do tratamento

posterior.

Neste sentido, atenta a sensibilidade dos dados pessoais objecto de tratamento, fixa-se o prazo máximo

de conservação da informação em um ano.

Nas situações de existência de processo judicial, nomeadamente decorrente de acidente de trabalho ou

doença profissional, a informação pode ser conservada para além daquele prazo, enquanto se mostrar

necessária, designadamente para comprovação da situação de doença.

Direito de informação

A prestação de informação por parte do responsável do tratamento ao titular dos dados é um direito

essencial no regime de protecção de dados, com consagração constitucional.

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Ademais, o direito de informação é corolário dos princípios da boa fé, da lealdade e da transparência,

pelo que o titular dos dados deve «ter conhecimento da existência de um tratamento de dados pessoais e obter,

no momento em que os dados lhe são pedidos, uma informação rigorosa e completa das circunstâncias dessa

recolha» (cf. Considerando 38 da Directiva 95/46/CE).

Assim sendo, deve o responsável pelo tratamento, no momento da recolha dos dados, garantir que são

fornecidas ao trabalhador (titular dos dados) todas as informações constantes do nº 1 do artigo 10º da Lei

67/98.

Direito de acesso e rectificação

O direito de acesso aos seus dados pessoais por parte do titular, bem como o direito de os rectificar

são igualmente direitos fundamentais (n.º 1 do artigo 35.º da CRP), essenciais para a verificação dos princípios

da adequação, pertinência, exactidão e actualização dos dados pessoais (alíneas c) e d) do artigo 5.º da Lei

67/98).

No âmbito da finalidade de medicina preventiva e curativa no âmbito do controlo de alcoolemia ou de

consumos de droga, devido à natureza diversa dos dados objecto de tratamento, aplicam-se duas regras

distintas para o exercício do direito de acesso. Destas diferentes formas de acesso deve ser dado conhecimento

ao titular dos dados aquando da prestação do direito de informação.

Nos termos do nº 1 do artigo 11º da Lei 67/98, o titular dos dados tem o direito de obter directamente

do responsável do tratamento, livremente, sem restrições, com periodicidade razoável, sem demoras ou custos

excessivos, o conjunto das informações previstas nas alíneas a) a e) da norma acima mencionada.

Havendo, no contexto desta finalidade, lugar ao tratamento de dados de saúde, o direito de acesso

deverá ser exercido, nos termos do n.º 5 do artigo 11.º da Lei 67/98, isto é, por intermédio de médico escolhido

pelo titular dos dados, que pode ser, a solicitação do trabalhador, o médico do trabalho.

Quanto ao direito de rectificação, este é exercido junto do responsável pelo tratamento, que deverá

estabelecer a forma como o titular dos dados o pode fazer, no momento da prestação do direito de informação.

No entanto, dada a especificidade do tratamento de dados de saúde, quando houver lugar ao exercício

do direito de rectificação deste tipo de dados, deverá o trabalhador exercê-lo directamente junto do médico do

trabalho ou de profissional de saúde sujeito a segredo profissional, uma vez que o conhecimento destes dados

está limitado a estas pessoas.».

*

Daqui resulta que uma boa parte das interrogações antes formuladas, encontrou

resposta cabal nos princípios e regras definidos pela CNPD na Deliberação parcialmente

transcrita.

Acresce que algumas delas foram sancionadas pela jurisprudência dos nossos tribunais

superiores, designadamente quanto ao controlo prévio, finalidades e natureza dos dados

objecto de tratamento, assim como à tendencial obrigatoriedade de os exames e testes serem

regulamentados nas suas várias incidências, desde os trabalhadores a abranger, frequência,

conteúdo, finalidades, informação, contraditório, etc., através de regulamento interno da

empresa devidamente divulgado pelos trabalhadores, estando sujeito, prevendo tratamento de

dados sensíveis dos trabalhadores, a autorização prévia e controlo da Comissão, conforme se

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decidiu no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) nela citado, de 09.09.2010,

proferido no processo n.º 076/10, na 1ª Subsecção do contencioso administrativo, relatado

pelo Conselheiro Pais Borges, disponível no sítio http://www.gde.mj.pt/jsta.nsf, no qual se

discutiu a competência da CNPD para intervir e pronunciar-se sobre a validade do

Regulamento Interno instituído na Câmara Municipal do Porto sobre o controlo dos seus

trabalhadores aos testes e exames aqui em discussão.

Outras matérias mereceram o apoio jurisprudencial, como seja a da obrigatoriedade de

os testes serem realizados por pessoal médico e de enfermagem ou por técnicos habilitados na

área da segurança e saúde no trabalho, sob a responsabilidade de um médico, nomeadamente

do médico do trabalho, como parece resultar do texto e sumário do acórdão do Tribunal da

Relação de Lisboa (TRL), de 06.10.2010, proferido no processo n.º 475/07.7TTFUNC.L1-4,

relatado pela Desembargadora Paula Sá Fernandes, disponível no sítio

http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf, relativo a um trabalhador de uma fábrica de cervejas, com a

categoria de auxiliar de armazém, detectado com uma taxa de alcoolémia de 0,83, g/l.

Também assim quanto à utilização do regulamento interno da empresa como via

privilegiada de estatuição do regime dos testes, sem qualquer dependência de aceitação por

banda dos trabalhadores para produzir efeitos, como se decidiu em acórdão do mesmo

tribunal, de 15.09.2010, proferido no processo n.º 335/10.4TTFUN.L1-4, relativo a uma

providência cautelar pedida pelo STAAF (Sindicato dos Trabalhadores de Aviação e

Aeroportos do Funchal) contra o Regulamento Interno aprovado pela ANAM (Aeroportos e

Navegação Aérea da Madeira, SA), relatado pelo Desembargador Ferreira Marques e

disponível no mesmo sítio.

Outro tanto, quanto à natureza dos dados, à sua confidencialidade e irrelevância

probatória quando acedidos ilicitamente, e à inviabilidade de o simples consumo, em maior ou

menor grau, poder por si justificar o despedimento com justa causa de um trabalhador, como

se decidiu no muito comentado e glosado acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de

10.07.2013, proferido no processo n.º 313/12.9TTOAZ.P1, relatado pelo Desembargador

Eduardo Petersen, disponível no sítio http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf, em que se discutiu a

ilegalidade do acesso da entidade patronal concessionária dos serviço de recolha e tratamento

de resíduos sólidos urbanos ao resultado de relatórios clínicos com informação sobre valores

da taxa de álcool no sangue e, consequentemente, o seu nulo valor probatório por ser prova

proibida12

, nele se abordando igualmente, ainda que a título incidental, a necessidade de tais

dados apenas poderem ser conhecidos por pessoal médico, cuja informação àquela se deverá

12

Inferindo-se da sua fundamentação que o tribunal considerou aplicável no âmbito do processo disciplinar

laboral a disciplina consagrada artigo 32º, n.º 10, doa CRP.

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limitar à declaração de aptidão ou inaptidão para a actividade por parte do trabalhador, aqui

um trabalhador desqualificado daqueles serviços, a quem for detectada a presença de álcool

no sangue, assim como a validade dos regulamentos internos nesta matéria e a necessidade de

normas prévias da entidade empregadora a proibir o consumo no trabalho.

3. As dúvidas persistentes

Todavia, algumas dessas decisões revelaram também dissidências face aos princípios

elencados pela CNPD, como aconteceu com o primeiro dos arestos citados do TRL, quanto à

possibilidade de a simples prova de presença de álcool no sangue, ao arrepio do determinado

pela entidade patronal em Ordem de Serviço do conhecimento do trabalhador, com

antecedentes registados de mais duas situações de consumo, constituir justa causa de

despedimento, efectivamente decretado e confirmado nessa decisão.

O mesmo se diga do segundo dos acórdãos do TRL referidos, quanto à validade da

regra constante do regulamento interno sobre a possibilidade de qualquer trabalhador da

ANAM poder ser sujeito aos testes e/ou exames, o que se afigura desconforme com os

aludidos princípios de diferenciação, necessidade, adequação, etc, pelo simples facto de se

tratar de empresa de gestão de aeroportos.

Também no acórdão recente do TRP, de 30.06.2014, proferido no processo n.º

933/12.1TTBCL, relatado pelo Desembargador Rui Penha e disponível no mesmo sítio, em

que se discutia a validade do despedimento de um trabalhador da construção civil, a quem

fora detectada presença de álcool, mediante testes qualitativos, com alcoolímetros certificados

por entidade privada, que não pelo IPQ, efectuados por técnico de segurança, cujos resultados

foram comunicados à entidade patronal, em valor superior aos 0,50 g/l definidos na CCT para

o sector, com antecedentes e considerado reincidente, nos termos dessa mesma CCT, ainda

que acompanhada por regulamento interno da empresa que sujeitava à possibilidade de

submissão aos testes de qualquer trabalhador, considerou válido o despedimento, por

preenchida a justa causa, sem discutir a validade das cláusulas da CCT e do regulamento, nem

a licitude da prova assim obtida e levada ao conhecimento do empregador.

No mesmo sentido decidiu o acórdão do TRL, de 11.07.2002, relatado pelo

Desembargador Pereira Rodrigues, proferido no processo n.º JTRL00093310, também

disponível naquele sítio, aqui com a particularidade de se tratar de confirmação de

despedimento, baseada em prova de consumo no âmbito da condução rodoviária, em que fora

detectada para esse efeito uma TAS de 0,69, assim incorrendo o trabalhador em

contraordenação grave nos termos do Código da Estrada (CE), e em que se deu como assente

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que desse facto nenhuma funesta consequência adveio para quem que fosse, salvo para o

trabalhador.

E nos acórdãos do TRP, de 10.07.2006, proferido no processo n.º 0613312, disponível

no sítio mencionado sob o n.º convencional JTRP00039402, relatado pelo Desembargador

Ferreira da Costa, e do TRL, de 23.01.2002, relatado pela Desembargadora Maria João

Romba, proferido no processo n.º 0081314, disponível no sítio referenciado sob o n.º

convencional JTRL00039788, ambos relativos a acidentes de trabalho mortais, cuja

descaracterização se discutia e em que foi admitida e valorada a TAS detectada nos cadáveres

das vítimas nos respectivos relatórios de autópsia, cujos resultados foram facultados aos

intervenientes, incluindo a segurador a e entidade patronal, sem qualquer discussão pelos

tribunais sobre a legitimidade e legalidade desse acesso por parte daqueles e licitude e

validade da prova assim obtida.

*

Desta breve resenha jurisprudencial se conclui que entre os referidos princípios

definidos pela CNPD e a jurisprudência se verificam ainda dissonâncias de entendimento

sobres aspectos tão cruciais como o da possibilidade de o despedimento do trabalhador poder

derivar directamente da realização dos testes/exames e respectivo resultado positivo, o do

livre acesso da entidade patronal ao resultado desses exames e testes sem consequências ao

nível da sua valia probatória, assim como o da possibilidade de ser utilizado o resultado

positivo de pesquisas efectuadas noutros domínios, como no da fiscalização rodoviária, com

implicações ao nível do direito de mera ordenação social, ou em autópsias relevantes também

para fins criminais e cíveis, para efeitos jurídico – laborais, designadamente para integração

de justa causa de despedimento e de eventual descaracterização de acidente de trabalho.

Por outro lado, muitas das interrogações formuladas não foram ainda objecto de

tratamento jurisprudencial ou doutrinal que se conheça, tão pouco encontrando resposta nos

princípios elencados pela CNPD.

Algumas delas, de índole estritamente processual, como as possibilidades de reacção

dos trabalhadores à ordem de realização dos testes que considerem infundada e violadora dos

seus direitos, assim como relativamente à validade e ao conteúdo dos IRCT e regulamentos

internos, encontram resposta no Código de Processo do Trabalho (CPT), com as alterações

introduzidas pelo DL n.º 295/2009, de 13.10, seja ao nível dos procedimentos cautelares, seja

mediante recurso às acções especiais em matéria de anulação e interpretação de cláusulas de

convenções colectivas de trabalho e da tutela da personalidade do trabalhador, reguladas,

respectivamente, pelos seus artigos 4º e 183º a 186º, e 26º, n.º 1, al. g), e 186º - D a 186º - F,

devendo quanto a ambas ter também em atenção as pertinentes normas substantivas da CRP e

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do CT 2009, considerando, designadamente que em matéria de direitos fundamentais os IRCT

só podem dispor em sentido mais favorável aos trabalhadores, nos termos do disposto no

artigo 3º, n.º 3, al. a).

Fica por outro lado a dúvida sobre saber se o consumo de drogas e os efeitos negativos

que lhe andam associados quanto à manutenção da capacidade de trabalho com zelo e

diligência e de manutenção dos níveis de produtividade antes alcançados ou mesmo

determinantes de total incapacidade, apesar de as boas práticas apontarem no sentido de se

dever considerar sempre transitória a situação de dependência, são ou não susceptíveis de

preencher os requisitos da cessação do contrato de trabalho, por caducidade derivada de

impossibilidade superveniente absoluta e definitiva de o trabalhador cumprir a prestação a que

se obrigou, nos termos do artigo 343º, al. b), ou por inadaptação, nos termos dos artigos 373º,

374º, n.º 1. e 375, n.º 2, todos do CT 2009.

Quanto a outras consequências cíveis, contra-ordenacionais ou criminais resultantes do

consumo de drogas em meio laboral e do conhecimento do seu resultado apurado nos testes

ou exames de que aqui se trata, salvo eventual direito da entidade patronal em recusar a

prestação de trabalhador que os serviços de medicina do trabalho considerem inaptos para a

actividade, não se vê que elas possam aqui ter lugar, até em consideração do seu carácter

confidencial, impeditivo, portanto, do conhecimento pelas autoridades competentes para a sua

apreciação e punição no âmbito contraordenacional e criminal.

Já quanto à efectiva e igual aplicação das normas e princípios enunciados a todos os

trabalhadores, mesmo os que exercem funções públicas e os praticantes desportivos

profissionais, perfila-se de difícil defesa essa igualdade de tratamento.

Efectivamente, em face das normas especiais que regem a execução dos respectivos

contratos e que impõem aos praticantes desportivos particulares deveres de conduta extra –

laboral e laboral tendentes a preservar a capacidade física necessária à prática desportiva e o

inevitável dever de sujeitar-se aos exames e tratamentos a tanto necessários, nos termos do

artigo 13º, als. c) e d), da referida Lei n.º 28/98, de 26.0613

, e aos segundos o dever de

preservar a imagem e capacidade funcional dos empregadores públicos, ao ponto de

relativamente a eles a lei prever mesmo o sancionamento com pena de suspensão quando se

apresentem ao serviço em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou

drogas equiparadas, como estabelece o artigo 186º, al. b), da mencionada LTFP, salvo se se

enveredar pela inconstitucionalidade desta última norma.

13

Para maiores desenvolvimentos sobre a relação laboral desportiva e suas diferenças relativamente à relação

laboral comum, vide João Leal Amado, in “Vinculação Versus Liberdade - O Processo de Constituição e

Extinção da Relação Laboral do Praticante Desportivo”, Coimbra Editora, 2002.

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Quanto às situações de recusa indevida do trabalhador a submeter-se a testes ou

exames legitimamente determinados pelo empregador, como se afirmou no acórdão do STJ de

1998 acima referenciado, parece não restarem dúvidas de que esse comportamento se

traduzirá em violação do dever de obediência às ordens daquele, com potencial relevância

disciplinar.

Mais problemática se apresenta a questão de saber se os consumos detectados devem

ter sempre idêntico tratamento, sejam resultado de comportamentos aditivos no tempo e no

local de trabalho, sejam absolutamente alheios ao meio laboral.

Nesta última situação e considerando as orientações perfilhadas pela CNPD, que

subscrevo quanto à impossibilidade de qualquer resultado positivo poder ser directamente

determinante de sanção disciplinar, tudo aponta no sentido de tais consumos, só por si, como

os demais, salvo expressa proibição patronal de consumos no meio laboral, serem, por

maioria de razão, irrelevantes quanto ao acesso e permanência no trabalho, sem prejuízo dos

efeitos indirectos que neste se possam repercutir, em termos de cumprimento contratual.

4 Conclusões

É tempo de concluir, reafirmando a perplexidade que me levou no século passado a

defender candidamente ser legítimo ao empregador submeter todos os seus trabalhadores a

testes e exames para despistagem e controlo do consumo de drogas, desde que não

persecutórios e respeitadores do princípio da proibição do excesso e independentemente da

sua actividade, mais ainda quando a sua inércia relativamente a um trabalhador sob influência

de álcool ou outras substâncias psicoactivas o possa fazer incorrer em responsabilidade civil,

contraordenacional ou penal.

Mas reconheço que esse não foi o caminho trilhado pela lei, que, sem dúvida e em

homenagem a valores superiores de defesa de direitos fundamentais do trabalhador pessoa e

cidadão, estabeleceu um regime em que a realização de tais testes e exames constitui a

excepção, sendo a regra a da sua proibição, além de a condicionar a apertados requisitos

formais e informativos.

Mais, o regime estabelecido impõe também que o tratamento dos dados assim

excepcionalmente obtidos, quando necessário e personalizado, obriga a prévia autorização,

notificação e controlo pela CNPD, na medida em que se trata de dados de saúde ou relativos à

vida privada dos trabalhadores, também sujeitos ao regime da confidencialidade e apenas

acessíveis ao pessoal médico ou por este supervisionado e a outras autoridades sujeitas ao

mesmo dever de sigilo, salvo autorização daquela Comissão.

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E que o resultado positivo eventualmente apurado não pode ter qualquer consequência

disciplinar directa.

Apesar disso, é facto que a nossa jurisprudência ainda não reflecte em toda a sua

dimensão o regime instituído, de acordo com aquela que parece ser a sua melhor interpretação

e aplicação, pelo que se imporá um maior investimento no seu estudo, senão mesmo a revisão

das respectivas normas, cuja imperatividade é também indiscutível.

Lisboa, 22 de Outubro de 2014

João Rato