EDICAO ESPECIAL 03 MOD - TV Escola · no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de...

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TV, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: SALTO PARA O FUTURO 20 ANOS Edição Especial - 2013 Volume 3

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TV, ED

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20 ANOS

Edição Especial - 2013 Volume 1Edição Especial - 2013 Volume 2Edição Especial - 2013 Volume 3Edição Especial - 2013 Volume 4

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T911

TV, educação e formação de professores [recurso eletrônico] : Salto para o Futuro : 20

anos / Rosa Helena Mendonça, Magda Frediani Martins (org.). - Rio de Janeiro : ACERP ;

Brasília, DF : TV Escola , 2013.

4 v., recurso digital

Formato:

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Inclui bibliografia e índice

ISBN 978-85-60972-02-3 (v. 1) - 978-85-60792-03-0 (v. 2) - 978-85-60792-04-7 (v. 3) - 978-85-

60792-05-4 (v. 4) (recurso eletrônico)

1. Educação 2. Educação - Aspectos sociais 3. TV Escola (Programa de televisão) 4. Livros

eletrônicos. I. Mendonça, Rosa Helena II. Martins, Magda Frediani. III. Ministério da Edu-

cação.

13-1708. CDD: 370.981

CDU: 37(81)

15.03.13 20.03.13 043546

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Presidência da República

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Básica

TV, educação e formação deprofessores:

salTo para o fuTuro- 20 anos -

Organização

Rosa Helena Mendonça

Magda Frediani Martins

(Equipe de Educação da TV Escola)

Salto para o Futuro/TV Escola/ SEB-MEC

Rio de Janeiro/ Brasília

2013

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Volume 3 TEcEnDO naRRaTivaS EM EDucaçãO E DivERSiDaDE

SuMáRiO

apresentação ............................................................................................................ 5

Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins

3. 1 Literatura e identidade: tecendo narrativas em rodas de leitura ....................... 9

Pedro Benjamim Garcia

3. 2 Entre a dor de não poder ser e a conquista da alegria de ser ........................... 23

Narcimária Correia do Patrocínio Luz

3.3 Multiculturalismo, televisão e cotidiano escolar: um bornal de lembranças ... 35

Azoilda Loretto da Trindade

3.4 “isso vem do começo do mundo!” – Dados e anotações sobre

a cultura popular ............................................................................................ 50

Carlos Rodrigues Brandão e Alessandra Fonseca Leal

3.5 Para o Salto, de uma educadora ........................................................................61

Eleonora Gabriel

3.6 um rápido balanço ........................................................................................... 72

Ana Waleska P. C. Mendonça

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ApresentAção

Rosa Helena Mendonça1

Magda Frediani Martins2

A publicação TV, educação e formação de pro-

fessores: Salto para o Futuro – 20 anos come-

mora a trajetória do programa, ao longo de

duas décadas, destacando temas fundamen-

tais para o debate sobre TV, educação e for-

mação de professores. Esta publicação, na

sua versão digital, está organizada em qua-

tro volumes, expressos nos seguintes eixos:

Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS; Volu-

me 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS

CURRICULARES; Volume 3: TECENDO NAR-

RATIVAS EM EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE; Vo-

lume 4: NOVOS SABERES PARA A EDUCAÇÃO.

Este terceiro volume Tecendo narrativas em

educação e diversidade toma como matéria os

fios da memória e da experiência. Nele, os au-

tores narram, por diferentes vieses teóricos,

práticas que desenham currículos voltados

para uma sociedade multicultural e pluri-

étnica. Bordados são, assim, os caminhos e

preenchimentos de uma escola com cores

e nuanças de brasilidade. Nesse sentido, os

textos que se seguem expressam com suas

perspectivas alguns dos objetivos almejados

e perseguidos pelo programa. Se a narrativa

é o gênero primordial dos seres humanos,

e é por meio dela que nos constituímos e

que nos relacionamos com os outros, nada

melhor que dedicarmos um capítulo deste

livro, que trata dos 20 anos do programa

Salto para o Futuro, especialmente às nar-

rativas. Vale destacar que nos outros capí-

tulos as narrativas também dão o tom de

vários textos, o que evidencia a fragilidade

de algumas classificações que, no entanto,

se fizeram necessárias na organização de

uma obra. Aos leitores deixamos o desafio

de recompô-las!

No primeiro texto do terceiro volume desta

coletânea, Pedro Benjamim Garcia3 analisa

a inter-relação entre literatura e identidade,

no contexto de rodas de leitura. Essa e outras

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ.Organizadora da publicação.

2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora e revisora da publicação.

3 Pedro Benjamim Garcia participou de inúmeros debates no programa Salto para o Futuro e foi consultor da série Oralidade, memória e formação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2006.

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experiências com oralidade e leitura estive-

ram presentes na série Oralidade, memória e

formação. No texto, o autor ressalta, em es-

pecial, as rodas com adultos alfabetizandos,

a partir de uma experiência realizada em um

curso supletivo noturno em um colégio da

Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ). No relato

dessa experiência gratificante, o autor res-

salta que: “No processo de realização das ro-

das de leitura, é possível incentivar a busca

de maior autonomia para pessoas que, em

uma sociedade grafocêntrica, não dominam

a leitura e vivem em condições adversas, em

uma metrópole como o Rio de Janeiro”. Pe-

dro Benjamim Garcia comenta, ainda, que:

“Nas experiências com rodas de leitura, bus-

co a ‘gratuidade’ da leitura, o ler pelo prazer

de ler, bem como o desejo, nem sempre ex-

plícito, de que esta atividade possibilite que

as pessoas falem e coloquem para fora suas

fantasias e necessidades”.

narcimária correia do Patrocínio Luz4 se

reporta à sua participação no programa Sal-

to para o Futuro e traz, em seu texto, “um

mosaico de ilustrações”, visando aproximar

o leitor de “reflexões importantes envol-

vendo nossas comunidades afro-brasileiras,

ajudando-nos a pensar as práticas escolares

institucionalizadas que calam sobre a identi-

dade profunda de crianças e jovens descen-

dentes de africanos/as”. Os relatos selecio-

nados ocorreram no âmbito do Programa

Descolonização e Educação – PRODESE, que

tem como proposta “promover linguagens

educativas que estabeleçam uma relação di-

nâmica entre os valores sociocomunitários

da tradição afro-brasileira e os códigos da

sociedade oficial, exigindo e assegurando,

nessa relação, o direito à identidade própria

da nossa população”. A autora destaca, em

especial, a primeira experiência de Educa-

ção Pluricultural no Brasil, conhecida como

Mini Comunidade Oba Biyi (1976-1986), que

promoveu com muito êxito a educação de

crianças e jovens vinculados a uma comuni-

dade afro-brasileira na Bahia, a Ilê Axé Opô

Afonjá.

azoilda Loretto da Trindade5 expõe e discute

inquietantes questionamentos, como este:

“O reconhecimento da diversidade como

foco, como base, não elimina as distorções

causadas pelas relações de dominação e de

hierarquização das diferenças. Reconhecer

as diferenças não significa respeitá-las, se-

quer saber ou querer aprender a lidar com

elas de modo dialógico e inclusivo”. Segun-

4 Narcimária Correia do Patrocínio Luz participou como autora de textos e debatedora das séries Oralidade, memória e formação e Currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira, ambas com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2006.

5 Azoilda Loretto da Trindade foi consultora da série Multiculturalismo e educação (2002) e do documentário Africanidades brasileiras e educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2008. A autora participou ainda de inúmeros debates, em especial, nas séries envolvendo questões étnico-raciais nos currículos..

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do a autora, seu texto “se configura num

bornal – com algumas cenas, lembranças,

reflexões que foram constituindo uma tra-

jetória de uma educadora imersa nas ques-

tões da multiculturalidade, em diálogo com

vários campos de conhecimento, sobretudo,

no caso deste texto, relacionados à educa-

ção e à televisão”. Neste “bornal”, Azoilda

Trindade traz questões abordadas no pro-

grama Salto para o Futuro e apresenta múl-

tiplas discussões sobre os temas multicul-

turalismo, diversidade, interculturalidade,

pluralidade, apontando para a necessidade

de “compreender a nossa humanidade tão

ampla e tão diversa que, hoje, parece ter

uma visibilidade questionadora, que grita e

afirma diferenças, singularidades, coletivi-

dades, muitas vezes silenciadas, ocultadas,

invisibilizadas”.

carlos Rodrigues Brandão6 e alessandra

Fonseca Leal abordam a temática da cul-

tura popular e do patrimônio cultural imate-

rial numa dimensão sociopolítica, tendo em

vista que “o reconhecimento da existência

e da pluralidade de culturas populares vem

associado ao reconhecimento – sob as mais

divergentes interpretações – de que tal fato

se deve a desníveis sociais que acompanham

a própria trajetória das sociedades auto-

proclamadas como civilizadas”. Os autores

reportam-se aos estudos dos primeiros fol-

cloristas, como Cecília Meireles, Mário de

Andrade, Câmara Cascudo e Alceu Maynard

de Araújo, que com as suas pesquisas pio-

neiras mostraram as criações culturais de

diversas regiões do Brasil. Discutem, ainda,

os movimentos de cultura popular dos anos

1960, como as experiências inovadoras de

educação, o alvorecer do cinema novo no

Brasil, o teatro do oprimido e as iniciativas

dos centros populares de cultura. Com muita

propriedade, também criticam a invasão da

mídia e da “massa” sobre as qualidades ar-

tísticas tradicionais das culturas populares e

preconizam a necessidade da “construção de

vias de mão dupla nas relações entre a escola

(dentro e fora da sala de aula) e as culturas

populares (dentro e fora das escolas). Esses

temas sobre cultura popular e patrimônio

imaterial e alguns outros como a educação

ambiental estiveram presentes em debates

no programa Salto para o Futuro.

Eleonora Gabriel7 relembra suas diversas

participações no Salto para o Futuro, salien-

tando sua alegria por ter tido a oportunida-

de de falar das “expressões multiculturais

6 Carlos Rodrigues Brandão foi consultor do documentário Cultura popular e educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2007, tendo ainda contribuído com entrevistas e depoimentos em outras oportunidades.

7 Eleonora Gabriel foi consultora da série Linguagens artísticas da cultura popular, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) em 2005. Participou também de séries voltadas para as diversas expressões artísticas da cultura brasileira, em especial a dança.

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que colorem os jeitos de ser, pensar e agir

do povo brasileiro”. Ressalta, ainda, “a ne-

cessidade de falar de inclusão, de diversida-

de, de educar para a diferença (...) abrindo

as possibilidades de trançar arte e cultura

popular na educação, pensando em identi-

dades e cidadania brasileiras”. Entre outras

reflexões, a autora comenta: “Difícil saber

quem somos se não aprendemos na escola

o valor cultural e artístico de nossa forma-

ção, que reuniu, e continua reunindo, vá-

rios jeitos, conhecimentos e modos de fazer.

Somos no plural, precisamos cada vez mais

criar modos de educar para a diferença, para

a diversidade de nossa vida, nossa família,

nossos alunos, nossa escola, nossa cidade,

nosso estado e país”.

ana Waleska P. c. Mendonça8 em forma de

depoimento, comenta sobre os desafios de

produzir um texto que teve como proposta

resgatar a memória dos 20 anos do progra-

ma Salto para o Futuro. Ela se reporta às

séries e especiais de que participou, como

educadora e historiadora, e sobre sua grati-

ficante experiência atuando como consulto-

ra na edição especial Educação no Brasil: dos

jesuítas ao ano 2000: “Foi interessante viven-

ciar essas etapas tão diferentes da elabora-

ção do programa: as longas horas de grava-

ção e, depois, a montagem, o que implica

selecionar e recortar, com base em critérios

diversificados e de ordem igualmente muito

diferenciada. Estes têm a ver com a estética

do programa, com a sua coerência interna,

com os objetivos que se quer atingir, com

o(s) público(s) a que o programa se dirige

(...). A experiência se constituiu para mim,

sem dúvida, numa significativa aprendiza-

gem”. A autora ressalta, ainda, a importân-

cia da participação de “uma historiadora da

educação, que tem por ofício a reconstrução

incessante do passado, num programa que

se intitula Salto para o Futuro”.

As organizadoras

8 Ana Waleska P. C. Mendonça foi consultora do documentário Educação no Brasil: dos jesuítas ao ano 2000, com veiculação no Salto para o Futuro, no ano de 2000. Como debatedora, participou de diversas séries do Salto, citadas no início de seu texto.

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3. 1 lIterAturA e IDentIDADe: teCenDo nArrAtIVAs em roDAs De leIturA

Pedro Benjamim Garcia9

aPRESEnTaçãO: RODaS DE LEiTuRa E FORMaçãO

A educação busca formar pessoas. Mas... o

que é formar? Fala-se em formação com o

pressuposto de que o seu significado é idên-

tico para todos, o que nem sempre é o caso,

tendo em vista que trabalhamos com valo-

res, área pantano-

sa onde o consenso

passa longe. Talvez

se possa afirmar

que, quando fala-

mos em Educação, é

a transformação que

buscamos, transfor-

mação que não está

isenta de conformis-

mo e deformação.

Como educador, busco a autonomia do edu-

cando. A pedagogia desta proposta se ex-

plicita – no meu caso – em roda de leitura.

Através desta experiência busco ligar sujeito

e conhecimento, o que significa que o sujei-

to não está apartado da construção do co-

nhecimento que nasce do coletivo (no caso,

a roda, onde o saber circula). Para que essa

construção de conhecimento se dê é neces-

sário ter a capacidade de escutar, dialogar e

negociar significados. Aprendizado possível

de ser realizado nas

rodas de leitura, que

privilegiam a escuta,

o diálogo e a negocia-

ção de significados.

Escuta porque tenho

que ouvir o que o

outro (ou os outros)

têm a dizer; diálogo

porque, reagindo a essa fala, coloco minha

opinião sobre o que está sendo debatido; ne-

gociação de sentido, porque nem sempre há

consenso acerca dos temas que estão sendo

tratados, podendo-se chegar a um denomi-

nador comum – em alguns casos por mútuas

concessões – ou à manutenção da divergên-

9 Professor do Mestrado em Educação da Universidade Católica de Petrópolis. Formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ; mestre em Educação pela PUC/RJ e doutor em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ). Pesquisador do CNPq, desenvolve trabalhos ligados à formação do leitor na universidade e em favelas do Rio de Janeiro.

Como educador, busco a

autonomia do educando. A

pedagogia desta proposta

se explicita – no meu caso –

em roda de leitura.

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cia (cada um mantendo o seu ponto de vista,

antagônico ao do outro ou outros).

Esta é uma experiência muito gratifican-

te, tanto para quem dela participa quanto

para o leitor-guia que anima o processo de

conhecimento, como expressa uma profes-

sora: “É preciso que nós, educadores, pro-

porcionemos aos nossos alunos um contato

prazeroso com a escrita e leitura, para que

elas possam se constituir numa fonte de in-

formação, prazer e reflexão. Nesse sentido,

o curso representou mais um passo para

que (re)descobríssemos o mundo da leitura

e por ele nos apaixonássemos”.

Foi a partir dessa mesma perspectiva que,

ao ser convidado para a consultoria da série

Oralidade, memória e formação (2006), no pro-

grama Salto para o Futuro, apresentei a pro-

posta dos programas, que tiveram como fio

condutor a oralidade e a memória, em suas

diversas dimensões: cultural, social e históri-

ca. Os artigos escritos para esta série foram

retomados no livro Educação e identidade: for-

mação, oralidade e memória, organizado por

mim e por Maurício Castanheira (2007).

Das experiências que tenho desenvolvido com

rodas de leitura, destaco neste texto uma par-

ticularmente significativa por se tratar de um

público de adultos alfabetizandos, oriundos de

uma cultura eminentemente oral.

1. inTRODuçãO

Neste texto, analiso a inter-relação entre li-

teratura e identidade10, no contexto de rodas

de leitura11 com adultos alfabetizandos, a

10 Segundo Andre Green (GREEN apud STRAUSS, 1981. p. 88), várias ideias se agrupam em torno do termo identidade. Em primeiro lugar, a identidade está ligada à noção de permanência que escapa às mudanças que possam afetar o sujeito no decorrer do tempo. Em segundo lugar, assegura a existência do que está separado, permitindo circunscrever a unidade, indispensável para se fazer distinções. Por último, a identidade é uma das relações possíveis entre dois elementos, através da qual se estabelece a semelhança absoluta que reina entre eles, permitindo reconhecê-los como idênticos. Estas três características são solidárias: constância, unidade e reconhecimento do mesmo.

Ainda em relação à identidade, Kobena Mercer afirma que a mesma “se transforma numa questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é movido pela experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER apud HALL, 1999).

Segundo Stuart Hall, (...) foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para este ‘supermercado cultural’. Dentro do discurso de consumismo global, as diferenças e as distinções culturais que até então definiam a identidade, estão reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, à qual podem traduzir-se todas as tradições específicas e todas as identidades diferentes (HALL, 1999).

Esta tendência a uma homogeneização cultural, vinculada por um mercado global que invade a privacidade das casas através de aparatos de tevê, constrói um imaginário coletivo por meio de um chamado ao consumo que alcança quase toda a aldeia global.

11 Uma roda de leitura se caracteriza, como diz o nome, por um círculo ou semicírculo, reunindo um determinado número de pessoas em torno do leitor-guia.

O leitor-guia lê o texto em voz alta e, em geral, o distribui para que os participantes da roda acompanhem sua leitura. Dinamizar o grupo, fazer com que as pessoas se expressem e postulem, de forma aberta e dinâmica, suas questões, além de conhecimentos básicos em torno do que é lido, são qualidades que se espera do leitor-guia.

O número de participantes não deve ser tão reduzido que não permita uma variedade de opiniões, nem tão extenso que se perca a possibilidade de distinguir quem é quem.

O tempo de duração pode variar de uma a uma hora e meia, dividido entre a leitura e o debate; sendo uma hora, dez a quinze minutos de leitura me parece um tempo razoável, ficando os restantes 45 a 50 minutos para o debate.

O local deve ser fechado, espaçoso, despojado e silencioso.

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partir de uma experiência realizada em um

curso supletivo noturno em um colégio da

Zona Sul do Rio de Janeiro.

Nesse curso, as rodas de leitura foram re-

alizadas durante um semestre, duas vezes

por semana (segundas e quartas-feiras),

das 18h30min às 19h30min, com cerca de

20 alunos, dos quais doze (4 homens e 8

mulheres) permaneceram do início ao fim,

sendo que os demais apareciam esporadi-

camente.

As mulheres participantes eram, em sua

maioria, empregadas domésticas, sendo

uma governante e outra manicure; os ho-

mens eram faxineiros e porteiros de edifício,

sendo um biscateiro e um outro com ativi-

dade desconhecida.

Exceto uma das mulheres, todos eram nor-

destinos. Este evento – realizado antes do

início das aulas – não fazia parte do currícu-

lo do colégio, sendo gratuito e de presença

não obrigatória.

A proposta de realizar estas rodas de leitura

partiu do meu interesse em tentar compre-

ender a inter-relação da leitura literária com

a formação do leitor e, consequentemente,

com a sua identidade.

No contato com o colégio, fiz questão de

desvincular as rodas de leitura do aprendiza-

do escolar dos alfabetizandos. Isso porque,

no meu entender, a escola – com o seu saber

instituído – pouco explora a gratuidade do

saber e o imaginário dos alunos.

Apesar de esta desvinculação ter se concre-

tizado, o fato de a experiência ocorrer no

interior de uma instituição de ensino cau-

sou o estranhamento de um acontecimento

(rodas de leitura com textos literários) fora

do lugar (escola). Busquei o debate e a tro-

ca de ideias, tanto quanto possível, fora da

hierarquia professor/aluno, mas acabou se

impondo a imagem do professor e não do

leitor-guia (como eu desejava).

2. FORMaçãO DO LEiTOR E

iDEnTiDaDE

Na inter-relação entre leitura e formação do

leitor está implícita a construção da identi-

dade. Isso porque o processo de formação

do leitor incide na subjetividade de cada lei-

tor-ouvinte (que é o caso da roda de leitura,

onde se privilegia a leitura oral de um texto).

Exemplar, neste sentido, é a pesquisa de

Carlo Ginzburg: O queijo e os vermes – O co-

tidiano e as ideias de um moleiro perseguido

pela Inquisição. Chama a atenção, nessa in-

vestigação, como o moleiro Menocchio cria

uma cosmogonia a partir de suas leituras e

observações cotidianas. No caso – como res-

salta Ginzburg – o importante não é tanto o

que Menocchio lê, mas como lê, o que faz de

suas leituras e como as transforma em con-

vicções próprias. Em síntese, como ele é por

elas formado, como se transforma enquan-

to sujeito, vale dizer, como vai constituindo

sua identidade.

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Nas rodas de leitura, busquei compreender

as redes de significados enunciados a partir

dos pontos de vista do outro, no caso, os alu-

nos adultos em processo de alfabetização.

Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira,

na apresentação do livro que organizaram,

Usos e abusos da História Oral, chamam a

atenção para a possibilidade de a

(…) história oral esclarecer trajetórias

individuais, eventos ou processos que às

vezes não têm como ser entendidos ou

elucidados de outra forma; são depoi-

mentos de analfabetos, rebeldes, mulhe-

res, crianças, miseráveis, prisioneiros,

loucos... (FERREIRA; FIGUEIREDO, 1996,

p. XIV).

Parto do pressuposto de que as narrativas

são formas de autoria. Se existe capacidade

de narrar, de inventar, de projetar a imagina-

ção, existe reinvenção de si mesmo.

3. nOME PRóPRiO E iDEnTiDaDE

Iniciei o primeiro encontro com o “exercício

do nome”, que consiste em cada participan-

te contar a origem do seu nome. O objetivo

é fazer com que o alfabetizando, que che-

ga envergonhado ao curso de alfabetização,

diga quem é, de onde veio, a razão de se

chamar João, José, Teresa, Maria, Severino,

Isaura etc. Esta fala inicial possibilita que to-

dos comecem a se conhecer e a estabelecer,

entre si, um nível de sociabilidade.

Como quase todos têm baixa autoestima,

esta exposição e o intercâmbio de nomes

fazem com que os participantes da roda ini-

ciem um processo de reconhecimento mú-

tuo que os fortalece coletivamente.

As razões de cada um se chamar Y, X ou Z são

bastante variadas. Artista de cinema, santo

de devoção, jogador de futebol, nome do pai

ou da mãe são comuns como referência.

Ainda acerca do nome próprio, busco na li-

teratura a associação do nome com a identi-

dade, como no caso do poema “Morte e vida

severina”12, de João Cabral de Melo Neto,

em que o personagem busca, a partir do seu

nome, dizer quem é.

É interessante perceber, nos depoimentos, o

gostar e o não gostar do seu nome. E as ra-

zões são várias. Em alguns casos, o nome se

“encaixa” a quem assim se chama; em outros,

o nome estranho foi aos poucos assimilado

“e hoje, sim, eu gosto”. Há, também, aqueles

que rejeitam seu nome porque está associado

a uma pessoa desagradável ou porque não lhe

parece apropriado ao “seu jeito de ser”13.

12 Interessante, no início do conhecido poema de João Cabral, “Morte e vida Severina”, é a busca de identificação do seu personagem. Primeiramente pelo nome, que é a forma primeira e mais explícita de ser. Mas esta tentativa falha. E falha porque os severinos são iguais não apenas no nome, mas “em tudo na vida”. Diante disto só resta ao Severino do poema apontar-se a si mesmo como aquele que fala, distinguindo-se dos demais. É que a questão da identidade não é fácil. No caso de Severino é a busca de afirmar-se a si mesmo para o outro que o escuta – outro que é absolutamente necessário para a afirmação do eu.

13 Para falar do inconformismo quanto ao nome, indico o poema “A Antonin Artaud”, de Mário Cesariny (CESARINY, 1999, p. 50-51).

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Seja como for, o nome é sempre um parâme-

tro significativo na identidade de cada um.

Não saber a origem do mesmo, como ocorre

com alguns poucos, pode ser significativo.

Este tipo de procedimento costuma desinibir

os mais tímidos, porque os relatos pessoais,

em função do lugar de origem e da classe

social, fazem com que as histórias tenham

muito em comum.

Posteriormente são lidos, nas rodas, textos

de ficção e poesia. Neles os participantes

encontram (ou pro-

duzem) pontes onde

encontram elemen-

tos de identificação

que lhes permitem

se posicionar em re-

lação ao que é lido.

Para que isto ocor-

ra, é importante o

desempenho do leitor-guia, que é quem lê

os textos. É ele quem anima o grupo, incen-

tivando o uso da palavra, fazendo perguntas

acerca do que foi lido e, quando solicitado,

dando explicações acerca do autor e do texto.

Em todo este processo de rodas de leitura

coloca-se a busca de maior autonomia para

pessoas que, em uma sociedade grafocêntri-

ca, não dominam a leitura e vivem em con-

dições adversas, em uma metrópole como o

Rio de Janeiro.

4. LEiTORES EM FORMaçãO

É possível incentivar a formação de leito-

res de camadas populares, em processo de

alfabetização, a partir da literatura? O al-

fabetizando, que tem um domínio precário

da leitura, “lê” através do outro, no caso, o

leitor-guia.

E aqui faço um parêntesis para lembrar de Jor-

ge Luis Borges falando da sua cegueira, em um

poema que reproduzo em seu início: “Nadie re-

baje a lágrima o reproche./ Esta declaración de

la maestria/ De Dios,

que com magnífica

ironia/ Me dio a la

vez los libros y la no-

che” (BORGES, 1977,

p. 119).

Alberto Manguel,

um dos leitores de

Borges cego, relata a

sua experiência:

Antes de encontrar Borges, eu lia em

silêncio, sozinho, ou alguém lia em voz

alta para mim um livro de minha esco-

lha. Ler para um cego era uma experiên-

cia curiosa, porque, embora com algum

esforço eu me sentisse no controle do

tom e do ritmo da leitura, era todavia

Borges, o ouvinte, quem se tornava o se-

nhor do texto. Eu era o motorista, mas a

paisagem, o espaço que se desenrolava,

pertenciam ao passageiro, para quem

É possível incentivar a

formação de leitores de

camadas populares, em

processo de alfabetização, a

partir da literatura?

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não havia outra responsabilidade senão

a de apreender o campo visto das jane-

las. Borges escolhia o livro, Borges fazia-

me parar ou pedia que continuasse, Bor-

ges interrompia para comentar, Borges

permitia que as palavras chegassem até

ele. Eu era invisível.

E mais adiante:

(...) ler em voz alta para ele textos que

eu já lera antes modificava aquelas lei-

turas solitárias anteriores, alargava e

inundava minha lembrança dos textos,

fazia-me perceber o que não percebera

então, mas que agora parecia recordar,

sob o impulso da reação dele (MAN-

GUEL, 2004, p. 33).

Esta imagem de um cego ilustre, um dos

maiores escritores do século XX, apaixona-

do por livros, leitor voraz que perde a visão,

me veio à mente por causa do meu contato

com alfabetizandos que, frequentemente,

utilizam a metáfora da cegueira para falar

da sua pouca capacidade para ler.

De um lado Borges, alguém que leu intensa-

mente e procura olhos para seguir lendo; de

outro, os que buscam o universo da leitura de

forma tateante, como se a luz fosse escassa.

Imagino a emoção de ser leitor de Borges e

entendo porque, mesmo cego, era o escritor

(passageiro) que conduzia o motorista (lei-

tor), fazendo-o modificar suas “leituras soli-

tárias anteriores”.

Busco na memória os leitores em processo

de alfabetização, para quem eu lia textos

em rodas de leitura, tentando estabelecer

conexões com a experiência de Manguel.

Se nesta relação o poder (de condução) es-

tava com Borges, na minha experiência era

eu que conduzia a leitura. Conduzia como

quem segura a bicicleta de um aprendiz que

necessita andar sozinho. Neste processo, a

habilidade de quem ensina é segurar a parte

traseira da bicicleta sem que o futuro ciclis-

ta, que olha para frente, perceba se o veículo

está (ou não) seguro por outras mãos.

Este processo não é linear. Há um segurar

e um soltar que depende da sensibilidade

de quem conduz o processo (o leitor-guia) e

da maior ou menor perícia do aprendiz que,

sem se dar conta, pouco a pouco vai assu-

mindo a condução do veículo, ou seja, vai

aprendendo a ler.

Busco que o outro se forme como leitor (con-

dutor), utilizando a literatura para incentivar

o seu desejo de ler e possibilitando, desta for-

ma, que adquira o gosto pela leitura.

Mas qual o ponto em comum e a diferen-

ça entre sujeitos tão discrepantes: Borges e

meus leitores em processo de formação?

Ambos leem através de um outro. A dife-

rença é que Borges já percorreu inúmeras

vezes o caminho da leitura, sabe as trilhas,

embora não mais possa percorrê-las sozi-

nho; enquanto os “meus” leitores, embora

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disponham de olhos para ler, decodificam

precariamente o que veem. Por isso Borges,

senhor sem olhos, pode fazer correções, im-

por ritmos, sugerir interpretações. Em cer-

to sentido, instruir aquele que lê, porque já

sabe os meandros da leitura.

Minha intenção era fazê-los adquirir quali-

dades borgeanas de corrigir, impor ritmo e

interpretar. Objetivo ambicioso que vale a

pena perseguir mesmo sabendo, como dis-

se Borges – e eu cito de memória – que “os

bons leitores são cisnes ainda mais negros e

singulares do que os bons autores”.

Em um caso e outro, seja o leitor-guia ou o

leitor guiado, aquele que lê é, quase sem-

pre, um leitor apaixonado por determinados

textos. E são esses textos que em geral lê,

buscando passar para o outro a sua própria

emoção. O que não significa que terá êxito.

Mas é, digamos, condição mínima para que

tenha algum sucesso.

E nesta relação entre motorista e passagei-

ro, para usar a metáfora de Manguel, as tro-

cas se sucedem.

5. Da LEiTuRa E DO iMaGináRiO

Imaginário é um termo que abrange inúme-

ras definições, seja no campo da Filosofia,

seja na área da Psicologia. No que concerne

a este texto, seu entendimento está restrito

à forma como cada um interpreta as narra-

tivas, os acontecimentos cotidianos e a sua

própria maneira de ser e atuar, apontando

para o imprevisível, explicando o improvável

e antecipando o porvir.

Nas experiências com rodas de leitura, bus-

co a gratuidade da leitura, o ler pelo prazer

de ler, bem como o desejo, nem sempre ex-

plícito, de que esta atividade possibilite que

as pessoas falem e coloquem para fora suas

fantasias e necessidades. Enfim, o desejo da

emergência da fala produzindo autoestima

pela reconstituição de uma identidade frag-

mentada: de um lado, a negação de si intro-

jetada socialmente e, de outro, a busca de

um eu a ser reconstruído. Ilustrativo desse

processo de reconstrução do eu é a disser-

tação de Maria do Socorro Martins Calhau,

que coloca em primeiro plano a questão da

identidade em um trabalho de alfabetização

com operários da construção civil. A mudan-

ça do comportamento desses operários no

decorrer do curso, visível no cuidado com a

higiene pessoal e no vestir, ficou mais evi-

dente quando um deles sentenciou: “Eu tô

virando outro” (CALHAU, 1994, p. 52).

Esta transformação, quando ocorre, é lenta

e se processa no decorrer da experiência. A

conquista da fala é a conquista primeira. De

início, diziam que não sabiam falar ou que o

que falavam não tinha importância. Pouco

a pouco foram se desinibindo e, a partir dos

textos lidos em voz alta, faziam comentários

e passavam a contar histórias.

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E aqui é interessante nos reportarmos ao co-

nhecido texto de Walter Benjamin, “O narra-

dor”, em que ele afirma:

Cada vez mais rara vai se tornando a pos-

sibilidade de encontrarmos alguém ver-

dadeiramente capaz de historiar algum

evento. Quando se faz ouvir num círculo o

desejo de que seja narrada uma historieta

qualquer, transparecem, com frequência

cada vez maior, a hesitação e o embaraço.

É como se nos tivessem tirado um poder

que parecia inato, a mais segura de todas

as coisas seguras, a capacidade de tro-

carmos pela palavra experiências vividas.

Uma das causas desta situação é óbvia: as

experiências perderam muito do seu valor.

E parecem que assim continuam perdendo

(BENJAMIN, 1993, p. 197).

Walter Benjamin nos fala do desgaste nas

relações humanas pela falta de intercâmbio

das experiências vividas. Se isto ocorre no

cotidiano, o mesmo não ocorria nas rodas

de leitura. Nelas, pelo menos na experiên-

cia que estou narrando, os alfabetizandos

falavam de si mesmos e contavam casos,

estimulados pelas histórias da própria roda.

Histórias das quais, inicialmente, eles des-

confiavam, questionando o sentido das mes-

mas. Como na pergunta de Júlio: “Isso está

servindo para alguma coisa? Tá dando certo?

Se depender de mim vai ser ruim” (MACHA-

DO, 1999, p. 67). É como se ele delegasse ao

leitor-guia a avaliação do significado desta

experiência. Penso que imaginava que algo

tão trivial quanto contar histórias deveria

resultar em nada. Muito menos se depen-

desse dele, que afirmava “não dar muito pra

essas coisas de contar história” e só estava

ali “pra aprender alguma coisa”.

No entanto, Júlio permaneceu no grupo até o

final e contava histórias, como a que segue:

As histórias da gente é negócio de pesca.

Porque lá onde eu morava era mais de

pesca. Eu sou da Paraíba, mas fica perto

de Cabideiro, tudo litoral de praia. Eles

contavam histórias. Mas era... Era histó-

ria de lobisomem, histórias de pescador.

A gente saía às duas horas, tá entenden-

do, e aí no caminho ia sempre contan-

do. Passava em frente ao cemitério, e a

gente contava muitas histórias, mas eu

não me lembro. Eles inventavam, men-

tia só pra fazer medo na gente. Pescador

antigo sabia que a gente tinha medo de

passar no cemitério. No mar às vezes o

barco virava, a gente tinha que arrumar

a corda. Um sofrimento danado. Eu era

pescador e tirador de coco. Lá tem um

proprietário dos coqueiros e aí vem um

operário pra tirar o coco e dá um real

para cada pé de coqueiro. Às vezes fica

um de cabeça pra baixo e tem que ir um

lá tirar (MACHADO, 1999, p. 67).

É importante frisar que quase todos con-

tavam histórias, e alguns muito bem, com

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detalhes, com humor, dando vida aos per-

sonagens.

Superado o momento do uso espontâneo da

fala, é importante focalizar o como se fala.

Aí também está presente a questão do po-

der, da discriminação, que se evidencia tan-

to na pronúncia, que indica a proveniência

regional, quanto no ziguezague, de idas e

vindas e repetições, que muitas vezes ocorre

na fala popular. A reprimenda de D. Quixote

a Sancho é, neste sentido, exemplar:

Se dessa maneira contas teu conto, San-

cho, repetindo duas vezes, não acaba-

rás em dois dias; conta seguidamente, e

conta-o como homem de entendimento,

e se assim não for, não digas nada (CER-

VANTES apud FRAGO, 1993, p. 20).

Sancho acaba impondo a sua maneira de

contar, que é a única que conhece e difere

da fala de D. Quixote, próxima da legitimida-

de da norma culta.

Esta questão de poder, que se manifesta

através da fala, do que se fala e do como se

fala, pode sofrer discriminação dentro do

próprio grupo de alunos de origem nordes-

tina. O sotaque, que indica a proveniência

regional, no caso o Nordeste, é rejeitado e

substituído – até onde é possível – pelo jeito

carioca de falar.

Antônia explicita isto de forma clara, drama-

tizando: “Quando volto à minha terra ouço:

‘Ontonha’. Então tenho que dizer: não é On-

tonha, é Antônia” (MACHADO, 1999, p. 47-

48). O grupo ri, acha engraçado e entende a

diferença. Diferença de quem “conquistou o

Sul”, “sabe o seu lugar”, e não permite que

Ontonha substitua Antônia.

Ela não escondia o seu lugar de origem, mas

buscava evidenciar a conquista de uma po-

sição que a diferenciava dos que permane-

ceram em sua terra natal. O fato de traba-

lhar como doméstica na casa de uma família

abastada reforçava o seu status. Como pare-

cia herdar as roupas da patroa, apresentan-

do-se como alguém de classe média, a mu-

dança ficava ainda mais ressaltada.

O “não saber falar” expressa uma diferença

percebida pelas pessoas das camadas popu-

lares em relação a um outro que “sabe fa-

lar” porque detém a fala legítima. Como não

têm esta competência, sentem-se inferiori-

zadas e calam-se.

Júlio, que veio para o Rio de Janeiro aos 21

anos, dizia não sentir saudade de sua terra.

Achava que era “mil vezes melhor” sua vida

atual. Lá, dizia ele, continuaria “pescando e

tirando coco”. Em certo sentido compara a

mesmice de algo que se repete e “não tem

futuro” com a dinâmica da grande cidade

que, com todas suas mazelas, oferece a pos-

sibilidade de “melhorar” de vida.

Um dia, brincando com Júlio, perguntei se

suas histórias eram de “pescador”. Histórias

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de pescador, aqui no Brasil e não sei se em

outros lugares do mundo, são tidas como

mentirosas. Em geral, é voz corrente dizer

que contam “vantagens”, aumentando os

fatos, seja em relação ao que pescaram ou

a aventuras que tenham passado no mar.

Respondeu que não, que eram histórias ver-

dadeiras.

Embora se esquivasse de contar histórias,

apontando para outra pessoa do grupo, Jú-

lio acabou contando várias (como a narra-

da anteriormente). Não só contava como

lia e, no final do curso, comentou: “Quando

eu peguei o hábito de ler, eu não parei mais

não. Todo o dia eu tô lendo alguma coisa”

(MACHADO, 1999, p. 69).

6. HiSTóRiaS vERDaDEiRaS

PORquE invEnTaDaS

Guimarães Rosa, em A hora e a vez de Augus-

to Matraga, afirma que a sua história não

contém mentiras porque é tudo invenção.

Inventar, neste sentido, se torna algo emi-

nentemente criativo.

Uma observação que registrei, nesta expe-

riência, foi a forma como as pessoas origi-

nárias do Nordeste tratavam as histórias

passadas em áreas rural e urbana. Na área

rural, o mágico, a oralidade; na área urbana,

a escrita, a racionalidade. Ou, como sinteti-

za Paul Zumthor: “as cidades são filhas da

escrita” (ZUMTHOR, 1993, p. 91). Escrita que

a escola ensina e tem pouco ou nenhum es-

paço para o sobrenatural, o mágico, o que

foge à racionalidade, ao pragmático.

Quebrada a resistência inicial, as histórias

da terra de origem surgiram em profusão,

como neste exemplo:

Eu morava no Norte com os meus pais.

À noite, um dia, eu e minha irmã ouvi-

mos um barulho, quando abrimos a por-

ta para ver o que era, não vimos nada.

Quando nós acordamos, no dia seguinte,

os bichos estavam amarrados ou ma-

chucados e ninguém sabia explicar o que

tinha acontecido. Todo mundo fala lá no

Norte que foi o lobisomem que fez isso.

Meu pai fez uma armadilha e viu o lobi-

somem. Há pouco tempo atrás liguei pra

minha terra pra saber notícias. Meu pai

falou que o lobisomem estava preso. Ele

me disse que era metade homem, me-

tade bicho. Uma coisa horrorosa. (MA-

CHADO, 1999, p. 72).

Esta história foi ouvida por todos e ninguém

demonstrou incredulidade. Pelo contrário, ou-

tros se apressaram a contar casos sobrenatu-

rais. Luzia também contou o seu, mas fez uma

ressalva: “isso acontece muito é no interior, eu

acho que aqui na cidade grande não tem essas

coisas não” (MACHADO, 1999, p. 72).

Distinguindo o que ocorria no campo e na ci-

dade, Luzia mantinha as suas crenças e não

desdenhava os acontecimentos do passado.

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7. HiSTóRia LiDa E HiSTóRia

cOnTaDa

Das rodas de leitura participavam, de vez

em quando, escritores e contadores de his-

tórias. Líamos os textos do autor convidado,

o que despertava, nos participantes da roda,

a curiosidade de como produziam seus tex-

tos, detalhes de situações e personagens, se

o fato narrado era verídico etc.

O contador de histórias era muito apreciado

pelo grupo. Segundo o depoimento de um

deles: “Ele fala como se tivesse acontecido

de verdade. Se a gente parar pra pensar, até

chora” (MACHADO, 1999, p. 78).

Paul Zumthor fala desta diferença:

(...) Quando um poeta ou seu intérpre-

te canta ou recita (seja o texto impro-

visado, seja memorizado), sua voz, por

si só, lhe confere autoridade. O prestígio

da tradição, certamente contribui para

valorizá-lo; mas o que o integra nesta

tradição é a ação da voz. Se o poeta ou

intérprete, ao contrário, lê num livro o

que os ouvintes escutam, a autoridade

provém do livro como tal, objeto visu-

almente percebido no centro do espe-

táculo performático; a escritura, com

os valores que ela significa e mantém,

pertence explicitamente à performance.

No canto ou na recitação, mesmo se o

texto declamado foi composto por es-

crito, a escritura permanece escondida

(ZUMTHOR, 1993, p. 91).

É interessante perceber o comportamento

diferenciado dos alunos, na performance do

contador e na leitura em voz alta de um tex-

to escrito. No primeiro caso, se a experiên-

cia é bem sucedida, todos olham fascinados

para quem conta, como que se perdendo,

se enredando na narrativa; já na leitura, por

mais interessante que seja, o envolvimento

é menor. Pode-se observar, nesta situação,

os ouvintes se permitindo gestos paralelos,

como abrir cadernos, cochichar algo ao ou-

vido do colega, dar um bocejo etc.

Outra diferença importante é que, no pri-

meiro caso, o contador é “dono” da história,

ele é o depositário dela, em vez do livro. Ele

cria um momento único, como em qual-

quer espetáculo teatral. Já a história do livro

está contida em um texto escrito e, por esta

razão, pode ser apropriada a qualquer mo-

mento. O livro entesoura a história. Neste

sentido, mesmo quem ainda não domina a

leitura pode tê-la em mãos.

Acerca da importância da posse do livro sem

o conhecimento da leitura, lembro de um

trabalho de Elaine Monteiro com crianças

em situação de rua. Há uma passagem em

que ela contava a história de “João e Maria”

– uma história de rejeição dos filhos pelos

pais, em função da miséria em que viviam –

quando uma delas pediu o livro emprestado.

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Justificou que ali estava a história da sua vida

e que, embora não soubesse ler, um dia iria

aprender para saber melhor de si mesma.

8. O LivRO SaGRaDO

Reverência pelo texto escrito no livro de-

monstrou Sebastião, que pouco frequenta-

va as rodas de leitura. Sendo evangélico, a

verdade, para ele, adivinha do livro, e justi-

ficava:

Eu acho importante o livro. Eu aprendi

assim se eu for pronunciar uma palavra,

digamos, se o senhor me corrigir, tudo

bem, vou falar: escreve aí pra mim o cer-

to que eu vou conferir no livro. Não é in-

formação certa, é falar o que está escri-

to. É uma garantia, é uma defesa. Eu sou

evangélico. Um dia, na Escola Bíblica, a

professora fez uma pergunta e muitos

alunos não sabiam responder. E um ra-

paz respondia e aí eu gravei a pergun-

ta, e aí eu fui procurar no dicionário. E

estava errado. E aí eu fui perguntar pro

professor e ele falou que estava errado.

Por quê? Porque está escrito (MACHA-

DO, 1999, p. 80).

Sebastião, como religioso, buscava a verda-

de contida no livro sagrado, a Bíblia, razão

mais do que suficiente para ele privilegiar o

escrito. Neste sentido, ao comparar o escri-

to com a performance do contador, preferia

o texto lido, “que é uma garantia, uma defe-

sa” contra a livre fantasia:

Pelo meu modo de pensar, a pessoa lendo

uma história eu acho mais interessante.

Assim contando eu não sei se ela inven-

tou ali na hora. Eu acho que você lendo

ali na hora a gente entende melhor. Ela

tá lendo o que está escrito. Inventar é di-

ferente. Não é interessante, digamos, o

senhor conta e eu vou gravar, aí eu che-

go num ambiente que alguém conhece

aquela história e aí ele fala isso aqui não

tá no livro não. Aí eu vou ficar mal. No

livro você realmente vai mostrar o jeito

da coisa (MACHADO, 1999, p. 81).

Este leitor endurecido por um preceito de

verdade nada concebia fora do escrito. For-

mação religiosa rígida? Para Sebastião, num

certo sentido, todo o texto tinha uma aura

de sacralidade que a oralidade não pode ex-

pressar. Isto talvez explicasse o absenteísmo

de Sebastião à “roda de leitura”. Como nos

relatou no final desta experiência, sua ex-

pectativa era outra:

Muitos alunos, eles pensam que nem eu

pensei no primeiro dia, eles pensaram

que chegando aqui, cada um ia ler um

livro, tá entendendo? Aquela participa-

ção mais importante. Aí, então eu disse

é ótimo porque é um teste de leitura e

eu tenho dificuldade. Se eles vêm, eles

quer chegar aqui, e vocês como professo-

res, então vocês falam: lê aqui essa folha.

Porque na nossa sala nós temos teste de

leitura, a professora manda a gente trei-

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nar a ler e então os alunos chega lá na

hora, ela chama todos os alunos. Ou lê

da cadeira ou senta do lado dela e lê. Isso

é muito importante. É isso que eles que-

rem, essa participação, chegar aqui e ou-

vir, eles acham que ouvindo sem ler não

é bom pra eles (MACHADO, 1999, p. 82).

Contrariamente a Sebastião, Luzia, que não

tinha o hábito de ler, entrou plenamente

nesta viagem:

Eu comprei um livro de Monteiro Lo-

bato, ‘A história do mundo’. Eu come-

cei a ler ontem à noite. Eu comprei lá

na Tijuca de um pessoal que vende nas

ruas. Eu tô até interessada em comprar

livro. Antes eu nem ligava pra isso. Ago-

ra não. Vocês contam as histórias e eu

saio correndo atrás da história. Falei

com a minha madrinha pra juntar livro

pra mim. Eu não tinha esse interesse.

Agora eu tenho. Eu tava na Tijuca e vi

esse pessoal que vende livros na rua,

e então eu tava num ponto de ônibus,

atravessei a rua pra poder comprar um

livro, pra ver se tinha um livro de his-

tória interessante. Mas tava chovendo,

não deu tempo de escolher muito. Eu

comprei o primeiro que eu vi na frente

(MACHADO, 1999, p. 62).

Nós, que começamos este trabalho sem sa-

ber muito bem qual seria o ponto de che-

gada, concluímos que ele foi bem sucedido.

Se inicialmente os alunos não falavam, por-

que “não sabiam contar histórias”, aos pou-

cos foram revelando suas vidas e, puxando

pela memória, histórias que conheciam. O

desvelamento da origem de seus nomes, a

identificação dos lugares onde nasceram,

o porquê de vir para o Rio, seus amores e

desamores, caminhos e descaminhos pos-

sibilitaram que assumissem uma maior es-

pontaneidade, dando margem a um estrei-

tamento de relações de amizade, através de

afinidades comuns com os companheiros de

estrada. E, mais que tudo, tomaram gosto

pelo livro, pela leitura, como foram os casos

mais evidentes de Luzia e Júlio. Enfim, se é

lícito concluir desta forma uma pesquisa: foi

um final feliz.

Palavras-chave: literatura, identidade, ro-

das de leitura, formação do leitor.

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3. 2 entre A Dor De não poDer ser e A ConQuIstA DA AleGrIA De ser

Para atender às expectativas das crianças e jovens integrantes de uma comunidade de

tradições culturais afro-brasileiras, e que se sentiam rejeitadas pelas escolas do sistema

oficial de ensino, constituiu-se um novo “continente pedagógico” que iria caracterizar

o projeto educacional Mini Comunidade Oba Biyi. O caminho indicado na primeira me-

tade do século passado por Mãe Aninha, Iyalorixá Oba Biyi, de ver as crianças da co-

munidade no dia de amanhã ‘de anel no dedo e aos pés de Xangô’, inspirou a trajetória

de nascimento de uma nova linguagem educacional. Fundou-se um espaço pedagógico

assentado na recriação das linguagens e nos valores da comunidade. Da tradição, nas-

ceu o novo; gerado na criação de um novo currículo, uma nova forma de aprendizagem.

(...) A cultura que guarda o saber da tradição comunitária passa a ocupar o centro da

experiência educacional (…) (Marco Aurélio Luz)

Narcimária Correia do Patrocínio Luz14

inTRODuçãO

Este texto mostra o resultado de algumas

contribuições que tive a satisfação de apre-

sentar para integrar a história do programa

Salto para o Futuro, um espaço comunica-

cional singular que atravessa vários can-

tos do Brasil, permitindo aos professores e

professoras o acesso às questões urgentes

e necessárias para fazer circular vida nas

escolas.

Nossa participação no Salto para o Futuro15

carregou inquietações e proposições, des-

dobramentos de linguagens criativas e ori-

ginais, capazes de inundar o cotidiano das

14 Professora Titular Plena do Departamento de Educação do Campus I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Doutorado em Educação; Pós-Doutorado em Comunicação e Cultura; pesquisadora no campo da Diversidade Cultural e Educação; coordenadora do PRODESE- Programa Descolonização e Educação e do projeto Dayó: afirmando a alegria socioexistencial em comunalidades africano-brasileiras, indicado como semifinalista entre os vinte melhores projetos da 8ª Edição do Prêmio ITAÚ UNICEF 2009 no conjunto de 1.917 projetos inscritos no Brasil. O projeto DAYÓ se realiza na Associação Crianças Raízes do Abaeté em Itapuã, Salvador, Bahia.

15 http://www.tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo /. Cf. artigo do programa temático Currículo Relações Raciais e Cultura afro-brasileira: África Viva e Transcendente! no Boletim eletrônico do Salto http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/175527Relraciais.pdf. Cf. artigo do programa temático Oralidade Memória e Formação - No Tempo em que os seres humanos conversavam com as Árvores: http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/212454Oralidade.pdf

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24

escolas com as vidas que caracterizam as

comunidades afro-brasileiras.

Os diálogos que estabeleci com outros/as co-

legas nos programas temáticos ainda têm re-

percussão nacional e sua importância é reco-

nhecida nas mudanças de comportamento e

/ou concepções que muitos/as telespectado-

res/as revelam quando me reconhecem nas

ruas, aproveitando para comentar, elogiar e

sugerir novas questões.

Para essa publicação comemorativa dos vin-

te anos do Salto para o Futuro, trago um mo-

saico de ilustrações que irão nos aproximar

de reflexões importantes envolvendo nossas

comunidades afro-brasileiras, ajudando-nos

a pensar as práticas escolares instituciona-

lizadas que calam sobre a identidade pro-

funda de crianças e jovens descendentes de

africanos/as.

Vou aqui destacar três dos muitos relatos

que tive a oportunidade de acompanhar de

perto e que chegaram ao meu conhecimen-

to através de professores/as, pesquisadores/

as do Programa Descolonização e Educação

– PRODESE, grupo de pesquisa que coorde-

no no Departamento de Educação do Cam-

pus I da Universidade do Estado da Bahia. A

proposição do PRODESE na área de Educa-

ção é promover linguagens educativas que

estabeleçam uma relação dinâmica entre

os valores sociocomunitários da tradição

afro-brasileira e os códigos da sociedade ofi-

cial, exigindo e assegurando, nessa relação,

o direito à identidade própria da nossa po-

pulação. Assim se instalam, no âmbito do

PRODESE, estratégias para formar pessoas

capacitadas para interagir com os códigos

da sociedade urbano-industrial e reforçar, ao

mesmo tempo, os valores das comunidades

afro-brasileiras. O PRODESE atua no plano

das atividades didáticas, tanto da graduação

quanto da pós-graduação, e também promo-

ve estudos e pesquisas integradas à extensão

universitária.

Feitos esses esclarecimentos, vamos nos

aproximar do primeiro relato que ilustrará

nossas preocupações. É a história de uma

criança negra do sexo masculino com seis

anos, numa escola pública na Região Metro-

politana de Salvador (RMS), vivendo o ciclo

de alfabetização. Na rua onde ela mora tam-

bém está localizada a escola que frequenta

e sua comunidade-terreiro, onde ela integra

a hierarquia, e faz a sua primeira iniciação.

Feita a iniciação, a criança volta para a es-

cola assumindo a identidade mítica carac-

terística do rito de iniciação realizado em

sua comunidade, mas, infelizmente, a cada

dia vive a hostilidade de coleguinhas e pro-

fessora, que cientes do seu vínculo com a

comunidade-terreiro, se afastam dela osten-

sivamente.

Um colega manifestou:

“– Você é do candomblé e gente do candomblé

não presta!”

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25

Sobre a reação da professora diante do fato?

Preferiu ignorar as formas agressivas que o

grupo de alunos/as expressava. A rejeição é

tanta que a criança afro-brasileira, alvo das

constantes agressões, prefere se isolar de

tudo e de todos. Essa situação adversa ainda

teve um dado cruel: a escola chama a mãe

da criança e numa conversa, recheada de hi-

pocrisia, sugere que ela tire o filho da esco-

la para “o bem estar

dele”.

Outra ilustração,

também numa escola

pública na RMS, é de

uma criança que to-

dos os dias, ao entrar

na escola, saúda o

Iroko, uma importan-

te árvore que na tra-

dição afro-brasileira

representa a ances-

tralidade. Uma pro-

fessora comenta com

a outra:

“– Acho que esse menino não é bom da cabeça!.

Você já reparou que sempre ele conversa com

aquela árvore?” E riem da situação, achando-

a absurda, passando a tratá-lo com um caso

preocupante de saúde mental.

Uma observação importante: na tradição

africano-brasileira as árvores carregam o

princípio de ancestralidade e representam,

portanto, os ancestrais, e são elas que esta-

belecem a dinâmica da relação entre os seres

humanos e a natureza.

Mais uma ilustração para compor o mosai-

co das nossas reflexões: a história da ado-

lescente iniciada na tradição afro-brasileira

que frequenta o Ensino Fundamental. A ado-

lescente, portando o seu colar de contas na

sala de aula, incomo-

da uma professora

(de formação evangé-

lica) que, num repen-

te, vai até a jovem,

arranca-lhe o colar de

contas do pescoço e

diz: “– Isso é coisa do

diabo! Essas contas es-

tão me incomodando!

Aqui você não fica com

esse bagulho!”

As contas se espa-

lham pelo chão da

sala. Entre risos fre-

néticos dos colegas, a jovem, constrangida

e profundamente agredida, sai da sala cor-

rendo e chorando muito. Vai para casa e não

quer mais retornar para a escola.

Nenhuma dessas situações ocorreu sem que

os pais e responsáveis reagissem às agres-

sões. A equipe do PRODESE entra nas cenas

providenciando espaços de (re)educação

desses/as professores/as, assegurando aos

Se somos educadores no

Brasil, não podemos ter

medo de pensar e realizar

iniciativas socioeducativas

a partir do que somos

como povo que possui,

na dinâmica da sua

constituição, civilizações

milenares das Américas e da

África.

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alunos/as o direito à alteridade civilizatória

afro-brasileira.

O conjunto dessas ilustrações que apresen-

tamos até aqui destaca a dor de não poder

ser, que aflige crianças, jovens e adultos

afro-brasileiros.

Nosso desafio: provocar os/as educadores/as

fazendo-os/as pensar a identidade profunda

de crianças e jovens descendentes de afri-

canos/as no Brasil. Se somos educadores no

Brasil, não podemos ter medo de pensar e

realizar iniciativas socioeducativas a partir

do que somos como povo que possui, na di-

nâmica da sua constituição, civilizações mi-

lenares das Américas e da África.

Temos que aprender a ter orgulho desse le-

gado e respeitá-lo! Infelizmente, na nossa

trajetória de formação para professores/as,

muitas vezes, tendemos a nos afastar, es-

quecer, ter vergonha e, até mesmo, temer

os valores e linguagens que comunicam o

patrimônio da civilização africana que tam-

bém protagoniza a nossa formação social, a

nossa história.

Perceber e admitir a riqueza de valores con-

tidos no contínuo dessas civilizações mile-

nares, assumindo-as como capazes de apre-

sentar contribuições primorosas para as

histórias humanas, características dos distin-

tos povos, é o que importa na composição de

uma ética do futuro.

O PRODESE vem desenvolvendo iniciativas

institucionais que promovem nos espaços

de “formação” de professores/as a transcen-

dência em face dos jargões, repetições de

discursos e conceitos ainda baseados nos

sistemas sociais do século XIX, ou as rotu-

lações e desdobramentos de dados estatís-

ticos e modismos. São fronteiras discursivas

e conceituais perversas, a exemplo das clas-

sificações que sobredeterminaram o desti-

no de muitos povos considerados “pagãos”,

“primitivos”, “selvagens”, “não humanos”,

“incapazes de civilização e de história”, “pe-

cadores”, “feiticeiros”, “sem alma”...

Nas suas iniciativas institucionais de desco-

lonização da Educação, o PRODESE se apoia

numa importante referência teórica que é

o pensamento de Frantz Fanon16, que nos

auxilia a superar o crivo do conhecimento

neocolonial, que ainda estrutura e organi-

za os currículos dos cursos de formação de

professores/as. Sobre isso aprendemos que:

(...) O colono faz a história e sabe que a

16 Frantz Fanon (1925-1961), formado em Psiquiatria, nasceu na ilha de Martinica, considerado território francês situado na América Central. No início dos anos 1950 tornou-se argelino e passou a contribuir com os argelinos na luta pela libertação do país, colônia francesa desde 1830. Participou de congressos pan-africanos representando a Argélia e é uma figura exponencial no contexto Pan-Africano no mundo. A Argélia tornou-se independente um ano após sua morte.

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faz... E porque se refere constantemen-

te à história de sua metrópole, indica de

modo claro que ele é aqui o prolonga-

mento dessa metrópole. A história que

escreve não é, portanto, a história da re-

gião por ele saqueada, mas a história de

sua nação no território explorado, viola-

do e esfaimado. A imobilidade a que está

condenado o colonizado só pode ter fim

se o colonizado se dispuser a pôr termo

à história da colonização, à história da

pilhagem, para criar a história da nação,

a história da descolonização. Mundo

compartimentado, maniqueísta, imóvel,

mundo de estátuas: a estátua do general

que efetuou a conquista, a estátua do

engenheiro que construiu a ponte. Mun-

do seguro de si, que esmaga com suas

pedras os lombos esfolados pelo chicote.

Eis o mundo colonial (...)17.

Não é fácil esse exercício de pensar, sabemos

bem disso, mas no legado de Frantz Fanon

encontramos um ânimo que nos convida de

modo radical a

(...) recomeçar tudo (...) reinterrogar o

solo, o subsolo, os rios - e por que não?

- o sol (...). A discussão do mundo colo-

nial pelo colonizado não é um confronto

racional de pontos de vista. Não é um

discurso universal, mas a afirmação de-

senfreada de uma singularidade admiti-

da como absoluta18.

Há um clamor das comunidades afro-brasilei-

ras por políticas públicas na área de Educação

capazes de estabelecer espaços institucionais

de combate ao racismo e suas engrenagens

ideológicas, que tendem a tragar a vida de

crianças e jovens que vivem situações no co-

tidiano escolar marcadas por muita dor e hu-

milhação.

Esse mosaico de reflexões que desenvolve-

mos é, portanto, uma homenagem e uma

forma de solidarizar-se com todas as crianças

e jovens que não abrem mão do seu direito

de ser, viver seus ritos de iniciação e de pas-

sagem nas suas instituições, elaborando as

linguagens e valores que contribuem para a

expansão da ancestralidade afro-brasileira.

Uma observação necessária: quando nos re-

ferimos à ancestralidade, estamos conside-

rando a importância das lideranças comuni-

tárias que se dedicaram em vida ao bem-estar

da família, linhagem, comunidade através

da manutenção do patrimônio civilizatório

que sustenta o bem-estar, destino individual

e coletivo. Ancestral é aquele/a que em vida

deu continuidade e garantiu a expansão da

memória da sua comunidade. Os ancestrais

são lembrados e consagrados para depois,

17 FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

18 Idem

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em outro plano de existência, continuarem

protegendo e fortalecendo os vínculos da co-

munidade e, ainda, promovendo a alegria de

sua gente. Enfim, é aquele/a que dedicou sua

vida para garantir a continuidade da civiliza-

ção africana no Brasil.

a aLEGRia DE SER

Todos esses relatos aproximam-nos de uma

referência histórica na minha formação

como educadora e que também representa

um marco na história da Educação no Brasil.

Trata-se da primeira experiência de Educação

Pluricultural no Brasil, conhecida como Mini

Comunidade Oba Biyi (1976-1986), que pro-

moveu com muito êxito a educação de crian-

ças e jovens vinculados a uma comunidade

afro-brasileira na Bahia, Ilê Axé Opô Afonjá.

Cabe destacar que a concepção e realização

da Mini Comunidade Oba Biyi deve-se à per-

sonalidade exponencial de Deoscoredes Ma-

ximiliano dos Santos, o Mestre Didi. O Mestre

Didi pertence à família Axipá, originária de

Oyó, e uma das sete famílias fundadoras da

cidade de Ketu. Essa família repõe no Brasil,

especificamente na Bahia, uma dinâmica so-

ciopolítica, mítico-religiosa da cultura Nagô

expressa em casas tradicionais como o Ilê

Axé Opô Afonjá. Mestre Didi é neto de Iyá Oba

Biyi e filho de sangue de Mãe Senhora, ambas

expressivas lideranças da tradição africana

nas Américas. É o membro mais velho da fa-

mília Axipá no Brasil. Podemos afirmar que é

um Omo Bibi, um bem-nascido.

“(...) Na tradição afro-brasileira de ori-

gem nagô, omo bibi quer dizer bem

nascido, isto é, aquela pessoa que vem

a esse mundo para dar continuidade à

expansão de uma linhagem, de uma fa-

mília considerada muito antiga, recep-

táculo de tesouros de valores espirituais

e experiências históricas de grande valor

para a comunalidade. Os valores espiri-

tuais estão expressos pela continuidade

e expansão das instituições religiosas,

de um lado, o culto aos orixá, forças

cósmicas que constituem o universo,

princípios de natureza, e de outro o cul-

to aos ancestres e ancestrais, como aos

Esa, espírito das pessoas que se destaca-

ram na tradição religiosa, ou aos Babá

Egun, espíritos dos ojé, sacerdotes que

se destacaram no culto aos ancestres

masculinos”19 .

Um episódio que marcou significativamente

o início da Mini Comunidade Oba Biyi foi um

comentário de uma das crianças da comuni-

dade, ao lhe indagarem por que ela não fre-

quentava a escola oficial que era tão próxima

ao Ilê Axé Opô Afonjá.

– Não gostam da gente, lá!

19 LUZ, Marco Aurélio. A Favor de Egun. A Tarde, Salvador, 09 de abril, 2005. Caderno Cultural.

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As escolas oficiais geograficamente próxi-

mas à comunidade eram muito distantes, ou

melhor, desenvolviam uma pedagogia que

negava os valores da comunidade, fazendo

com que as crianças se distanciassem dos

valores existenciais próprios da comunida-

de, rejeitando-os, denegando-os, melhor di-

zendo, não gostavam da forma de ser dessas

crianças. A realidade escolar das crianças da

comunidade do Opô Afonjá naquela época

era muito traumática. As crianças que foram

escolhidas pela famí-

lia “para estudar” no

mais das vezes,

(...) se afasta-

ram da própria

família, perde-

ram o orgulho

pelos valores

da tradição,

constituíram

uma identida-

de fracionada, e

muitas vivem como almas no exílio, so-

frendo o impacto da política racista da

barragem social no contexto da socie-

dade oficial europocêntrica identificada

com a política do branqueamento20 .

O nome Oba Biyi significa em yorubá “o rei

nasce aqui”, vem da homenagem ao nome

sacerdotal nagô de Eugênia Anna dos Santos,

a Iyalorixá fundadora do Ilê Opô Afonjá na ter-

ritorialidade do Cabula, em Salvador, Bahia.

Quando Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi implantou

a comunidade-terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá

em 1910, nas imediações do Cabula, foi por-

que considerou, sobretudo, que aquele ter-

ritório estava profundamente marcado pelo

passado heroico de continuidade civilizató-

ria, rico em axé e forças míticas emanadas

pelos antepassados africanos do quilombo

do Cabula. Esse ter-

ritório se impregnou

de profundo signifi-

cado histórico para a

população afro-brasi-

leira, que reelaborou,

no local, modos de

sociabilidade ancora-

dos à preservação da

memória coletiva das

comunidades que ali

existiram. Não há pro-

vas de que o Ilê Opô

Afonjá esteja localizado no lugar exato do

quilombo do Cabula, disperso em 1807, mas

preserva-se a memória simbólica daqueles

que se insurgiram ao Estado colonial escra-

vista.

A Iyá Oba Biyi sempre dizia: “Quero ver nos-

sas crianças de hoje, no dia de amanhã, de

20 LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador: Edições SECNEB e EDUFBA, 1995, p. 666.

A Iyá Oba Biyi sempre

dizia: “Quero ver nossas

crianças de hoje, no dia de

amanhã, de anel no dedo

e aos pés de Xangô.” É no

âmago desse desejo de Mãe

Aninha, que se implanta a

Mini Comunidade Oba Biyi.

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anel no dedo e aos pés de Xangô.” É no âma-

go desse desejo de Mãe Aninha, que se im-

planta a Mini Comunidade Oba Biyi.

A Iyá Oba Biyi nos indicou o grande desafio

que se apresenta para nós, educadores: de

um lado o “anel no dedo”, que significa a pos-

sibilidade de mobilidade social da população

infantojuvenil de descendência africana na

sociedade oficial, e de outro, Xangô, orixá do

fogo que assegura a vida no aiyê21, a expansão

de linhagens, da existência concreta ininter-

rupta, filhos, descendência, ancestralidade,

continuidade da comunidade afro-brasileira,

presença transatlântica dos valores culturais

africanos.

A proposição de uma educação no contexto

desse desafio foi promover uma linguagem

pedagógica que estabelecesse uma relação di-

nâmica entre os valores comunitários da tradi-

ção e os códigos da sociedade oficial, exigindo

e assegurando, nesta relação, o direito à iden-

tidade própria das crianças e jovens. Assim, se

instala, no âmbito da Mini Comunidade Oba

Biyi, o desafio de “formar” pessoas capazes de

educar sabendo interagir com os códigos da

sociedade urbano-industrial influenciada pelos

valores europeus, e reforçar, ao mesmo tempo,

os valores das comunidades afro-brasileiras.

“De anel no dedo e aos pés de Xangô” significa

procurar superar os obstáculos, que se institu-

cionalizaram na África e no Brasil, e em outros

países ex-colonizados, através da pedagogia

eurocêntrica.

A imagem da África e do africano pro-

mulgada pelas escolas anglo e latino-

americanas é uma imagem grotesca,

humilhante, além de falsa, que mina ou

impossibilita toda aspiração da criança

negra à realização humana. Na própria

África, essas distorções prevalecem nos

sistemas educativos herdados do colo-

nialismo. Contestar e banir este sistema

de mitos racistas na educação da crian-

ça negra e substituí-lo com uma afirma-

ção autêntica da identidade verdadeira

e positiva do africano é uma função or-

gânica e primária da organização polí-

tica, porque, como um sistema, ele cor-

rói diretamente o potencial de um povo

rumo à realização do seu protagonismo

histórico22.

Timothi Awaoniyi, em relato sobre o sistema

oficial de ensino na Nigéria, disse que o Ilê

Ekó (como é chamada a casa de ensino/sa-

ber) se caracterizava como uma instituição

fora das relações comunitárias. Ser educado

no contexto colonial e neocolonial era ser

21 Mundo visível.

22 NASCIMENTO, Elisa. Pan-africanismo na América do Sul. Petrópolis: Vozes, 1985, p.36.

23 AWAONIYI, Timothi, apud LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador: Edições SECNEB e EDUFBA, 1995, p. 657.

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europeizado. Aqueles que não se educavam

pela escola colonial eram chamados de ará-

oko (ignorantes, sem educação) e os valores

culturais da tradição ficavam reduzidos à

percepção etnocêntrica que os classificava

de “pagãos”, “primitivos” e “bárbaros” 23.

Nada mais importante para o ser humano do

que se sentir aceito, amado, querido e respei-

tado. A Mini Comunidade Oba Biyi absorvia

profundamente essas preocupações, tanto

assim que a ideia nucleadora do espaço ar-

quitetônico e do cotidiano espaço-temporal

pedagógico refletia nas crianças o prazer de

sentir-se em casa, à vontade, seguras, felizes,

expressando com desenvoltura a sua identi-

dade e os códigos culturais da comunidade.

A criação da Mini Oba Biyi proporcionou às

crianças um espaço para participar, opinar,

acompanhar, sugerir, desde a construção do

prédio até as vivências do dia a dia com os

professores e funcionários, consolidando a

dimensão política de afirmação dos valores

da tradição.

O prédio da Mini foi construído sob a super-

visão das crianças, que diariamente acompa-

nhavam os operários, os materiais, bastante

envolvidas com o processo, pois sentiam re-

almente que era delas e para elas que estava

sendo erguido aquele espaço.

Projetou-se um espaço que abrigasse uma

comunidade infantil, uma casa com o esti-

lo da Bahia, com telhas, varandas, pátio, um

amplo salão. A concepção era de um espaço

livre para as crianças explorarem e desenvol-

verem todos os sentidos do corpo, não havia

bancos e carteiras, era um espaço permeado

pela estrutura do terreiro, onde as atividades

e/ou aprendizagem ocorressem ao ar livre ou

no salão. Tinha também uma cozinha gran-

de, banheiros e vegetação na área externa.

Sobre a concepção espaço-temporal da Mini,

Marco Aurélio Luz, que participou da coorde-

nação da experiência de educação no período

de 1978 a 1985, comenta:

A forma de comunicação básica da Mini

não se assentava na escrita. A forma de

comunicação dava margem àqueles có-

digos tradicionais de comunicação da

comunidade, que se manifestavam atra-

vés da dramatização, dança, música,

etc. Mas, em relação à linguagem peda-

gógica, especialmente, esse espaço pro-

piciava essas formas de comunicação. A

Mini foi concebida com um grande sa-

lão, um pátio e uma varanda. Não se ca-

racterizava com salas de aula, carteiras,

com aquele mobiliário sobredetermina-

do pela escrita, com aquela prancheta,

com obsessão para caderno, lápis, livro,

e a criança diante do quadro de giz, e

o professor na frente. Esse espaço dava

outra dinâmica. Tinha salão de ativida-

des por centro de interesses, onde se de-

senvolviam atividades com as turmas do

prontidão, os professores começavam

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as atividades e a criança poderia circu-

lar de um centro de interesse para ou-

tro e vice-versa. No pátio e na varanda

aconteciam as aulas de alfabetização.

Nessa varanda tinha uma grande mesa

com os bancos, mantendo a caracterís-

tica do mobiliário da comunidade, e um

quadro-de-giz presente nas aulas de al-

fabetização. No pátio se desenvolvia a

música, dança e dramatizações24.

Do cotidiano da Mini Comunidade Oba Biyi,

destacamos também a força encantadora

dos contos de Mestre Didi, que embasavam

o cotidiano curricular da Mini, influencian-

do uma dimensão pedagógica infantojuve-

nil, onde valores, cosmovisão, ética comu-

nitária, hierarquias, línguas, modos de vida,

princípios filosóficos, códigos estéticos,

modos e formas de comunicação, concep-

ções culinárias, organização político-social,

elaborações territoriais, enfim, todo um

complexo civilizatório está expresso e pro-

cura caracterizar aspectos estruturadores

da identidade profunda das comunalidades

tradicionais da Bahia.

Os contos são transmitidos de geração a ge-

ração, mais que isso, eles comunicam expe-

riências entre gerações, de uma para outra,

conforme também as hierarquias comunitá-

rias detentoras da sabedoria milenar.

Mas essas transmissões só se realizam atra-

vés de relações interdinâmicas e interpesso-

ais, envolvendo os mais velhos e os jovens,

numa dimensão pedagógica que apela para

códigos e formas de comunicação genuina-

mente africanos. É necessário enfatizar que

as palavras, emanadas através dos contos,

têm muito poder de realização, isto porque

mobilizam, encantam, fascinam, exploram

o imaginário da comunidade afro-brasileira

recriando e (re)atualizando todo o sistema

simbólico e conhecimentos éticos e estéti-

cos que os integram, e (...) antes de serem

formas de arte, (os textos) são formas que le-

vam a carga de significar as múltiplas relações

do homem com seu meio técnico e ético25.

E mais:

Em torno dos contos foram se organi-

zando as atividades da aprendizagem, o

espectro de conhecimentos de variados

matizes, e que culminavam a cada se-

mestre letivo no Festival de Artes Inte-

gradas Mini Comunidade Oba Biyi. Nes-

sas ocasiões, as crianças interagiam com

a comunidade expressando emoções e

conhecimentos de uma estética consti-

tuída de ludicidade, saber e alegria. Nes-

sa toada fundou-se um novo território

de aprendizagem, o da educação pluri-

cultural africano-brasileira. Inaugura-se

a possibilidade de circulação entre mun-

24 LUZ, Narcimária. ABEBE: a criação de novos valores para a educação. Salvador: Edições SECNEB, 2000, p.67.

25 LUZ, 1977, p. 66.

26 LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui (contracapa). Salvador: Fala Nagô, 2007.

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dos socioculturais diferentes com liber-

dade e integridade26.

Depois de destacarmos a importância da

Mini Comunidade Oba Biyi na constituição

de um currículo capaz de lidar com o patri-

mônio afro-brasileiro, insistimos no convite

aos educadores: sensibilizem-se, aprendam

e respeitem as linguagens próprias do co-

nhecimento milenar que organizam e es-

truturam as comunidades afro-brasileiras, a

exemplo dos ritos de iniciação vividos pelas

crianças e jovens que ilustramos no início

desse texto.

Se realmente pretendemos realizar uma

“Educação para todos”, como proclama a

Constituição brasileira, teremos que consi-

derar de forma respeitosa uma ética da coe-

xistência que aceite o patrimônio de conhe-

cimentos das histórias humanas das nossas

comunidades afro-brasileiras. É através des-

sas comunidades e de toda a pujança do pa-

trimônio civilizatório africano característi-

co, que nossas crianças e jovens estruturam

suas identidades profundas.

cOncLuSãO

Na Mini Comunidade Oba Biyi, primeira

experiência de Educação Pluricultural no

Brasil e com a qual aprendemos muito ao

longo dos anos, se entoava um cântico afro-

brasileiro nagô:

“Aiyó, aiyó, alegria alegria, omo nilê

aiyó”, filhos da casa alegria. É essa ale-

gria que envolve ou deve envolver o es-

paço, luzes e cores, tatilidade, sinergia,

comunalidade, sociabilidade na educa-

ção desdobrada dos valores e linguagem

da tradição africana. Na Mini, a alegria

estava na vida cotidiana, no brincar, no

elaborar, no aprender, jogando, repre-

sentando, transformando, criando, fa-

zendo arte conjuntamente num só cor-

po comunal. Enfim, a Mini propiciava

um gostar de estar no mundo, se diver-

tindo e sublimando a angústia existen-

cial, substituindo-a pelo efeito estético

da busca da beleza, odara, e pela busca

do conhecimento que implica, sobretu-

do, em aceitar o mistério do existir27.

Povos que vivem fora da Europa, a exemplo

da África, Austrália, Américas e Ásia, apelam

para outros códigos e formas de comunica-

ção característicos dos seus modos de socia-

bilidade para localizar-se e falar dos lugares,

territorialidades que os envolvem.

Nas comunidades afro-brasileiras, nossas

crianças aprendem, elaboram conhecimen-

tos e expressam esses universos caracterís-

ticos do pensamento africano e suas atua-

lizações nas Américas através da vivência

e convivência com orikis, contos, instru-

mentos percussivos cujos toques falam/co-

municam/relatam histórias que anunciam

27 LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui (contracapa). Salvador: Fala Nagô, 2007.

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os primórdios da humanidade, indicando

princípios ético-estéticos para que o corpo

comunitário se expanda e dê continuidade

aos elos de ancestralidade que projetam e

anunciam a África viva aqui.

Os caminhos que vamos trilhando indicam

a possibilidade de uma educação em que

nossas crianças e jovens aprendam a lidar

com o repertório de códigos da sociedade

urbano-industrial imersa nas políticas de

globalização, mas utilizando-os como es-

tratégia de legitimação da alteridade civili-

zatória africana. É assim que vamos vendo

gerações de afro-brasileiros, conquistando

espaços institucionais fincando, recriando e

expandindo o repertório de valores das suas

comunidades, e tendo acesso ao direito à al-

teridade, tão precioso ao existir.

Não podemos colocar um “manto de ferro”

nas crianças que vivem imersas nos valores

e linguagens radicalmente distintos das ins-

tituições que se baseiam nos valores da civi-

lização europeia e sua História e Geografia

totalitárias e laicizadas.

Uma mensagem importante que dinamiza

a ética das comunidades afro-brasileiras: a

árvore que não tem raiz não se apruma, não

consegue se alimentar da matéria primor-

dial, e é incapaz de gerar; e o pior é que ela

será carregada pelo vento.

Desse pensamento dos mais antigos/as

aprendemos que é importante saber quem

nós somos, as nossas origens, a trajetória

dos nossos/as antepassados/as, valorizar a

nossa gente, as nossas comunidades afro-

brasileiras, pois isso nos tornará árvores

frondosas com raízes profundas e capazes

de gerar muitos frutos e sementes que ali-

mentarão as gerações sucessoras.

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3.3 multICulturAlIsmo, teleVIsão e CotIDIAno

esColAr: um BornAl De lemBrAnçAs

Azoilda Loretto da Trindade28

Esse texto se configura num bornal – com

algumas cenas, lembranças, reflexões que

foram constituindo uma trajetória de uma

educadora imersa nas questões da multi-

culturalidade, em diálogo com vários cam-

pos de conhecimento, sobretudo, no caso

deste texto, relacionados à educação e à

televisão. Televisão, por causa de algumas

consultorias no programa Salto para o Fu-

turo/ TV Escola (MEC) e no Projeto ‘A Cor

da Cultura’, do Canal Futura, e também

por estarmos vivendo um momento his-

tórico de reflexões e tentativas de romper

hegemonias e exclusões, visando visibilizar

positiva e criticamente a nossa diversidade

étnico-racial em todos os espaços sociais.

Lembranças e cenas que nos ajudaram a

compor este texto. Lembranças e cenas de

bastidores, que mostram que o que vemos

na tela é um produto, um retrato momentâ-

neo, e que tem uma história de construção.

Vamos especificar com duas cenas:

cena 1

Num dos programas sobre Pluralidade Cul-

tural, eu e uma outra professora participa-

mos como pessoas que davam depoimentos

ao vivo, as duas negras e com cabelo natural

e ambas com o penteado tipo pompom. Sur-

presa a: não existia maquiagem para nossas

peles. Surpresa b: uma pessoa comenta, na

sala: “(...) uniforme estes cabelos?” Surpre-

sa, porque não se discutia o modelo “pa-

drão” dos cabelos das apresentadoras, nem

um certo modelo “global” dos programas.

cena 2

A consultoria da série Multiculturalismo,

em 2002, foi um laboratório. A riqueza dos

textos, do material produzido, o debate de

propostas em torno de temas que, hoje, são

focos de discussão, como a questão afro-

brasileira, a indígena, a homoafetiva, a reli-

giosa, a de gênero, a transdisciplinaridade...

Tudo com embates, humanidades, vaidades,

relações de poder, enfrentamento de precon-

ceitos e construção de conceitos... Lembro,

por exemplo, que no primeiro VT sugerimos

28 Professora doutora em comunicação e cultura.

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colocar a música ‘Wonderful World’, com o

Louis Armstrong, quase uma ode à multicul-

turalidade, e alguém vetou argumentando

que a música não era em português.

Foi uma experiência muito rica e que conso-

lidava, em mim, a certeza de que a televisão

pode estar a serviço da vida, da diversidade,

do conhecimento. Contudo...

Vivem em nós inúmeros;

Se penso ou sinto, ignoro

Quem é que pensa ou sente.

Sou somente o lugar

Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.

Há mais eus do que eu mesmo.

Existo, todavia

Indiferente a todos.

Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados

Do que sinto ou não sinto

Disputam em quem sou.

Ignoro-os. Nada ditam

A quem me sei: eu ‘screvo29.

Multiculturalismo, diversidade, intercultu-

ralidade, pluralidade... Nomes e mais no-

mes para compreender a nossa humanidade

tão ampla e tão diversa que, hoje, parece ter

uma visibilidade questionadora, que grita e

afirma diferenças, singularidades, coletivi-

dades, muitas vezes silenciadas, ocultadas,

invisibilizadas. A diversidade que nos pare-

ce em conflito, pois são raros os momentos

do alinhamento entre os tantos eus que nos

habitam, nestes emaranhados de nós que vi-

vem em nós.

Nós, porque mesmo acreditando que somos

vários num só, ainda assim sonhamos com

a identidade, com a homogeneidade. Somos

“metamorfoses ambulantes”. Metamorfoses

polifônicas, polissêmicas, policromáticas

em dissonâncias e consonâncias constantes

e assustadoramente belas e complexas.

Como ilustração da riqueza da diversidade,

recontamos um mito da criação humana Io-

ruba30:

Olodumaré, que é um deus iorubá, quis

criar a Terra e deu um punhado dela,

num saquinho, para Obatalá ir criá-

la. Antes de ir, Obatalá teria que fazer

a oferenda a Exu, pois sem movimento

não há ação. Obatalá, que é muito ve-

lho, esqueceu e foi andando, andando

devagarzinho, e no caminho sentiu sede.

Então viu uma árvore, dessas que têm

água dentro, e parou, abriu a planta e

29 Poema de Ricardo Reis (Fernando Pessoa).

30 Osiorubásouiorubas(emiorubá:Yorùbá),tambémconhecidoscomoyorubá(io•ru•bá)ouyoruba,sãoumdos maiores grupos etnolinguísticos ou grupo étnico na África Ocidental. http://pt.wikipedia.org/wiki/Iorub%C3%A1s em 23/07/2011.

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bebeu. Só que era uma bebida que dava

um pouco de tontura, e então ele deitou

debaixo da árvore e acabou dormindo.

Enquanto isso, Odudua, que também

queria criar a Terra, fez as oferendas a

Exu e alcançou Obatalá. Vendo-o dormir,

achou que ele iria se atrasar muito, pe-

gou o saquinho e foi ele mesmo criar a

Terra. E criou.

Obatalá acor-

dou e viu a Ter-

ra criada, e foi

reclamar para

Olodumaré,

que enviou e

deu a ele barro,

para que crias-

se os homens

na Terra. Oba-

talá foi e criou

os homens,

mas de vez em

quando tomava a bebida da árvore, de

que tinha gostado e... Não chegava a

dormir, mas, meio tonto, fazia seres hu-

manos de todos os tipos.

Mito31 este escolhido pelo modo que coloca

os seres humanos na sua pluralidade e por

destacar/sublinhar e lembrar que vários po-

vos e culturas têm seus mitos de criação do

mundo e dos seres humanos. Também por

ser este um mito que utilizamos em vários

textos para a publicação eletrônica/boletim

do Salto para o Futuro, que escrevi na tenta-

tiva de inserir em microespaços outros mo-

dos de ver-sentir-interpretar a vida.

Destacamos que a questão da DIVERSIDADE

nos remete a uma pluralidade de temas e

caminhos reflexivos. Como ilustração, des-

taco alguns surgidos

num encontro de 120

minutos entre cerca

de 40 estudantes de

um curso de aperfei-

çoamento, aula de

multiculturalismo

e cotidiano escolar,

quando cada pes-

soa apresentou uma

representação de

si, sua marca, seus

projetos, num dos

raros momentos coletivos em que a escuta

e expressões múltiplas se encontram e refle-

xões coletivas acerca das singularidades co-

muns foram postas no centro da discussão.

De cada exposição, destacamos um item,

que como uma encruzilhada nos remete a

vários caminhos e possibilidades de reflexão

e ação:

31 Um mito é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. O mito procura explicar a realidade, os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem por meio de deuses, semideuses e heróis. http://pt.wikipedia.org/wiki/Mito Acesso em 23/07/2011.

Somos “metamorfoses

ambulantes”. Metamorfoses

polifônicas, polissêmicas,

policromáticas

em dissonâncias e

consonâncias constantes e

assustadoramente belas e

complexas.

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visões de mundo – lugares – autoestima

– estimas – memórias – marcas – nome

– iniciais – ciclos – traumas – alegrias –

tristezas – superações – histórias – redes

(familiares, apoio, solidariedade, afetivas)

– tradições – aprendizagens – dobra – li-

nhagens – ancestralidade – afetos – religio-

sidade – obstáculos – sexualidade – racis-

mos – preconceitos – dificuldades – saúde/

doença – ausências – mágoas – resistências

– forças – legados – filosofias – vitórias –

escutas – saberes – falas – passado entrela-

çado com o presente – inserções – mudan-

ças – maternidade/paternidade – ganhos/

perdas – cobranças – ritmos – estilos

– tempos – sonhos – ética – manifestações

artístico/culturais – pertenças/pertenci-

mentos – mudanças e permanências – eu/

eus – parcerias...

POnTOS DE aTEnçãO:

Como uma tentativa de reflexão, diante de

várias possibilidades e caminhos, após a es-

cuta e observações de inúmeras narrativas,

alguns pontos são passiveis de atenção:

1. Multiculturalidade como narrativa

Uma vez ouvi de Fernando Lebeis, professor

de Cultura Popular, este dito: Se tem nome

existe. As múltiplas culturas ganham vida,

existência, pelas narrativas de quem as pro-

duz, de quem as cria e alimenta. A palavra,

o verbo que se faz carne, ideia, existência e

habita entre nós e em nós. Narrativas que

apresentam mundos e mundos, pessoas,

possibilidades que, tecidas umas nas e com

as outras, carregam sementes de invenções/

reinvenções de existências. A Ciência (no

singular e no plural) é narrativa, o conheci-

mento é narrativa, a explicação do mundo é

narrativa, o que vimos, o que sentimos, com-

preendemos e somos é narrativa. As espe-

cializações são narrativas, as disciplinas são

narrativas. As imagens televisivas são narra-

tivas. Neste sentido, a palavra, a expressão,

a marca de cada um(a) de nós é narrativa.

Nossa presença no mundo é narrativa e este

emaranhado de narrativas, construídas em

rede, não hierarquizadas, em diálogo, sem

começo, sem meio e sem fim, nos convida

a pensar outras narrativas que possam tecer

uma ainda não narrada história da educação

da diversidade, das diferenças, dialógica, in-

clusiva.

2. naturalização do historicamente e

socialmente construído

O acesso a narrativas, quer sejam lineares

ou não, o acesso ao pensamento do Ou-

tro, à lógica do Outro, o contato com ou-

tras narrativas, além das nossas e das que

validamos, convidam-nos a sair do campo

da naturalização e entrar no campo do his-

toricamente e socialmente construído. De

acordo com o modo como vemos o mundo,

as cosmogonias se alteram, se criam e se re-

criam ao longo do tempo, da história e das

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sociedades. A vida é mudança e transforma-

ção constante de um modo incapturável.

3. Processos institucionalizados e insti-

tuintes

Se a Vida é mudança, transformação, meta-

morfose, como se explicam “as verdades”?

Talvez, numa tentativa inglória de assentar

a poeira, de controlar o incontrolável, como

uma espécie de dissonância entre narrativas

do visto, sentido e vivido, nos instituímos

rotulando, etiquetando, normatizando, re-

gulando, legalizando tentando, como disse,

talvez, controlar a força instituinte da vida.

4. Relações de poder

Obviamente não estamos voltados apenas para

o caos ou para o princípio do prazer, pois vive-

mos em grupo, em sociedade, mediados pela

comunicação, por coletividades. Também não

podemos ficar presos(as) à bipolaridade ou ao

espectro da dicotomia: prazer-realidade; vida-

morte; branco-negro, homem-mulher, sim-

não, isto ou aquilo... A Vida é muito mais que

isto. Por outro lado, sabemos que o instituído

se consolida nas relações de poder estabele-

cidas em confrontos, negociações, conflitos,

mortes, guerras, silenciamentos... A vida social

é tensionada pelas relações marcadas pelo po-

der no seu sentido mais amplo e universal, ou

seja, todos nós temos e exercemos poder.

5. Lugares sociais

Só que, num processo de dissonância que

consolida narrativas em que alguns se

acham valendo mais, tendo mais poderes

que outros, sobretudo no que se refere aos

poderes de dominação, de existência, de

cidadania, de vida, podemos dizer que as

relações de poder marcam lugares sociais.

Lugares onde algumas narrativas são legiti-

madas, acolhidas, ecoadas em detrimento

de outras, consolidando-se assim desigual-

dades, exclusões, distorções...

6. cotidianos x dominantes

Partindo do pressuposto de que todos têm

e exercem o poder, nos voltamos para o co-

tidiano, como lugar de acontecimentos, do

‘aqui-agora’, de relações, encontro, confron-

tos, desencontros... Cotidiano como lugar

das práticas, das experimentações, das vi-

vências, das narrativas e, ao mesmo tempo,

campo das potências, campo de práticas e

relações de dominação da potência, da nar-

rativa, do poder do outro, seja este outro

gente na sua diversidade. Natureza na sua

diversidade, seres vivos na sua diversidade,

conhecimento na sua diversidade.

7. Pontos de vista diferentes

Trouxemos o poeta Ricardo Reis, um mito

Ioruba, palavras e expressões apreendidas

num encontro, convite a pesquisar imagens

e histórias como da Vênus negra, do homem

vitruviano, do osso de Ishango, para que

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possamos pensar que, diante da diversidade,

vemos pontos de vistas diversos, diferencia-

dos, nem sempre em disputa, muitas vezes

complementares, outras vezes dissonantes,

outras vezes abomináveis, outras vezes in-

compreendidos, outras vezes reprimidos,

mas presentes, vivos, a despeito das rela-

ções de dominação.

8. Diversidade

Vivemos um momento de desassossego, sa-

ímos da zona de conforto do pensamento

único, da ilusão da unidade, da universidade

para a diversidade, a multiplicidade, do sim-

bólico para o diabólico. Símbolo, em grego,

(...) seria a união de duas palavras “sin”

(junto, perto, ao lado) + “bolós” (levar,

movimentar, trazer, bailar), que numa

leitura imediata quer dizer: trazer para

junto. Assim, todo símbolo tem por fun-

ção trazer o que representa. (...) Também

está presente nas diversas culturas a re-

alidade diabólica. Não se trata de uma

personificação do mal, como faz uma fé

mais simplória e menos depurada. Mas

sim de um movimento oposto ao do sím-

bolo. Do grego, diabólico seria a junção

de “dia” (longe, distante, fora de) + “bo-

lós” (levar, movimentar, trazer, bailar),

ou seja, dividir, separar, levar para longe.

Assim, toda atitude de divisão, de sepa-

ração, é uma atitude diabólica32.

9. Diversos olhares, narrativas, concep-

ções e vivências

Canções, poemas, múltiplas linguagens...

Representações do tempo...

Manifestações culturais, artísticas,

esportivas, religiosas...

A Vênus Negra (Venus hotentote)33.

O homem vitruviano34.

Osso de Ishango35.

32 Fonte: http://pt.shvoong.com/humanities/174491-simb%C3%B3lico-diab%C3%B3lico/#ixzz1T0Qp37qj Acesso em 24/07/2011.

33 Saartjie “Sarah” Baartman (1789-1815) foi a mais famosa de, pelo menos, duas mulheres hotentotes usadas como atrações secundárias de circo na Europa do século XVIII sob o nome de vénus Hotentote. http://pt.wikipedia.org/wiki/Saartjie_Baartman Acesso em 24/07/2011.

34 É um desenho famoso que acompanhava as notas que Leonardo da Vinci fez ao redor do ano 1490 num dos seus diários. Descreve uma figura masculina desnuda separadamente e simultaneamente em duas posições sobrepostas, com os braços inscritos num círculo e num quadrado. A cabeça é calculada como sendo um oitavo da altura total. Às vezes, o desenho e o texto são chamados de Cânone das Proporções. http://pt.wikipedia.org/wiki/Homem_Vitruviano_(desenho_de_Leonardo_da_Vinci). Acesso em 24/07/2011.

35 O osso de Ishango é uma ferramenta de osso que data do Paleolítico Superior, aproximadamente entre Homem Vitruviano e 20.000 a.C. Este objeto consiste num longo osso castanho (mais especificamente, a fíbula de um babuíno) com um pedaço pungente de quartzo incrustado num dos seus extremos, talvez utilizado para gravar ou escrever. A princípio pensava-se que fora utilizado para realizar contagens, já que o osso tem uma série de traços talhados divididos em três colunas, que abrangem todo o comprimento da ferramenta, mas alguns cientistas sugestionaram que as agrupações dos traços indicam uma compreensão matemática que vai para além da contagem. http://pt.wikipedia.org/wiki/Osso_de_Ishango Acesso em 24/07/2011.

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Essas imagens e suas legendas e referências,

por si, já nos falam de multiculturalidade.

Mas, sendo um texto que pretende dialogar

com educadoras(es), explicamos que nossa

intenção, ao apontá-las, sem rigor meto-

dológico, é sinalizar que para onde olhar-

mos, em qualquer campo do saber, estamos

diante da diversidade, da multiplicidade, do

diverso no universo. Estamos diante do in-

capturável da vida e do desafio de educação

para o não sabido.

aLERTaS

O reconhecimento

da diversidade como

foco, como base,

não elimina as dis-

torções causadas

pelas relações de

dominação e de hie-

rarquização das di-

ferenças. Reconhe-

cer as diferenças não significa respeitá-las,

sequer saber ou querer aprender a lidar com

elas de modo dialógico e inclusivo. O ma-

chismo, o racismo, o elitismo, a intolerância

religiosa, a homo e lesbofobia, dentre outras

manifestações de apartação do Outro, pres-

supõem o reconhecimento da existência do

Outro, da diferença, da diversidade, só que

pressupõem também a existência de um pa-

drão a ser seguido, perseguido, buscado, co-

piado, desejado, padrões de negação ou não

aceitação do Outro, de negação da vida, do

respeito à vida...

Trabalhar na perspectiva da diversidade não

é algo simples e fácil. Leva-nos a romper

com a ideia enraizada de homogeneidade.

Por exemplo, ainda existe, na escola, a ilu-

são de turmas homogêneas (por nível de

aprendizagem, por faixa etária, por classe

social...).

Tensionar o discurso da igualdade. Não so-

mos todos iguais,

somos diferentes,

mas em termos de

direito humano, so-

cial, político, somos

iguais (em tese).

Contudo, numa so-

ciedade estratifica-

da, hierarquizada,

excludente, as de-

sigualdades sociais

são evidentes, desigualdades manifestas nos

dados oficiais, desigualdade de gênero, de

etnia...

Tudo isto nos tira do ilusório conforto do

“JÁ SEI”, nos convidando a estudar, ler o

mundo, abrir os poros para novas formas

de aprender além dos livros, sem prescindir

deles, convida-nos a criar e a correr riscos

para trilhar caminhos nunca antes navega-

dos... Camões e Fernando Pessoa: navegar é

preciso, viver não é preciso:

Trabalhar na perspectiva

da diversidade não é

algo simples e fácil.

Leva-nos a romper com

a ideia enraizada de

homogeneidade.

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Navegadores antigos tinham uma

frase gloriosa:

“Navegar é preciso; viver não é

preciso”36.

Quero para mim o espírito [d]esta

frase,

transformada a forma para a casar

como eu sou:

Viver não é necessário; o que é neces-

sário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem

em gozá-la penso.

Só quero torná-la grande,

ainda que para isso tenha de ser o

meu corpo e a (minha alma) a lenha

desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humani-

dade;

ainda que para isso tenha de a per-

der como minha.

Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência

anímica do meu sangue

o propósito impessoal de engrande-

cer a pátria e contribuir

para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o

misticismo da nossa Raça37.

E neste campo de imprecisão e precisão

(necessidade), ficam-nos ainda questões, in-

quietações cotidianas que compartilhamos:

Se somos todos diferentes, como lidar com es-

tas diferenças no cotidiano escolar e na televi-

são? Como proceder diante da diversidade no

cotidiano escolar? E na televisão?

Não temos respostas, lamentavelmente, te-

mos trilhas, pistas, indícios e sinais

a)‘Remembrar’ os conhecimentos. Edgar

Morin já nos convida a isto:

É necessário promover grande re-

membramento dos conhecimentos

oriundos das ciências naturais, a fim

de situar a condição humana no mun-

do dos conhecimentos derivados das

ciências humanas, para colocar em

evidência a multidimensionalidade e

a complexidade humanas, bem como

integrar (na educação do futuro) a

contribuição inestimável das huma-

nidades, não somente a filosofia e a

história, mas também a literatura, a

poesia, as artes (...)38.

36 “Navigare necesse; vivere non est necesse” – em latim, frase de Pompeu, general romano (106-48 a.C.), dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra. Cf. Plutarco, in Vida de Pompeu.

37 Fernando Pessoa. Navegar é preciso. http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso05.html em 24/07/2011.

38 Edgar Morin. Sete saberes necessários à educação do futuro. Unesco.

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Contudo, buscaremos inspiração num ou-

tro mito africano, agora egípcio, que nos foi

apresentado no documentário do Salto para

o Futuro “Africanidades Brasileiras e educa-

ção” e que ilustra nosso momento de agre-

gar, conhecer, interligar histórias, culturas,

conhecimentos, humanidade:

O mito de Osíris39

O mito de Osíris é conhecido graças a

várias fontes, sendo a principal o relato

de Plutarco (século I) De Iside et Osiride

(Sobre Ísis e Osíris). Alguns textos egíp-

cios, como os Textos das Pirâmides,

os Textos dos Sarcófagos e o Livro dos

Mortos, narram vários elementos do

mito, mas de uma forma fragmentária

e desconexa.

Osíris é apresentado como filho de Geb

e Nut, tendo como irmãos Ísis, Néftis e

Seth. É, portanto, um dos membros da

Enéade de Heliópolis. Ísis não era apenas

sua irmã, mas também a sua esposa.

Osíris governou a terra (o Egipto), tendo

ensinado aos seres humanos as técnicas

necessárias à civilização, como a agri-

cultura e a domesticação de animais.

Foi uma era de prosperidade que, contu-

do, chegaria ao fim.

O irmão de Osíris, Set, governava apenas

o deserto, situação que não lhe agrada-

va. Movido pela inveja, decide engendrar

um plano para matar o irmão. Auxilia-

do por setenta e dois conspiradores, Set

convidou Osíris para um banquete. No

decurso do banquete, Set apresentou

uma magnífica caixa-sarcófago que pro-

meteu entregar a quem nela coubesse.

Os convidados tentam ganhar a caixa,

mas ninguém cabia nesta, dado que Set

a tinha preparado para as medidas de

Osíris. Convidado por Set, Osíris entra

na caixa. É então que os conspiradores

trancam-na e atiram-na para o rio Nilo.

A corrente do rio arrasta a caixa até ao

mar Mediterrâneo, acabando por atin-

gir Biblos (Fenícia).

Ísis, desesperada com o sucedido, parte

à procura do marido, procurando obter

todo o tipo de informações dos encon-

tros pelo caminho. Chegada a Biblos, Ísis

descobre que a caixa ficou inscrustrada

numa árvore que tinha, entretanto, sido

cortada para fazer uma coluna no pa-

lácio real. Com a ajuda da rainha, Ísis

corta a coluna e consegue regressar ao

Egipto com o corpo do amado, que es-

conde numa plantação de papiros.

Contudo, Seth encontrou a caixa e, fu-

rioso, decide esquartejá-lo em catorze

39 http://pt.wikipedia.org/wiki/Os%C3%ADris Acesso em 24/07/2011.

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pedaços; o corpo é espalhado por todo

o Egipto. Em alguns textos do período

ptolemaico, teriam sido dezesseis ou

quarenta e duas partes. Quanto ao sig-

nificado destes números, deve referir-se

ao fato de que o catorze é o número de

dias que decorre entre a lua cheia e a lua

nova e o quarenta era o número de pro-

víncias (ou nomos) em que o Egipto se

encontrava dividido.

Ísis, auxiliada pela sua irmã néftis, partiu

à procura das partes do corpo de Osíris.

Conseguiu reunir todas, com excepção

do pênis, que teria sido devorado por um

ou três peixes, conforme a versão. Para

suprir a falta deste, Ísis criou um falo ar-

tificial com caules vegetais. Ísis, Néftis e

anúbis procedem então à prática da pri-

meira mumificação. Ísis transforma-se

em seguida num milhafre que, graças

ao bater das suas asas sobre o corpo de

Osíris, cria uma espécie de ar mágico que

acaba por ressuscitá-lo; ainda sob a for-

ma de ave, Ísis une-se sexualmente a Osí-

ris e desta cópula resulta um filho, o deus

Hórus. Ísis deu à luz este filho numa ilha

do Delta, escondida de Set. A partir de

então, Osíris passou a governar apenas o

mundo dos mortos. Quanto ao seu filho,

conseguiu derrubar Set e passou a reinar

sobre a Terra.

b)Transdisciplinar o conhecimento

Ideias como o tear, o tecer redes, o bricolar...

o diálogo, os encontros cognoscentes.Trago

uma frase do professor Ubiratan D’Ambrosio

acerca da transdisciplinaridade, para poten-

cializar este desafio que a nós, educadoras e

educadores, se coloca:

O essencial na transdisciplinaridade re-

side numa postura de reconhecimento

de que não há espaço e tempo culturais

privilegiados que permitam julgar e hie-

rarquizar, como mais correto ou mais

certo ou mais verdadeiro, complexos de

explicação e convivência com a realida-

de que nos cerca. A transdisciplinarida-

de repousa sobre uma atitude aberta,

de respeito mútuo e mesmo humildade,

com relação a mitos, religiões e sistemas

de explicações e conhecimentos, rejei-

tando qualquer tipo de arrogância e pre-

potência. A transdisciplinaridade é, na

sua essência, transcultural. Exige a par-

ticipação de todos, vindos de todas as re-

giões do planeta, de tradições culturais

e formação e experiência profissional as

mais diversas40.

Trago, já que dialogo com educadoras(es)

no seu sentido amplo, a história de Ananse41

como ilustração e consequências deste des-

membramento:

Houve um tempo em que na Terra não ha-

via histórias para se contar, pois todas per-

tenciam a Nyane, o Deus do Céu. Kwaku

Ananse, o Homem Aranha, queria comprar

as histórias de Nyame, o Deus do Céu, para

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contar ao povo de sua aldeia, então, por

isso, um dia, ele teceu uma imensa teia de

prata que ia do céu até o chão e por ela

subiu.

Quando Nyame ouviu Ananse dizer que

queria comprar as suas histórias, ele riu

muito e falou: – O preço de minhas histó-

rias, Ananse, é que você me traga Osebo,

o leopardo de dentes terríveis; Mmboro, os

marimbondos que picam como fogo, e Mo-

atia, a fada que nenhum homem viu.

Ele pensava que, com isso, faria Ananse de-

sistir da ideia, mas esse apenas respondeu:

– Pagarei seu preço com prazer, e ainda lhe

trago Ianysiá, minha velha mãe, sexta filha

de minha avó.

Novamente o Deus do Céu riu muito e fa-

lou: – Ora, Ananse, como pode um velho

fraco como você, tão pequeno, tão peque-

no, pagar o meu preço?

Mas Ananse nada respondeu, apenas des-

ceu por sua teia de prata que ia do Céu

até o chão para pegar as coisas que Deus

exigia. Ele correu por toda a selva até que

encontrou Osebo, o leopardo de dentes ter-

ríveis. – Aha, Ananse! Você chegou na hora

certa para ser o meu almoço. – O que tiver

de ser será – disse Ananse. Mas primeiro

vamos brincar do jogo de amarrar? O le-

opardo, que adorava jogos, logo se interes-

sou: – Como se joga este jogo? – Com cipós,

eu amarro você pelo pé com o cipó, depois

desamarro, aí é a sua vez de me amarrar.

Ganha quem amarrar e desamarrar mais

depressa, disse Ananse. – Muito bem, ros-

nou o leopardo, que planejava devorar o

Homem Aranha assim que o amarrasse.

Ananse, então, amarrou Osebo pelos pés, e

quando ele estava bem preso, pendurou-o

amarrado a uma árvore dizendo: –Agora

Osebo, você está pronto para encontrar

Nyame, o Deus do Céu.

Aí, Ananse cortou uma folha de bana-

neira, encheu uma cabaça com água

e atravessou o mato alto até a casa de

Mmboro. Lá chegando, colocou a folha

de bananeira sobre sua cabeça, der-

ramou um pouco de água sobre si, e o

resto sobre a casa de Mmboro, dizendo:

– Está chovendo, chovendo, chovendo,

vocês não gostariam de entrar na mi-

nha cabaça para que a chuva não estra-

gue suas asas? – Muito obrigado, Muito

obrigado!, zumbiram os marimbondos,

entrando para dentro da cabaça que

Ananse tampou rapidamente.

O Homem Aranha, então, pendurou a

cabaça na árvore junto a Osebo dizendo:

40 Ubiratan D’Ambrosio.Transdisciplinaridade e a proposta de uma nova universidade. http://vello.sites.uol.com.br/meta.htm Acesso em 24/07/2011.

41 http://pt.wikipedia.org/wiki/Ananse Acesso em 24/07/2011.

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– Agora, Mmboro, você está pronto para

encontrar Nyame, o Deus do Céu.

Depois, ele esculpiu uma boneca de ma-

deira, cobriu-a de cola da cabeça aos

pés, e colocou-a aos pés de um flam-

boyant onde as fadas costumam dan-

çar. À sua frente, colocou uma tigela de

inhame assado, amarrou a ponta de um

cipó em sua cabeça, e foi se esconder

atrás de um arbusto próximo, seguran-

do a outra ponta do cipó e esperou. Mi-

nutos depois chegou Moatia, a fada que

nenhum homem viu. Ela veio dançando,

dançando, dançando, como só as fadas

africanas sabem dançar, até aos pés do

flamboyant. Lá, ela avistou a boneca e

a tigela de inhame. – Bebê de borracha.

Estou com tanta fome, poderia dar-me

um pouco de seu inhame?

Ananse puxou a sua ponta do cipó para

que parecesse que a boneca dizia sim

com a cabeça; a fada, então, comeu

tudo, depois agradeceu: – Muito obriga-

da, bebê de borracha.

Mas a boneca nada respondeu, e a fada,

então, ameaçou: – Bebê de borracha, se

você não me responde, eu vou te bater.

E como a boneca continuasse parada,

deu-lhe um tapa ficando com sua mão

presa na sua bochecha cheia de cola.

Mais irritada ainda, a fada ameaçou de

novo: – Bebê de borracha, se você não

me responde, eu vou lhe dar outro tapa.

E como a boneca continuasse parada,

deu-lhe um tapa ficando, agora, com as

duas mãos presas. Mais irritada ainda,

a fada tentou livrar-se com os pés, mas

eles também ficaram presos. Ananse, en-

tão, saiu de trás do arbusto, carregou a

fada até a árvore onde estavam Osebo e

Mmboro, dizendo: – Agora, Moatia, você

está pronta para encontrar Nyame, o

Deus do Céu.

Aí, ele foi à casa de Ianysiá, sua velha

mãe, sexta filha de sua avó e disse: –

Ianysiá, venha comigo, vou dá-la a Nya-

me em troca de suas histórias.

Depois, ele teceu uma imensa teia de prata

em volta do leopardo, dos marimbondos e

da fada, e uma outra que ia do chão até o

Céu e por ela subiu carregando seus tesou-

ros até os pés do trono de Nyame. – Ave

Nyame! – disse ele. – Aqui está o preço

que você pede por suas histórias: Osebo, o

leopardo de dentes terríveis, Mmboro, os

marimbondos que picam como fogo, e Mo-

atia, a fada que nenhum homem viu. Ainda

lhe trouxe Ianysiá, minha velha mãe, sexta

filha de minha avó.

Nyame ficou maravilhado, e chamou to-

dos de sua corte dizendo: – O pequeno

Ananse trouxe o preço que peço por mi-

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nhas histórias, de hoje em diante, e para

sempre, elas pertencem a Ananse e serão

chamadas de histórias do Homem Ara-

nha! Cantem em seu louvor!

Ananse, maravilhado, desceu por sua teia

de prata levando consigo o baú das histó-

rias até o povo de sua aldeia, e quando ele

abriu o baú, as histórias se espalharam pe-

los quatro cantos do mundo vindo chegar

até aqui.

Destaco este item, pois acreditamos que a

vida precisa ser colocada à frente dos conhe-

cimentos, das disciplinas, dos meios de co-

municaçao, das técnicas, das ferramentas,

do status. Estes só têm sentido se estiverem

a favor e não contra a existência, qualquer

existência.

8) Rever conceitos e valores

Há muito tempo ouço educadores dizerem

que os/as estudantes oriundos/as das classes

populares não têm valores, não têm cultu-

ra ou estas são menores. Esta escuta sensí-

vel ao que docentes dizem sobre discentes,

como as/os avaliam, como as/os tratam, tem

me despertado interesse, seja em qual dos

lados se encontrem as/os docentes ou como

transitem neste espectro que vai da desqua-

lificação total ao respeito total a estas/es

estudantes. Com esta escuta, aprendi que o

cotidano escolar é mais complexo e amalga-

mado do que imaginamos, não sendo pos-

sível separar o joio do trigo, pois em cada

um de nós existem joio e trigo. Aprendi tam-

bém, nestas buscas de inclusão, a ver e rever

valores e conceitos pertencentes a grupos

não hegemônicos na sociedade e na escola.

A compreensão e o aprendizado destes va-

lores como pedagógicos e didáticos podem

ajudar-nos a enfrentar o cronificado quadro

de produção e reprodução de desigualdades

na nossa sociedade. Conhecer quem somos e

de onde viemos, o que nos constitui cultural-

mente, pode ser de grande valia.

9) Reaprender a aprender

Como docentes, diante de perspectivas mul-

ticulturais e transdisciplinares, inovadoras

e inclusivas, é inevitável reaprendermos a

aprender, buscarmos o prazer do conhecer

e reconhecer o mundo.

Por exemplo, ou a título de ilustração, esta

capacidade de voltar atrás para reconstituir

algo que ficou pendente, para que possa-

mos seguir carregadas(os) energeticamente,

com a energia vital equilibrada, não é nova,

povos africanos, os acã da África ocidental

(notadamente os asante de Gana), nos ofe-

recem os Adinkras, um entre vários sistemas

de escrita africanos. Os adinkras representam

ideias expressas em provérbios. Além da repre-

sentação grafada, são estampados em tecidos

e adereços, esculpidos em madeira ou em pe-

ças de ferro para pesar ouro42.

10) Redescobrir o humano em nós e nas

outras pessoas

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(…) um ser racional e irracional, capaz

de medida e desmedida; sujeito de afeti-

vidade intensa e instável. Sorri, ri, chora,

mas sabe também conhecer com objeti-

vidade; é sério e calculista, mas também

ansioso, angustiado, gozador, ébrio, ex-

tático; é um ser de violência e de ternu-

ra, de amor e de ódio; é um ser invadi-

do pelo imaginário e pode reconhecer o

real (...); que secreta o mito e a magia,

mas também a ciência e a filosofia; que

é possuído pelos deuses e pelas Ideias,

mas que duvida dos deuses e critica as

Ideias; nutre-se dos conhecimentos com-

provados, mas também de ilusões e de

quimeras 43.

Poderíamos trazer aqui várias outras pesso-

as para fortalecer este item:

Bell Hooks, com sua perspectiva de trazer o

amor para nossas vidas:

Quando nós, mulheres negras, expe-

rimentamos a força transformadora

do amor em nossas vidas, assumimos

atitudes capazes de alterar completa-

mente as estruturas sociais existentes.

Assim, poderemos acumular forças para

enfrentar o genocídio que mata diaria-

mente tantos homens, mulheres e crian-

ças negras. Quando conhecemos o amor,

quando amamos, é possível enxergar

o passado com outros olhos; é possível

transformar o presente e sonhar o fu-

turo. Esse é o poder do amor. O amor

cura44.

Maria Beatriz Nascimento, em um trabalho

sobre Quilombo (1993)45:

A filosofia bantu, da força vital, perma-

neceu até hoje no modo de ser do brasilei-

ro. A aparente aceitação das dificuldades

baseia-se justamente naquela filosofia,

que impõe a que se desempenhe a vida,

fortalecendo-a no corpo físico e na mente

como “instrumento de luta”. Assim, as

religiões afro-brasileiras de origem ban-

tu ou nagô (etnias da África Ocidental)

sincretizaram-se para fornecer aos seus

adeptos o princípio desta força que fun-

ciona como ‘máquina-de-guerra’ exis-

tencial e física. Marcando-se, como no

quilombo ancestral, por ritos iniciáticos,

o fortalecimento do indivíduo como um

território que se desloca no campo geo-

gráfico, incorporando um paradigma

vivo e atuante no território americano

fundado pelos seus antepassados escra-

vos e quilombolas. Agindo nos seus locais,

42 http://ipeafro.org.br/home/br/acoes/17/17/adinkra/ Acesso em 24/07/2011.

43 Edgar Morin, op cit.

44 Por Bell Hooks - “O amor cura” http://primeiropovo.blogspot.com/2009/06/por-bell-hooks-o-amor-cura.html Acesso em 24/07/2011.

45 Mimeografado.

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seja no “terreiro” místico, nas comunida-

des familiares, nas favelas, nos espaços

recreativos (manifestando a música de

origem africana, afro-americana ou afro-

brasileira), os povos africanos da América

provocam mudanças nas relações raciais

e sociais.

Elisa Lucinda, com sua ‘Libação’46:

(...)

A vida não tem ensaio

mas tem novas chances.

Viva a burilação eterna, a possibilidade:

o esmeril dos dissabores!

Abaixo o estéril arrependimento

a duração inútil dos rancores.

Um brinde ao que está sempre nas

nossas mãos:

a vida inédita pela frente

e a virgindade dos dias que virão!

Preferimos, contudo, parar de encher este

bornal, que para se construir me possibili-

tou aprender mais sobre esta temática, com

a questão que permanece:

46 http://www.elisalucinda.com.br/bau/libacao.htm Acesso em 24/07/2011.

como, numa perspectiva inclusiva, não hierárquica, sem racismo, sem machismo, trabalhar

com a alteridade, a multiculturalidade, no cotidiano escolar? E, no caso deste texto, tendo a

televisão como parceira?

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3.4 “Isso vem do começo do mundo!” – DADos e AnotAções soBre A CulturA populAr

Carlos Rodrigues Brandão47

Alessandra Fonseca Leal48

É da água, é do fogo; é do princípio do mundo.

Antônio Silvério – mestre ferreiro49

aLGuMaS PaLavRaS iniciaiS

A primeira parte do título deste texto pode

parecer estranha, mas tem a sua razão de

ser. O fato de que esteja entre aspas também.

Quando perguntamos a alguém sobre a ori-

gem e a autoria de uma música, de um “can-

torio” de rituais tradicionais do catolicismo

popular, como uma Folia de Santos Reis, ou

um Terno de Congos ou de Moçambiques,

um conto antigo, uma lenda ou mesmo uma

receita de doce caseiro, não é raro receber,

como resposta, que não se sabe por comple-

to quem é o autor. A seguir, alguém sempre

remete a origem dessas produções culturais

a tempos imemoriais. “Isso vem do começo

do mundo”. Uma fórmula algo mais realista

e próxima é também costumeira: “Isso veio

do tempo dos nossos antigos”. Pode mesmo

acontecer que uma forma de oração, um

canto ou uma sequência de dança devocio-

nal, como a da Função de São Gonçalo, seja

atribuída a um ser sacralizado, que pode ir

do santo cuja dança celebra a sua memória

à própria divindade.

Em outras situações – e elas são múlti-

plas, variadas e frequentes – a autoria de

algo a que, de modo geral, denominamos

como folclore, tradições populares, cultura(s)

popular(es), e, de alguns anos para cá, patri-

mônio cultural, patrimônio cultural imaterial,

costuma ser apontada uma autoria nomi-

nada, individual, familiar, ou coletivamen-

te corporada. Alguém já falecido há longo

ou há pouco tempo, mas cujas criações de

autoria são atestadas e comunitariamente

reconhecidas, ou alguém ainda vivo. Um

“mestre de Folia do Divino Espírito Santo”,

um notável “capitão de terno de moçambi-

47 Antropólogo, professor visitante da Universidade Federal de Uberlândia, como bolsista senior da CAPES. Coordenador do Projeto Etnocartografias do Rio São Francisco.

48 Mestranda em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia.

49 Entrevista concedida para o livro coordenado por Olavo Romano: Mestres Minas Ofícios Gerais – resgate cultural do artesanato mineiro – Araxá, publicado pelo SEBRAE-MG, Belo Horizonte, em 2000 (página 29).

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ques”, um folgazão violeiro e improvisador

de quadras da dança (ou “folga”, ou “fun-

ção”) de São Gonçalo. De igual maneira, to-

ques de viola, músicas sertanejas, criações

artesanais de palha, madeira ou barro, recei-

tas de cura popular patrimonial, receitas de

“comidas típicas” oscilam, de Sul a Norte do

Brasil, entre o anonimato absoluto, a auto-

ria mítica e a autoria humana reconhecida e

certificada.

Assim também, criações populares de todos

os tipos e padrões podem ser atribuídas, al-

gumas vezes, à criação, ao “dom”, à pos-

se ou mesmo à propriedade de uma pessoa

única, de um par de autores, de uma família,

de uma descendência familiar – “começou

com o pai de meu avô e segue comigo que

estou ensinando aos meus filhos” – e outras

vezes a uma parentela ampliada, a uma con-

fraria profana ou religiosa, ou mesmo a uma

comunidade.

Na verdade, quando estudamos a história

da arte em todo o mundo e ao longo das

eras, vemos que o reconhecimento de uma

autoria e os direitos devidos a esta autoria

reconhecida variavam muito. Bach e outros

músicos anteriores à sua época, ou posterio-

res a ela, nem sempre assinavam as partitu-

ras de suas músicas. Livros e folhetos do que

veio a ser o romance moderno circulavam

entre elite e povo sem qualquer nome de au-

tor. O mesmo acontecia em alguns tempos e

lugares com obras de artes plásticas.

Este texto não versa sobre a dimensão

mais própria e diretamente antropológica

da questão do patrimônio cultural imate-

rial. Isto será feito em um outro momento

e em dimensões mais amplas. Ele trata da

sua dimensão mais sociopolítica. Ou seja,

procura dar conta de definir, relacionar e

compreender alguns conceitos situados en-

tre a cultura popular e o patrimônio cultu-

ral imaterial. E isto será realizado em outro

momento através de uma talvez enfadonha,

mas necessária reconstrução da trajetória

que, iniciada na UNESCO e em processo em

inúmeras nações em todo o mundo e, de

maneira especial, em nosso caso, no Brasil,

gerou e segue gerando propostas, projetos e

políticas. Lembremos, no entanto, que aqui

mesmo, no Brasil de agora, há um crescente

interesse por este intervalo entre a cultura

popular e o patrimônio cultural imaterial. Vá-

rios documentos governamentais de âmbito

federal, estadual ou mesmo municipal têm

sido editados. E vários artigos, escritos tan-

to por profissionais vinculados a entidades

culturais governamentais, quando a institui-

ções acadêmicas ou mesmo a organizações

não-governamentais relacionadas à arte e

cultura, têm sido escritos e colocados em

diálogo.

1. DO FOLcLORE à cuLTuRa

POPuLaR

Recuemos alguns passos... Sabemos já que

uma parte bastante significativa disto, a que

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se dá agora o nome de patrimônio cultural

imaterial, recebeu em outros tempos – nem

tão passados assim – e segue recebendo até

hoje nomes como: antiguidades, tradições

populares, folclore (folk-lore), cultura tradi-

cional (primitiva, iletrada, rústica, camponesa

etc.), cultura patrimonial, cultura popular.

Da parte do que poderíamos, por uma con-

trovertida oposição, chamar de cultura erudi-

ta, cultura letrada, cultura acadêmica, cultura

hegemônica ou mesmo cultura dominante, o

reconhecimento de que “as gentes do povo”

também são criadoras e possuem formas pró-

prias ou apropriadas de cultura é tardio. Ele

surge em algumas áreas da Europa no século

XVIII, mas torna-se tema de pesquisa e teoria

apenas ao longo do século XIX. O romantismo

tem aí um lugar muito importante.

O reconhecimento da existência e da plura-

lidade de culturas populares vem associado

ao reconhecimento – sob as mais divergen-

tes interpretações – de que tal fato se deve

a desníveis sociais que acompanham a pró-

pria trajetória das sociedades autoprocla-

madas como civilizadas. Mas é o interesse

pelo exótico entre o ancestralmente orien-

tal e o primitivamente selvagem que sugere

a alguns pioneiros europeus o estudo das

culturas “outras” de seus próprios mundos

sociais. Foi necessário ao europeu letrado

“descobrir” primeiro que os selvagens das

Américas e da África possuíam culturas, con-

sideradas primitivas, para se admitir que os

camponeses de suas nações também possu-

íam as suas culturas tradicionais, populares.

Desde então é presente, ainda, e depende,

como sempre, das diferenças de olhares e de

teorias, uma interminável discussão sobre os

fundamentos e o grau de autonomia das di-

versas formas de realizações de culturas po-

pulares. O que não deverá parecer algo sem

sentido, se nos lembrarmos que o debate

sobre a substância e o significado da própria

cultura é até hoje – e hoje mais do que nunca

– uma questão aberta entre os estudiosos, a

começar pelos próprios antropólogos.

Chama a atenção o fato de que dois historia-

dores europeus, muito conhecidos no Brasil,

recorrem a um mesmo estudioso anterior,

para lembrar que mais do que uma separa-

ção em camadas superpostas, ou mais do que

uma “dominação” relativa ou absoluta das

culturas eruditas sobre as populares, o que

parece ter havido sempre é uma relação de

circularidade entre atores, autores e padrões

ou sistemas de e entre culturas. O autor lem-

brado é Mickhail Bakhtin, e os historiados

que o recordam nas páginas introdutórias de

seus respectivos livros são Carlo Ginzburg e

Peter Burke50. Não serão os únicos.

50 Ver o prefácio à edição italiana de O queijo e os vermes, de Ginzburg e os três primeiros capítulos da parte 1: Em busca da cultura popular, de Cultura popular na idade moderna, de Peter Burke.

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Deve chamar também a nossa atenção o fato

de que diante das intermináveis incertezas

a respeito do tema de seu estudo, logo no

primeiro parágrafo do prólogo, Peter Burke

opte por definir a cultura popular pelo que

ela não é.

Quanto à cultura popular, talvez seja

melhor de início defini-la negativamen-

te, como uma cultura não-oficial, a cul-

tura da não-elite, das “classes subalter-

nas, como chamou-as Gramsci51.

Retornemos ao Brasil. Durante anos que

vão pelo menos de nossos escritores e raros

estudiosos de um romantismo em versão

brasileira aos primeiros escritores regiona-

listas, o interesse pelas diferentes criações

de culturas populares coube aos primeiros

folcloristas. É com as suas pesquisas pionei-

ras que uma outra face do que se cria como

cultura de Norte a Sul do Brasil começou a

tomar uma forma sistemática. Entre Cecília

Meireles, Mário de Andrade, Câmara Cascu-

do e Alceu Maynard de Araújo, para ficarmos

apenas em quatro nomes dentre uma quan-

tidade apreciável de outros homens e mu-

lheres que tanto no passado, nos meados de

século XX, quanto até hoje, produziram e se-

guem elaborando estudos que apenas uma

compreensão empobrecida de seu trabalho

poderia classificar como passadista ou não

científico52. Comissões estaduais de folclore e

a Comissão Nacional do Folclore seguem rea-

lizando um trabalho nem sempre visível, mas

ainda de extrema relevância a respeito de cul-

turas dos povos do país.

Por volta dos anos 1960, uma nova pro-

posta a respeito da cultura popular surge

no Brasil e em pouco tempo difunde-se

por uma vasta área da América Latina. É

importante lembrar o que representaram

os movimentos de cultura popular dos anos

1960 para compreendermos o intervalo

existente entre o fecundo trabalho dos

folcloristas e também dos pesquisadores

dos “estudos de comunidade”, no Brasil,

dos movimentos de estudo e militância da

e através da cultura e, deles, aos temas

e dilemas de nossos dias, no que toca à

cultura popular.

Segundo os termos próprios dos documen-

tos “daquele tempo”, a vocação para o tra-

balho de transformar e significar o mundo

em que se vive, e em que se reproduz, é a

mesma vocação de transformar e significar

o próprio ser humano. Ele envolve uma prá-

tica biologicamente coletiva e socialmente

cultural. Realiza-se como uma ação social-

mente necessária e motivada.

51 Peter Burke, op. cit. p. 15.

52 O SESC editou recentemente em um volume único, com cinco CDs, os registros sonoros da “missão cultural” de Mário de Andrade em suas viagens de pesquisa pelo Brasil.

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54

A própria sociedade em que o indivíduo

converte-se em uma pessoa humana é uma

realização de sua cultura, no sentido mais

amplo que é possível atribuir a esta palavra.

De igual maneira, tudo o que envolve a iden-

tidade e a própria consciência humana, aqui-

lo que permite ao ser humano não apenas

conhecer, como os animais, mas conhecer-se

conhecendo – o que lhe faculta transcender

simbolicamente o mundo da natureza de que

é parte e sobre o qual age – é uma construção

social que acompa-

nha, ao longo de sua

história, o acontecer

do trabalho humano

ao ‘sair-de-si’, unir-se

a outros e agir sobre

o seu mundo e sobre

si mesmo.

A principal crítica

aos estudiosos das

culturas tradicionais

no início dos anos 1960 não era muito dife-

rente daquela que, muitos anos antes, Karl

Marx fizera aos filósofos de seu tempo. Foi

grande o esforço para compreender modos

de vida e formas de ser, sentir, viver, criar e

pensar de camponeses, pescadores e outras

categorias de pessoas e de grupos humanos

criadores de nossas “tradições populares”.

Mas também homens e mulheres subalter-

nos, “dominados” (palavra frequente então)

e pertencentes às classes populares. Era che-

gado o tempo de fazer essas culturas, que

agora recebiam outros nomes, como “subal-

ternas”, “oprimidas”, “alienadas”, “domi-

nadas”, não apenas falarem de si e de seus

mundos, através de seus contos e cantos,

mas dizerem de modo agora crítico e con-

tundente algo sobre a sua condição social.

Era preciso torná-las – e aos seus atores/au-

tores – conscientes (outra palavra cara e fre-

quente, então) de sua própria condição, mas

também de seu poder. Era urgente transpor

para um plano político aquilo que até então

havia sido estuda-

do e compreendido

como algo apenas

residualmente cul-

tural.

Assim, fundada em

ideologias e asso-

ciada à “frente de

luta” e a movimen-

tos entre reforma-

dores e revolucio-

nários da sociedade nacional, uma outra

cultura popular pretendeu ser um corpo de

ideias e práticas renovadoras e questionado-

ras em vários planos. Usando a mesma ex-

pressão corrente na Europa desde o século

XIX, a proposta dos movimentos de cultura

popular (MCPs) dos anos iniciais da década

de 1960 redimensiona o valor original da cul-

tura popular, tal como pensada, antes, sob o

nome de folclore. Culturas de segmentos do

povo brasileiro.

A própria sociedade em que

o indivíduo converte-se em

uma pessoa humana é uma

realização de sua cultura,

no sentido mais amplo que

é possível atribuir a esta

palavra.

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55

A oposição social entre modos sociais de

participação na cultura é o que explica a

existência e o modo de realizar-se da cultura

popular. No interior de sociedades desiguais

e excludentes, esta é uma das dimensões de

universalização da cultura que é negada, a

partir de suas diferenças assumidas, mas

não de suas desigualdades impostas. E não

raro são justamente aqueles que não a pra-

ticam – e, muitas vezes, limitam-se a estu-

dá-las, compreendê-las, classificá-las, agir

“sobre” elas – que

criam a própria ideia

de culturas populares,

entre outras. Nos ter-

mos dos movimentos

de cultura popular,

o povo deveria ser

compreendido como

autor, ator e consu-

midor de sua própria

experiência cultural,

aquela que traduz a

sua existência de criador.

Mas de um criador subalterno, subordinado.

Ao mesmo tempo em que “reflete” a origi-

nalidade de seu próprio modo de vida, uma

cultura popular é, também ela, subalterna.

E aqui é fácil encontrar o eco da forte pre-

sença do pensamento de Antônio Gramsci,

um autor e militante bastante lido e citado,

inclusive, por Paulo Freire, talvez o principal

porta-voz dos movimentos de cultura e de

educação popular dos anos 1960.

Ao lado do domínio político direto exercido

pelas diversas instituições do poder sobre a

vida social, existe um controle que é exercido

pela “cultura dominante” sobre uma múlti-

pla “cultura dominada”. De muitos modos

e através de diversos artifícios de comuni-

cação e de inculcação de palavras, valores e

ideias, realiza-se um “trabalho” contínuo de

bloqueio e cooptação das diferentes “mani-

festações populares”, de tudo aquilo que “o

povo vive e cria”, que pudesse vir a expres-

sar a sua condição

de classe e um ho-

rizonte de eman-

cipação popular. O

domínio da cultu-

ra erudita sobre a

popular seria um

processo. Ele mobi-

lizaria recursos, ca-

nais, meios, pesso-

as especializadas,

grupos de controle,

de propaganda, de educação. Ele inovaria

meios, recursos e tecnologias, ampliaria e

testaria com frequência crescente as suas

estratégias de comunicação. Assim, agiria

em nome de um absorver, retraduzir, e esva-

ziar invasoramente os domínios e formas de

expressão das criações patrimoniais do povo.

Assim sendo, os diferentes setores das classes

populares reproduzem, como sendo sua, uma

cultura “culturalmente” mesclada e situada

fora do eixo da identidade das classes popu-

Nos termos dos

movimentos de cultura

popular, o povo deveria

ser compreendido como

autor, ator e consumidor

de sua própria experiência

cultural, aquela que traduz

a sua existência de criador.

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lares. Uma cultura politicamente dominada

e externa ao processo político de gestão do

poder. Uma cultura, enfim, simbolicamen-

te alienada e colocada fora do eixo de uma

consciência crítica53. Dentro desta situação,

não sendo conscientizado pela sua própria

cultura, o povo não poderá sê-lo por outro

qualquer meio usual na conjuntura de do-

minação. E, no entanto, somente a partir da

ação conscientizada e organizada das clas-

ses populares é legítimo imaginar a possibi-

lidade de um projeto de libertação de todas

as esferas de domínio na sociedade de clas-

ses. E, compreendia-se, então, que uma das

frentes de luta neste sentido seria, propria-

mente, politicamente cultural. E seria, ain-

da, culturalmente educativa. Daí o lugar ati-

vo de movimentos e de processos de cultura

popular e a sua associação com instituições

dedicadas à educação popular.

2. Da cuLTuRa POPuLaR aO

PaTRiMôniO cuLTuRaL

Temos hoje uma lembrança fragmentada e

fugidia do que foram os nossos estudiosos

folcloristas, como Mário de Andrade e Câma-

ra Cascudo, tanto quanto cientistas sociais

em algum momento dedicados a estudos de

criações populares, como ninguém menos

do que Florestan Fernandes e Maria Isaura

Pereira de Queirós. Temos também uma es-

quecida memória do que representaram, em

seu tempo, os movimentos de cultura popu-

lar e seus derivados: as experiências inova-

doras de educação popular; o alvorecer do

cinema novo no Brasil; o teatro do oprimido,

de Augusto Boal; as iniciativas dos centros

populares de cultura espalhados por quase

todo o Brasil de então. Diversas experiên-

cias, depois severamente reprimidas pelos

governos militares, a partir mesmo de 1964,

de que, de um modo ou de outro, todas as

atuais alternativas de políticas culturais ino-

vadoras são herdeiras. Em boa medida, fora

preciosas exceções, os estudos realizados a

respeito da história ou “de histórias” sobre

formas patrimonial-populares de criação e

vivência de cultura são marcados por cruza-

mentos ideológicos (não raro sob o disfarce

de serem científicos), ou fazem concessões

indevidas ao um certo “espírito de época”.

De tal sorte que são raros os casos em que

uma visão completa e envolvente está por

ser realizada.

Dada a brevidade deste estudo, dentre os

diferentes acontecimentos importantes na

“área da cultura” queremos recordar aqui

apenas quatro. Eles talvez sejam os mais

relevantes em uma era que vai do final dos

anos 1960 até o presente momento.

O primeiro envolve um lento e muito varia-

do processo de autorreconhecimento e, em

53 Talvez o livro em que esta ideia aparece com maior vigor, de acordo com os termos, críticas e propostas dos anos 1960, seja o livro escrito pelo educador Paulo Freire, quando já no exílio no Chile: Pedagogia do Oprimido.

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alguns casos de organização de unidades,

grupos, e até mesmo associações locais ou

mesmo regionais de cultura popular. Criado-

res individuais e/ou corporados de modali-

dades de culturas patrimoniais reconhecem-

se, aproximam-se por iniciativa própria ou

com diferentes tipos de ajudas “de fora” .

Aqui e ali surgem pequenas unidades sociais

em nome de artis-

tas e artesãos popu-

lares, de unidades

de rituais popula-

res, como as Com-

panhias de Santos

Reis ou as Associa-

ções de Congos e

de Moçambiques,

dos festejos de São

Benedito ou de

Nossa Senhora do

Rosário. O trabalho

criador popular dei-

xa de ser folclorica-

mente “anônimo”

e os seus criadores

– autores e/ou ato-

res – identificam-se

e são reconhecidos.

Este processo acompanha um outro e é in-

dissociável dele. Falamos de todo um neoa-

contecer que não raro ocupa manchetes de

jornais. Desde povoações de morros do Rio

de Janeiro, antes chamadas de “Favela da Ro-

cinha” e agora autoidentificadas como “Co-

munidade da Rocinha”, até populações dos

“fundos do sertão” ou dos ermos da Amazô-

nia, vemos comunidades indígenas, quilom-

bolas, vazanteiras, veredeiras, de “fundo de

pasto”, em pouco tempo, passarem de aglo-

merados tão escondidos quanto possível

“dos poderosos”, a comunidades populares

organizadas, a unidades sociais de teor polí-

tico-cultural, desde o

âmbito de ação local

até as redes regionais

ou mesmo nacionais,

formando categorias

étnicas, profissionais

ou territoriais de ati-

va luta por seus direi-

tos. E não apenas o

direito de salvaguar-

da de suas terras e

territórios, mas de

todo um modo pe-

culiar de vida. Uma

cultura, ou um entre-

cruzamento de cultu-

ras.

Populações, povoa-

ções, comunidades estão agora com um pé

fincado na terra de suas mais arcaicas e va-

lorizadas “tradições” e o outro fixado, cada

vez mais, em tudo aquilo que é novo, ativa-

mente presente e participante, presencial e

virtual, político e formador de novas alter-

nativas de empoderamento e representativi-

dade.

Populações, povoações,

comunidades estão agora

com um pé fincado na

terra de suas mais arcaicas

e valorizadas “tradições”

e o outro fixado, cada vez

mais, em tudo aquilo que é

novo, ativamente presente

e participante, presencial e

virtual, político e formador

de novas alternativas

de empoderamento e

representatividade.

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Mais do que isto. Pessoas e grupos territo-

riais, étnicos e culturais que começam agora

a ‘falar-por-si-mesmos’, a produzirem e leva-

rem a congressos acadêmicos ou ao Con-

gresso Nacional as suas próprias palavras.

Podemos acreditar que a composição social

de comissões locais, estaduais e nacionais

“de cultura” – assim como as “de saúde”,

“de educação” ou “de meio ambiente” – so-

frerão, em pouco tempo, urgentes e justas

mudanças.

O segundo acontecimento traz de volta as

ideias não apenas de Mickhail Bakhtin, lem-

bradas por Ginzburg e Burke, a que nos refe-

rimos anteriormente, mas de vários outros

estudiosos da cultura, que antes e depois

dele tratam de estabelecer, ao mesmo tem-

po, as fronteiras entre as diferentes moda-

lidades de culturas e as contínuas quebras,

rupturas e mútuas incursões entre “um lado

e o outro”. De um lado, assistimos a um di-

álogo, ora necessário e fecundo, ora arbitrá-

rio e ameaçador, entre diferentes criadores e

agentes de/entre culturas. Entre o erudito e

o popular – ou o folclórico e suas variações

– de antes, há um alargamento de mútuos

territórios culturais e de fronteiras no inte-

rior da própria ideia de “popular”. A fórmula

MPB, “música popular brasileira” bem tra-

duz este acontecer54.

De um lado, o florescimento de um grande

número de ‘artistas-de-fronteiras’, algumas

vezes autoassumidos como “músicos de ra-

ízes”. Situados aquém e além de possíveis

linhas culturais divisórias (se é que elas exis-

tem) entre Elomar, Dorothy Marques e Mil-

ton Nascimento ou Gilberto Gil, eles levam

a um ponto mais próximo do “propriamente

popular” um intercâmbio entre recriações ou

“interpretações de empréstimo” de músicas

ou de formas de cantar e dizer já bastante co-

nhecidas desde décadas bem passadas. Um

renascer da viola caipira em mãos de músi-

cos como Renato Andrade, Paulo Freire (o

outro), Ivan Vilela ou Pereira da Viola é uma

outra clara e feliz expressão de como o “cai-

pira” pode, em pouco tempo, transitar para

o modernamente “sertanejo” e, dele, ou para

além dele, para uma música que nem por ser

“de viola” deixa de aspirar a fronteira entre o

popular e o francamente erudito.

De outro lado, há a invasão da mídia e da

“massa” sobre qualidades artísticas tradi-

54 Entre nós uma diferença entre o “folclórico” e o “popular” nunca foi claramente resolvida. Afortunadamente, pensamos nós. Em Buenos Aires, em uma loja de artigos musicais, Astor Piazola poderá oscilar entre música erudita e/ou popular. Carlos Gardel e seus CDs de tango estarão na seção de música popular. Já Jorge Cafrune estará na estante de música folclórica. Por outro lado, esta pequena passagem do músico e pesquisador Eduardo Gramani estabelece outras fronteiras: Ao contrário do que se observa com outros instrumentos “brasileiros” que são utilizados na música folclórica, a rabeca quase não participa da chamada “música popular”, mantendo sua atuação restrita (com algumas exceções), às festas religiosas e folclóricas da região. Rabeca, o som inesperado, pesquisa de Eduardo Gramani e organização editorial de Daniella Gramani, também responsável pela publicação em 2002, sem indicação de local. A citação está na página 9, na introdução. Resta perguntar a razão pela qual o autor colocou “música popular” entre aspas e não fez o mesmo com folclórico.

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cionais das culturas populares. É quando,

em uma direção, é considerado como “raí-

zes” e, em outra, como “sertanejo”, tornado

“country”. É também a transformação for-

çada e forjada de rituais populares em es-

petáculos, desde os “concursos de Folias de

Santos Reis” ao espetáculo “global” do Boi

Bumbá de Parintins. Muito já foi escrito so-

bre os dois acontecimentos, que quebram o

intercâmbio entre fronteiras culturais deste

tipo, em uma ou noutra direções, e ele me-

recerá apenas uma breve lembrança aqui.

O terceiro acontecimento é a “descoberta”

do universo das culturas populares de par-

te de outros estudiosos e pesquisadores que

não são folcloristas e outros interessados

em nossas “tradições populares”. Depois

das incursões francamente pioneiras de

sociólogos, como Maria Isaura Pereira de

Queirós e Florestan Fernandes, lembrados

linhas acima, pelo menos dos anos 1970 em

diante – justamente quando desapareceram

os antecedentes movimentos de cultura po-

pular – em todo o país há um vertiginoso

e durante longo tempo crescente interesse,

primeiro de antropólogos, depois de soció-

logos, historiadores, linguistas e, mais tarde

ainda, até mesmo de neoestudiosos ou espe-

cialistas nos diferentes ramos e campos da

comunicação social, pelas mais diferentes

“manifestações” culturais populares. Das

Folias de Santos Reis ao Carnaval Carioca,

passando pela Capoeira e o Candomblé, o

Cordel e as Estórias de Trancoso, invenções

patrimoniais populares, religiosas ou profa-

nas, são de vários modos re-visitadas e disto

resulta uma produção acadêmica, ou não,

bastante grande e variada.

Finalmente, o quarto acontecimento talvez

seja o que aqui nos interessa mais de per-

to. Justamente quando silenciam ou falam

em surdina as suas vozes de protesto e de

ação política – os MCPs e seus herdeiros de

causa – surgem, sobretudo da parte de agên-

cias governamentais direta ou indiretamen-

te vinculadas à “questão cultural”, as mais

diferentes modalidades de propostas, ações

e políticas culturais. Este, em uma dimen-

são delimitada aqui de propósito, é o objeto

mais próximo deste escrito. Para nos aproxi-

marmos dele teremos que realizar uma es-

pécie de viagem de fora para dentro ou, se

quisermos, do universal para o nacional. Ou,

ainda, da UNESCO e instituições de foro in-

ternacional derivadas, para o Ministério da

Cultura do Brasil. Por enquanto são encon-

tros e ‘documentos-de-encontros’ produ-

zidos em imensa maioria por “gente como

nós”, entre ministérios e universidades.

Mas, do lado “de lá”, do lado daqueles em

nome de quem nos reunimos e falamos, co-

meçam a se elevar vozes que nos desafiam

com a pergunta: “até quando...?”

Entre estas alternativas, algumas experiên-

cias do passado próximo e do presente pa-

recem apontar para horizontes promissores

nesta difícil empreitada que é lidar sem dis-

torcer com as culturas populares, sobretudo

no difícil intervalo entre elas e a educação.

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Uma experiência passada foi a do Projeto

Interação entre a educação e os diferentes

contextos culturais, levada a efeito pela FU-

NARTE no coração dos anos 1980.

Uma outra, recente e em pleno curso, é a

do Salto para o Futuro. Através dela realiza-

se, passo a passo e sempre de maneira ex-

perimental e transformável, a construção de

vias de mão dupla nas relações entre a esco-

la (dentro e fora da sala de aulas) e as cultu-

ras populares (dentro e fora das escolas). Se

podemos pensar que a educação, a escola e

as salas de aula de crianças e jovens são cada

vez mais (para o bem e para o mal) perpassa-

das e invadidas pelas mais diversas influências,

vindas ou não de um acesso cada vez mais fácil

e perigosamente desmesurado de todas as mí-

dias, por que não lançar mão delas e de seus

mais fecundos momentos e instrumentos para

estabelecer um diálogo entre “o que se apren-

de na escola” e “o que se aprende com a vida”?

Um refrão popular transformado em mar-

chinha de carnaval diz que “inspiração não

se aprende na escola”. Pode ser verdade. E

não seria, se a educação escolar aprender

a inspirar-se mais em formas e alternativas

dialógicas e criativas do que em ‘ensinar-e-

aprender’. No entanto – e agora muito mais

para o bem do que para o mal – aquilo que é

obra dos mais diferentes homens e das mais

diversas mulheres inspiradamente criadoras

de nossas culturas não deve apenas “entrar

na escola pela porta da frente”, como deve

fazer dela também uma sua outra “casa de

cultura”.

REFERênciaS

BRANDÃO, Carlos Rodrigues e Raiane Assump-

ção. A cultura rebelde. Escritos sobre a educa-

ção popular ontem e agora. São Paulo: Editora

e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009.

BURKE, Peter. Cultura popular na idade moder-

na. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FÁVERO, Osmar. Cultura popular e educação po-

pular – memória dos anos sessenta. 2ª edição.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 2005.

GRAMANI, Eduardo. Rabeca, o som inesperado.

Organizado por Daniella Gramani. Produção

Cultural de Curitiba, 2002.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São

Paulo: Companhia das Letras, 1987.

QUINTAS, José da Silva. O difícil espelho – limi-

tes e possibilidades de uma experiência de cul-

tura e educação. Brasília: Edições do Patrimô-

nio/IPHAN, 1996.

ROMANO, Olavo. Mestres Minas Ofícios Gerais –

resgate cultural do artesanato mineiro – Araxá.

Belo Horizonte: SEBRAE -MG, 2008.

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3.5 pArA o sAlto, De umA eDuCADorA

Eleonora Gabriel55

Recebi um convite para festar com o progra-

ma Salto para o Futuro. Em 2011, o progra-

ma completou vinte anos de empenho para

trazer aos educadores e ao público em geral

não só experiências pedagógicas bem suce-

didas, mas, sobretudo, a esperança de que,

apesar de tudo, podemos criar uma escola

feliz, afetiva, conectada com o global, ilu-

minando o local, seu espaço, tempo e suas

gentes.

Participei de vários programas com funções

diferentes, mas sempre conversando sobre

cultura popular brasileira.

Se na minha escola de terceiro grau eu não

tivesse sido sensibilizada para essa sabedo-

ria, para essa cultura que – de tão íntima

– nem sempre a valorizamos como tal, pos-

sivelmente eu não estaria nessa festa, re-

fletindo sobre a valorização de cada um de

nós, como criadores, e o que isso pode signi-

ficar na construção de pessoas mais críticas,

guerreiras, sem perder as raízes e, por isso,

sem perder a ternura.

Falo de expressões humanas que vêm da

vida, de casa, das ascendências que passam

de mão em mão, de boca em boca e nos

constituem como sabedores de algo, que se

fosse ouvido, visto, tocado, saboreado em

seus gostos e cheiros pelas instituições de

ensino, o caminho do conhecimento seria

perfumado de brasilidade.

Tive a oportunidade de construir este aro-

ma lendo Paulo Freire, ouvindo Carlos Ro-

drigues Brandão, Cascia Frade e outros mes-

tres acadêmicos que desenvolveram teorias

e ações inspiradas na pesquisa em campo,

isto é, próximos às pessoas, trocando com

elas saberes e emoções, que é como tento

atuar.

Conheci o programa Salto para o Futuro

por causa dos convites, e as séries que tive

55 Mestre em Ciência da Arte/UFF. Especialista em Folclore Brasileiro-UFRJ, licenciada em Educação Física-UFRJ, professora adjunta da Escola de Educação Física e Desportos-UFRJ. Coordenadora e diretora artística da “Companhia Folclórica do Rio-UFRJ”. Em 2012, a Companhia completou 25 anos.

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oportunidade de assistir me ensinaram uma

infinidade de coisas, mesmo não sendo es-

pecificamente da minha área.

A primeira vez que fui convidada a participar

do Salto foi numa série sobre Educação Físi-

ca. Eu deveria escrever um texto sobre Rit-

mos e Expressões Culturais, baseado no PCN

da área. E agora? Apesar de desenvolver, há

alguns anos, na época, e até hoje comple-

tando vinte e quatro anos, um projeto aca-

dêmico intitulado Companhia Folclórica do

Rio-UFRJ, que realiza atividades de pesqui-

sa, ensino e extensão sobre dança, teatro e

músicas folclóricas brasileiras, “deu aquele

gelo na barriga”! Mais uma vez, a alegria

e a participação coletiva de meu povo, fa-

zendo arte, me salvaram. Era Carnaval e eu

tinha acabado de assistir ao desfile de Esco-

las de Samba Mirins. Encantada com o que

havia visto e ouvido, fiquei me perguntando

se os professores daquelas crianças sabiam

que elas se expressavam daquele jeito, com

aquela força de fala, de linguagem. E por aí

foi:

Num país em que pulsam a capoeira, o

samba o bumba-meu-boi, o maracatu, o

frevo, o afoxé, a catira, o baião, o xote,

o xaxado, entre muitas outras mani-

festações, é surpreendente o fato de a

Educação Física, durante muito tempo,

ter desconsiderado essas produções da

cultura popular como objeto de ensino

e aprendizagem (PCN 3º e 4º ciclos do

Ensino Fundamental - Educação Física,

p. 71).

Aliás, escrever o que se sente, o que se vive,

tem sido para mim um método para come-

çar uma escrita, que me leva a buscar funda-

mentações teóricas e construir um discurso.

Depois desta exigência que tive a sorte de

receber, continuei, mais estimulada, a pen-

sar sobre como poderia estar trazendo para

meus alunos, futuros professores ou artis-

tas da Escola de Educação Física e Dança

da UFRJ, e para outros, a possibilidade de

enxergar a cultura popular nos seus luga-

res de moradia, trabalho, nas suas histó-

rias pessoais, nas suas comemorações, com

olhos curiosos sobre si e sobre o outro. No

primeiro momento, todos achavam que não

viviam nada disso, mas descobrimos, juntos,

que é só querer investigar que muita histó-

ria será revelada. Os resultados são até hoje

surpreendentes e conseguimos desvelar ou-

tros lados das famílias, dos bairros e de si,

que nos são tão naturais que não percebe-

mos como cultura, como saber. E percebe-

mos como pode ser importante incentivar

em cada um de nós este conhecimento, que

pode ser o mote de processos de ensino e

aprendizagem mais conectados com a vida

real de educandos e educadores. Vale repetir

os dizeres do mestre:

(...) a educação ou a ação cultural para

a libertação, em lugar de ser aquela alie-

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nante transferência de conhecimento,

é o autêntico ato de conhecer, em que

os educandos – também educadores –

como consciências “intencionadas” ao

mundo, ou como corpos conscientes, se

inserem com os educadores – educandos

também – na busca de novos conheci-

mentos, como consequência do ato de

reconhecer o conhecimento existente

(FREIRE, 1984, p. 99).

Vejamos dois exemplos, todos, por coin-

cidência, ligados a Folias de Reis, manifes-

tação popular muito frequente no Rio de

Janeiro e invisível para a maioria da popu-

lação. Há poucos anos, a Secretaria Estadu-

al de Cultura do Rio de Janeiro organizou

um Encontro de 30 Folias da cidade, coisa

rara, que precisa ser retomada! Nosso grupo

da UFRJ ficou encarregado de apresentar o

evento. Fazendo parte daquele momento de

pura arte e devoção brasileira, havia um Pa-

lhaço de Folia, dançando de forma exemplar

e versejando como gente grande. Era um

menino de oito anos, mulato de cabelo para

o alto e oxigenado, isto é, um garoto como

tantos outros alunos de escolas públicas de

comunidades da cidade maravilhosa. Eu lhe

perguntei: – Palhaço Casquinha (este perso-

nagem geralmente tem apelidos), você gosta

de fazer parte da Folia de Reis?

Ele respondeu: – Gosto sim! Eu, curiosa: – O

pessoal da sua escola sabe que você é Palhaço

e que recita tão bem? Ele disse: – Não. Eu: –

Por quê? Ele: – Ninguém me perguntou! Como

tantos outros, esse pequeno artista e folião,

talvez, tenha dificuldade em ser alfabetiza-

do, em organizar o discurso, em ser discipli-

nado etc. e tal. A escola perde esse potencial.

A outra história é que a Companhia Folcló-

rica do Rio-UFRJ organizou um Encontro de

Reisados, convidando grupos de Pastoris

e Folias de Reis. Uma aluna universitária,

quando chegou ao local da festa, veio me fa-

lar, muito emocionada, pois tinha estudado

numa escola todo o Ensino Fundamental e o

Ensino Médio, e seu filho está nesta escola

agora, e convivera durante todo esse tempo

(e seu filho convive) com “Seu Zé”, zelador

do estabelecimento. E estava vendo-o ali,

fardado, cantando, organizando o grupo de

Folia, um Mestre. Ela disse: – Como eu nun-

ca soube disso? Como minha escola nunca me

contou? Ninguém deve saber, meu Deus! A es-

cola não conhece os talentos de sua comu-

nidade e não identifica e valoriza seus agen-

tes culturais e suas criações. Mas isso não

precisa ser eterno!

Vivemos num supermercado cultural da al-

deia global, que inventa desejos homogêne-

os de estilos, lugares e imagens, buscando

uma massificação, que auxilia a dinâmica

incontrolável do capitalismo e a hegemonia

imperialista, o que para os povos dos países

do Terceiro Mundo ou em desenvolvimen-

to, historicamente desvalorizados por seus

próprios governos, representa o perigo da

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globalização. Aquela velha história de va-

lorizarmos tudo o que vem de fora e não a

nós mesmos, o que desvincula, mais ainda,

as identidades de seus tempos, lugares, his-

tórias e tradições. O mundo de hoje parece

menor, com certeza, mais interconectado, o

que tem efeito direto sobre as identidades

culturais, influenciando todos os sistemas

de representação de si e do coletivo. Urge

que nós nos (re)conheçamos valorosos! Sen-

do assim, temos a

chance de nos sen-

tirmos pessoas iden-

tificadas umas com

as outras e, ao mes-

mo tempo, distintas

das demais. Assim,

a identidade e a al-

teridade (referente

ao que é do outro),

a similaridade e a

diversidade marcam

o sentimento de per-

tencer ao todo, sen-

do particular.

Difícil saber quem somos se não aprende-

mos na escola o valor cultural e artístico de

nossa formação, que reuniu, e continua reu-

nindo, vários jeitos, conhecimentos e mo-

dos de fazer. E esta mistura de gentes pode

ser nosso grande potencial, potencial criati-

vo, que cria formas de comunicação e arte,

formas de cultura. Somos no plural, preci-

samos cada vez mais criar modos de educar

para a diferença, para a diversidade de nossa

vida, nossa família, nossos alunos, nossa es-

cola, nossa cidade, nosso estado e país.

O Salto para o Futuro me convidou para ou-

tras participações.A última foi em 2011, no

programa sobre DANÇA, coordenado por

Isabel Marques, e pude falar sobre dança

popular e educação, sobretudo o FESTIVAL

FOLCLORANDO, que a Companhia Folclórica

do Rio-UFRJ organi-

za e reúne dezenas

de trabalhos de pes-

quisa e montagem

artística realizados

por crianças e ado-

lescentes da rede

pública e privada

de ensino e projetos

sociais do Estado do

Rio de Janeiro. A ou-

tra oportunidade foi

em 2009, no novo

formato do progra-

ma, quando fui en-

trevistada sobre o papel das universidades

na valorização da Cultura Popular. Falando

também sobre os saberes do povo e sobre

educação, estavam comigo, em entrevis-

tas individuais: Tião Rocha, que realiza um

trabalho em Minas Gerais, de repercussão

internacional, e outro educador represen-

tante do Instituto Paulo Freire. Aquela pro-

fessora assustada da primeira participação

estava ali, depois de alguns anos, compac-

O mundo de hoje parece

menor, com certeza, mais

interconectado, o que

tem efeito direto sobre

as identidades culturais,

influenciando todos os

sistemas de representação

de si e do coletivo. Urge que

nós nos (re)conheçamos

valorosos!

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tuando com duas celebridades da educação

brasileira. Que salto o Salto para o Futuro

me ajudou a realizar!

Em 2005, tive a oportunidade muito es-

pecial de organizar uma série chamada

“Linguagens Artísticas da Cultura Popu-

lar”, que teve o objetivo de dialogar com

os professores sobre experiências em sala

de aula e em outros ambientes educacio-

nais, na realização de atividades pedagógi-

cas inspiradas nas linguagens artísticas da

cultura popular brasileira: artes plásticas,

dança, teatro, música e literatura. Enfoca-

mos a importância de que essas expressões

fizessem parte dos currículos da Educação

Infantil à universidade, como disciplinas

e/ou estratégias de ensino, valorizando

a ideia de que todos nós somos criadores

culturais e que aprendemos durante toda

uma vida saberes “oficiais” e, também, os

gerados nas famílias e na sociedade, como

já refletimos anteriormente. Nessa série,

tentamos entender a cultura popular como

cultura dinâmica, presente no meio rural

e urbano, que junta tradição e atualidade

sempre em transformação, um encontro

entre tempos e espaços, com essência de

brasilidade, juntando o local com o global,

o velho e o novo, completando um com o

poder do outro, como diz Carlos Rodrigues

Brandão (1993), e mostrando a importância

de trazermos, para dentro das Instituições

de ensino, os mestres populares.

É claro, que eles, os mestres populares, ti-

nham que estar presentes e ter voz. Pessoas

que levam toda uma existência se dedicando

para que esse conhecimento tradicional con-

tinue sendo transmitido e se dinamizando,

juntando os tempos da ancestralidade e da

contemporaneidade que, muitas vezes, são

invisíveis a instituições acadêmicas e pou-

co valorizados pela sociedade. No primeiro

programa da série, professores que formam

professores discutiram a importância do de-

senvolvimento da arte popular na educação,

seus valores artísticos, culturais, educacio-

nais e políticos. No segundo, os profissio-

nais de educação que realizam projetos com

linguagens artísticas no dia a dia da sala de

aula. No terceiro, representantes de grupos

artísticos desenvolvidos dentro dos espaços

educacionais: a busca de talentos e a arte

popular construindo conhecimento, alegria

e cidadania. No quarto, mestres populares

e trabalhos sociais dentro da escola e em

comunidades, a herança cultural de descen-

dentes transgredindo histórias. E no último,

a escola abre a porta da frente para a cultura

popular urbana e se integra à comunidade,

desmarginalizando e incluindo suas expres-

sões artísticas.

Tentamos reforçar, nessa série, a impor-

tância social das manifestações que levam

nossas crianças e nossos jovens a criar for-

ças de participação coletiva, repensando,

artisticamente, várias questões, inclusive a

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brasilidade. E como as escolas e outros es-

paços de educação podem incluir toda esta

criação e recriação de arte em seus conte-

údos, disciplinas e projetos pedagógicos.

Como sabemos, a arte tem sido importan-

te alicerce de muitos trabalhos com crian-

ças e adolescentes, principalmente viventes

em comunidades de risco social, que, em

sua maioria, pertencem às nossas escolas

e a outros espaços educacionais públicos.

A arte contra a violência e a desvalia! Ex-

pressões multiculturais que colorem nossos

jeitos de ser, pensar e agir, demonstrando a

necessidade de falarmos de inclusão, de di-

versidade, de educar para a diferença, tão

natural entre tantos povos que compõem o

povo brasileiro, abrindo as possibilidades de

trançarmos arte e cultura popular na educa-

ção, pensando em identidades e cidadania

brasileiras. Pluralidade que cria arte, cul-

tura, solidariedade, regras de convivência,

ética, pertencimento, autoestima, respeito

à riqueza patrimonial identitária, com cara

de Brasil, que precisa entender-se valoriza-

do para enfrentar o maravilhoso e perigoso

mundo globalizado.

Revelo aqui o que alguns autores dos textos

que dão base às discussões dos programas

nos presentearam. Busque, no site do pro-

grama, as publicações eletrônicas. Estamos

no primeiro programa de 2005, 20/03 a 01/04,

Linguagens Artísticas da Cultura Popular.

Peço licença aos mestres participantes para

usar e abusar de suas palavras complemen-

tando esta festa! Reproduzo integralmente

parte de dois discursos que, de alguma for-

ma, reafirmam pensamentos já ditos aqui e

que eu não conseguiria reescrever com tan-

ta força.

Delcio José Bernardo, jongueiro de Angra

dos Reis-RJ, é servidor público, formado em

Comunicação Social, com Pós-Graduação:

Raça, Etnia e Educação no Brasil – Niterói-

RJ, Faculdade de Educação – Programa de

Ensino Sobre o Negro na Sociedade Brasi-

leira, Universidade Federal Fluminense-UFF,

nascido em Mambucaba, 4º Distrito de An-

gra dos Reis, Rio de Janeiro, um dos berços

do Jongo em nosso Estado. Jongo, citado

no texto de Delcio, como sendo “Dança de

origem africana que chegou ao Brasil por

intermédio dos Bantos, grande família etno-

linguística, dos negros que viviam na região

do Congo-Angola e que foram os primeiros

escravizados a chegar no Brasil” (BERNAR-

DO, 2005, p. 52). Ele conta:

Impulsionado por minha mãe, come-

cei, em 1974, com nove anos de idade, a

frequentar as aulas no Colégio. [...] Foi

um verdadeiro choque, era como se eu

nunca tivesse vivido nada antes, toda

história era relacionada a um grupo ao

qual eu não conhecia. Na escola nunca

se falou de jongo, capoeira, candomblé,

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ou qualquer outra manifestação cultu-

ral ou religiosa ligada ao povo negro. A

impressão era de que essas manifesta-

ções não existiam. [...] Foi na escola que

conheci de perto o preconceito.[...] Tem

um momento importante que gosto de

recordar, trata-se de uma conversa com

um jovem de 18 anos da Comunidade

quilombola de Santa Rita do Bracuhy,

ao qual solicitei que convidasse seu pai,

um senhor de 80

anos para falar

para um grupo

de jovens sobre

a sua experiên-

cia de vida na-

quela comuni-

dade. Para meu

espanto, o rapaz

me disse o se-

guinte: ‘Meu pai

não sabe falar,

não, ele tem ver-

gonha, acho que

ele não sabe a história daqui’. Conhecen-

do o pai do rapaz, eu mesmo fiz o con-

vite, o que foi aceito de imediato. Para

surpresa do jovem, o pai deu uma belís-

sima aula de história sobre a comuni-

dade, com muita vitalidade e confiança

em uma comunidade mais forte e mais

unida. Desculpando-se por sua timidez e

falta de leitura, finalizou dizendo, ‘fico

muito feliz de ver tantos jovens lutan-

do por um Bracuhy melhor, isso é muito

bom porque nós lutamos com o braço, a

força e a coragem, vocês têm tudo isso

e mais a leitura e o estudo para debater

com os grandões’ […] (BERNARDO, 2005,

p. 46 e 50).

A Companhia Folclórica do Rio-UFRJ tem

comprovado isso, realizando o Encontro

com Mestres Populares na UFRJ, em 2010,

na terceira edição. Este evento é um espa-

ço de encontro,

em igualdade, do

saber acadêmico

com o saber po-

pular. Convidamos

integrantes de gru-

pos tradicionais e

seus mestres e re-

alizamos, em três

dias, palestras que

falem sobre temá-

ticas pertinentes à

situação do mestre

de manifestações

tradicionais frente às políticas públicas, pro-

pomos momentos de discussão para que os

grupos coloquem questões locais e oficinas

com mestres que dão um banho de habilida-

de em ensinar, o que fazem por toda a vida.

E o encontro se faz, a deusa Minerva (símbo-

lo da UFRJ) recebe uma umbigada bem fir-

mada do mestre popular e saem dançando,

tocando e cantando a alegria dessa parceria.

Abrir as portas da escola para a cultura, tra-

Abrir as portas da escola

para a cultura, tradicional

e contemporânea, da

comunidade de que ela faz

parte é estar interagindo,

interpenetrando,

transgredindo e criando

uma Escola Viva.

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dicional e contemporânea, da comunidade

de que ela faz parte é estar interagindo, in-

terpenetrando, transgredindo e criando uma

Escola Viva. “A escola necessita escorrer para

a rua. Por sua vez, a rua quer e precisa inva-

dir a escola”, diz Carlos Henrique Martins,

também participante da série, descrevendo

uma situação mais comum:

Grosso modo, é como se a cultura esti-

vesse contida em uma mochila que de-

vesse ser deixada na porta da escola e,

ao ultrapassar os seus muros e portões,

o aluno tivesse de abandonar sua baga-

gem de conhecimentos e estivesse apto

a receber outros novos que nem sempre

lhe dizem respeito ou despertam seus

interesses [...]. Há um enorme potencial

cultural trazido pelos alunos e que é si-

lenciado por conta da necessidade, ou

até mesmo da obrigatoriedade, que a

maioria dos professores têm em cumprir

com exigências institucionais relaciona-

das aos conteúdos voltados para a série

e para as disciplinas específicas (MAR-

TINS, 2005, p.57 e 53).

Na UFRJ realizamos o Festival Folclorando (já

citado) que é uma mostra de trabalhos rela-

tivos à cultura popular que se desenvolvem

em escolas e projetos sociais. Cada ano re-

cebemos mais crianças e adolescentes, em

2011 foram mais de seiscentas. Em 2010,

a data coincidiu com uma prova proposta

pelo município, e uma escola, que participa

desde a primeira edição, solicitou ao órgão

competente o adiamento do teste ou mu-

dança de horário para aquelas turmas que

iriam apresentar trabalhos no Festival. A res-

posta foi que as escolas que gostam de rea-

lizar essas “atividades charmosas” deveriam

entender que isso não pode interferir nas

atividades do calendário curricular. Calma,

companheiros, não podemos desistir!

Ensina o educador Carlos Rodrigues Bran-

dão:

A educação que tanto revê os seus cur-

rículos ganharia muito em qualidade

se [...] ousasse reencontrar um sentido

menos utilitário e mais humanamente

integrado e interativo em sua missão de

educar pessoas. [...] Ensinar a pensar e

sensibilizar o pensamento entretecendo

a matemática e a música, a gramática e

a poesia, a filosofia e a física. Um outro

passo estaria na redescoberta do valor

humano e artístico das criações popu-

lares. Mas seria então necessário trazê-

las para a escola e para a educação, não

como fragmentos do que é pitoresco e

curioso, ou como um momento de apren-

dizado de hora de recreio. Ao contrário,

o que importa é reaprender com a arte,

com o imaginário e com a sabedoria do

povo – dos vários povos do povo – outras

sábias e criativas maneiras de viver, e de

sentir e pensar a vida com a sabedoria e

a sensibilidade das artes e das culturas

do povo (BRANDÃO, 2005, p.22).

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Nestes 34 anos de Magistério, sendo 32 na

UFRJ, dos quais 25 atuando na Companhia

Folclórica do Rio-UFRJ, não estou tão sonha-

dora como antes, mas continuo mantendo

minha poesia e acreditando que os momen-

tos de educação que alguns de nós criam e

executam têm, sim, o potencial da transfor-

mação social. E a gente vai afirmando, ques-

tionando, desconstruindo e construindo.

Um certo tipo de amor? Não há Educação

sem amor (Paulo Freire). Acho que a gente

que escolhe esta missão amorosa tem es-

perança de que a vida possa ser melhor. É

preciso encontrar outras vozes e corações

que compactuem com essa força de estu-

do, ação e coragem. O Salto me proporciona

isso, o encontro, que vira trança, que vira

ciranda, uma rede que tece com fios de luz

real e brilhante. E sempre me diz: Vamos?

Como vocês viram, recordando a minha his-

tória, posso declarar que o programa Salto

para o Futuro, da TV Escola, transforma a

grande mídia em fonte de saber e me de-

safiou e auxiliou na busca de ser uma pro-

fissional mais consciente e corajosa. Viva o

Salto! Viva a parceria da Educação e a Cultu-

ra Popular Brasileira!

Para completar, apresento a vocês um exemplo de PESQUISA SOBRE SI. Cada educador(a) pode

adaptar e construir a sua, junto com sua comunidade acadêmica. Além de estreitar laços afeti-

vos, a gente se entende como um ser cheio de histórias e talentos, que pertence a algum grupo

social, ou a mais de um grupo, e que é responsável por isso e pela memória que está sendo

construída agora no presente e que vai saltar para o futuro. E, sobretudo, é muito divertido

observar como somos diversos e muito parecidos também!

PESquiSa SOBRE Si

*companhia Folclórica do Rio-uFRJ

nome: FOTO:

E-mail e telefone:

Bairro:

idade:

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A ideia é cada um construir uma árvore ge-

nealógica e suas curiosidades culturais, isto

é, contar em texto e imagem:

1) As nacionalidades e naturalidades de

vocês, dos pais, avós, bisavós e ir até

onde conseguirem pesquisar.

2) Lembrar e/ou perguntar o que cada

uma dessas pessoas de sua vida e você

gostavam de brincar ou brincam.

3) Lembrar e/ou perguntar o que cada

uma dessas pessoas de sua vida e você

gostavam de dançar ou dançam.

4) Lembrar e/ou perguntar o que sua fa-

mília ou amigos faziam ou fazem nas

festas de Natal, Carnaval ou Junina.

5) Contar alguma outra curiosidade

como: alguém que faz um prato gos-

toso em determinada época do ano ou

comemoração, lembrança de alguma

música ou hábito especial, um costu-

me religioso ou lúdico, uma supersti-

ção etc.

6) Procurar encontrar, na cidade ou no

bairro onde nasceu, ou vive ou traba-

lha, e/ou na sua escola, alguma mani-

festação ou festa da cultura popular:

uma Folia de Reis, algum artesão, uma

Escola de Samba, um bloco de Carna-

val, uma Festa Junina, um grupo de Hip

Hop, ou Funk, ou Forró, ou Pagode, um

grupo de devotos religiosos, um grupo

de migrantes de outro país ou de outro

estado ou cidade brasileira etc.

No primeiro momento, a gente acha que

não vive nada disso, mas é só querer pes-

quisar sobre si que muita história vai brotar.

Tem dado bons resultados e as pessoas, ge-

ralmente, se surpreendem com as descober-

tas e se sentem criadoras de cultura. Uma

cultura muito íntima que, de tão natural,

muitas vezes, não é valorizada como tal.

Se você não estiver em contato com nin-

guém da família, busque amigos, vizinhos.

O importante é se divertir com a sua própria

história e como ela está refletida no seu jei-

to de ser... ou não.

7) Conte um talento seu.

8) Fale sobre seus desejos profissionais.

REFERênciaS

BERNARDO, Delcio José. “Jongo: uma didá-

tica a caminho da escola”. In: Boletim Salto

para o Futuro - Linguagens Artísticas da Cultu-

ra Popular. Rio de Janeiro: TV Escola, março

2005.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cultura na Rua.

São Paulo: Papirus, 1989.

______. O Que é Folclore. Brasília-DF: Editora

Brasiliense, 1993.

Page 71: EDICAO ESPECIAL 03 MOD - TV Escola · no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2007, tendo ainda contribuído com entrevistas e depoimentos em outras oportunidades.

71

______ “Viver de criar cultura, cultura popu-

lar, arte e educação”. In: Boletim Salto para o

Futuro - Linguagens Artísticas da Cultura Po-

pular. Rio de Janeiro: TV Escola, março 2005.

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberda-

de. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

GABRIEL, Eleonora. “Escorrego mas não caio é

o jeito que o corpo dá” - as danças folclóricas

como expressão artística de identidade e ale-

gria. Niterói: UFF. Dissertação de Mestrado

em Ciência da Arte-IACS, 2003.

______ “Linguagens Artísticas da Cultura Po-

pular”. In: Boletim Salto para o Futuro- Lin-

guagens Artísticas da Cultura Popular. Rio de

Janeiro: TV [Escola, março 2005.

MARTINS, Carlos Henrique dos Santos. “Cul-

tura popular urbana e educação: o que a es-

cola tem a ver com isso?”. In: Boletim Salto

para o Futuro - Linguagens Artísticas da Cultu-

ra Popular. Rio de Janeiro: TV Escola, março

2005.

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3.6 um rápIDo BAlAnço

Ana Waleska P. C. Mendonça56

56 Doutora em Educação – PUC-Rio.

A proposta de produzir um texto que resga-

tasse a memória dos anos de participação no

programa Salto para o Futuro pareceu-me,

de início, uma empresa meio nebulosa... Por

onde começar? De que ponto partir?

Resolvi empreender uma consulta ao meu

“currículo Lattes”, que, bem ou mal – na

maior parte das vezes com muita má vonta-

de – somos obrigados (as), pobres acadêmi-

cos (as), a preencher e a manter atualizado,

na medida do possível. Habituada a vê-lo

como um instrumento de cobrança, desta

vez, no entanto, ele assumiu o papel de fon-

te de informações e acabou configurando o

meu ponto de partida.

Por sorte, lá estavam registradas as minhas

participações no programa, com o ano de

participação e a respectiva temática. Aí vão

elas:

• 1999 – “Porque não me ufano do meu país?”

(da série “Debates Contemporâneos: outros

500”);

• Ainda em 1999, o especial do Dia do Pro-

fessor: “Educação: dos jesuítas ao ano

2000”;

• 2001 – “O Direito à Educação”;

• 2005 – “Formação Contínua de Professo-

res”;

• 2007 – “Educandos e Educadores: seus di-

reitos e o currículo”.

O que depreender dessa listagem? Que fio

condutor buscar? Foram essas questões, afi-

nal, que se constituíram em guias da refle-

xão e que procuro socializar com esse texto.

PaRTiciPanDO DO PROGRaMa

No primeiro programa de que participei,

buscava-se proceder a uma espécie de balan-

ço, significativamente empreendido no con-

texto das comemorações dos 500 anos da

chegada dos portugueses a estas terras que

viriam a constituir o que chamamos hoje de

Brasil. Um dado sintomático: começamos a

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contar a nossa história com a “descoberta”

dos portugueses, mesmo que o termo apon-

te para a existência anterior da terra e do

povo que a habitava. Uma história construí-

da num olhar retrospectivo e que foi buscar

até uma certidão de nascimento: a famosa

Carta de Caminha, que ajudou na elabora-

ção da imagem sempre recorrente de um

país rico e imenso, mas cuja realização está

sempre postergada para o futuro...

No entanto, o próprio título da mesa: “Por

que não me ufano do meu país?” apontava

para uma visão meio depreciativa dessa his-

tória, que servia também como um provoca-

tivo, já que a proposta, a partir dessa leitu-

ra não muito complacente, era pensar nos

“outros 500”, a história servindo como base

para a projeção de um novo futuro para o

país, que se pretendia rompesse com a line-

aridade do passado. Perceber que essa histó-

ria passada não é tão linear assim, resgatar

propostas e experiências não muito bem su-

cedidas, porque tantas vezes interrompidas,

pareceu-me uma contribuição imprescin-

dível para que essa projeção de um novo e

diferente futuro tivesse alguma concretude.

O especial que se seguiu foi uma enorme

aventura, no sentido literal do termo. Além

de entrevistada e meio consultora, também

participei ao vivo de várias partes do pro-

grama. E como a opção foi gravá-lo em dis-

tintos locais que, de alguma forma, recrias-

sem o ambiente da temática ou do período

cronológico de que estávamos falando, isso

implicou várias excursões pela cidade na

Kombi da TVE, com a equipe de filmagem.

Filmamos na PUC, no Paço Imperial, no Arco

do Telles, no Museu da República e no belís-

simo prédio do MEC, espécie de síntese do

nosso modernismo, e surpreendentemente

tão mal tratado, indicando o duplo e persis-

tente descaso dos nossos governantes com a

nossa cultura e com a nossa educação.

Além disso, entrei, pela primeira vez em

uma sala de edição. Foi interessante viven-

ciar essas etapas tão diferentes da elabora-

ção do programa: as longas horas de grava-

ção e, depois, a montagem, o que implica

selecionar e recortar, com base em critérios

diversificados e de ordem igualmente muito

diferenciada. Estes têm a ver com a estética

do programa, com a sua coerência interna,

com os objetivos que se quer atingir, com

o(s) público(s) a que o programa se dirige, as

restrições de ordem financeira e até política.

A experiência se constituiu para mim, sem

dúvida, numa significativa aprendizagem.

O resultado final foi fantástico (sem falsa

modéstia, já que o grande mérito foi do di-

retor, Otávio Bezerra). Sem que soubésse-

mos, de antemão, quem eram os demais en-

trevistados, creio que os depoimentos que

constituíram o fio do programa acabaram

por compor um todo coerente, que refletia

uma visão muito próxima do significado que

atribuíamos à história e dos desafios que ela

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coloca para projetarmos no futuro a educa-

ção que queremos.

O programa “rodou mundo”. Reapresenta-

do várias vezes, constantemente, recebia

um retorno de algum aluno, ex-aluno ou de

pessoas as mais inesperadas: “vi a senhora

na televisão, professora”. Ia conferir e era

ele, o especial dos 500 anos... Na forma de

fita de vídeo, usei-o muitas vezes, como ma-

terial didático, inclusive uma delas em uma

apresentação para uma plateia bem diversi-

ficada, dentro da “Mostra PUC”, seguindo-

se um bate-papo,

com outro dos entre-

vistados, o professor

Antonio Edmilson

Rodrigues, colega

do Departamento de

História.

O enorme sucesso

do programa reafir-

mou-me o interesse que a história desperta,

quando abordada de forma significativa, e

a sua importância para equacionarmos as

questões atuais da nossa educação.

As três últimas temáticas, lançando-lhes um

olhar retrospectivo, parecem-me constituir

um conjunto: o direito à educação, por um

lado, a formação do professor, por outro e,

na conjunção dos dois temas, direitos de

educadores e de educandos e o currículo.

Por certo, não me recordo em detalhes do

que falei nesses programas, mas parece-me

evidente a convergência dos temas. Para

garantir a efetivação do direito à educação,

é preciso atender aos direitos do educador,

principal instrumento de concretização do

primeiro. São direitos do educador ter um

salário digno, ter condições adequadas de

trabalho e até garantia de formação contí-

nua e permanente, condição que lhe é cons-

tante e contraditoriamente cobrada.

Considerando os mais de dez anos passados

do primeiro desses programas (2001), acho

que avançamos

bastante no que se

refere ao direito à

educação das crian-

ças. As estatísticas

nos mostram que

conseguimos co-

locar praticamen-

te quase todas na

escola, ao menos

no período de escolaridade obrigatória, e

vamos aumentando progressivamente esse

tempo. Mas permanece o desafio de garan-

tir a aprendizagem efetiva das crianças e as

recentes avaliações do MEC confirmam que

há muito ainda a avançar nessa direção.

Qualquer melhoria nesse sentido passa ne-

cessariamente pelo professor e pelo currí-

culo. Aliás, prioritariamente pelo professor,

até porque é ele quem operacionaliza o cur-

rículo.

Para garantir a efetivação

do direito à educação,

é preciso atender aos

direitos do educador,

principal instrumento de

concretização do primeiro.

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Em artigo que escrevi recentemente para

o Jornal dos Economistas, chamava atenção

para a centralidade dessa questão. Ressalta-

va, entre outras coisas, que já nem mais for-

mamos inicialmente professores na medida

de nossas necessidades:

Os cursos de licenciatura, especialmente

em determinadas áreas, deixaram de ser

atrativos e o número de professores que

se formam é absolutamente insuficien-

te para atender à demanda. Na origem

dessa crise o desprestígio da profissão,

face, entre outras coisas, aos baixíssi-

mos salários (MENDONÇA, 2010).

E completava, afirmando que o foco das po-

líticas educativas deveria, necessariamente,

ser o professor, salário, qualificação e con-

dições de trabalho constituindo o tripé que

deveria orientar tais políticas.

Não podendo fugir ao vício de historiadora,

trazia, por fim, as palavras de Anísio Teixeira

que, há mais de 40 anos, apontava para a

imensa urgência de um efetivo investimento

no preparo do magistério em face do cres-

cimento vertiginoso e avassalante do sistema

escolar. E insistia:

Essa conjuntura, que é a de fazer o difí-

cil e fazê-lo em grande escala e depressa,

obriga-nos a planejar a formação do ma-

gistério no Brasil em termos equivalentes

aos de uma campanha para formação de

um exército destinado a uma guerra já

em curso (TEIXEIRA, 1969, p. 240).

Fazer o difícil e fazê-lo em grande escala –

parece-me que a lição do mestre ainda não

foi aprendida e o desafio permanece, com

o agravante de que a urgência é ainda mais

premente e que os resultados, em educação,

só se fazem sentir a médio prazo.

uMa REFLExãO FinaL: a

uTiLiDaDE Da HiSTóRia

Nessa parte final, peço licença para trazer as

palavras igualmente abalizadas de Antonio

Nóvoa (2004), historiador da educação por-

tuguês, e referência também no Brasil, que,

ao prefaciar o primeiro volume de uma cole-

tânea de História da Educação, pergunta-se

pela sua utilidade.

Lamentando-se por um certo desprestígio

dessa disciplina específica nos dias de hoje,

dentro do campo da educação – embora dis-

ciplina fundadora do mesmo – o autor colo-

ca-se a pergunta: “para que serve a história

da educação?”. Destaco algumas das respos-

tas que encaminha:

“11) Para cultivar um saudável ceticismo,

em um mundo que endeusa acritica-

mente tudo o que é novo;

12) Para pensar os indivíduos como pro-

dutores de história, servindo esta para

nos colocar diante de um patrimônio

de ideias, projetos e experiências;

13)Para explicar que não há mudança sem

história e que a mudança imaginada

Page 76: EDICAO ESPECIAL 03 MOD - TV Escola · no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2007, tendo ainda contribuído com entrevistas e depoimentos em outras oportunidades.

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a partir de um não-lugar, sem raízes e

sem história, é mera ilusão (NÓVOA,

2004).”

E em outro texto seu, o autor advertia:

O mínimo que se exige de um historiador

é que seja capaz de refletir sobre a his-

tória da sua disciplina, de interrogar os

sentidos vários do trabalho histórico, de

compreender as razões que conduziram

à profissionalização do seu campo aca-

dêmico. O mínimo que se exige de um

educador é que seja capaz de sentir os

desafios do tempo presente, de pensar a

sua ação nas continuidades e mudanças

do trabalho pedagógico, de participar cri-

ticamente na construção de uma escola

mais atenta às realidades dos diversos

grupos sociais. A História da Educação só

existe a partir desta dupla possibilidade,

que implica novos entendimentos do tra-

balho histórico e da ação educativa (...)

(NÓVOA, 1996, p. 417).

A certeza de que a história é útil, sim, e

muito, para a educação e para o educador,

e a atitude proposta por Nóvoa, acima, que

aponta para a possibilidade de que esta per-

mita novos entendimentos da ação educati-

va, é que vêm pautando, ao longo do tempo,

a minha atuação profissional e que funda-

mentaram, sem dúvida, a minha colabora-

ção com o programa.

Nessa certeza estaria o fio condutor que

explica (ou pode explicar) a participação de

uma historiadora da educação, que tem por

ofício a reconstrução incessante do passa-

do, num programa que se intitula Salto para

o Futuro...

BiBLiOGRaFia

MENDONÇA, Ana Waleska P. C. A Tragédia

do Ensino Público no Rio de Janeiro. Jornal

dos Economistas, n. 253, agosto de 2010, p.

12-13.

NÓVOA, António. História da educação: Per-

cursos de uma disciplina. Análise Psicológica,

4 (XVI), 1996, p. 417-434.

________. Prefácio. In: STEPHANOU, Maria

e BASTOS, Maria Helena Câmara (orgs). His-

tórias e memórias da educação no Brasil, v. I.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

TEIXEIRA, Anísio. Escolas de Educação. RBEP,

v. 51, n. 114, abril/jun. 1969, p. 239-259.