Jornadas sobre Corrupção na Guiné- issau “Ke Ku Nten ku ... · Painel IX: ““Consequências...
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Jornadas sobre Corrupção na Guiné-Bissau “Ke Ku Nten ku
Curupson?”
Fase di Kambansa
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ÍNDICE
FICHA TÉCNICA .....................................................................................................................3
Enquadramento....................................................................................................................4
Resumo ...............................................................................................................................4
Painel I: “Visão global da corrupção na Guiné-Bissau e medidas anticorrupção”.......................6
Painel II: “AGAC – Associação Guineense Anticorrupção: uma iniciativa da sociedade civil de
luta contra a corrupção” .....................................................................................................19
Painel III: “Corrupção no quotidiano”...................................................................................27
Painel IV: “Corrupção e meio ambiente: transparência na gestão de recursos naturais fator da
degradação e dos conflitos sociais na Guiné-Bissau?” ...........................................................34
Painel V: “A conexão entre a corrupção e as violações dos Direitos humanos: principais
indicadores”.......................................................................................................................42
Painel VI: “Gestão Transparente no sector da Saúde: Gabinete do Utente” – Cremilde Dias....52
Painel VII: “Transparência no setor da Educação: ONGD FEC – Sofia Alves .............................57
Painel VIII: ““O papel dos media no combate à corrupção” – Dr. João Figueira .......................66
Recomendações .................................................................................................................82
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FICHA TÉCNICA
Redação:
Dr. Baltazar Fael – Encarregado do programa anticorrupção do Centro de
Integridade Pública (CIP) de Moçambique
Professor Doutor Joel Alo Fernandes – Secretário-Geral da Ordem dos Advogados e
presidente da AGAC
Dr. Raúl Mendes Fernandes – PhD em sociologia
Miguel de Barros – Diretor Executivo da Tiniguena – “Esta Terra é Nossa!”
Yasmine Cabral – Liga Guineense dos Direitos Humanos
Cremilde Dias – Gabinete do Utente (ONG AIDA e LGDH)
Sofia Alves – ONGD FEC (Fundação Fé e Cooperação)
Dr. João Figueira – PhD em Jornalismo e Comunicação
Revisão:
UE-PAANE
Grafismo:
UE-PAANE
Data de realização:
De 25 a 27 de outubro de 2017
Local de realização:
Centro Cultural Franco Bissau-Guineense
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Enquadramento
A realização do 4º Djumbai Nacional, em formato de Jornada de 3 dias,
subordinado ao tema «Corrupção na Guiné-Bissau “Ke Ku Nten ku Curupson?”»
enquadra-se no âmbito da atividade A.1.1 Promover espaços de partilha e debate
sobre temáticas de interesse para a sociedade civil, mais concretamente a
atividade A.1.1.4. Realização dos djumbais, tal como previsto pelo projeto UE-
PAANE Fase di Kambansa.
Esta jornada, organizada em coordenação com a Delegação da União Europeia na
Guiné-Bissau, enquadra-se igualmente nas celebrações do Dia Internacional da
Democracia (15 Setembro) e do Dia Internacional de Acesso à informação (28
Setembro), reafirmando desse modo o compromisso da União Europeia com a
Democracia e os Direitos Humanos através da promoção da campanha
“EU4Democracy”.
Resumo A Jornada, realizada entre os dias 25 e 27 de outubro de 2017 no Centro Cultural
Franco Bissau-Guineense contou com a participação de nove (9) oradores
convidados, distribuídos pelos seguintes painéis:
Painel I: “Visão global da corrupção na Guiné-Bissau e medidas
anticorrupção” - Dr. Baltazar Fael
Painel II: “AGAC – Associação Guineense Anticorrupção: uma iniciativa da
sociedade civil de luta contra a corrupção” – Professor Doutor Joel Alo
Fernandes
Painel III: “Corrupção no quotidiano” – Dr. Raúl Mendes Fernandes
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Painel IV: “Corrupção e meio ambiente: transparência na gestão de recursos
naturais fator da degradação e dos conflitos sociais na Guiné-Bissau?” –
Miguel de Barros
Painel V: “A conexão entre a corrupção e as violações dos Direitos humanos:
principais indicadores” – Yasmine Cabral
Painel VI: “Gestão Transparente no sector da Saúde: Gabinete do Utente” –
Cremilde Dias
Painel VII: “Transparência no setor da Educação: ONGD FEC – Sofia Alves
Painel VIII: ““O papel dos media no combate à corrupção” – Dr. João Figueira
Painel IX: ““Consequências da corrupção e má gestão para o País” –
Professor Eugénio Moreira
A moderação da Jornada ficou a cargo da consultora externa contratada, Nelvina
Barreto.
A atividade contou com a participação de 85 pessoas no 1º dia, 105 no 2º dia e 87
no 3º dia, totalizando 277 participantes.
Em anexo encontram-se as recomendações extraídas do debate em torno das
temáticas em apreço.
OBS: A comunicação do Painel IX não foi disponibilizada em formato textual ao
Projeto UE-PAANE, pelo que não será possível a sua divulgação nesta compilação.
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Painel I: “Visão global da corrupção na Guiné-
Bissau e medidas anticorrupção”
Baltazar Fael
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Intróito
A Guiné-Bissau é um país que se tem destacado no mundo pelo seu clima de
instabilidade política recorrente, o que afeta negativamente o des empenho dos vários
órgãos do Estado aos variados níveis, enfraquecendo a atuação dos respetivos órgãos
nos diversos setores, com destaque para as matérias anticorrupção, ao nível legal e
institucional.
Visão Geral
A ausência do Estado ou das suas instituições na vida da sociedade é uma situação que
conduz à existência de problemas vários, o que se reflete também na área da justiça e
principalmente do combate à corrupção. A Guiné-Bissau é um país onde o Estado não
cumpre com as suas funções essências como por exemplo, a de administrar a justiça
eficiente para os cidadãos, na medida em que a maior preocupação está virada para a
resolução de questões de natureza política, postergando outras para segundo plano e
secundarizando-as.
A corrupção na Guiné-Bissau não é vista como um problema que carece de uma
solução urgente. Aliás, a corrupção para as elites em momentos de crise é uma forma
de acumulação de capital, aproveitando as fragilidades do próprio Estado, em várias
áreas. Um eminente jurista e político moçambicano já referiu que: “um Estado que não
controla os seus criminosos será controlado por eles”. É por este motivo que, não
admira que os vários setores, principalmente os órgãos de soberania e a Administração
pública na Guiné-Bissau, possam estar infiltradas por redes criminosas que
enfraquecem propositadamente a sua atuação para daí tirar dividendos de natureza
económico-financeira, com a prática de atos com falta de transparência e se
aproveitando do fato de a reação penal estar enfraquecida ou mesmo ser inexistente
Corrupção na Guiné-Bissau
O discurso político (presidente da República: José Mário Vaz - 2017) no sentido de ter
combatido a corrupção deve ser visto numa perspetiva da diminuição da corrupção,
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que se mede através da redução dos casos acontecidos. Para que tal informação seja
credível, deve ser analisada através da informação partilhada pela imprensa e as
estatísticas dos órgãos de administração da justiça e alguns relatórios internacionais,
como da Transparência Internacional e o Relatório Mo Ibrahim sobre governação. É
preciso analisar o que tais documentos referem.
No que tange aos empréstimos (resgates na linguagem do relatório) estes devem
seguir o plasmado na constituição e nas demais leis para que se justifique que o
Governo recorra a esta forma de financiamento da economia e posteriormente devem
existir mecanismos sólidos e legalmente estabelecidos de “accountability”. O que se
deve questionar é se estes existem e qual é a sua eficácia, num país como a Guiné-
Bissau, onde o parlamento não exerce a sua função há demasiado tempo.
Alcance da corrupção
É um fato que com a fraqueza do Estado, as elites políticas se aproveitem para
enriquecer com recurso aos fundos públicos. Esse não é um caso isolado da Guiné-
Bissau.
Ao nível dos Países Africanos de língua oficial portuguesa, tendo em atenção o Índice
de perceção da Corrupção da Transparência Internacional (IPCTI) a posição ocupada
pelo país é disso um indicador. Entre os países dos PALOPs, no IPCTI em 2017, a Guiné-
Bissau situou-se no último lugar entre 8 países de língua oficial portuguesa,
concretamente tendo-se situado na 168ª posição.
No que tange à corrupção ao nível do setor empresarial, o mesmo que significa ao
nível do setor privado, é necessário verificar se de fato, esta é criminalizada. Até há
algum tempo, a corrupção em muitos países dos PALOPs só era criminalizada ao nível
do setor público. Para que a mesma começasse a ser criminalizada no privado, foi
necessário serem introduzidas reformas legislativas importantes, começando pela
adesão dos países à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e outros
diplomas legais internacionais contra o fenómeno da corrupção. É preciso notar
também que, a corrupção ao nível do setor privado só é considerada quando
prejudique terceiros ou a concorrência, o que pode limitar as formas de atuação dos
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órgãos visando a sua repreensão. Os vários inquéritos realizados irão fornecer o
barómetro sobre os casos e o nível da corrupção, mas os mecanismos de reação terão,
necessariamente, que ter cobertura legal.
Para que a corrupção no setor privado na Guiné-Bissau seja criminalizada é
fundamental a sua previsão na lei, através da domesticação da Convenção das Nações
Unidas contra a Corrupção. O que parece que ainda não aconteceu, sendo a sua
criminalização monopólio do setor público.
Sobre a pequena corrupção
Esta forma de corrupção tem como uma das características, o acentuar do
empobrecimento de pessoas já de si de baixa renda. Este tipo de corrupção ocorre
quando o cidadão deve pagar “suborno” para aceder a serviços básicos como por
exemplo na área da saúde ou nos demais serviços da Administração Pública. A falta de
controlos primários e a excessiva burocratização da Administração Pública, têm sido as
principais causas da sua ocorrência.
O envolvimento de funcionários públicos e outros agentes do Estado tem como
justificativa os baixos salários pagos pelo Estado, inadequada assistência médica e
medicamentosa, entre outros, como os baixos salários na função pública. Tal é
aproveitado por agentes externos à administração para fazerem ofertas aos
funcionários públicos. Este não é só um caso da Guiné-Bissau, mas da generalidade dos
países pobres que não têm sistemas de controlo interno funcionais e eficazes. É
necessário que os Governos atuem de forma a garantir “almofadas” aos salários
excessivamente baixos, praticados na Administração Pública e outros incentivos
materiais. A Guiné-Bissau também sofre deste fenómeno da pequena corrupção ou
corrupção burocrática.
Grande corrupção
Na Guiné-Bissau o Governo eleito em 2014 comprometeu-se em combater a corrupção
e elevar os níveis de transparência. A verdade é que quem se envolveu ou pode estar
envolvido em casos de grande corrupção após esse anúncio são membros da elite
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política, o que torna esse combate algo estéril. Isto é, quem devia dar o exemplo, não
o está a fazer. A corrupção torna-se endémica ao nível das elites políticas. Quem deve
implementar medidas concretas e eficazes de combate à corrupção é que é o principal
mentor da sua ocorrência.
Comércio Ilícito e crime transnacional
As fronteiras demasiado porosas e que permitem a prática de crimes ligados ao
comércio ilícito e transnacional permitem o enfraquecimento do Estado, através da
atuação de redes criminosas. As várias entidades do Estado passam a es tar dominadas
e controladas por criminosos e os mecanismos de gestão do sistema judiciário são
tomados e dominados por tais redes que penetram num Estado ausente ou que se alia
a tais redes, para conseguir tirar dividendos. As fragilidades das fronteiras do país
contribuem para o incremento da corrupção.
Nesta situação, os diversos órgãos de administração da justiça funcionam
deficientemente, incluindo os tribunais e só atuam quando surjam casos de “bagatelas
criminais”.
O que se deve questionar é se de fato a Guiné-Bissau deve ser considerado como um
“Estado falhado”.
Novas formas de corrupção surgem também com a chegada de novos atores
comerciais. É o caso dos chineses, a que a Guiné-Bissau não ficaria alheia dado os seus
níveis altos de pobreza e de corrupção. Trata-se de um país que faz negócios a todo o
custo e sem respeito pelos direitos humanos e regras de transparência. Como tal, as
elites ávidas de enriquecerem, aliam-se aos empresários chineses de conduta duvidosa
e saqueiam os recursos florestais. Estas ações só acontecem com o envolvimento dos
guardas florestais, da polícia, altos funcionários da Administração Pública e militares.
Quando assim é, o caos está instalado.
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Setores destacados por estarem afetados pela corrupção na Guiné- Bissau:
Saúde
O setor da saúde é geralmente propenso a corrupção em muitos países pobres a que a
Guiné-Bissau não estaria alheia, dada a condição de ser um Estado parco de recursos.
O setor da saúde é um dos mais afetados em termos de falta de investimento em
países com estas características. Os governos de Estados iguais não acham a saúde
como uma área prioritária ao investimento. Casos de “pequena corrupção” em países
com tais características vão acontecendo de forma regular, tornando-se quase que
uma “subcultura” a que se torna difícil combater ou pelo menos mitigar, tornando-se o
“modus vivendii” dos cidadãos.
Os pagamentos para se ter acesso aos cuidados de saúde e até a comercialização de
medicamentos fora do circuito normal, sem que as mínimas condições de conservação
estejam asseguradas, sendo práticas frequentes com uma participação acentuada de
profissionais de saúde. Isto torna-se como uma prática quase que normal na Guiné-
Bissau, como em muitos países pobres.
Poder Judicial
Formalmente, em muitos Estados, o poder judicial é definido constitucionalmente e
através das leis avulsas como independente e a Guiné-Bissau segue a mesma linha de
configuração ou estruturação deste poder, com relação aos demais órgãos de
soberania. Contudo, a materialização prática deste desiderato é que tem sido
problemática. A par do que acontece com o setor agrícola e da saúde em países
pobres, o desinvestimento tem sido forte no setor judicial o que o coloca numa
situação de vulnerabilidade, principalmente em face do poder político que o procura
controlar a todos níveis, enfraquecendo-o, de modo a torná-lo pouco eficaz e eficiente.
Nestes países não se investe na formação do capital humano (juízes e oficiais de
justiça) e incentiva-se a falta de cultura jurídica das populações. As instalações onde
funcionam as várias instâncias da justiça são inadequadas, os controlos sobre os
magistrados que deviam ser feitos pelos conselhos superiores das magistraturas
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(órgãos de gestão e disciplina) são em alguns casos inexistentes e noutros incipientes.
Os salários pagos aos operadores do sistema não são adequados à dignidade da sua
função. Estes fatos acabam colocando o sistema judiciário na dependência do poder
político, principalmente em termos orçamentais e de outras condições para o seu
funcionamento. Geralmente, não existe nestes casos uma linha orçamental obrigatória
na constituição para o funcionamento do sistema, cabendo ao executivo a sua
definição, o que é perigoso, atendendo que através do orçamento pode ser
manipulada a atuação dos órgãos de justiça.
Com um Conselho Superior da Magistratura fraco, salários baixos dos magistrados e
oficiais de justiça, falta de condições materiais para o funcionamento dos órgãos de
administração da justiça só se pode esperar um sistema disfuncional e constantemente
sob pressão do poder político que como normal, o pretende controlar. Em casos de
grande envergadura, o poder judicial acaba por como que se demitir das suas funções
e ações judicias contra agentes do regime, são bastante raras ou até inexistentes.
Forças de defesa e segurança
Num país onde o caos está instalado como parece ser a Guiné-Bissau, pela falta ou
ineficiência de mecanismos de controlo e porque principalmente, as forças polícias são
aquelas que tem maior contato com as populações, exis te a tendência de serem
consideradas como as mais corruptas, desde a polícia de proteção até aquela que
garante a segurança rodoviária (polícia de trânsito). É claro que, a corrupção grassa
nestes setores, mas é preciso ser vista dentro de um sistema de governação mais
amplo. Como acontece com o setor da justiça, o setor das forças de defesa e segurança
sofre desinvestimento de grande envergadura e polícia e militares sem controlo
podem provocar graves problemas de segurança na sociedade.
Sendo assim, os abusos da polícia sobre as populações tornam-se frequentes.
Ademais, é necessário que a polícia de proteção e a polícia de trânsito atuem sobre o
manto de um código de conduta próprio. Outrossim, é necessário que haja
penalizações exemplares para polícias que se envolvem em atos de corrupção, com a
divulgação de relatórios com os nomes de polícias prevaricadores de forma pública.
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É preciso realçar ainda que as forças armadas também são parte da corrupção em
países como a Guiné-Bissau, com o envolvimento das mais altas patentes militares em
casos de tráfico de drogas, desmatamento das florestas e outros. Devido ao seu
poderio militar e quando as condições não estão criadas, questões de impunidade
acontecem com toda naturalidade.
Quadro Jurídico e Institucional de combate à corrupção na Guiné-Bissau
É preciso produzir estudos que indiquem qual o estágio da corrupção na Guiné-Bissau,
a par do que acontece com o Índice de Perceção da Corrupção da Transparência
Internacional. De igual modo, as autoridades internas, no caso a Procuradoria-Geral da
República devem prestar contas ao parlamento (Assembleia Nacional do Povo) acerca
do seu desempenho, de forma regular.
É ainda necessário fortalecer o Tribunal de Contas como órgão supremo e externo de
auditoria das contas públicas, conferindo-lhe poder sancionatório sobre os servidores
públicos que pratiquem infrações de natureza financeira. Em suma devem ser
fortalecidos os mecanismos de “oversight e anticorrupção”.
A existência de uma entidade vocacionada especificamente para o combate à
corrupção é um passo significativo, mas não definitivo. É preciso dotar tal órgão de
poderes suficientes para combater todas as formas de corrupção. O combate à
corrupção por isso não deve ser seletivo, tendo em atenção, principalmente, quando
estejam envolvidas determinadas figuras pertencentes à elite política, governamental
e empresarial, que tem merecido proteção por parte do poder judicial por afinidades
de ordem política.
A Assembleia Nacional do Povo deve ter poderes efetivos de controlo da atividade do
Governo, e existir um efetivo controlo institucional baseado no sistema de pesos e
contra pesos ou seja dos “checks and balances”. Há que haver poderes de colaboração
entre os vários órgãos de soberania do Estado. O controlo da execução das contas
públicas deve ser efetivo, por parte dos órgãos competentes.
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Convenções Internacionais
A ratificação de convenções internacionais anticorrupção também é fundamental,
porque pode mostrar o compromisso do Estado no seu combate. Mas a materialização
das referidas convenções através da sua domesticação é fundamental para a sua
efetivação. A Guiné-Bissau deve não só ratificar as referidas convenções, como
também implementá-las.
Enquadramento jurídico interno
A criminalização da corrupção pelo ordenamento jurídico da Guiné-Bissau é
fundamental. A previsão dessa punição no artigo 231 do Código Penal é um passo
central nesse sentido. Contudo, outras formas de manifestação da corrupção como:
conflito de interesses, tráfico de influências, enriquecimento ilícito, como
recomendado na convenção anticorrupção das Nações Unidas de que a Guiné-Bissau é
parte, também devem ser criminalizadas.
É necessário que exista uma lei de proteção de vítimas, testemunhas, denunciantes,
peritos e outros sujeitos processuais, de modo a incentivar a denúncia de casos de
corrupção na Guiné-Bissau, porque sem que esta exista e seja aplicada efetivamente,
os cidadãos terão receio de represálias, se denunciarem. Este tipo de lei é fundamental
e um forte incentivo ou complemento no combate á corrupção. Inexistindo, pode
conduzir ao enfraquecimento dos mecanismos de combate à corrupção.
Liberdade de informação
A disponibilização de informação pública aos cidadãos é um aspeto fundamental para
garantir transparência à atividade governativa. A Guiné-Bissau possui dispositivos
constitucionais nesse sentido e na lei ordinária. Contudo, a materialização deste
princípio tem sido posta em causa, segundo o relatório em análise, com a não
disponibilização da mesma pelas entidades públicas.
De outro modo é necessário que os cidadãos encontrem proteção legal que lhes
permita recorrer aos órgãos da justiça administrativa, visando persuadir as instâncias
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solicitadas a partilhar informação pública, quando de forma ilegal esta não é
partilhada.
Gestão de Finanças Públicas
São de saudar os esforços empreendidos pela Guiné-Bissau na reforma do sistema de
gestão das finanças públicas. Contudo, verificam-se por vezes violações das leis
orçamentais e de finanças públicas por parte dos mesmos governos q ue devem
implementar tais mecanismos de controlo. A questão do controverso “resgate”
bancário é disso um exemplo elucidativo. Em Moçambique uma situação semelhante
ocorreu, com as chamadas “dívidas ocultas”, onde o Governo do antigo presidente
Armando Guebuza, foi fazer empréstimos milionários a bancos estrangeiros, sem o
aval da Assembleia da República e em violação da lei orçamental, o que está a custar
sanções pesadas ao Estado moçambicano por parte do Fundo Monetário Internacional,
Banco Mundial e dos Parceiros de Apoio Programático que não estão a disponibilizar
ajuda e o Estado se encontra mergulhado numa profunda crise económico-financeira
pelo corte dos fluxos de ajuda financeira ao país, depois que tais dívidas ilegais foram
descobertas.
É sem dúvida necessário um compromisso do executivo nas reformas de natureza
financeira para que estas tenham êxito, caso contrário observam-se avanços e depois
recuos acentuados.
Quadro institucional anticorrupção
Alta Autoridade contra a Corrupção
Para que entidades com este perfil concorram para o combate à corrupção é
fundamental que sejam independentes, principalmente do poder político e que
exerçam as suas funções com equidistância deste. Outrossim, é preciso definir o seu
perfil, isto é: se as mesmas têm natureza essencialmente administrativa ou também
judiciária. Se podem participar no combate à corrupção de forma efetiva, sem nenhuns
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entraves que condicionem a sua atuação. Em suma, não devem estar na dependência
principalmente do executivo em nenhuma matéria.
Célula de Informações Financeiras
A existência deste tipo de órgão é de fundamental importância para o combate ao uso
do sistema financeiro para a prática de atos relacionados com o branqueamento de
capitais. As mesmas devem ser dotadas de meios e orçamento suficiente para
desenvolver as suas atividades em estreita colaboração com as entidades financeiras
do Estado. Em suma, devem ter autonomia e independência financeira e funcional. As
suas atividades devem ser supervisionadas, mas pela Assembleia Nacional do Povo e
não pelo Governo ou poder judicial.
De igual forma, os atos relativos à declaração de património devem ser
supervisionados, através da entrega da declaração de bens pelos visados pela lei e a
gestão eficaz deste processo. Devem existir mecanismos eficientes de fiscalização das
declarações de bens e sua atualização periódica. Anualmente os servidores públicos
devem atualizar a declaração de bens e sempre que o seu património sofrer qualquer
alteração e no final do mandato fazerem a atualização final. Igualmente, a lei deve
prever sanções de natureza administrativa e criminal para aqueles servidores públicos
que violarem as regras sobre a entrega da declaração de bens, bem como fornecerem
informações inverídicas acerca do seu conteúdo, de modo a tornarem o sistema em
causa, mais eficiente. Só assim é que fica justificada a existência deste regime.
Também é fundamental que a entrega da declaração de bens seja extensiva aos
familiares mais próximos do declarante, o que na Guiné-Bissau não acontece. No que
tange a ser públicas ou não, o regime varia de país para país. Nuns casos são
totalmente públicas, noutros casos vigora um regime misto e noutros ainda estas são
totalmente secretas e só estão disponíveis para as entidades de investigação de crimes
a ela relacionados. Cada país deve definir o regime mais adequado para a sua
realidade, com a ressalva de que, a publicidade sem quaisquer condicionalismos é o
melhor sistema e mais transparente, salvo questões ponderosas.
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Instituição Suprema de Auditoria
A existência de uma instituição suprema de auditoria é fundamental para a Guiné-
Bissau de modo a garantir um controlo eficaz das contas públicas. Existindo um
Tribunal de Contas, externo à Administração Pública, em termos formais este requisito
se mostra coberto. De igual forma, anualmente é necessário que o Tribunal de Contas
produza um relatório e parecer sobre a Conta Geral do Estado, para feitos de
fiscalização pelo parlamento, o que na Guiné-Bissau, até 2015, ainda não tinha
acontecido, tornando a existência, importância e funcionamento deste órgão, na
Guiné-Bissau, questionável.
Outras partes interessadas na causa do combate à corrupção: Meio de Comunicação
Social e Sociedade civil
Os meios de comunicação social são fundamentais no combate à corrupção,
principalmente a imprensa independente do poder público e que denuncie casos de
corrupção e faz o seu acompanhamento. Esta imprensa deve denunciar casos
suspeitos de corrupção. No entanto, muitas vezes a atuação destes órgãos de forma
livre e independente é posta em causa pelos sucessivos governos na Guiné-Bissau. As
forma principal de controlo destes órgãos tem sido em diversas partes do mundo,
principalmente em países pobres, através do corte da publicidade dirigida a tais
órgãos, com ênfase para a publicidade dos órgãos do Estado, o que limita a liberdade
de tais entidades da comunicação social ou mesmo ameaças veladas aos seus diretores
ou editores para a não publicação de determinados conteúdos, sob pena de sanções
várias como acontece na Guiné-Bissau.
Recentemente (2017) o Governo mandou cessar com as comunicações da Rádio
Difusão Portuguesa para África (RDP – África), Rádio e Televisão Portuguesa (RTP) e
Agência LUSA, num claro atentado à liberdade de informação.
Estes exemplos demonstram de forma clara como é que o Governo da Guiné-Bissau
lida com a imprensa independente e livre. Com inusitada animosidade.
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Sociedade Civil
A não existência de obstáculos a constituição de organizações da sociedade civil na
Guiné- Bissau é um requisito formal que deve ser destacado na atuação do Governo.
Há um sentimento quase que generalizado de que as ONGs no país operam de forma
livre. Os direitos constitucionais a grave são salvaguardados . Dentre as organizações
mais atuantes na Guiné-Bissau estão a Liga Guineense dos Direitos Humanos e a
Ordem dos Advogados que tem feito críticas veladas a atuação do executivo, sem que
tal seja condicionado.
Parece que a Sociedade civil na Guiné-Bissau encontra campo de atuação de forma
livre ou também há uma certa tolerância por parte do poder político para mostrar ou
pretender mostrar que permite que outras vozes atuem na sociedade, o que já não
acontece com a imprensa estrangeira, que é ostracizada.
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Painel II: “AGAC – Associação Guineense
Anticorrupção: uma iniciativa da sociedade civil de
luta contra a corrupção”
Joel Alo Fernandes
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1. Introdução
A corrupção é um mal que aflige o nosso país, está presente no nosso quotidiano, na
nossa porta, nossa rua e em cada canto da nossa cidade, nas bancadas espalhadas pelo
país, etc. A par disso, existe também uma crescente preocupação de grupos de
cidadãos inconformados com o estrago desse fenómeno na sociedade buscando
através de discussão, debate de ideias encontrar a solução viável para diminui -la e,
quiçá, acabar com essa mazela na comunidade mediante construção de uma nova
cidadania, isto é, cidadão participativo democraticamente na elaboração e controlo
das políticas públicas.
Nessa empreitada, a nossa abordagem divide-se em três partes, na primeira analisar-
se-á a corrupção e seus efeitos na sociedade contemporânea. Na segunda parte
debruçar-se-á sobre os mecanismos formais de combate à corrupção e a sua
ineficiência no cumprimento da sua missão. Na terceira e última parte, se analisará o
papel da sociedade civil, destacando a importância da AGAC-GB no combate e controlo
da corrupção alicerçada na (re)definição da cidadania, isto é, a cidadania ativa e não
passiva, ou seja, o cidadão deixar de ser visto simplesmente como aquele possuidor de
direitos e deveres, mas principalmente a de participação nos rumos presentes e
futuros da sociedade à qual pertence.
2. A corrupção e os seus efeitos na sociedade
Muitas pessoas estão cada vez mais incomodadas com os casos de corrupção,
ocorridos na sociedade em que vivem, e por conta disto, muitas delas também pensam
que a corrupção não ocorre noutros lugares do mundo.
Mas a verdade é que, infelizmente, desde que a humanidade começou a organizar-se
como sociedade estruturada com sistema de poder bem definidos, a corrupção se faz
presente no seu seio.
Foi na Grécia clássica que as formas de divisão setorial e hierárquica da administração
pública surgiram, e foi com base nelas que todas as formas foram inspiradas.
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No entanto, foi na Roma antiga que estas formas acabaram sendo envenenadas pela
corrupção, que obrigou os imperadores romanos a criar formas e mecanismos que
permitissem aplacar seus danosos efeitos.
Por exemplo, a implementação dos livros contábeis, além da obrigação dos governos
de prestarem contas sobre os seus gastos e também sobre as suas receitas (uma
prática que é observada até os dias de hoje em muitas sociedades).
A corrupção, “ação ou efeito de corromper, decomposição putrefação” ou
desmoralização, sendo ainda vista como formas de “sedução e suborno” é uma forma
de se conseguir algo fácil, mas que para a realidade é ilícito, proibido por lei, antiético
ou imoral que corrói as bases sociais, mina a construção de um Estado de direito
democrático, afeta diretamente o bem-estar dos cidadãos, na medida em que
diminuem os investimentos públicos na saúde, na educação, em infraestruturas, na
segurança, na habitação entre outros direitos essenciais à vida. Gera a exclusão social
e a desigualdade económica.
De um modo geral, a corrupção é conceituada como “o abuso do poder confiado para
ganhos privados”. Mas uma das mais brilhantes e completas definições desse flagelo é
aquela que apresenta a corrupção como um sistema de comportamento de uma rede
em que participa um agente (de carater individual ou coletivo) com interesses
particulares, com poder de influência para garantir condições de impunidade, com a
principal finalidade de lograr que um grupo de capacidades de decisão de funcionários
públicos ou de pessoas particulares, realizem atos ilegítimos que violam os valores
éticos da moralidade, probidade e justiça, ou também que realizem atos ilícitos que
violam normas legais, para obter benefícios económicos ou de posição política/social,
em prejuízo do bem-estar comum da sociedade.
A corrupção é um fenómeno difícil de combater, especialmente nas sociedade como a
nossa, em que ela é sistémica e endémica, porquanto, de um lado, o próprio sistema
facilita e até exige a corrupção a mais alto nível para chegar ou manter no poder e, de
outro lado, a maioria esmagadora dos nossos cidadãos não vêm a corrupção como um
mal, cujo os efeitos direta ou indiretamente lhes afetam. Pelo contrário, alguns até
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apoiam esses atos e, em vez de denunciar tais práticas, aplaudem os seus atores de
serem homens valentes – “Matchu”.
A grande maioria dos cidadãos do nosso país, não consegue enxergar a corrupção
como um crime de enorme potencial lesivo ao Estado e à sociedade como um todo. Ela
diminui a capacidade do poder público promover investimentos que a sociedade tanto
anseia, posto que parte dos erários públicos acabam por ser usurpados por aqueles
que deveriam preservá-los em seus próprios benefícios ou, de grupos a que
pertencem. Os cidadãos em vez de repudiar essas práticas nefastas, denunciando os
seus atores, assistem pacificamente na plateia o jogo, e alguns tornaram até
convenientes desses atos de corrupção em virtude da sua impunibilidade.
Assim sendo, o Estado por conta da crescente corrupção e a passividade da sociedade,
perde não só a capacidade financeira para melhorar o sistema educativo, de saúde, de
saneamento básico, de transporte público, de obras para o bem comum, da cultura,
etc, mas também a própria capacidade de combater e controlar as práticas e
comportamentos corruptos.
3. Os órgãos formais de combate à corrupção
O nosso Estado, ciente de que a corrupção é um mal que lhe afeta, tal como outros
Estados, criou órgãos de combate à corrupção, designadamente, Inspeção Superior de
luta contra a corrupção, Inspeções Gerais nos diferentes Ministérios, Gabinete de Luta
Contra a Corrupção, instituído pelo Ministério Público e os tradicionais órgãos formais
de combate à criminalidade, mas estes têm revelado grande ineficácia no
cumprimento da sua missão – combate a corrupção.
Milhares de casos não chegam ao conhecimento deste órgãos, porque os cidadãos
enquanto peso que podem contribuir para este combate denunciando casos de
corrupção não o fazem, ou por conveniência ou ainda por desconhecimento dos seus
efeitos e formas de participar no seu combate. A título de exemplo, um médico que,
para a concessão da junta médica a um paciente para tratamento no exterior, pede
pagamento de uma quantia monetária suficiente para dividir com o coletivo de
23
médicos ou para conceder a junta médica a uma pessoa que nem padece de alguma
enfermidade.
Fato que é do conhecimento geral mas que nunca foi denunciado.
Dos poucos casos de corrupção que chegam ao conhecimento desses órgãos não tem
sido dado o tratamento adequado, tanto assim que os nossos tribunais têm julgado
poucos casos relacionados com a corrupção.
A inoperância e a falta de efetividade na conclusão dos processos de corrupção têm a
ver com o tráfico de influência e pressão que os titulares de órgãos de soberania
exercem sobre os órgãos formais de combate à criminalidade para que os seus
comparsas não sejam levados ao banco dos réus, sendo que a grande maioria dos
casos, acabam sendo arquivados. A título de exemplo, caso de FUNPI, caso de desvio
de gerador no Ministério das Pescas, sem citar outros.
Para fazer face a este flagelo o estado deve criar órgãos especialmente vocacionados
para o combate à corrupção e promover a participação da sociedade civil nesse
combate.
4. Papel da Sociedade Civil no combate à Corrupção
A realidade demostra que a corrupção não pode ser combatida sem a participação da
sociedade civil. Nesta senda, a convenção das Nações Unidas contra a corrupção, que
no seu art. 13º recomenda ao Estado adotar medidas adequadas, no limite das suas
possibilidades e em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação
interna, para a participação ativa da sociedade civil na prevenção e luta contra a
corrupção, e sensibilizar a opinião pública a respeito da existência, das causas e a
gravidade da corrupção, assim como a ameaça que esta representa para a sociedade
em geral. A convenção apela ainda aos Estados parte a promover a transparência e
participação da sociedade civil nos processos de adoção de decisões, garantir o acesso
eficaz do público à informação, realizar atividade de informação pública para fomentar
a intransigência à corrupção, assim como programas de educação pública, incluindo
programas escolares e universitários.
24
Apesar do Estado da Guiné-Bissau ser parte desta convenção, nada fez para promover
e incentivar a participação da sociedade civil no combate a este flagelo que afeta o
país e que tem contribuído, entre outros, nas cíclicas crises político-institucionais.
Neste vazio, surgiu um grupo de cidadãos imbuídos da vontade de participar
ativamente no combate a esse flagelo decidiram, em 2011, criar uma organização da
sociedade civil, designada de Associação Guineense Anti Corrupção (AGAC-GB), para
mobilizar toda a camada da sociedade civil em torno do combate à corrupção,
alicerçada na (re)definição da cidadania, isto é, a cidadania ativa e não passiva, ou seja,
o cidadão não vista simplesmente como aquele possuidor de direitos e deveres, mas
principalmente a de participar nos rumos presentes e futuros da sociedade a que
pertence. Assim a AGAC-GB busca através das suas ações conscientizar a sociedade
sobre a corrupção e a suas consequências para a sociedade de um lado, e de outro
criar uma cultura de denúncia e repúdio a atos e comportamentos de corruptos no
seio da sociedade guineense.
A AGAC-GB, para atingir os seus objetivos, criou as seguintes estruturas de
funcionamento:
a) Gabinete de Informação, formação, sensibilização e educação;
b) Gabinete de atendimento, recolha de informações e colheita de dados;
c) Gabinete de análise de informação;
d) Gabinete de operações.
O gabinete de informação, formação, sensibilização e educação, atua na vertente
de prevenção da corrupção, através da realização de campanhas de educação
cívica em matéria da corrupção. Neste momento a AGAC_GB, tem em manga um
projeto denominado KE KU NTEN KU KURUPSON, a ser objetivado através das
campanhas de educação e sensibilização em matéria de corrupção.
O gabinete de atendimento, recolha de informação e colheita de dados, gabinete à
disposição dos utentes interessados no combate à corrupção e na denúncia dos
casos, recebe informações, denúncias e procede à colheita de dados.
25
O gabinete de análise de informação e denúncias procede à análise de informação
e denúncia de casos de corrupção. Caso chegue à conclusão de que as informações
e denúncias recebidas justificam abertura de um processo-crime elabora relatórios
sobre estes e remete-os ao gabinete das operações.
Gabinete das operações – encarregue de fazer denúncias de casos de corrupção ao
Ministério Público e constituir-se assistente para colaborar com o Ministério
Público na investigação e acompanhar o processo em todas as suas fases.
Entre outros, a AGAC-GB tem por objetivo participar na concessão de mecanismos
e políticas de combate a corrupção, principalmente política-criminal de repressão
dos atos de corrupção.
A AGAC-GB tem consciência clara de que só é possível melhorar o quadro do país
na matéria da corrupção, com a participação dos cidadãos em toda a esfera da vida
política e social do seu bairro, da sua cidade e do país. Por isso, a AGAC -GB advoga
a favor da nova cidadania, isto é, cidadão não visto como simples possuidor de
direitos e deveres, mas aquela que interessa em fazer parte no processo decisório
da sua comunidade, ou seja um cidadão participante, crítico e comprometido com
a vida social e política da sua sociedade.
5. Conclusão
A corrupção é uma fenómeno cultural que afeta as relações sociais da
democracia na nossa sociedade. A experiência demostra que o combate à
corrupção pelos órgãos formais de repressão a criminalidade sem a
participação da sociedade civil é ineficaz.
Por isso, é necessário e fundamental criar outro mecanismo de enfrentamento
a corrupção que ultrapassa a esfera estatal e legal. Neste sentido, a sociedade
civil mediante o exercício de uma cidadania ativa surge como parceiro ideal do
estado que possa contribuir de maneira satisfatória no combate a este flagelo.
Assim, a resinificação da cidadania é um assunto desafiador, na medida em que
o exercício da cidadania deve tornar-se uma prática na vida do cidadão.
26
Diante disso, entende-se que promover um diálogo com a educação é
fundamental, devendo visar a formação do cidadão participante, crítico,
responsável e comprometido, com a formação de personalidades autónomas,
intelectual e afetivamente, sujeito de deveres e direitos, capazes de julgar,
escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não
apenas os seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados
e cumpridos.
Desta forma, haverá uma consciencialização cidadã, especialmente quanto ao
seu papel de agente social, inserido em uma sociedade democrática, de modo a
demonstrar-se a importância de cada um em participar da arena política e
social, buscar informações, bem como controlar e fiscalizar quilo que é de bem
comum na sociedade. E nesse sentido, que AGAC-GB, como organização da
sociedade civil visa promover o enfrentamento a corrupção.
Por isso, a AGAC-GB entende que o Estado devido à inoperância e ineficiência
dos seus órgãos vocacionados para combater a corrupção deve eleger a AGAC -
GB como um parceiro nessa empreitada.
27
Painel III: “Corrupção no quotidiano”
Raúl Mendes Fernandes
28
Introdução
A minha apresentação vai incidir sobre as perceções do homem e da mulher comum
sobre a corrupção, na medida em que não houve até hoje um estudo sociológico ou
antropológico sobre a corrupção no país, vamos recorrer sobretudo a algumas
observações pessoais e a estudos feitos noutros países. A minha referência principal é
o trabalho coordenado por Jean Pierre Olivier de Sardan e Giorgio Blundo que se
baseia em inquéritos efetuados em três países da África Ocidental - Benim, Níger e
Senegal. Os resultados destes inquéritos foram publicados na revista Politique
Africaine n° 83, de 2001/3 e na obra intitulada “État et corruption en Afrique: une
anthropologie comparative des relations entre fonctionnaires et usagers (Benin, Niger,
Sénégal)”, publicada em 2007 pela Editora Kartala.
Devemos apontar algumas notas prévias em relação a esta apresentação, para melhor
delimitar como vamos abordar este tema tão polémico e complexo. Em primeiro lugar,
queremos esclarecer que a nossa perspetiva é analítica. Ela se distingue da denúncia
moral ou moralizadora que procura, sobretudo, acusar e/ou encontrar o culpado. A
nossa leitura não é normativa, ou seja, não tem como ponto de partida as leis, as
normas e o discurso oficial do Homem de Bem, do “servidor do Bem Público”. Ela
baseia-se nas práticas efetivas do Estado, ou seja, no Estado real, essa instituição com
a qual o homem comum tem que lidar todos os dias apesar do seu desconforto,
reclamação e, muitas vezes, desespero e impotência.
Em segundo lugar, defendemos que a corrupção não é um fenómeno particular a uma
nação, uma raça, uma cultura ou um sexo. Ela é um fenómeno global que se relaciona
muito diretamente com o funcionamento ou o disfuncionamento do Estado e da sua
burocracia. A nossa perspetiva distancia-se dos determinismos que sob a capa de
relativismo cultural procuram fixar comportamentos a grupos sociais específicos como
se houvesse nas suas atitudes e comportamentos uma inscrição de caráter genético
que os condiciona. Infelizmente, trata-se de um tipo de raciocínio muito na moda
atualmente e que se reveste, inclusivamente, da capa de novidade e, mesmo, de
renovação. Não quero, no entanto, subalternizar a parte de responsabilidade que nos
29
cabe, como africanos, na extensão e generalização deste fenómeno e no
reconhecimento do grande esforço que nos cabe na credibilização das instituições.
Finalmente, na sequência do trabalho dos autores acima referidos partimos do
conceito de ”complexo de corrupção” que se distingue da corrupção no sentido
restrito - o nepotismo, o abuso do poder, o delito de ingerência, os desvios de fundos,
o tráfico de influências, a prevaricação, os abusos de bens sociais - para fazer realçar o
que estas várias práticas têm em comum, as suas afinidades, e como elas se inserem
num mesmo tecido de normas e atitudes sociais usuais.
Procura-se nesta comunicação compreender o sentido que as pessoas comuns dão à
corrupção na medida em que as suas perceções são, segundo a noss a hipótese, uma
forma de naturalizar a corrupção tornando-a de algum modo banal e aceitável. Ora,
esta banalização da corrupção é uma das formas mais sub-reptícias de legitimação e
uma das mais difíceis de questionar e, por conseguinte, difíceis de combate r. O nosso
campo de análise situa-se no que se designa por “pequena corrupção”. Sabemos, no
entanto, que entre esta e a “grande corrupção” existem fortes ligações e de algum
modo formas mútuas de cumplicidade que acabam por se justificarem apesar da
grande diferença de benefício que cabe aos seus distintos agentes.
O estudo de referência analisa um corpo de expressões populares que vão servir de
modelo à nossa apresentação pela semelhança encontrada nas experiências vividas no
país. Para os autores do estudo a análise das expressões populares leva a distinguir
dois níveis, o do discurso construído, que desemboca em configurações ideológicas
relativas à corrupção, e o do vocabulário empregue que diz respeito ao campo
semântico da corrupção. Para esses autores as palavras e os discursos participam de
um mesmo discurso de banalização.
Após análise dos argumentos justificativos o estudo distingue vários grandes
enunciados sobre a corrupção. O fenómeno aparece como recuperação, “boas
maneiras”, privilégio, pressão social, redistribuição, mimetismo, desafio e empréstimo.
Estes grandes enunciados vão servir-nos de janelas para as nossas observações.
30
A corrupção como recuperação
As expressões populares exprimem esta forma de corrupção como uma indemnização
que compensa uma injustiça, por exemplo, o baixo salário dos servidores públicos que
é, em geral, apresentado como a principal referência. Essa recuperação aparece como
um complemento salarial que vai ajudar o servidor público a resolver os problemas do
seu fogão. Esta recuperação pode envolver também o uso dos meios públicos,
instalações, equipamentos, horário, para benefício individual. Um exemplo é o uso dos
frigoríficos nos hospitais para a comercialização de água fresca. O discurso popular
apresenta esta recuperação como uma luta justa pela sobrevivência como formas de
acender, sindi, ou apagar, paga, o fogão.
Em relação a um utente face às taxas consideradas como exageradas, por exemplo o
serviço de alfândegas, se ele consegue “safar a mistida” é um motivo de orgulho e
ostentação. Uma notícia recente denunciou centenas de carros a circular sem
pagamento devido de taxas. Há uma profunda ligação dos vocábulos utilizados com os
empregues na vida quotidiana. O “fogão” é a unidade social de base da sociedade e
fazer algo que o proteja e o reforce só pode ter uma aceitação geral. Os que se opõem
a esta prescrição moral só podem ser pessoas sem coração. Como bem assinala Teresa
Montenegro acerca da palavra mistida, no prefácio ao livro de Abdulai Silá com mesmo
nome, “no quotidiano urbano, a mistida é hoje sobretudo escrava da sobrevivência, da
procura limitada da caneca de arroz, as duas colheres de óleo ou o minúsculo invólucro
de margarina a retalho que reunidos a um bocado de peixe permitem fazer ao menos
um tiro, uma refeição por dia, e eventualmente uma vela para esta noite não embater
no escuro. Puxada ao limite, numa outra aceção mistida serve de eufemismo para
designar assuntos também mais ou menos escuros”. Estas duas noções, fogão e
mistida, são centrais nos enunciados justificativos da corrupção como recuperação.
A corrupção de “boas maneiras”
As formas mais expressivas desta perceção provêm da associação das transações com
a boa educação, a relação de cortesia e de entreajuda, sobretudo quando se partilha o
31
mesmo espaço de trabalho. Entre os profissionais de um mesmo serviço deve existir
cumplicidade e entreajuda. O segredo (fitcha udju) faz parte desta cumplicidade,
mesmo quando atinge práticas duvidosas, e faz-se acompanhar de trocas de favores e
de entreajuda constantes. A contrapartida é assimilada a um presente e a recusa de
presentes é uma prova de falta de educação e de confiança. Muitos serviços para
serem eficazes precisam de ajuda de entidades privadas que, por sua vez, têm
necessidade de contrapartida pela ajuda acordada. Não seria cordial a sua recusa.
A compaixão aparece no discurso popular como forma de apoiar pessoas mais
vulneráveis, pobres, portadores de deficiência, velhas, que vêm as suas taxas reduzidas
em relação ao que deviam pagar. As taxas, geralmente, não entram nos cofres do
Estado.
A corrupção como privilégio
Os benefícios que recebem os agentes públicos são muitas vezes ligados a privilégios
da função que exercem. O chefe de um serviço pode gozar de privilégios de função
com a maior naturalidade como o uso privado da viatura de função, o abastecimento
em combustível, a utilização das facilidades do serviço, as prerrogativas de viagens, os
serviços dos subordinados, sobretudo dos empregados de limpeza, etc. Uma variedade
de serviços, desde a ambulância de um hospital para ir fazer compras até a utilização
do carro de serviço para transportar os filhos à escola pode entrar nesta espécie de
benesses inquestionáveis próprias à função.
A corrupção como pressão social
Numa sociedade onde o parentesco ocupa um lugar central no estabelecimento de
relações sociais torna-se difícil escapar às pressões próprias a esta forma de
organização social. Deve-se entender aqui o parentesco no sentido lato, isto é, o
vizinho e o amigo fazem parte do parentesco. Como recusar um favor a um tio ou a um
vizinho se o ambiente residencial e social dos agentes públicos obrigam-nos a
encontros frequentes? As relações sociais de parentesco são organizadas na base da
32
reciprocidade, o que se recebe deve ser retribuído, mesmo que seja sob uma outra
forma. Assim são também organizados os rituais, como por exemplo os casamentos, os
batizados, os fanados, os choros. Estas relações obrigam a responder, por vezes, a
favores “históricos” feitos a outros membros da família. Esta pressão social é muito
forte e a sua recusa coloca o agente público numa situação de antissocial, de marginal.
Alguns exemplos de agentes reconhecidos pela sua recusa em fazer favores apontam
para um perfil de indivíduos isolados e sem grande convívio social.
A corrupção como redistribuição
O discurso popular justifica a corrupção pela capacidade do agente corrupto em
distribuir os benefícios com muita gente. Os autores acima citados falam de um
político que num meeting de campanha aceitou ter roubado quando exercia funções
de responsabilidade no Estado, mas realçou o facto de ter distribuído o dinheiro assim
adquirido entre as pessoas da sua localidade. O discurso choca pela sua transparência.
Aquando da expulsão de um ministro que distribuía muito dinheiro nas localidades que
visitava, pude assistir a reações de condenação dessa expulsão por parte de populares
que invocavam o facto de esse ministro estar a entregar ao povo o dinheiro que lhe é
merecido. Há assim um entendimento numa via semelhante ao de Robin dos Bosques
que rouba aos ricos para entregar aos pobres. Não é por acaso que um grande número
de responsáveis políticos quando começam a enriquecer a primeira coisa que fazem é
fazer arranjos nas casas das suas mães. O facto de ter enriquecido à custa do erário
público (mama taku) só é condenável quando as razões morais do ato são
apresentadas como exemplos de egoísmo e arrogância.
A corrupção como mimetismo
A narrativa apresenta-se como uma orientação para a vida - faz o que os outros fazem.
O fato de proceder de forma diferente pode levar o agente a parecer um idiota de
serviço. Muitos agentes sabem que aplicar uma multa de forma regular pode trazer-
lhes problemas com a hierarquia. Num serviço onde as transações estão já instaladas
33
como um sistema, fazer diferentemente introduz um elemento de perturbação e
mesmo de desordem que pode ser punido com o isolamento e mesmo o
despedimento. Quando alguém é designado para um posto de responsabilidade os
conselhos, em geral, vão no sentido de o encorajar a agir depressa devido às mudanças
que uma situação de instabilidade pode provocar.
A corrupção como desafio
O discurso popular enaltece o agente corrupto por ser viril, forte, enfim, um matchu. O
agente ousou porque age num terreno que comporta alguns riscos, ser denunciado
por um adversário, um cobiçoso ou um invejoso. No entanto, ele ousou e por isso
demostra forte personalidade e deve merecer uma apreciação positiva. O vocabulário
que caracteriza esse agente é o mesmo da cultura machista e guerreira.
A corrupção como empréstimo
A corrida pelo dinheiro líquido é uma das características dos tempos modernos. Todo o
mundo está ávido de dinheiro. Alguns responsáveis beneficiam do dinheiro público sob
a justificação de “empréstimo” a ser devolvido mais tarde quando obter o reembolso
do investimento feito com esse empréstimo. O agente nesta transação aparece como
um empresário moderno capaz de fazer uma gestão de qualidade superior. Os jornais
nos dão muitos exemplos de casos ocorridos com os murus multiplicadores de
dinheiro. Estes conseguiram até convencer alguns gerentes bancários formados em
grandes escolas de gestão e marketing.
As palavras e os discursos aqui analisados mostram bem as ambivalências,
ambiguidades e a integração das transações ligadas à corrupção nas práticas
quotidianas. Uma atenção particular dada à linguagem e às perceções permitem uma
análise cuidada e profunda do fenómeno e abre certamente a via a uma consciência
mais apurada do fenómeno. Essa tomada de consciência é certamente a via mais
segura para uma luta eficaz, não demagógica e cidadã, contra esse fenómeno que
impede a construção de uma polis democrática.
34
Painel IV: “Corrupção e meio ambiente:
transparência na gestão de recursos
naturais fator da degradação e dos conflitos sociais
na Guiné-Bissau?”
Miguel de Barros
35
1. Apresentação
A Tiniguena foi fundada a 5 de Junho de 1991 por um grupo de 6 cidadãos nacionais,
com a missão de “Promover um desenvolvimento participativo e durável, baseado na
conservação dos recursos naturais e no exercício da cidadania”. Foi a primeira
organização criada para ser e funcionar como ONG nacional especializada nas questões
ambientais e do desenvolvimento participativo na base.
Tendo surgido num período em que a Guiné-Bissau enveredava pela via da
liberalização económica e política, no quadro da adoção de políticas de ajustamento
estrutural, que conduziram ao encorajamento da privatização e do abandono pelo
Estado de vários domínios do desenvolvimento do país, em particular das zonas rurais
e dos setores sociais.
O principal investimento feito baseou-se no reforço da participação das comunidades
locais e da emergência de uma cidadania ativa e engajada com o desenvolvimento
nacional, despertando e construindo uma consciência ambiental crescente através da
defesa de espaços e recursos naturais estratégicos para as comunidades das zonas da
sua intervenção (Legalização de Terras Comunitárias da Zona Verde e criação da 1ª
área protegida de gestão comunitária - AMPC Urok), bem como a educação ambiental
e para a cidadania de uma nova geração, através da Geração Nova da Tiniguena e
ainda a valorização socioeconómica dos produtos da biodivers idade.
2. Situação da Exploração dos Recursos Naturais
Durante o período de transição política, após o golpe de Estado de 2012, o país viveu a
mais grave agressão às florestas jamais sentida, em particular as regiões de Oio no
norte e Bafatá no leste (e depois Quinará e Tombali no sul e Gabú no leste), alvos da
exploração abusiva, intensa, descontrolada de essências florestais, envolvendo
entidades estrangeiras, autoridades políticas nacionais e locais, setor privado, sistema
judicial, parlamentares e elementos das forças de defesa e segurança, violando as leis
existentes.
36
De acordo com os dados recolhidos e cruzados entre várias instituições, o volume de
madeira cortada por metro cúbico, com licenças emitidas pela Direção Geral das
Florestas e Fauna, de 2012 a 2015 são as seguintes:
Tab. 1: Mapeamento da evolução das capturas de pescado baseado nas concessões de
licenças de 2012 a 2014
ANO
Nº Licenças
Todas Espécie m3 Pau Sangue m3
% de
Pau Sangue
2012 08 3.409,53 2.790,00 82%
2013 60 9.816,52 7.221,52 74%
2014 54 13.336,09 12.248,09 92%
2015 02 400,00 -
TOTAL/ m3 26.962,13 22.259,61 83%
Nota: Durante esta fase 83% das li cenças emitidas foram destinadas ao corte de árvores da espécie pau sangue; O
volume de madeira da espécie “pau sangue” autorizada para corte entre (Janeiro a Junho de 2014) corresponde a
55% do somatório de toda a madeira de pau sangue autorizada para corte nos últimos 4 anos. Fonte: ANP, 2017.
Só em 2014, foram exportadas 91.138 m3 de uma única espécie, o pau sangue
(pterocarpus erinaceus), ou seja, quatro vezes e meia mais do que o máximo permitido
para todas as espécies (das seis mais conhecidas) que é de 20.000 m3/ano.
Tab. 2: Evolução das exportações de Pau sangue para China de 2012 a 2014
Fonte: General Administration of Customs of the Peoples Republic of China
37
A nível dos recursos minerais, 500 toneladas de areias pesadas foram extraídas e
exportadas e elevadas quantidades de doleritos foram escavados e vendidos no país e
nos países vizinhos (Cabral: Tiniguena, 2016), numa fase em que as regras
estabelecidas para obtenção de licença ambiental efetiva não foram respeitadas, por
desvios de procedimentos e conivências de certas personalidades do aparelho
governativo a nível regional e central.
No setor pesqueiro, a zona económica exclusiva foi inundada de embarcações de
várias proveniências, capacidades e artes de pesca, envolvendo armadores da pesca
industrial (Europa – países da UE, Rússia e Ásia - China, Vietname, Coreia do Sul) e da
pesca artesanal (África, em particular Senegal e Guiné Conakry). Com licenças
duvidosas, ausência de fiscalização credível e desconhecimento do potencial de
captura, a falta de transparência na gestão do setor estimulou e encorajou a pesca
clandestina, não regulamentada e criminosa (Jumpe e Gomes: Tiniguena, 2016).
Tab. 3: Esforço das frotas que operam nas águas da Guiné-Bissau
3. Monitorização dos Recursos Naturais
A situação da falta de responsabilidade e credibilidade de Estado e das suas
instituições levou à banalização de procedimentos administrativos, encorajou a
corrupção de altos funcionários na presença de fraca capacidade interventiva das
instituições públicas de controlo, afetando as dinâmicas socioeconómicas das
comunidades locais e ameaçando a conservação do meio natural e a regeneração dos
recursos renováveis do país, justificando a iniciativa da Tiniguena em submeter à UE a
proposta de projeto de intervenção “Gestão Transparente – Recursos Sustentáveis”,
Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
ESPANHA 361 119 1031 241 498 197 946 2350 2134 1059 956 428 264 1591
PORTUGAL 540 900 96 36 84
ITALIA 178 59 128
GRECIA 482 165 357
Total UE 901 1019 1031 241 498 197 946 2350 2230 1095 1040 1088 488 2076
Otros Paises 3867 4629 1219 2765 1792 3158 417 2975 1280 3234 2614 2252 2997 966 10431 2355
TOTAL 4768 5648 2250 3006 2290 3355 1363 5325 3510 4329 3654 3340 3485 966 10431 4431
38
aprovado em Dezembro de 2015, destinado ao reforço de capacidades das OSC na
definição de estratégia de intervenção em monitorização e seguimento de políticas
públicas de gestão de recursos naturais.
Apostou-se na melhoria da informação sobre os efeitos da exploração dos recursos
naturais com a criação de banco de dados resultante dos diagnósticos realizados sobre
os setores das floresta, minas, pescas e o quadro legal que orienta o funcionamento
desses setores. Foram igualmente criados 32 comités locais ao nível regional dotados
de um sistema de alerta precoce em articulação com as diferentes organizações locais,
os quais foram reforçar as capacidades dos grupos temáticos das OSC sobre a
monitorização da gestão dos recursos naturais , realização de denúncias públicas nos
órgãos de comunicação social, junto ao parlamento, queixa-crime; investiu-se também
na promoção de iniciativas da cidadania ativa e de influência de políticas públicas e
encorajou-se a adoção de boas práticas na gestão e exploração dos recursos naturais
do país.
Em suma, a ação visa contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de maior
responsabilização das instituições governativas na gestão pública, particularmente dos
recursos naturais; a criação de mecanismos de seguimento de políticas de gestão da
exploração desses recursos, por parte da sociedade civil guineense; a influência de
políticas públicas, promoção da transparência na gestão e melhor capacidade de
intervenção dos diferentes atores em termos da gestão dos recursos naturais que
afetam diretamente o quotidiano dos guineenses.
3. Caso Prático de uma denúncia: construção de uma central termo-eléctrica no
Parque Natural das Lagoas de Cufada
a. Em Dezembro de 2016, a Tiniguena recebeu a confirmação através de um
alerta lançado pela população relativamente à construção de infraestruturas
para a instalação de uma central termo-eléctrica no interior do Parque Nacional
das Lagoas de Cufada, nos arredores de Buba, fato validado com o memorando
produzido pela Autoridade de Avaliação de Impacto Ambiental submetido ao
Governo;
39
b. Em Janeiro de 2017, a Tiniguena, denunciou publicamente a iniciativa, através
das rádios. Os fundamentos da denúncia são justificados pelo fato de, tanto o
Ministério da Energia, promotora, como a empresa detentora1 não terem
apresentado nenhum projeto para o empreendimento nem terem justificado a
iniciativa numa base legal, que implicaria a realização de um estudo prévio de
avaliação de impacto ambiental e social e nem da viabilidade económica da
futura central (sustentabilidade para o seu funcionamento), o desrespeito pela
lei dos Parques em geral, da avaliação ambiental e da criação do próprio
parque em causa. Em consequência, as obras não só põem em causa as
fronteiras do parque oficialmente definidas pela lei, como também, o que é
mais grave, o desmatamento de árvores numa das margens da estrada ao
longo da zona abrangida pelo Parque, até 30 Km em direção à cidade de
Fulacunda. Esta situação constitui um pretexto para incentivar
empreendimentos agrícolas, comerciais e industriais, mas sobretudo atiçar a
cobiça dos operadores madeireiros (cujo um deles é o sócio administrador da
empresa ligada à futura central, que posteriormente foi nomeado diretor geral
de uma entidade pública ligada à gestão dos fundos que financiam a
construção da central), pôr pressão sobre o abate de árvores de madeira e, em
síntese, contribuir para a desestabilização do equilíbrio ecológico na zona,
pondo em causa a preservação dos recursos da biodiversidade florestal e
animal local, num parque classificado internacionalmente como sítio Ramsar2 e
a maior reserva da água doce da Guiné-Bissau.
c. Como proposta alternativa, a Tiniguena e os seus parceiros que se lhe
associaram a partir dessa denúncia (o IBAP, a Inspeção Nacional do Ambiente,
o Ministério da Administração Territorial e a Liga Guineense dos Direitos
Humanos, entre outros) propõem a transferência da central para outro espaço
afastado dos limites do parque e a substituição do modelo termo-elétrico para
o fotovoltaico fonte de energia menos poluidora e, sobretudo, com centrais
1 - SEFTECH INDIA.PTV.LDA 2 - Referente à zona ecológica de reconhecimento mundial pelos recursos naturais que abriga, tanto os animais, pássaros e vegetação e as condições hidrográficas para a perenidade dessa biodiversidade, entre outros…
40
mais modestas, instaláveis em cada cidade e circunscritas a espaços limitados
de fácil gestão pública e participativa das comunidades locais.
d. Face aos sérios riscos que este projeto apresenta para o meio ambiente e a
subsistência das populações, a Tiniguena procurou lançar o debate a nível
nacional e internacional e produziu, em parceria com a LGDH, uma «Carta
Aberta às autoridades nacionais competentes, aos parceiros de
desenvolvimento da Guiné-Bissau e à comunidade internacional» sobre um
projeto que ameaça o Parque Natural das Lagoas de Cufada em clara violação
de seis (6) leis em vigor na Guiné-Bissau, bem como dos compromissos
internacionalmente assumidos; a falta de enquadramento e de planeamento
de um projeto próprio e o défice de transparência na sua execução;
e. Providência cautelar – Na sequência da denúncia anterior e devido à ineficácia
das ações desencadeadas pelas entidades públicas nacionais3 para travar as
obras em Buba com ações concertadas entre instituições públicas que levou à
criação de uma Comissão interministerial incentivada pela Presidência da
República, em oposição ao Ministro da Energia e pela Tiniguena, esta ONG
decidiu estabelecer uma parceria com a LGDH com a qual apresentaram uma
Providência Cautelar conjunta junto do Tribunal Provincial de Buba, no intuito
de ver travadas as obras de construção da central, pressionando as entidades
competentes a cumprirem as leis e a busca de uma solução satisfatória para a
defesa do primado da lei e da sustentabilidade dos recursos renováveis.
f. Efeitos da ação: A denúncia pública despertou a atenção nacional e
internacional, levou à intervenção do Presidente da República, e à averiguação
dos fatos no terreno pela comissão interministerial e consequente produção de
um relatório com propostas de soluções consensuais. Até agora nenhuma
proposta desta comissão foi anunciada (devido à forte influência da ala do
partido que atualmente sustenta o pacto governativo); devido a fortes pressões
políticas, corrupção e ausência de segurança dos agentes da justiça, o Tribunal
Provincial de Buba produziu um despacho considerando improcedente a ação
3 - E seus colaboradores nacionais e estrangeiros (debates e conferências em Bissau, Lisboa, Brasil e debates radiofónicos)
41
da Tiniguena e da LGDH, alegando que a Tiniguena não é uma entidade de
utilidade pública com capacidade indicada para tal, por não ser a entidade que
tutela o Parque em questão.
4. Desafios para a transparência na Gestão de Recursos Naturais na Guiné-Bissau
a. Melhorar os mecanismos de comunicação e prestação de contas com vista a
assegurar a transparência nas instituições públicas;
b. Contribuir para a adesão do país às iniciativas internacionais de gestão
transparente dos recursos naturais (nomeadamente na publicação dos contratos
entre o governo e os privados);
c. Reforçar o conhecimento dos parlamentares e as comissões especializadas sobre
aspetos ligados à produção, seguimento e investigação na exploração dos
recursos naturais;
d. Melhorar os procedimentos institucionais, os mecanismos e instrumentos de
avaliação socioeconómica das concessões das licenças de exploração dos
recursos naturais;
e. Melhorar o nível de conhecimento e a capacidade de interpretação dos
profissionais da justiça sobre aspetos ligados à exploração dos recursos naturais
e as medidas de criminalização nesse setor;
f. Dotar o país da capacidade de resposta em termos de prevenção, gestão e
mediação dos conflitos desencadeados pela exploração dos recursos naturais;
g. Criar fóruns nacionais inter-atores dedicados à gestão durável e participativa
dos recursos naturais nas principais zonas de exploração;
h. Favorecer maior acesso à informação e consciencialização das comunidades
locais sobre o seu papel na manutenção e defesa dos recursos naturais
renováveis;
i. Produção e publicação de experiências e ensinamentos de boas práticas de gestão
durável de recursos naturais como mecanismo de sensibilização.
42
Painel V: “A conexão entre a corrupção e as
violações dos Direitos humanos: principais
indicadores”
Yasmine Cabral
43
Contexto político, social e económico da Guiné-Bissau
A Guiné-Bissau desde a sua fundação enquanto Estado soberano em 1973 começou a
deparar com o desafio de conjugar a gestão institucional entre o legado da luta pela
independência e a necessidade imperiosa de edificação de um Estado de Direito
Democrático.
Na prossecução destes desideratos, o Estado guineense reafirma o seu compromisso
com os valores da dignidade humana, aderindo a vários instrumentos internacionais
em matéria dos Direitos Humanos. Inter alia, a Constituição vigente, além de
proclamar um leque importante dos direitos fundamentais, confere a natureza
Constitucional à Declaração Universal dos Direitos Humanos, como consta do Art.º.
29º da lei magna, isto é, concede uma maior dimensão jurídica aos preceitos
constitucionais no domínio dos Direitos Humanos.
Neste conspecto, a defesa e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais
integram ao leque dos objetivos essenciais do Estado e da tarefa comum da sociedade.
Todavia, volvidos 44 anos de independência, a Guiné-Bissau continua a enfrentar
problemas inerentes à consolidação da democracia e à estabilização política que se
transformam nos desafios estruturais para a afirmação da autoridade pública com
vista ao comprimento dos seus compromissos nacionais e internacionais, mormente
no domínio dos Direitos Humanos.
Por conseguinte, a Guiné-Bissau de acordo com o relatório do PNUD 4 ocupa o lugar
177 no que concerne ao índice de desenvolvimento, numa escala comparativa de 187
países. O país caiu quatro posições de 2008-2013, com o Índice de Desenvolvimento
Humano de 0,396. Este indicador espelha em parte a situação geral e estrutural do país
que muitos analistas qualificam de ser provocada, em parte pela corrupção e
disfuncionamento da Administração Pública. A esses fatores associam à impunidade
sistémica e generalizada.
4 Relatório de PNUD sobre o índice do Desenvolvimento Humanos - 2014
44
Em relação aos indicadores nacionais, os dados do Instituto Nacional de Estatística
(INE) em 2014, determinam que 33% da população residente na Guiné-Bissau vive com
menos de 1 Dólar sendo que 69% com menos de 2 Dólares. Os referidos dados
evidenciam sobremaneira o grau de pobreza no país e os efeitos deletérios da má
governação em face das potencialidades do país.
No que diz respeito à boa governação, os dados revelam que em 2015 a Guiné-Bissau
ocupa a posição 44 no ranking do índice Mo Ibrahim, num universo de 54 países
avaliados. O país tem regredido em todas as quatro categorias cujos critérios são
usados para avaliar as performances de governação dos estados em África: Segurança
e Estado de Direito, participação e Direitos Humanos, desenvolvimento económico e
Sustentável e Desenvolvimento Humano.
A corrupção é apontada por muitos, como um dos fatores impulsionadores da
instabilidade política que se vive na Guiné-Bissau em dinâmica concorrencial com a
fragilidade institucional do Estado, a impunidade e a instabilidade política. Pois é neste
contexto tanto quanto alarmante, que se insere o presente trabalho, visando acima de
tudo incentivar debates e análises acérrimas relativamente aos efeitos deletérios da
corrupção na promoção e proteção dos Direitos Humanos.
O exercício de estabelecer a relação de causa e efeitos entre a corrupção e Direitos
Humanos, é complexa e requer uma análise essencialmente objetiva sob pena de
atribuir aos dois conceitos em análise, dimensões que não têm nada a ver com a
essência do tema. Para uma melhor compreensão do elo de ligação entre os Direitos
Humanos e a corrupção, nada melhor que definições objetivas e rigorosas das duas
realidades.
Conceito de corrupção:
O fenómeno de corrupção constitui hoje em dia um dos principais desafios dos Estados
modernos em virtude dos seus efeitos devastadores e capazes de pôr à prova o
sistema político de um Estado, o funcionamento regular das instituições e o bem-estar
social de uma nação. O termo corrupção vem do latim currution que segundo
45
Aristóteles, se trata de alteração do estado das coisas, uma modificação, um desvio de
conteúdo, assim ao levarmos essa ideia para o âmbito das relações humanas, pode-se
afirmar que a corrupção associa-se diretamente à ideia de desvirtuamento dos
objetivos para os quais se destinam uma coisa.
O conceito de corrupção pode também assumir uma aceção lata do termo, entendida,
como uma espécie de conduta através da qual o indivíduo, motivado por alguma
vantagem, age desvirtuando a natureza de um determinado objeto, contrariando
aquilo que coletivamente é visto como certo e justo. As sociedades democráticas são
caraterizadas pela existência de padrões de conduta, que devem ser observados por
todos como condição mínima de convivência e de avanço coletivo. Neste contexto, a
corrupção é caraterizada pela deturpação de um objeto, através de um
comportamento que desrespeita àquela norma, motivado pelo desejo de obter
vantagens indevidas.
Balizando o alcance social da corrupção, torna imprescindível perceber como é que
este fenómeno influencia o quadro institucional de uma sociedade em termos de gozo
e de exercício dos direitos e liberdades fundamentais. Para esta reflexão, trazíamos à
colação, a definição dos direitos humanos de acordo com Louis Henkin como
“reivindicações morais e política que, no consenso contemporâneo, todo ser humano
tem ou deve ter perante a sua sociedade ou governo”. Este conceito pode ser
reforçado com a noção de que os direitos humanos representam a cristalização fiel da
necessidades e das aspirações humanas que os Estados ditos democráticos e de direito
têm a obrigação de garantir a todos os seus membros para assegurar que as pessoas
vivam com o mínimo de dignidade humana.
Portanto, nesta perspetiva podemos considerar que a relação entre Direitos Humanos
e a corrupção pode ser estabelecida a dois níveis: direta e indireta, sendo que a última
dimensão ocorre com maior frequência pela ação nociva ou omissão indevida dos
agentes púbicos. A relação é direta quando a violação dos Direitos Humanos resulta
imediatamente das consequências de um comportamento tido como corruptivo e
indireto quando a corrupção não pode ser considerada como causa imediata, porém as
suas consequências impediram Estado ou as instituições públicas de prosseguir as suas
46
atribuições no domínio dos Direitos Humanos. Este cenário acontece com maior
frequência na avaliação do nível de implementação dos direitos económicos, sociais e
culturais, basta fazer uma análise comparativa do investimento público nos setores
sociais, nomeadamente saúde, educação, acesso à água entre outros. Contudo, antes
de estabelecer a ligação entre a corrupção e os Direitos Humanos é preciso determinar
quais são as obrigações de estado para a delimitação das responsabilidades estatais,
tanto de forma direta ou indireta na promoção e proteção dos Direitos Humanos.
Enquadramento legal da corrupção
A Constituição da República da GB proclama um conjunto de direitos e liberdades
fundamentais no seu título II que representa uma das principais atribuições do Estado,
nomeadamente direito à vida, acesso à justiça, inviolabilidade da integridade física e
moral, liberdades de expressão e de manifestação, proteção social, direitos à educação
e à saúde. Estes objetivos anunciados pela constituição constituem as tarefas primárias
e devem imperiosamente fazer parte das políticas púbicas em qualquer sociedade.
Todavia, as instituições públicas guineenses em face das estatísticas acima descritas,
não têm conseguido cumprir minimamente com as suas obrigações, muito por conta
da má gestão dos recursos públicos, ao serviço dos interesses individuais em
detrimento de coletivos. A dimensão estatística da corrupção podia ser abordada com
maior detalhe, mas a natureza do exercício que estamos a desenvolver é incompatível
com o elencar de um longo acervo de dados devido aos constrangimentos temporais e
pedagogia. Daí que vamo-nos servir de alguns dados estatísticos apenas para
evidenciar o contexto, as tendências e o contraste entre o quadro legal e a realidade
de forma objetiva e simplista.
No quadro dos princípios de interdependência e de pluralidade dos Direitos Humanos,
decidimos trazer para o debate alguns indicadores importantes para a aferição do grau
de gozo e de exercício dos Direitos Humanos face às obrigações das instituições
públicas. Começando pelo direito de acesso à água de qualidade, a partir da variante
de água canalizada em algumas regiões, Bafatá com 6.8%, Biombo 2.5%, Cacheu 0,5%
47
Oio 00%, Quinará 0,1% e SAB 18,1%. A título elucidativo, a cidade de Bissorã tem
apenas 64 casas com água para um universo de 6.691 agregados familiares,
perfazendo uma percentagem de 0,95, o que é extremamente baixa e com
consequências devastadoras para o direito à saúde e segurança alimentar.
No que concerne à energia a situação é igualmente deveras preocupante numa escala
comparativa equivalente de acesso à água: Biombo conta com 18,3% das casas com
acesso à energia elétrica, Cacheu com 4.3% e Quinara 11,9 %.
No domínio do acesso à justiça, os dados se assim podemos afirmar, são assustadores
e em alguns casos, se pode afirmar mesmo que estamos perante uma denegação da
justiça contrária ao preceituado no artigo 32 da Constituição da república segundo o
qual “ Todo o cidadão tem direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os atos
que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a
justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Se compararmos a distância que intermedia populações dos tribunais de primeira
instância, (tribunais de setor e tribunais regionais) chegaremos à seguinte média por
região:
Biombo 19
Tombali 20 km
Bafatá 27 km
Quinara 69 km
Estes indicadores não incluem a região de Bolama bijagós porque o projeto do qual
provieram os dados não cobriu a parte insular do país, que neste momento não conta
com nenhuma instância judicial. Os populares das ilhas são forçados a viajar para as
regiões de Quinara ou Tombali quando os seus direitos estejam em causa. Este
processo, denota casos de autêntico disfuncionamento da administração da justiça.
Como resultado, a justiça é essencialmente administrada nas regiões pela polícia ou
pelas autoridades tradicionais, mesmo para casos de crimes de natureza pública. Se,
em geral e com a exceção de SAB, as distâncias são significativas, para Quinara
implicam uma ausência do recurso a tribunais a não ser depois de esgotadas todas as
48
outras instâncias não judiciais. Senão vejamos: Pirâmide de administração de justiça –
crime de roubo de gado
Região de Bafatá:
Autoridade tradicional - 38,2%;
Polícia - 47,3%
Tribunal - 14,5%
Região de Biombo:
Autoridade tradicional - 2,8%;
Policia - 47,2
Tribunal - 50%
Região de Tombali:
Autoridade tradicional - 0,0%
Polícia - 70%
Tribunal - 29,4%
Os efeitos de corrupção e a discrepância entre o legal e a prática fazem eco nos
centros de detenção através de uma avaliação aritmética do número de pessoas
detidas por área das celas. A área ideal é de 7m2 por detido, sendo que o Decreto-Lei
10/2010 Regulamento dos centros de detenção, que regula as condições das pessoas
nos centros de detenção, estabelece no seu art. 18º que “ conforme se destinem a
acolher um, dois ou cinco detidos, as celas não devem possuir, respetivamente, área
superficial inferior a 6m2, 19m2 ou 20m2”. Todavia na prática a realidade é totalmente
contrária, tendo como referência o estabelecimento prisional de Bafatá destinado aos
indivíduos condenados. Este estabelecimento penitenciário oferece por detido uma
média de 4,1 contrário à média legal de 6m2. A situação é pior em Bissau, nos centros
de detenção da Polícia Judiciária e das Esquadras da Polícia da Ordem Pública em que a
média de espaço por detido cifra na ordem de 30cm2. Assim sendo, as regras de
49
tratamento de detidos estão pouco asseguradas ou muito longe das metas traçadas
pela lei e pelos padrões internacionais.
Exemplos de corrupção com efeitos diretos no gozo e exercício dos direitos humanos
são as cobranças que se verificam frequentemente nos hospitais e nas esquadras de
polícia, nomeadamente para a notificação das pessoas 1,000 FCFA, desistência de
queixa de 5 a 10 mil, Guias de polícia e médicas custam 5 mil FCFA, tudo isso entra
como encargo financeiro de vítimas de violação dos direitos humanos. Equivale dizer
que a corrupção é a réplica da violação dos Direitos Humanos porquanto coloca a
vítima numa situação de dupla violação, sobretudo quando está sendo praticado pelas
entidades responsáveis pela proteção dos direitos dos indivíduos.
Esta realidade que espelha a situação dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau ocorre
mais por virtude da má governação e da prática generalizada de corrupção cujos
efeitos têm impossibilitado de forma efetiva as instituições públicas de investir nas
áreas sociais e na melhoria de qualidade de vida dos cidadãos.
Apesar da sua globalização, a corrupção é um fenómeno contrária à lei e criminalizada
por quase todos os países do mundo, em alguns casos pode ser qualificada de crime
organizado e transnacional, tanto por ação, assim como por omissão de conduta que
por lei o agente público é obrigado a desencadear para evitar ou combater a
corrupção.
A nível nacional a corrupção pode ganhar diferentes manifestações, tal como consta
do Código Penal em vigor no seus Artigos 247º através do qual qualifica de corrupção
passiva quando o “ funcionário que por si, por interposta pessoa com o seu
consentimento ou autorização, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que
lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, como
contrapartida de ato ou omissão contrários aos deveres do cargo (...)” . Ainda, o
mesmo dispositivo legal atribui ao fenómeno a uma cominação legal de dois a dez
anos de prisão.
50
Relativamente à corrupção ativa, a posição do legislador não varia muito da categoria
anterior, sendo que, a diferença consiste basicamente na ação de desencadear ato de
corrupção e no caso de passiva, na não reação a uma situação passível de corrupção.
Art. 248 corrupção ativa
“Quem por si, por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou
prometer a funcionário, ou a terceiro com conhecimento daquela, vantagem
patrimonial ou não patrimonial que ao funcionário não seja devida, é punido com pena
de prisão de um mês a cinco anos”.
Há outras condutas que constituem corrupção, porem a designação legal não
representa o alcance social e corrente do termo. Neste âmbito podemos citar o crime
de peculato art.º. 249º que se traduz na situação em que “o funcionário que
ilegitimamente se apropriar em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou
qualquer coisa móvel, publica ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua
posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções (....).
Na verdade, os efeitos deletérios da corrupção nos Direitos Humanos na Guiné-Bissau
são devastadores visto que além de impedir os avanços económicos e sociais como
sustentam as estatísticas, tem colocado em última a prova a sobrevivência do Estado.
Neste contexto, as autoridades públicas em geral estão quase que absolutamente
amputadas de habilidade para promover e proteger os direitos civis e políticos por
causa de corrupção, incluindo as autoridades judiciárias. Esta situação é agravada pela
ausência absoluta de Estado nas regiões, onde coexistem dualidade de autoridades,
com predominância das tradicionais às estatais. Quando a corrupção se encontra
dispersa em todo o corpo político e mesmo tolerada pela comunidade, as pessoas mais
necessitadas ou hipos suficientes materiais sofrem de forma mais acentuada porque os
recursos para o programa social serão normalmente desviados.
Fenómenos tal como a corrupção não podem ser tratados como passíveis de soluções
mágicas, imediatas e mediáticas, por isso, é indispensável que a sociedade civil se
envolva no processo de combate à corrupção, promovendo transparência e acesso à
informação que possa permitir aos cidadãos tomar decisões informadas. Uma pesquisa
51
recente do FMI a 71 países conclui que os que possuem maior índice de corrupção
apresentam maiores taxas de mortalidade.
Um dos efeitos nocivos da corrupção na Guiné-Bissau é que contribui e continua a
contribuir para a quebra de confiança entre a sociedade e o Estado, o que por outras
palavras, implica dizer que os cidadãos estão a afastar-se progressivamente de
interferir na vida do seu país e o que por outro lado, degrada o sentido do público e
incentiva a impunidade social e institucional.
Hoje em dia é comum na doutrina internacional que a confiança é sinónimo de uma
sociedade civil forte um valor cívico, ético e moral que aumenta consideravelmente a
qualidade democrática das relações interpessoais, interinstitucionais e políticas em
geral.
Conclusão:
A afirmação política de um mundo comum confiável requer uma maior participação da
sociedade civil enquanto ilustração genuína dos interesses da sociedade. A corrupção
não tem merecido um tratamento cuidado na GB porque o grau de censurabilidade
social é praticamente nula, dando azo a um crescimento exponencial em virtude da
impunidade sistémica e institucional que aflige o país. A boa governação é
intrinsecamente ligada a cinco princípios cumulativos, a saber: Abertura (no sentido de
maior transparência e comunicação); Participação ou cidadania que consiste em implicar
de maneira mais sistemática os cidadãos no processo de desenvolvimento;
Responsabilidade que consiste na definição do papel de cada entidade envolvida e o
seu grau de responsabilidade; Eficácia que consiste em produzir os resultados
pretendidos ou esperados; e, por fim, temos a coerência. Sendo a corrupção um dos
principais obstáculos à boa governação tem que ser combatida por todos porque
coloca em causa o bem-comum e os interesses coletivos.
52
Painel VI: “Gestão Transparente no sector da
Saúde: Gabinete do Utente”
Cremilde Dias
53
Surgimento e Pertinência do Projeto Direito à Saúde: Gabinete Do Utente
O projeto supracitado tem como finalidade fomentar e defender os direitos humanos
na Guiné-Bissau, especificamente o direito à saúde. Assim sendo, a proposta consiste
em divulgar junto dos cidadãos da Guiné-Bissau, os seus direitos em matéria sanitária
e criar, ao mesmo tempo, uma estrutura operativa que garanta o seu exercício efetivo.
No contexto atual do país, existe uma parte considerável da população que vê os seus
direitos sanitários violados. Tal ocorre devido a uma série de carências que tornam
praticamente inoperável o sistema de saúde para as pessoas com menos recursos
económicos e outros grupos vulneráveis como é o caso das crianças de pouca idade, da
população rural deslocada por motivos de saúde ou pessoas analfabetas.
O Gabinete do Utente iniciou as suas atividades em Dezembro de 2016, procurando,
por um lado, funcionar como um espaço de atendimento ao público e, por outro lado,
como um mecanismo de acompanhamento às estruturas de saúde no SAB.
Assim, o Gabinete do Utente adotou uma abordagem que passa por:
1- Direitos individuais ou coletivos?
Conscientes da diversidade das violações de direitos, o Gabinete do Utente definiu
duas tipologias distintas de violação de direitos. Uma delas que se refere à violação
dos direitos individuais e outra aos direitos coletivos, ou seja, a falhas de
funcionamento no sistema de saúde que afetam um número muito expressivo de
utentes.
2- Acompanhamento às estruturas sanitárias ou às OSC?
Certos de que a colaboração, tanto com OSC, como com as estruturas públicas, é
fundamental para a melhoria do sistema público de saúde, o Gabinete do Utente
opta por uma intervenção que, por um lado, disponibiliza às estruturas de saúde
um canal de comunicação com as entidades responsáveis e consequente resolução
dos seus problemas e, por outro lado, promove o envolvimento das Associações de
54
Base Comunitária, para que o seguimento dos programas seja transparente e
acessível a todos.
3- A democratização da Informação: Sim ou Não? Sim!
O Gabinete do Utente defende a livre circulação de informação, lógica esta que se
traduz em, sempre que é identificado um problema, notificação de todas as
entidades implicadas. Após esta notificação, e perante a ausência de uma resposta
adequada, o Gabinete promove ações de informação comunitárias, bem como a
mobilização da comunicação social, para que estes organismos possam tornar
público um problema que afeta todos os cidadãos. O Gabinete do Utente acredita
que quanto maior conhecimento existir acerca de um determinado problema, mais
eficiente será a procura de soluções.
Ao longo deste ano de trabalhos, o Gabinete do Utente tem tido intervenções
regulares, ao nível de problemas de grande envergadura, no Sistema Nacional de
Saúde:
a) Caso do Programa Nacional de Luta contra o Paludismo: desde Dezembro de
2016 que o Gabinete do Utente acompanha a situação dos anti palúdicos nas
estruturas sanitárias do SAB. As ações de informação e advocacia têm
contribuído para pressionar as entidades implicadas, no que concerne à
resolução de um problema que se mantém até hoje. À data presente,
continuam a verificar-se problemas sérios relacionados com a distribuição e
consequente rutura de stock, colocando-se o Gabinete do Utente à disposição
para a melhoria dos procedimentos.
b) Caso do Programa de Nutrição: também desde Dezembro de 2016 que o
Gabinete do Utente acompanha a situação dos produtos integrados no
protocolo GIDA – Gestão Integrada da Desnutrição Aguda, foi possível
desenvolver várias ações de informação e assegurar um diálogo concertado
com todas as entidades implicadas, que contribuíram para a melhoria da
situação. À data presente, os problemas identificados no domínio do Programa
de Nutrição, no SAB, são expressivamente menores.
55
c) Casos de cobranças ilícitas: a maioria dos casos individuais que chega ao
Gabinete do Utente prende-se com situações de cobranças ilícitas, as quais
constituem importantes violações de Direitos Humanos e contribuem também
para a descredibilização do sistema público de saúde. Estes casos são
encaminhados para as Direções dos respetivos estabelecimentos de saúde e o
Gabinete do Utente atua como regulador de toda a comunicação, tendo em
vista a máxima proteção dos utentes. Até à data presente, o Gabinete de
Utente já acompanhou 14 casos individuais.
d) Coordenação do Grupo de Seguimento: o programa UE-PANNE promoveu em
Abril de 2017, um Espaço de Reflexão, em parceria com a Liga Guineense dos
Direitos Humanos (LGDH), o Gabinete do Utente e o Fórum de Jornalistas
promotores de Saúde, que contou com a participação das organizações da
sociedade cívil, principais doadores na área da saúde e representantes da
Administração pública em Saúde. O espaço de reflexão pretendia contribuir
para uma melhor compreensão da forma como são desenhados os protocolos
que visam garantir o acesso a determinados materiais médicos e
medicamentosos gratuitos e entender que mecanismos existem para garantir a
correta distribuição dos materiais previstos nos programas. Uma das
recomendações desta ação foi a criação do Grupo de seguimento de
distribuição de medicamentos e material médico gratuito .
O grupo de seguimento foi criado para atuar como mecanismo de alerta capaz de
comunicar regularmente falhas ou problemas na distribuição de medicamentos e
material médico gratuito, promovendo um maior conhecimento entre os cidadãos
sobre a situação desse setor na área da saúde.
Uma das principais tarefas do grupo é realizar seguimentos mensais dos programas de
Paludismo, Tuberculose, HIV e Nutrição nos Centros de Saúde, bem como de quaisquer
outras anomalias que coloquem em causa a qualidade dos serviços prestados aos
utentes. Como resultado desse seguimento, é elaborado mensalmente um boletim
informativo com o objetivo de informar a sociedade sobre a situação dos programas
gratuitos, bem como as instituições responsáveis pelos programas gratuitos, em
56
particular, para que tenham acesso rápido à informação e possam, assim, responder
na mesma medida, às necessidades da população.
Em suma, tudo o que foi exposto aqui ressalta os desafios existentes, no que respeita à
melhoria do sistema de saúde público, à necessidade de fazer uma aposta crescente
em processos de gestão transparente, sem os quais não podemos assegurar serviços
de boa qualidade a todos os cidadãos.
57
Painel VII: “Transparência no setor da Educação:
ONGD FEC”
Sofia Alves
58
O Projeto Boa governação e Transparência na Educação. Experiência Piloto entre
Sociedade Civil e Estado na Região de Bafatá insere-se no Programa Temático de
Organizações da Sociedade Civil e Autoridades Locais, como Instrumento Europeu para
a Democracia e os Direitos Humanos (IEDDH) da União Europeia, visando “melhorar as
contribuições das Organizações da Sociedade Civil (OSC) e das Autoridades Locais (AL)
para a boa governação, incluindo a promoção dos Direitos Humanos e da democracia,
e o desenvolvimento da Guiné-Bissau no âmbito de uma abordagem baseada nos
direitos” (objetivo geral do concurso)
A FEC (ONGD portuguesa com implementação na Guiné-Bissau desde 2001)
apresentou o projeto a concurso em parceria com a Cáritas Guiné-Bissau,
concretamente a Cáritas e a Comissão Diocesana de Educação de Bafatá, em estreita
articulação com a Direção Regional de Educação de Bafatá (DRE) e envolvendo a
Inspeção Geral de Educação (IGE) e o Gabinete de Estudos, Planeamento e Avaliação
do Sistema Educativo (GEPASE).
O Projeto Boa governação e Transparência na Educação. Experiência Piloto entre
Sociedade Civil e Estado na Região de Bafatá insere-se no Lote 1 – Boa governação –
iniciativas piloto de transparência destinado a OSC com vista a “apoiar iniciativas
piloto em matéria de elaboração, monitoria e avaliação de legislação e políticas
públicas nos setores da educação e/ou justiça e/ou finanças” (objetivo específico).
O Projeto centra-se desde a sua conceção ao desenho de implementação em dois
elementos: governação e transparência no setor da educação, assumindo como
problema central a “falta de transparência e boa governação na implementação das
políticas educativas” na Guiné-Bissau. No quadro atual do país, nega-se o direito
equitativo de todas as crianças acederem à educação, violando um direito humano
basilar contemplado na Constituição da República da Guiné-Bissau (artigo 49º)5 e
desrespeitando compromissos internacionais assumidos na Declaração Universal dos
5 Assembleia Nacional Popular 1996. Artigo 49º, nº1: todo o cidadão tem o direi to e o dever de educação”; ar tigo
49ª, nº2: o Estado deverá promover gradualmente a “gratuidade igual possibilidade de acesso de todos os cidadãos aos diversos graus de ensino”.
59
Direitos do Homem (artigo 26º)6 e na Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo
28º).7 O desrespeito deste direito tornou-se evidente em consequência de um dado,
decorrente da Política de uma Educação Para Todos, assumida em Jomtien (1990) e
Dacar (2000): o aumento de efetivos no sistema educativo guineense (76% no pré-
escolar; 33% ensino básico) (RESEN 2015).8
A incapacidade de acolher a totalidade de crianças com idades entre os 3-5 anos (10%)
e os 6-17 anos (29%) (Nações Unidas in RESEN 2015), idades centrais para os primeiros
anos de acesso à educação, reforça as disfuncionalidades do sistema educativo
guineense. A incapacidade é tanto maior quanto a pressão demográfica da população
em idade escolar, com uma taxa média anual de 2,3%. Cerca de um terço das crianças
não acede a uma escola e 53% a uma com ciclos completos de ensino (PSE 2015). 9 A
eficácia interna da educação é baixa: as reprovações situam-se em 21% no 1º ciclo do
ensino básico; 18% no 2º; 17% no 3º (2013), muito superiores à média da África
Subsaariana (12%). O abandono e retenção escolares patentes nos diversos relatórios
(RESEN)10 centravam-se, sobretudo até 2013, em questões comunitárias (casamento e
gravidez precoces; trabalho infantil).
No Relatório do Estado do Sistema Educativo Para a Reconstrução da Escola da Guiné-
Bissau sobre Novas Bases, os dados conduzem a outra leitura: “é a escola que
abandona os alunos” (RESEN 2015: 13). No quadro de uma gestão sustentável,
pretende-se inverter a aplicação de 46% dos recursos financeiros que o Ministério da
Educação da Guiné-Bissau (doravante ME) aloca para novos ingressos, abandonos e
reprovações, otimizando a alocação de verbas para suprir recursos em falta e para
uma abordagem educativa de qualidade.
O Projeto Boa governação e Transparência na Educação. Experiência Piloto entre
Sociedade Civil e Estado na Região de Bafatá parte do capital de experiência da FEC,
acumulado desde 2001, junto de escolas, comunidades, Direções Regionais de
Educação e parceiros de projetos e atividades educativas. De forma incisiva, a FEC
6 Aprovada pela Assembleia Geral, através da resolução 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948. 7 Adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989. 8 MEN 2015, Relatório do Estado do Sistema Educativo. Para a reconstrução da escola da Guiné-Bissau sobre novas bases (RESEN), Bissau, julho 2015. 9 MEN 2015, Plano Setorial de Educação, Bissau, Novembro 2015.
10 RESEN 2009, 2013.
60
reforçou, em 2014-2015, a sua ação junto das direções de escolas comunitárias,
públicas, privadas, no quadro da Estratégia e Programa da FEC em Gestão e
Administração Escolar (GAE). A análise de dados estatísticos em 89 escolas do país
permitiu verificar o incumprimento de diretivas do Ministério de Educação,
evidenciando um défice de governação e falta de transparência no sistema. A
retenção rondava os 12,9% no 1º ano, os 4,2% no 3º, contra as orientações legais que
proíbe a retenção nestes níveis; 36,4% das escolas não cumpriam a carga horária
exigida pelo MEN na disciplina de português, e 24,4% na de matemática no 1º e 2º
ciclo do básico; 34,8% das escolas não possuíam registo de assiduidade de
professores.
No diagnóstico da FEC a 36 Inspetores de Gabú, Cacheu, Quínara e Oio (10/2015,
05/2016), evidenciaram-se fragilidades em conhecimentos da ação inspetiva; da
aplicação da lei e orientações do ME; dos resultados do sistema educativo e de
fenómenos negativos como os do abandono e retenção, bem como falta de prática de
leitura dos dados estatísticos por parte dos inspetores na sua região, e do próprio
RESEN. Os diretores apresentavam igualmente as mesmas lacunas, com
desconhecimento dos procedimentos dos níveis de ensino das escolas que dirigem.
O Projeto concentra-se na formação especializada de recursos humanos de inspeção e
direção escolar, partindo dos instrumentos e mecanismos existentes no país. Além da
área técnica (dados), estão previstas dimensões de ética. Suprir-se-ão as dificuldades
de transparência e comunicação, através de reuniões de trabalho entre GEPASE, IGE e
DRE Bafatá, diretores e comunidade.
A gestão da informação será analisada com a recolha, sistematização, leitura de
tendências cujo produto será o Relatório do Ciclo de Melhoria de Boa Governação. Os
níveis de participação foram definidos desde a fase de diagnóstico até a
implementação e monitorização das atividades. O referencial de formação é criado
com o Inspetor Geral de Educação, de forma a atender às necessidades do país. A DRE
e Cáritas Guiné-Bissau/ CDE foram envolvidas quanto às escolas alvo. No quadro da
transparência, as atividades foram desenhadas tendo por base o pressuposto que o
projeto só pode ter sucesso se contar com o envolvimento ativo dos inspetores que
61
atuam na DRE, em articulação com diretores de escola, comunidade e com a
devolução junto de entidades locais (escolas e grupos associativos) e de decisores
políticos através do Grupo Local de Educação, espaço estratégico de concertação
liderado pelo MEN.
O reforço da governação está refletido em todas as atividades e resultados imputados
aos vários grupos de interesse a nível central (IGE, GEPASE) e regional (DRE Bafatá,
direções e órgãos comunitários de escola, Cáritas Guiné-Bissau via Comissão Diocesana
de Educação de Bafatá – CDE). Assume-se que a boa governação, assente nos
princípios da legalidade, equidade e prestação de contas, é da responsabilidade de
todos os atores no país, com vista a “melhorar as intervenções dos poderes públicos a
favor dos cidadãos.” A implicação das OSC e das escolas (via direções escolares,
comités de gestão, associações de pais e alunos, agrupamento de professores) é
central no projeto como estrutura do sistema educativo que deve implementar as
políticas educativas do MEN e, simultaneamente, influenciar para a criação e
promoção de “políticas de desenvolvimento inclusivas e eficazes.”
Para além dos dados recolhidos do terreno, a FEC analisou documentos políticos da
estratégia do Governo da Guiné-Bissau e estudos e documentos oficiais relevantes
para o sistema educativo e para definição do cenário de base do Projeto. O Segundo
Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza da Guiné-Bissau –
DENARP II (2011/2015)11 refere como opções estratégicas a melhoria do acesso
equitativo à educação e a eficácia da gestão escolar do sistema educativo.
No “Memorando sobre a situação da produção de informação estatística para a
gestão do setor educativo”(2016),12 o GEPASE identificava problemas na coleta de
dados decorrentes: i) não envio por parte das escolas (referência a “sonegação
deliberada, com argumento “o Estado não faz nada para nós”); ii) envio não atempado;
iii) envio parcelar de dados; iv) erros de preenchimento (ausência de instrumentos
administrativos – fichas, livros de sumário, etc; arquivo deficiente); v) envio tardio de
11 Minis tério da Economia, do Plano e da Integração Regional (2011), Segundo Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza da Guiné-Bissau – DENARP II (2011/2015), Bissau, novembro 2011. 12 MEESIC, GEPASE (2016), Memorando sobre a situação da produção de informação estatística para a gestão do
setor educativo, Bissau, agosto 2016.
62
dados pelos estatísticos e chefes regionais (falta de formação em TIC deficiente e
fontes de energia);vi) fraca pilotagem do sistema educativo. As soluções centravam-se
muito na figura do estatístico, inspetores e dos diretores na base para as coletas
fidedignas.
No estudo Sistemas de Inspeção da Educação (SNV 2010),13 identificaram-se diversas
limitações ao desempenho da Inspeção Geral de Educação (IGE), como sejam: 47%
dificuldades de organização interna; 21% falta de um sistema de recolha e gestão de
informação; 18% falta de competências técnicas dos RH; 14% falta de RH e
financeiros. O Diagnóstico Nacional do Sistema Educativo (RESEN 2015) evidenciava
que o fenómeno do abandono escolar afeta três grupos: as raparigas; os residentes em
meio rural e os pobres. Para 75% raparigas que acedem à escola, existem 80% rapazes;
apenas 48% de raparigas concluem o 2º ciclo do ensino básico obrigatório contra 72%
de rapazes. A situação agrava-se no acesso para 66% de crianças em meio rural contra
91% em espaço urbano; 79% de crianças das cidades concluem os seis primeiros anos
do ensino contra 40% que vivem em meio rural. 83% das crianças de famílias mais ricas
e 66% de crianças de agregados pobres conseguem aceder a escola, permitindo a 66%
concluir o ensino, contra 49%. O abandono e retenção afetam alunos dentro do
sistema e os que pretendem aceder a escola e não o podem fazer por sobrelotação,
em parte decorrente da permanência de alunos em retenções sucessivas.
No Plano Setorial de Educação (2015), face aos diversos constrangimentos, o MEN
aponta para uma estratégia de reforço de capacidades que tenham “por alvo um
pequeno grupo de funções escolhidas segundo o critério de interligação ou de
dependência entre funções”. Os inspetores e diretores de escola surgem em todas as
estratégias em matéria de qualidade do pré-escolar, ensino básico (1º, 2º, 3º ciclos)
com políticas de redução das reprovações, de regras e normas de qualidade, de
medidas pedagógicas. No Memorando (2016), inspetores e diretores surgem também
como garante da qualidade do sistema via coleta de dados. O Projeto reforçando
inspetores e diretores pretende garantir a aferição da legalidade, (…) da eficiência de
procedimentos, bem como de aferição da qualidade da prestação do sistema
13
SNV 2011, Sistemas de Inspeção da Educação. Os modelos teóricos e a sua aplicação no Senegal, Mali, Benim e Guiné-Conacri por comparação com a Guiné-Bissau, Bissau, julho 2011.
63
educativo;” b) salvaguardar os interesses legítimos dos utentes, agentes e
beneficiários do sistema educativo no âmbito do ensino e formação” (DL nº 10/2006:
IGE, artigo 27º). Na estratégia do ME (PSE 2015), o serviço dos inspetores está
presente em todos os ciclos de ensino em complementaridade ao dos diretores como
forma de assegurar “o reforço do enquadramento pedagóg ico e administrativo dos
estabelecimentos.”
O incumprimento de diretivas ministeriais nas escolas, bem como fragilidades no
exercício da inspeção criam situações oportunas para a falta de transparência no
sistema educativo e potenciais questões de corrupção. Neste contexto, FEC, Cáritas
Guiné-Bissau (Cáritas Bafatá), Comissão Diocesana de Educação de Bafatá e Direção
regional de Educação de Bafatá, em colaboração com Inspeção Geral de Educação
assumiram a importância deste projeto, participando ativamente no seu desenho. O
Projeto Boa governação e Transparência na Educação. Experiência Piloto entre
Sociedade Civil e Estado na Região de Bafatá foi desenhado com o objetivo de
“melhorar a transparência e credibilidade das políticas educativas e sua
implementação na Guiné-Bissau” (OG). Durante 39 meses, pretende-se provocar
mudanças estruturais de modo a ter uma “Inspeção Geral de Educação com
capacidade institucional e práticas reforçadas em boa governação, supervisão e
transparência dos processos educativos” (OE1) e junto de “11 Escolas na região
através da implementação modelo piloto de intervenção educativa centrado na boa
governação” (OE2).
A questão que se coloca é como alcançar os objetivos e resultados, num quadro
institucional e político frágil em diversas dimensões, seja no nível central, regional ou
local?
Face a este contexto e constrangimentos tão acentuados, o Projeto pretende criar
evidências da correlação boa governação de escolas e aplicação de diretivas
ministeriais (através da análise dos dados de abandono, retenção e insucesso escolar),
tendo por base o desenvolvimento de uma “iniciativa piloto que permita a elaboração,
monitoria e avaliação de legislação e políticas públicas na educação”, centrando as
atividades e o alcance dos resultados em dois grandes temas priorizados neste
64
convite: i) o acesso público à informação legislativa (A.2; A3; A4); ii) criação de grupos
de trabalho mistos, envolvendo grupos da sociedade civil (CDE, direções e órgãos
comunitários de escola, stakeholders no GLE) e funcionários públicos responsáveis por
serviços de inspeção e recolha de dados (GEPASE, DRE Bafatá e IGE) (A2; A4, A5). A
restituição das experiências e resultados concretos da iniciativa piloto nas 11 escolas
foi concebida em várias etapas e níveis de decisão e apropriação (central – GEPASE,
IGE; regional – DRE, CDE Bafatá; local – escolas), para que possa haver
empoderamento dos resultados por parte dos diversos grupos envolvidos e momentos
de interação entre OSC e AL. O Projeto prevê que o envolvimento dos atores no
desenho, implementação, monitorização e divulgação sobre legislação e sua
implementação e disfuncionalidades do sistema decorrentes da recolha e análise de
dados permita identificar e “combater práticas de corrupção” conscientes ou por
desconhecimento do enquadramento legal, que afetam o acesso e frequência no
sistema educativo, sobretudo crianças das zonas rurais e raparigas.
O projeto centra-se assim na criação de um modelo piloto de evidências na monitoria
e avaliação da Gestão e Administração Escolar de uma amostragem de 11 escolas dos
setores de Bafatá e Bambadinca, com base na partilha de legislação e sua aplicação
nas escolas. O enfoque será dado ao reforço da capacidade institucional da IGE e do
Inspetores de Bafatá na sua ação de controlo e supervisão das diretivas do MEN junto
20 (sub) diretores e órgãos comunitários (cerca de 330 pessoas) de 11 escolas na
implementação das mesmas, através de: i) análise dos resultados escolares; ii)
identificação de formas de sanear dificuldades detetadas ; iii) criação de relações entre
escola-comunidade; iv) apoio aos diretores na gestão no cumprimento das orientações
do MEN. As assessorias de inspeção e avaliação devem-se ao elevado grau de
especialização envolvido.
Em resumo, o Projeto Boa governação e Transparência na Educação. Experiência
Piloto entre Sociedade Civil e Estado na Região de Bafatá constitui-se como uma
experiência piloto para um caminho de desenvolvimento, centrando-se no setor da
educação. Com efeito, ao promover a boa governação através de um conjunto de
atividades e metodologias que impliquem a legalidade, equidade e prestação de
contas e colocando atores com níveis diferenciados de decisão em comunicação,
65
considera-se que se estão a dar passos para promover um direito humano central: o
do acesso equitativo a educação.
66
Painel VIII: “O papel dos media no combate à
corrupção”
João Figueira
67
Práticas Jornalísticas em contextos de Corrupção
O antigo diretor do jornal inglês, The Guardian, Alan Rusbridger, escrevia em maio de
2015 numa das páginas daquele diário, que “os jornais estão a perder a capacidade de
cobrir assuntos como a corrupção corporativa e a evasão fiscal”. (The Guardian,
21/05/2015). Vinte anos antes, Carl Bernstein, um dos repórteres do Washington Post
a quem devemos o famoso caso Watergate, dizia numa universidade norte-americana
que as duas últimas décadas mostravam uma queda preocupante ao nível das opções
e das prioridades jornalísticas, as quais privilegiam o entretenimento, desviando a
nossa atenção do essencial e do que verdadeiramente interessa. E dava como exemplo
a primeira página do New York Newsday — em sua opinião um dos melhores
quotidianos do país — que no dia em Nelson Mandela regressou ao Soweto e os
aliados da II Guerra Mundial concordaram na reunificação da Alemanha, o jornal nova-
iorquino dedicava a capa ao divórcio do empresário Donald Trump (Mesquita, 2003).
Sem pretender por em causa as palavras de Bernstein — com as quais, no essencial,
estamos de acordo — a verdade é que por essa altura, a Itália protagonizava um dos
processos mais volumosos e mediáticos do pós-guerra: Operação Mãos Limpas.
Iniciado em fevereiro de 1992 e tendo durado quatro anos, o processo levou à
investigação de oito antigos Primeiros-Ministros, ao mesmo tempo que perto de cinco
mil empresários e políticos foram acusados. Praticamente liquidou os quatro principais
partidos e alguns dos arguidos, entre os quais Gabriele Caggliari, presidente da ENI — a
empresa petrolífera do Estado — suicidaram-se na cadeia. O caso Mãos Limpas é
generalizadamente associado à corrupção, embora ele diga, sobretudo, respeito a
crimes fiscais. Os dois tipos de criminalidade surgem, no entanto, frequentemente
associados ou relacionados. Eis um exemplo: um quilómetro de via férrea antes da
Operação Mãos Limpas custava 40 milhões de euros, preço que baixou quase para
metade, depois do referido processo.
As palavras de Carl Bernstein, hoje mais certeiras ainda, confinavam-se, em maio de
1994, quando as produziu, à realidade norte-americana. Realidade essa que em 1971,
no âmbito da divulgação pelo The New York Times, dos documentos governamentais
secretos conhecidos por “Papéis do Pentágono” (“Pentagon Papers”), levou o Supremo
68
Tribunal a recorrer à Primeira Emenda para defender o direito do jornal a publicar
informações que a Casa Branca queria manter escondidas do grande público. Um dos
argumentos usados nesse processo que opôs o The New York Times ao Governo, foi o
de que “a imprensa deve servir os governados e não os governantes” (Kovach e
Rosenstiel, 2004, p. 22).
Mais recentemente — e para citar apenas alguns dos casos mais mediatizados —
temos:
1) o processo Lava Jato, no Brasil, que envolve os antigos presidentes Lula da Silva e
Dilma Roussef, a par de um número incontável de empresários e gestores;
2) o caso Bárcenas, em Espanha, sobre o financiamento do principal partido político —
PP — e que foi, primeiramente, investigado e denunciado pelo jornal El País;
3) em Portugal, o processo Marquês que há muito marca a atualidade noticiosa e que
envolve antigos governantes, como o ex-Primeiro Ministro, José Sócrates, e o todo
poderoso ex-banqueiro Ricardo Salgado;
4) Na Coreia do Sul, a antiga presidente foi detida, em abril deste ano, sob a acusação
de favorecimento a grandes empresas que lhe pagavam avultados subornos;
5) Por último, mas não menos importante, faz hoje precisamente um mês, que o novo
presidente de Angola, João Lourenço, na sua tomada de posse, prometeu lutar contra
a corrupção a qual, sublinhou, “ameaça os alicerces do País”, dada a sua forte
presença “nas instituições do estado”. Daí, ter anunciado que a luta contra a corrupção
será “uma das frentes mais importantes dos próximos anos”.
Face ao que foi dito até agora, resulta a ideia consagrada na maioria dos manuais, de
que nas sociedades democráticas os media são um meio de controlo e de
monitorização dos poderes (Stromberg, 2016; Snyder e Stromberg, 2010), ao passo
que a falta de uma informação livre e independente conduz ao empobrecime nto da
vida democrática (Chong et al, 2015, Ferguson et al, 2013). Tal cenário é normalmente
marcado pela presença de um poder centralista, forte e pouco adepto do jornalismo
que gosta de ser vigilante, questionador e vocacionado para escrutinar o exercício das
diferentes instituições do estado. Quando tais bloqueios existem estamos, em regra,
69
perante governos musculados que fazem da censura e do controle das instituições do
estado uma prática regular.
Porém, é bom estarmos atentos, porque o fenómeno será mais complexo do que
parece à primeira vista. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, “a
liberdade de imprensa nunca esteve tão ameaçada”, como atualmente. De acordo com
o seu índice de referência, os parâmetros da liberdade de imprensa deterioraram-se
14% nos últimos cinco anos. Só em 2017, cerca de 62% dos países observados por esta
Organização registaram um agravamento ao nível da liberdade de imprensa. A
degradação da democracia, com o crescente protagonismo e poder dos líderes
populistas e autoritários é uma das razões — embora não a única como iremos ver —
que está na base do enfraquecimento da liberdade de informação, como consequência
da erosão e maior fragilidade da democracia.
No que respeita à Guiné-Bissau o país surge atualmente em 77º lugar do ranking da
classificação mundial de liberdade de imprensa, tendo melhorado dois lugares,
relativamente ao ano passado. Já quanto ao índice de perceção de corrupção, a
Organização Transparência Internacional coloca a Guiné-Bissau no lugar 168 entre os
176 países pesquisados, em 2016. A Mo Ibrahim Foundation, por sua vez, que analisa,
como é sabido, as questões da governança e da liderança, em África, classifica
igualmente a Guiné-Bissau com uma nota muito baixa nos seus índices de avaliação. O
mesmo já fizera o Banco Mundial, em 2015, quando atribuiu notas muito fracas a
todas as seis dimensões-chave da governança avaliadas, entre as quais se contam a
qualidade regulatória, a estabilidade política, ausência de violência, controle da
corrupção e eficácia governativa.
Longe, no entanto, de ser um fenómeno exclusivo de um país ou região, a corrupção,
como procuro aqui deixar claro, é hoje uma infeliz realidade global. O relatório
apresentado em 2014 pela então comissária europeia dos Assuntos Internos, Cecilia
Malmstroem, alertava para o facto de 76% dos europeus considerar a corrupção uma
prática generalizada e de esta custar 120 mil milhões de euros à economia dos países
da zona Euro. Os contratos públicos e as aquisições de bens e serviços por organis mos
oficiais estão na primeira linha dos problemas com a corrupção, seguidos pela
70
indefinição dos conflitos de interesse. A qualidade da investigação, que varia muito de
país para país, é outra das deficiências apontadas naquele estudo.
Regressando a África, a Organização Transparência Internacional informa, no seu site
oficial, que 80% do povo africano vive com menos de dois dólares por dia e que a
corrupção é o principal fator da perpetuação dessa pobreza. A qual, por sua vez, está
intimamente ligada ao desconhecimento de cada um pelos seus direitos e ao acesso à
educação, ou seja, é todo um círculo vicioso que se enreda e tolhe a vida das pessoas,
a favor da perpetuação de uma situação que beneficia uns quantos.
Nesta linha de pensamento, a publicação Quartz Africa, trazia há duas semanas um
extenso artigo assinado por Abdi Latif Dahir, no qual procura mostrar como as elites
políticas africanas têm construído “as mesmas estruturas de pilhagem de riqueza dos
colonialistas”. Sempre com o fenómeno da corrupção em pano de fundo.
Todavia, em vez de cruzarem os braços em sinal de impotência, países como o Gana,
Uganda, Camarões, Moçambique, Quénia e Serra Leoa, entre muitos outros, vêm
desenvolvendo iniciativas, apoiadas muitas delas por organizações internacionais, com
vista a combater os efeitos e a presença da corrupção. Muitas dessas iniciativas estão
focadas no incentivo à participação dos cidadãos, seja através da criação de espaços
próprios para onde devem enviar informações sobre casos de corrupção, seja através
da publicação de estudos e dossiês sobre o tema, seja, ainda, através de debates,
ações de esclarecimento e de sensibilização e alerta para o fenómeno da corrupção.
Porém, sempre numa lógica de alargamento às comunidades, o que significa que a
consciencialização e o sequente combate aos atos de corrupção vai muito para além
da esfera dos media.
Faz todo o sentido que assim seja, pois atualmente qualquer pessoa pode comunicar à
distância e para grandes grupos, sem depender da lógica de funcionamento dos media.
Vivemos, na verdade, um tempo novo no plano da comunicação e há que ter isso em
devida conta, particularmente quando nos referimos aos processos de denúncia e
combate à corrupção.
71
De fato, com a chegada do novo paradigma comunicacional, em que todos
comunicamos com todos e a que Castells (2015) chama de autocomunicação de
massas, temos a sensação de que, finalmente, é possível, pela tecnologia, derrubar
governos e dar aos cidadãos um poder que nunca tiveram. O mesmo se dirá
relativamente aos processos de combate à corrupção. Para já, no entanto, os
exemplos mais evidentes situam-se no campo da política, como são os casos, entre
muitos outros, da Primavera Árabe e os movimentos Occupy Wall Street e Los
Indignados, em Espanha, mas a que podemos juntar os finlandeses que debateram e
aprovaram uma nova Constituição pela internet. Estes exemplos, uns mais bem-
sucedidos que outros, mostram como a vida em sociedade e nas sociedades está a
mudar radicalmente.
No seu recente livro, “Redes de indignação e esperança”, o sociólogo catalão, Manuel
Castells sustenta a ideia de que há toda uma nova forma não regulada de contestar os
poderes e cujo trajeto é irreversível. Diz ele: “a 15 de outubro de 2011 uma rede global
de movimentos de ocupação, com o slogan, Unidos por uma mudança global,
mobilizou milhões de pessoas em 951 cidades de 82 países, reivindicando justiça social
e mais democracia. Em todos os locais os movimentos ignoraram os partidos políticos,
desconfiaram dos meios de comunicação, não reconheceram nenhuma liderança e
recusaram qualquer organização formal, aceitando apenas depender da internet e das
assembleias locais para o debate coletivo e a tomada de decisões” (2015, p. 25).
Iniciativas como esta refletem a desconfiança que hoje muitos cidadãos têm das
organizações políticas e mediáticas. É uma crise de credibilidade que, no casos dos
media, os deveria fazer pensar acerca do seu papel e função nas sociedades
contemporâneas, dominadas pelas novas tecnologias que tudo vêm alterando.
O jornalismo, como nós o conhecemos e que durante mais de um século teve o
monopólio da produção e distribuição de informação a larga escala, acabou. Longe vão
os tempos do jornalismo consagrado na famosa expressão watchdog — cão de guarda
— e dos anos heroicos das décadas de 60 e 70 do século passado, quando a imprensa,
nos Estados Unidos, enfrentou a Casa Branca com os casos dos “Pentagon Papers” e
“Watergate” ; e, em Inglaterra, o Sunday Times não recuava perante a poderosa
72
indústria farmacêutica e denunciava os efeitos secundários da Talidomida que
provocou malformações em milhares de crianças.
A transformação radical que, por via da internet e agora das redes sociais, marca nos
nossos dias a paisagem mediática, está a mudar o jornalismo e a sua forma de ser
feito. E também o modo como os cidadãos comunicam e se relacionam.
Paralelamente, constatamos que o modelo de negócio dos media está em crise. Daqui
resulta uma maior dependência económica dessas empresas, o que se reflete em
redações mais fragilizadas, jornalistas mais mal pagos e a necessidade de produzirem
informação em série. Este é, de forma muito sucinta, o atual diagnóstico que
generalizadamente é feito e todos os números confirmam. E que pode ainda ser
agravado, nos casos em que o poder político abusa da sua força e influência para
limitar a ação dos media e condicionar a liberdade de informação.
Ao enfraquecimento da democracia anteriormente referido junta-se, assim, uma
informação igualmente fragilizada pelas condições em que a maioria das empresas
funciona e os seus profissionais trabalham. Christophe Deloire, secretário-geral dos
Repórteres Sem Fronteiras alerta, a este respeito, para “o abalo das democracias”,
sublinhando que “sem uma liberdade de imprensa sólida, as outras liberdades não
poderão ser garantidas”14.
É aqui que se encontram e vão dar os tópicos fundamentais deste colóquio: em que
condições e de que forma os media podem e devem lidar com a corrupção, entendida
como o abuso de um lugar ou função pública para retirar ou obter benefícios privados
ou pessoais? (Klitgaard, 1994).
Pessoalmente, não posso desviar o olhar da realidade de onde venho e que melhor
conheço — a portuguesa — e cujo cenário parece querer desmentir o que antes
afirmei. Na verdade, é numa altura de evidente desinvestimento nas redações, em
consequência da referida crise do sector, que Portugal assiste, nos últimos 10 -12 anos,
a uma cobertura jornalística da corrupção como nunca antes fora feita. Tal incidência
ocorre num contexto em que a generalidade dos estudos (Maia e Borges, 2015; Sousa
e Triães, 2008, 2007; Maia, 2008) reforçados pela organização Transparência
14 Repórteres Sem Frontei ras: https ://rsf.org/pt/ranking-mundial-da-liberdade-de-imprensa-2017-grande-vi rada
73
Internacional, apontam para a existência, em Portugal, de uma perceção marcada por
um sentimento de impunidade e desconfiança face à justiça e aos autores de atos de
corrupção.
O antigo presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d´Oliveira Martins, afirmava, por
seu lado, em entrevista ao principal semanário português, que “o crime de corrupção é
dos mais difíceis de provar em todo o mundo”, o que, em seu entender, explicará, em
parte, o facto de “menos de três por cento dos processos de corrupção, em 2014,
terem resultado em condenação”, em Portugal (Figueira, 2015, p. 40).
Retiremos, então, as primeiras conclusões:
1) A corrupção não é um problema novo e é um fenómeno global;
2) O jornalismo livre e independente é o melhor instrumento de monitorização e
denúncia de casos de corrupção;
3) A crise dos media está intimamente ligada à fragilidade das democracias;
4) A internet, as redes sociais e o fim do monopólio dos media tradicionais
conduziu a um novo ecossistema mediático;
5) O crime de corrupção tem uma dimensão global, é difícil de provar e só uma
percentagem mínima dos casos são julgados e condenados.
Neste contexto, o que devemos esperar dos media face à presença de atos de
corrupção? Consideramos, em primeiro lugar, que os media são organizações e que é
nesse sentido que devem ser entendidos. Ou seja, os media são e serão sempre aquilo
que os seus jornalistas puderem ser. Isto é, o que os seus contextos laborais,
organizacionais e ordem jurídica permitirem que eles sejam e até onde possam ir, mas
também aquilo que cada um, individualmente, é como indivíduo e como olha para a
sua função de jornalista. O que significa que devemos atribuir a máxima importância à
preparação profissional e às qualidades éticas e deontológicas dos jornalistas.
O jornalismo não é, aliás, uma profissão como as outras. O jornalista tem um contrato
ético com o seu público, com quem é suposto ser inteiramente leal e verdadeiro. O
que distingue o jornalismo das restantes profissões da comunicação é, justamente,
essa ânsia e dever pela busca da verdade e defesa do interesse público. Retiremos
74
essas duas caraterísticas ao jornalismo e diremos que ele perdeu a sua razão de ser e
por isso não nos fará falta. Logo, o que lhe dá toda a importância e o distingue de
outras profissões da comunicação é a sua credibilidade. Sem ela perde a sua alma e
toda a sua identidade.
Por isso é que os cidadãos esperam e exigem que o jornalismo os informe com verdade
e mantenha sobre os diversos poderes a vigilância e o escrutínio que lhe competem e
para os quais é suposto possuir as devidas competências e legitimidade. Às primeiras
conclusões antes referidas devemos acrescentar, então, que a natureza e organização
dos media influencia e determina a qualidade do trabalho dos seus jornalistas; e que
estes devem possuir uma preparação adequada às exigências das circunstâncias, num
contexto em que se entenda o exercício da informação jornalística como uma
atividade livre de quaisquer tutelas, mas sujeita a regras éticas e deontológicas que
tanto defendem os jornalistas contra qualquer tipo de ingerência, como os
responsabilizam perante os seus pares e os seus públicos.
Vem do século XVIII a famosa frase do então futuro presidente dos Estados Unidos,
Thomas Jeferson: “se eu tivesse de decidir entre ter um governo sem jornais e ter
jornais sem um governo, eu não hesitaria nem por um momento antes de escolher a
segunda opção”. Pela mesma altura, o bispo de Vico, (Itália) Michele Natale, escrevia,
no Catecismo republicano, que “todas as operações dos governantes devem ser
conhecidas pelo Povo Soberano, exceto algumas medidas de segurança pública que ele
deve conhecer apenas quando cessar o perigo”.
Desde há pelo menos 200 anos, que o papel do jornalismo enquanto escrutinador do
poder político e a noção de transparência enquanto exercício desse mesmo poder
fazem parte de um processo histórico que visa um justo equilíbrio e sentido de justiça
entre os diversos atores da sociedade. Resumidamente, o que ambas as frases nos
dizem é que a dimensão secreta da coisa pública é a exceção e não a regra. No limite,
para empregar uma expressão do sociólogo italiano, Norberto Bobbio (1986), trata-se
de desejar e defender o exercício do ”governo do poder público em público”. É, no
fundo, a ideia de um poder aberto ao público como objetivo de transparência, que
emerge como oposição à opacidade dos governos fechados e autocráticos.
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Nos regimes totalitários ou com tiques autoritários que ainda marcam a nossa
contemporaneidade, a transparência, assim como a liberdade de informação,
constituem bens muito escassos. Nestes casos, o jornalismo, se não está ao serviço
desse poder ditatorial, deve representar uma força de resistência, consciente das
consequências e riscos que isso implica.
No livro, “O futuro da democracia”, Norberto Bobbio (1986) fala -nos da democracia
como um ideal do poder visível. Mas alerta-nos, ao mesmo tempo, para a
sobrevivência dos poderes invisíveis, como são as organizações s ecretas ou
clandestinas, normalmente ligadas ao crime e à corrupção, a par do que o mesmo
autor chama de “promessas não cumpridas da democracia”, como são as situações
continuadas de oligarquia e a falta de uma educação para a cidadania.
Quer isto dizer, portanto, que sempre que os jornalistas não possam exercer
livremente o seu trabalho, então o direito a uma informação livre e verdadeira atinge
não apenas os que não a conseguem praticar, como todos os que a não recebem. Em
tais casos, há dois direitos — o de informar e o de ser informado — que estão em
causa, o mesmo sucedendo, como consequência natural dessas limitações, com o
dever de informar, que também fica impossibilitado de ser cumprido.
Entendemos, por isso, que a existência de uma informação livre e independente, além
de constituir o combate diário de qualquer jornalista orgulhoso da sua profissão, é
condição necessária para que a investigação e cobertura de matéria tão complexa
quanto melindrosa, como a corrupção, possa ser noticiada.
Sabendo-se que o jornalismo não existe como um discurso sobre si mesmo nem para
se satisfazer a si próprio, mas para servir os cidadãos e contribuir, como temos vindo a
defender, para a maior transparência do ambiente social e político em que se insere,
há que concluir que o quadro geral em que as empresas de media vivem, a par do
entendimento que fazem acerca das apostas e riscos que estão dispostas a correr, são
determinantes para a sua ação. Sem perder de vista, claro, o nível de formação e
preparação dos seus profissionais. Porque se há área complexa, difícil, polémica e
plena de riscos e ameaças é a cobertura jornalística da corrupção. Nenhuma outra
temática ou assunto se lhe compara ou é tão exigente como ela. O cenário pode
76
assumir uma maior dificuldade em países com historial de democracia baixo ou
marcados por um ambiente de instabilidade política. Mais do que nos países
politicamente estáveis e com forte tradição democrática, pede-se a esses jornalistas
uma coragem e força sem paralelo. Também por isso é mais difícil e arriscado exercer
o jornalismo nesses países.
Porém, eles e muitos dos seus concidadãos têm no jornalismo corajoso a principal
esperança na mudança e no combate à corrupção. Será, em muitos casos, um combate
desigual, solitário, duro e, por vezes, até incompreendido. Mas necessário. Por isso é
vital tornar esse trabalho jornalístico mais visível, tarefa que hoje está mais facilitada
face à possibilidade de recurso à internet. Neste sentido, aquele que é um combate
situado no interior de um determinado país, pode ganhar uma dimensão e visibilidade
maiores, o que é sempre vantajoso para o jornalismo.
Defendemos, no entanto, que a investigação sobre casos de corrupção, especialmente
em países de baixo índice democrático e mais instáveis politicamente, não seja feita
nem confiada a um só jornalista. Se em condições normais é usual e vantajoso que tal
trabalho seja feito em equipa, sempre com o apoio estratégico da respetiva direção e
corpo jurídico, por maioria de razões se justifica que essa metodologia seja praticada
em contextos potencialmente mais perigosos, onde os respetivos ordenamentos
jurídicos e as autoridades judiciais e vida em democracia são globalmente mais frágeis.
Há que ter a consciência, no entanto, que os crimes de corrupção são sempre difíceis
de provar e desmontar, como de resto não se cansam de o lembrar os investigadores
do processo Lava Jato, no Brasil, ou o Presidente do Conselho de Prevenção da
Corrupção, em Portugal. O cenário é, ainda, mais complicado nos casos em que “a
corrupção nos altos escalões do governo estimula a prática corrupta nos níveis mais
baixos da administração” (Filho, 2005, p. 201).
O entendimento que fazemos sobre o conceito de corrupção e que aqui temos estado
a desenvolver, é aquela atuação que visa a prevalência e benefício de interesses
privados em prejuízo do interesse público. Contudo, ela pode ser, também,
considerada como prática cultural. Não é esse o sentido principal das minhas palavras
e desta minha intervenção. Porém, é bom que tenhamos presente essa sua outra
77
dimensão que faz parte do nosso quotidiano — diria completamente enraizado nas
nossas práticas diárias — para percebermos como o fenómeno é muito mais complexo
e como o seu combate, afinal, nos implica a todos nós, cidadãos, e não apenas aos
jornalistas. Permitam, pois, que coloque a pergunta nestes termos: quantos de nós não
recorremos já a amigos, familiares ou aliados políticos tendo em vista a obtenção de
certas regalias ou privilégios? “A incorporação de tais mecanismos” e comportamentos
“no dia-a-dia das relações sociais faz com que estas sejam percebidas como algo
natural e legítimo, e algumas vezes necessário” (Filho, 2005, p. 198).
Os múltiplos contextos — sociais, culturais, políticos e económicos — determinam e
influenciam fortemente os nossos comportamentos individuais e coletivos. Neste
sentido, é imperioso que o jornalismo seja “o mestre severo”15 do seu leitor e da sua
audiência, trazendo para o espaço público mediatizado temas que promovam a
cidadania e a responsabilidade, mas numa perspetiva de exigência e nunca de
indulgência ou desculpabilização.
Sendo este, portanto, um problema global, há que o entender e tratar de acordo com
as especificidades de cada espaço e lugar. Compete aos jornalistas, enquanto
vanguarda atenta e desejavelmente preparada, do ponto de vista cultural e
profissional, perceber e lidar com todas as variantes da corrupção. Enfrentando-a com
coragem e determinação, sem nunca esquecer que essa é uma das suas missões.
Evidentemente que o problema assume contornos diversos consoante os contextos. O
mesmo se dirá relativamente aos media, uma vez que estes são igualmente diferentes
e diversos. Não podemos, por outro lado, esperar e desejar que sejam os media
sozinhos a fazer todo um trabalho que é também de muitas outras instituições e
pessoas. Há que dizer, no entanto, que o jornalismo independente tem o dever ético e
a responsabilidade social de estar atento a todos os tipos de desvio ao nível do
exercício do poder, em especial quando está em causa o interesse público.
15 Expressão utilizada por Antero Quental numa carta enviada ao seu amigo Henrique das Neves , proprietá rio do jornal Gazeta Açoreana, a propósi to do entendimento que ele fazia acerca da ati tude dos jornais para com os seus lei tores : “não lendo ninguém a senão o que lhe agrada, o público nunca favorecerá senão o que estiver à sua al tura ,
e por isso o jornal para durar, será sempre e necessariamente o espelho lisonjei ro do público e não o seu mestre severo” (Cartas de Antero de Quental, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1915).
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Nesta perspetiva, o trabalho dos jornalistas pode servir de alguma maneira como lição
e incentivo para que outras instâncias e pessoas aumentem os seus níveis de exigência
e de atenção cívica. Paralelamente, não precisam esgotar a sua ação na procura e
denúncia de casos menos claros ou transparentes. Os media podem e devem servir
também para acelerar processos de transparência no exercício do poder. E com isso já
estarão a contribuir para a introdução de medidas e práticas previdentes, com
benefícios evidentes ao nível do controle de atos de corrupção. Na verdade, quanto
menos opaco for o exercício do poder e mais transparentes forem todas as decisões
com implicações nas políticas públicas, menos campo de manobra haverá para o
exercício da corrupção.
Nesta perspetiva, aquilo que se pede aos jornalistas, seja na Guiné-Bissau, em Portugal
ou em outro qualquer lugar do mundo, é que honrem e dignifiquem a profissão — “a
mais bela profissão do mundo”, como dizia o escritor e prémio Nobel da Literatura,
Gabriel Garcia Márquez — e renovem todos os dias, através do seu trabalho, a
confiança que os leitores e o público em geral ainda têm neles. Se os jornalistas,
independentemente do local onde exerçam a atividade, forem dignos da profissão que
escolheram — e por isso têm de estar dispostos e disponíveis para enfrentar os riscos
e as pressões inerentes a ela — sabem que o seu trabalho, em especial nos países de
maior instabilidade política, é de capital importância.
Não é nem podia ser meu objetivo, vir aqui trazer ideias definitivas e soluções finais
para um problema tão complexo quanto escorregadio. O jornalismo, como é sabido,
não é uma ciência exata e o seu exercício tem de ser visto e analisado tendo em conta
os respetivos contextos e quadros de ação. Daí não existirem fórmulas mágicas e
infalíveis capazes de nos dizer qual o caminho a seguir. Inclusive no combate e
denúncia de atos de corrupção.
Acredito, no entanto, que uma maior consciência sobre a própria profissão, aliada a
uma preparação cultural sólida constituem as traves-mestras do bom exercício do
jornalismo. Sem elas, ele é pura propaganda ou divertimento, não contribuindo para
uma sociedade mais esclarecida e potencialmente mais justa e equilibrada.
Acrescentarei, portanto, às ideias que fui aqui expondo e partilhando convosco, que
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todo o jornalismo responsável começa com uma reflexão dos seus profissionais sobre
a razão de ser do trabalho que realizam e por que o fazem da maneira que o fazem.
Neste contexto, é crucial que os media e os jornalistas estreitem os laços com os seus
públicos. Quanto mais forte e esclarecida for a opinião pública, mais reforçada e
pujante será a informação que se produzir. É conveniente, por isso, que os media
promovam também debates, realizem inquéritos e reportagens sobre questões
fundamentais da vida coletiva dos seus países e regiões. E que tenham a iniciativa de
trazer para o espaço público mediatizado a discussão de assuntos que consideram
centrais, apesar de incómodos, como sejam, os temas da corrupção e da cidadania. Ou
seja, a ideia do debate público, que os media têm o dever de privilegiar não pode ficar-
se apenas por aquilo que eles conseguem noticiar ou tratar do ponto de vista
jornalístico. Se a corrupção, por exemplo, for um tema tabu, porque não assumir a sua
discussão de forma aberta e plural, tratando-o como um tema dos nossos dias, sem ter
prévia e imediatamente a preocupação de apontar culpados?
Tais ações devem servir para aproximar os jornalistas dos cidadãos e cimentar a
confiança entre ambos. Porque não, ainda, noticiar e dar ampla visibilidade ao
fenómeno da corrupção, sempre que em países próximos se assumam posições
importantes sobre ele ou surjam iniciativas que promovam a transparência entre o
estado e os cidadãos? Será uma forma indireta de ma nter presente e vivo um assunto
sensível, mas que quando relacionado com terceiros acaba por ser mais permissivo o
seu tratamento. Por outro lado, a internet e os telefones móveis são outras
ferramentas a que os media devem recorrer e cujo uso devem fomentar nos
relacionamentos entre eles e os cidadãos. Nesta linha de pensamento é
absolutamente estratégico que os media se abram à sociedade. E nessa medida devem
apostar e incentivar a criação de espaços de opinião e de debate, como forma de
fortalecimento de uma necessária opinião pública atenta e esclarecida. Uma das
funções atuais dos media é serem um território de encontro e discussão públicas,
numa perspetiva de valorização dos ideais democráticos. Quero acreditar que tal
missão deve ser feita numa ótica de aglutinação de vontades e de interesses, uma vez
entender que a melhor forma de combater um fenómeno tão complexo e global, como
a corrupção, é enfrentá-la o mais coletivamente possível. Só criando contextos —
80
sociais, judiciais e outros — que dificultem a sua prática, será possível erradicá-la
enquanto epidemia institucional. E é desse fenómeno, creio, que estamos a falar.
É da mais elementar justiça destacar também as empresas de media que defendem e
incentivam o exercício do jornalismo livre e sem tutelas externas. Sobretudo quando o
fazem em locais onde a democracia não é um bem público consolidado ou quando têm
a coragem de enfrentar governos ou estados centralizadores e pouco amigos da
liberdade de informação.
Direi, por último, que da mesma maneira que uma casa não se começa a construir pelo
telhado, também o combate à corrupção pelos media não é o fim da linha nem a sua
razão única de ser. Por outras palavras, sem liberdade de informação e de opinião é
impossível aspirar a um jornalismo livre e capaz de tratar casos de corrupção. Donde, é
imperioso recentrar a discussão em torno das questões da liberdade e do livre
exercício da informação, com o consequente reforço da consciência profissional dos
jornalistas. Neste sentido, colóquios como este que aqui nos junta é um contributo
valioso para o processo de aprofundamento das questões ligadas à ação dos media, ao
papel que eles devem desempenharem nas sociedades contemporâneas e, finalmente
e por extensão, como podem os jornalistas atuar na defesa dos princípios da profissão,
em cujo âmbito se insere a cobertura da corrupção.
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82
Recomendações
Extraídas das intervenções dos oradores dos Painéis I, II, III:
Extraídas das intervenções dos oradores dos Painéis IV, V, VI,
VI:
Encorajar o recurso por parte dos cidadãos de órgãos jurisdicionais
comunitários, tal como o Tribunal da CEDEAO que não obedece ao princípio da
subsidiariedade;
Apresentação de queixa contra o Estado da Guiné-Bissau no Tribunal da CEDEAO por gestão danosa dos recursos naturais e ambientais;
A família como espaço de formação inicial do cidadão deve ser sensibilizada
para incutir valores éticos e morais e mudar a perceção generalizada s obre a prática da corrupção;
É urgente um debate sobre o estado da educação;
Incluir nos currículos escolares valores de cidadania e de respeito pela coisa
pública;
O Estado deve reforçar os mecanismos de aplicação da lei e as estruturas
destinadas a lutar contra a corrupção;
O Estado deverá dar o exemplo através de critérios transparentes e objetivos a aplicar nos concursos para entrada na função pública;
A vontade política dos governantes depende em larga medida da demanda
dos cidadãos, por isso uma tomada de consciência coletiva do papel da sociedade é importante;
A consciência dos malefícios da corrupção é um ponto de partida para se
lutar contra este fenómeno, importante a informação e comunicação constante sobre o assunto;
Divulgação e mais larga difusão dos instrumentos legais na luta contra a
corrupção: Lei da Probidade Pública, Lei de Proteção das Vítimas, entre outras, aprovadas na ANP.
83
Adesão da Guine Bissau a ITI- Iniciativa da Transparência Internacional na Exploração dos Recursos Naturais- o que permitirá a prestação de contas e a
imposição de sanções contra os Estados;
Formação e assistência técnica aos parlamentares enquanto responsáveis pela legislação em vigor no País;
Formação e assistência aos profissionais da comunicação social, para
desenvolverem uma cultura de investigação em matérias de interesse público (tais como a exploração dos recursos naturais, questões ligadas a
biodiversidade e ao meio ambiente);
Investir na educação/formação/ informação/sensibilização da população em relação ao impacto negativo da corrupção na vida coletiva dos guineenses e alertar a sociedade para as suas responsabilidades;
Levar debates para as escolas, liceus e universidades para formar a nova
geração na recusa e denúncia destas práticas;
Aumentar a dotação orçamental do Governo para o sector educativo dos atuais 11% para 17%;
Melhorar as condições de acesso e manutenção dos alunos nas escolas,
capacitando os professores (formação inicial e contínua),equipando as escolas, reforçando a capacidade das associações de pais e dos jovens;
Exortar a ANP através das Comissões Especializadas a aprofundar o
conhecimento sobre a problemática ligada aos recursos naturais e ao meio ambiente, consultando para o efeito peritos desses sectores, para uma
melhor fiscalização da ação governativa;
As organizações da sociedade civil deverão trabalhar na mobilização dos cidadãos para participarem de forma mais ativa na defesa dos seus interesses
e na preservação do meio ambiente e dos recursos naturais; O poder político precisa de se apropriar dos estudos a nível académico e
científico que estão a ser realizados pelas organizações da sociedade civil para a proteção do meio ambiente;
A justiça deve estar mais próxima do cidadão através de uma aplicação prática
das isenções das custas judiciais.
84
Extraídas das intervenções dos oradores dos Painéis VIII, IX:
Maior utilização pelos órgãos de comunicação social, da internet e das redes sociais para generalizar o acesso à informação dos cidadãos;
O jornalista ou profissional da comunicação social tem um contrato ético com o seu público, para isso precisa de ter uma formação adequada ao exercício da sua atividade;
O estatuto de assessor de imprensa de titulares dos órgãos públicos é
incompatível com o exercício da atividade de jornalista;
Jornalistas devem renovar todos os dias a confiança que o público neles
depositam, confrontando facto, promovendo debates para permitir o princípio do contraditório, fomentando a criação de espaços de debate para
esclarecimento da opinião pública;
Criação de um consórcio lusófono de combate à prática da corrupção;
Maior coesão da classe jornalística para aumentar a resistência às pressões do poder político e económico;
Um permanente trabalho de investigação confere maior credibilidade aos
jornalistas e aos respetivos órgãos de comunicação;
A perceção da corrupção deve ser analisada pela sociedade guineense, através de debates com a participação dos órgãos públicos, da sociedade civil
e do sector privado;
Impõem-se uma nova consciência e abordagem sobre a coisa pública como sendo pertença de todos;
A reivindicação dos cidadãos da obrigação de prestação de contas por parte
dos titulares dos órgãos do Estado e dos gestores públicos é fundamental;
Necessária a participação dos cidadãos na elaboração dos orçamentos do Estado.
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