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Percurso Acadmico, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p.22-34, jan./jun. 2013 22
Periculosidade criminal: conceito, tratamento e consequncias Criminal hazard: concept, treatment and consequences
Leonardo Isaac Yarochewsky*
Thalita da Silva Coelho**
Resumo
A periculosidade na esfera criminal ganha especial relevncia no contexto das medidas
de segurana, aplicveis aos indivduos classificados como penalmente inimputveis. O
presente estudo aborda a fragilidade da avaliao e constatao da periculosidade de um
determinado agente, tendo em vista ser uma tarefa dotada de alta carga subjetiva,
traduzindo mero juzo de probabilidade, sem que exista qualquer critrio cientfico apto
a conferir segurana jurdica quando da aludida aferio. Para tanto, urge abordar alguns
aspectos acerca do estudo do homem delinquente e do constante interesse por parte de
algumas Escolas no sentido de traar um perfil dos denominados delinquentes
perigosos. Destaca-se que, em ltima anlise, a punio de um indivduo com base no
diagnstico da periculosidade consiste em ntida violao aos postulados do Direito
Penal atual, no qual resta afastado o direito penal do autor. A par desta realidade, a
periculosidade tem sido justificativa para uma srie de propostas de poltica criminal, as
quais almejam cada vez mais a preveno da conduta delitiva por meio da antecipao
da tutela penal.
Palavras-chave: Periculosidade. Medida de segurana.
Abstract
The dangerousness in the criminal sphere is of particular relevance in the context of the
security arrest applicable to individuals classified as criminally incompetent. This paper
addresses the weakness of the assessment and finding of dangerousness of a particular
agent, considered to be a highly subjective task, translating merely a probability
judgment, with no scientific criterion able to provide legal certainty whithin the
mentioned measurement . Therefore, it is urgent to address some aspects about the study
of the delinquent man and the constant interest that some schools have in it, in order to
draw a profile of so-called dangerous offenders. It is noteworthy that, ultimately, the
punishment of an individual based on the diagnosis of dangerousness is a clear violation
of the postulates of the current Criminal Law, which remains away from the so called
criminal law of the author. Along with this reality, the dangerousness has been
justification for a series of proposals for criminal policy, which increasingly aim the
prevention of criminal behavior through the anticipation of criminal behavior
Keywords: Danger. Security arrest.
*Doutor em Cincias Criminais pela UFMG. Professor da PUC-Minas. Advogado Criminalista. Contato:
Mestre em Direito Pblico pela PUC-Minas. Professora da PUC-Minas. Advogada Criminalista. Contato: [email protected]
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Leonardo Isaac Yarochewsky e Thalita da Silva Coelho.
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Consideraes iniciais
No ordenamento jurdico penal atual, a questo da periculosidade criminal se
encontra exposta especialmente ao tratar das denominadas medidas de segurana. Tais
medidas, consistentes em internao em hospital de custdia e tratamento ambulatorial,
so destinadas queles indivduos avaliados como inimputveis, em decorrncia da
ausncia de autodeterminao, dotados de algum grau de periculosidade, que
cometeram um ato penalmente punvel.
Ocorre que, no obstante o seu aparecimento restrito no tocante legislao
penal, o que se observa que a periculosidade criminal tem informado cada vez mais as
polticas criminais adotadas, que caminham no sentido de prevenir as condutas
perigosas e no de reprimi-las. Este cenrio, gerado especialmente pelo fenmeno da
sociedade do risco, acaba por aproximar o direito penal, at ento do fato, do direito
penal do autor, revelando aspectos totalitrios.
1 Percurso histrico do estudo do homem delinquente
Conforme afirma Prado (2010), desde a histria penal dos povos primitivos
possvel perceber a existncia do interesse em proteger a sociedade de determinados
indivduos que representavam uma constante ameaa no tange a prtica de novos
crimes, razo pela qual a mera represso atravs da pena passou a se mostrar
insuficientes para fins de preveno individual.
Deve-se Escola Positivista italiana, inaugurada por Lombroso, em 1876,
quando foi publicada a primeira edio de Luomo delinqente, bem como a Ferri
(1931) e Garfalo (1925), o pioneirismo no estudo do homem criminoso.
Foram os positivistas que procuraram as diferenas entre o homem delinqente
ou anormal e o homem no-delinqente ou normal. Cada um dos aludidos autores
apresentou seu prprio enfoque na fundamentao de suas teses acerca do criminoso
nato, baseando-se, para tanto, na teoria da degenerao1, conferindo grande relevncia
1 Segundo Lemos; Silva (2012), a teoria da degenerao foi elaborada pelo francs Bendict-Augustin
Morel, em 1957, o qual defendeu a existncia de um grupo de degenerados ou loucos hereditrios, que
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natureza do homem criminoso em detrimento da gravidade do crime praticado,
delegando ao direito penal a funo de proteger a sociedade dos indivduos ditos
perigosos, deixando em segundo plano a ideia retribucionista e ressocializadora da pena
(LEMOS; SILVA, 2012).
O ex-mdico militar Lombroso enfatizou aspectos antropolgicos, formulando e
desenvolvendo sua teoria do delincuente nato, uma espcie de ser atvico,
degenerado, marcado por uma srie de caractersticas fsicas e estigmas corporais, tais
como anomalias do crnio, orelhas em forma de asa, formas do nariz etc.
(LOMBROSO, 2001), assinalando que a persistncia no crime e, portanto, a
reincidncia revelava o criminoso nato, principalmente se tal ocorresse antes da
juventude (BISSOLI FILHO, 1988).
Ferri (1988), alm de ratificar o pensamento de Lombroso em relao s
condies orgnicas e psquicas do criminoso, realou os fatores sociolgicos ou
sociais, tais como a misria, a educao, a profisso etc., bem como a influncia das
condies ambientais e fsicas, tais como o clima, a temperatura etc.
Garfalo (apud BISSOLI FILHO, 1988, p. 127), por sua vez, enfatizando os
elementos psicolgicos, desenvolveu em sua pesquisa a idia da: [...] anomalia moral
ou psquica do criminoso, ressaltando ainda que: [...] alm da anomalia fsica, h a
moral, a qual a verdadeira causa do crime [...]. Em decorrncia deste entendimento,
sua proposta era que a pena fixada fosse proporcional periculosidade do indivduo e
potencial leso que este pode gerar.
Assim, o crime deixa de ser julgado como episdio isolado, e ganham
destaque as caractersticas fsicas e psquicas de quem o praticou.
Desaparecem as distines entre imputveis e inimputveis e a
periculosidade passa a ser fundamento e medida da atuao penal.
Todos os delinquentes so perigosos, em maior ou menor grau, pelo
simples fato de terem praticado um crime. (PRADO, 2010, p. 629).
No tocante forma de teraputica destinada aos degenerados, a Escola
Positivista Italiana, tambm conhecida por escola de antropologia criminal, formulava,
em suma, trs propostas: a eliminao total, por meio da internao ou da morte; a
possui desvio doentio em relao aos demais membros da sociedade, que atuava de forma regressiva ao
longo das geraes que o transmitia.
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eliminao provisria, atravs da teraputica; e a eliminao parcial ou relativa, com a
castrao ou esterilizao (LEMOS; SILVA, 2012).
Certo que com a escola positivista nasceu a criminologia cientfica, que apesar
de todas as restries e crticas que lhe so atribudas, possui mrito que no lhe pode
ser tirado, qual seja, o de abrir caminho para o estudo do indivduo delinqente.
A Escola Positivista, que se opunha Escola Clssica, apresentou uma
caracterstica metodologicamente marcada pelo mtodo experimental, alm da negao
da culpabilidade individual e do livre-arbtrio como seus fundamentos.
No final do sculo XIX as teses lombrosianas haviam logrado grande xito em
todo o mundo e influenciado vrios estudiosos. Contudo, j no incio do sculo XX
fortes crticas irromperam em relao s teorias biolgico-antropolgicas apresentadas
pela Escola Positivista.
Uma dessas principais crticas refere-se ao estudo limitado feito principalmente
por Lombroso, j que o mesmo limitava-se a observar criminosos condenados que se
encontravam em estabelecimentos penitencirios, sujeitos, portanto, s condies e aos
efeitos do aprisionamento.
Importa aqui remarcar que o crime e o criminoso no podem ser considerados e
analisados isoladamente, desprezando-se outros fatores e circunstncias importantes
como, por exemplo, a influncia do meio social na formao do delinqente.
1 Periculosidade
De acordo com o Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa, a
periculosidade o estado ou a qualidade do que perigoso, consistindo no conjunto de
circunstncias que indicam a probabilidade de algum praticar ou tornar a praticar um
crime.
Para Bruno (1984), a periculosidade um estado de grave desajustamento do
homem s normas de convivncia social. Mais adiante, o autor afirma que se trata de
um juzo de probabilidade, necessariamente sujeito a erro.
A periculosidade , portanto, um juzo de probabilidade de que novos crimes
sejam praticados. Um juzo sobre o comportamento futuro do agente, constituindo-se
uma verdadeira fico jurdica (FRAGOSO, 1984, p. 1922), posto que no existe
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frmula positiva ou cientfica para determinar a periculosidade do indivduo. Assim, ao
juzo de culpabilidade, em razo de sua prpria natureza, deve ser dado apenas um valor
relativo (FRAGOSO, 1984).
A periculosidade no pode nem deve ser simplesmente presumida, mas
plenamente comprovada. Sua apreciao, no dizer de Casabona (1986), implica juzo
naturalstico (no tico, no moral ou no de valor), clculo de probabilidade, que se
desdobra em dois momentos, derivados de sua prpria definio: a comprovao da
qualidade sintomtica de perigo (diagnstico de periculosidade), por um lado, e a
comprovao da relao entre tal qualidade e o futuro criminal do agente (prognose
criminal).
Camargo; Ellerman; Ramon (1995) sustentam e propem a necessidade de uma
reviso do conceito de periculosidade utilizado pela psiquiatria forense. Segundo eles, o
conceito de periculosidade axiomtico e, portanto, sem valor terico luz da
metodologia cientfica.
Metodologicamente, no es vlido examinar una realidad, buscando un
resultado prefijado, se este resultado no fuera hipottico. Al revs del este hombre es peligroso?, deberamos usar el existe un tipo de hombre peligroso, y si fuera as, en qu medida este ser uno de ellos?. En el primer caso, tenemos una hiptesis basada en un axioma, ya dado como vlido de
antemano: el de que existen hombres peligrosos. En el segundo caso,
tenemos dos hiptesis a ser demonstradas (CAMARGO; ELLERMAN;
RAMON, 1995, p. 84).
Para os citados autores, impossvel admitir que uma pessoa possa ser
penalizada, no por lo que hizo, sino por lo que se supone que har (CAMARGO;
ELLERMAN; RAMON, 1995, p. 84), sendo que a soluo para o problema de indicar
ao juiz as possibilidades e probabilidades de o paciente reincidir deveria comear pela
abolio do conceito de periculosidade e por sua substituio pelo conceito de
pronosticabilidad.
O conceito de prognstico parte da idia de incerteza. Por definicin, la certeza es imposible en el pronstico...Todavia en la observacin clnica del
hombre, sea enfermo, sea sano, existen elementos que permiten inferir las
frecuentes excepciones, siempre con el margen de duda inherente a cualquier
pronstico. El perito, al emitir su opinin de pronosticabilidad, estar
ofreciendo al juez un indicador de las posibilidades y de las probabilidades de
que el enfermo vaya a cometer nuevos delitos, dada la historia de su vida, y
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dentro de ella, la historia de su enfermedad, la naturaleza de la misma, an
ms, los signos y manifestaciones de ella en las disposiciones de su voluntad,
de su personalidad y de las peculiaridades de su psicologia individual.
Relacionar toso eso, ciertamente a las circunstancias de vida, medio
ambiente y entorno social donde vive el paciente, y todavia as, apenas
pronosticar. No estar diciendo que este hombre pertence a una variante de
seres humanos: a la de los peligrosos (CAMARGO; ELLERMAN; RAMON, 1995, p. 85-86).
Bissoli Filho (1988) preciso ao afirma que:
[] a teoria da periculosidade restou tributria quase que exclusivamente de construes dogmticas. O conceito de personalidade perigosa, produzido
unicamente pela Dogmtica Penal, vago, confuso e caracterizado pela
subjetividade. (BISSOLI FILHO, 1988, p.169).
De toda sorte, ainda que se busque estabelecer critrios para a determinao da
periculosidade, o que se verifica a imensa fragilidade de seu conceito, desprovido de
maiores certezas, representante verdadeiro exerccio de futurologia, o que se mostra
absolutamente incompatvel com a segurana jurdica almejada pelos ordenamentos.
2 Tratamento e consequncias
A soluo encontrada por diversas legislaes penais para o tratamento do
indivduo perigoso, que cometeu um ato punvel em decorrncia de sofrimento mental,
est na medida de segurana. Assinala Prado (2010, p. 632), que as medidas de
segurana, que possuem natureza jurdica de sano penal, consistem em consequncias
jurdicas do delito, que consubstanciam-se na reao do ordenamento jurdico diante da
periculosidade criminal revelada pelo delinquente aps a prtica de um delito [...]
impedindo que este volte a delinquir.
Prado (2010) destaca que foi na Inglaterra, nos idos de 1860, a implantao do
primeiro tratamento psiquitrico para criminosos doentes mentais, decorrente da
Criminal Lunatic Asylum Act. Segundo o aludido preceito normativo, tais criminosos
doentes mentais deveriam ser internados em um asilo. Foi, ainda, no mesmo pas, o
surgimento do primeiro manicmio judicirio.
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Segundo Ferrajoli (2010, p. 718)
certo que a maior contribuio introduo das medidas de
segurana no nosso ordenamento (leia-se: ordenamento italiano), ou
quanto menos a sua legitimao ideolgica, foi um legado da Escola Positiva, ou antropolgica do direto penal, que, como se viu, substituiu a categoria da responsabilidade por aquela da
periculosidade, e concebeu o crime como um sintoma de patologia psicossomtica, devendo enquanto ser tratado e prevenido mais do que
reprimido, por medidas pedaggicas e teraputicas destinadas a
neutralizar as causas exgenas.
Verifica-se, pois, que a teorizao da medida segurana, instituto atualmente
adotado pelo ordenamento jurdico brasileiro, tambm se deve Escola Positiva,
todavia, a sua sistematizao efetivamente ocorreu com o Anteprojeto de Cdigo Penal
Suo de 1893. Bruno (1984, p. 117), fazendo meno ao aludido Estatuto (art. 42),
aborda a imposio de medida de segurana por tempo indeterminado para aquele que
incorre em vrias infraes, depois de sofrer numerosas penas privativas de liberdade,
revelando, segundo o autor, tendncia ao crime, vida desordenada ou ociosidade.
Em momento ulterior, precisamente em 1830, a medida de segurana foi
sistematizada de modo completo no Cdigo Penal Italiano, elaborado inicialmente por
Ferri, no qual se pretendia a adoo do sistema vicariante, pelo qual pena e medida de
segurana receberiam a denominao nica de sanes penais, aplicadas sempre
segundo o critrio da periculosidade subjetiva. (PRADO, 2010, p. 630). Todavia, o
indigitado anteprojetou no obteve xito na sua aprovao, prevalecendo a proposta de
Arturo Rocco, que apregoava, em oposio ao sistema vicariante, o sistema dualista,
que autoriza a cumulao da pena e da medida de segurana.
No Brasil, o primeiro resqucio acerca da medida de segurana pode ser
vislumbrado no Cdigo Penal do Imprio (1830) e, posteriormente, em vrias outras
propostas que no passaram de projetos. Na redao original do Cdigo Penal de 1940,
a responsabilidade penal era examinada por meio da capacidade de compreenso da
ilicitude do crime de tal forma que, se o indivduo possua inteira incapacidade de
autodeterminao seria considerado inimputvel, ao passo que se o indivduo possusse
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discernimento relativo seria considerado semi-imputvel. Esta distino segue
exatamente a linha adotada pelo atual artigo 26 do Cdigo Penal, ocorre que, naquela
ocasio, era possvel, para os semi-imputveis, o acmulo da pena e da medida de
segurana (sistema do duplo binrio).
Com a reforma de 1984, restou definitivamente afastada a hiptese de aplicao
da medida de segurana para o imputvel, ao qual aplicvel exclusivamente a pena,
nos moldes da sua culpabilidade. Assim, a medida de segurana, hodiernamente
questionada, reserva-se em nossa legislao atual aos casos de inimputabilidade penal e
no aos de periculosidade simplesmente, lembrando que, com a reforma de 1984, do
Cdigo Penal brasileiro, o legislador foi bastante feliz ao abandonar o sistema dualista
ou do duplo binrio.
A exposio de motivos do Cdigo Penal do Brasil (Lei 7.209/1984) no item 87
dispe:
Extingue o projeto a medida de segurana para o imputvel e institui o
sistema vicariante para os fronteirios. No se retomam, com tal
mtodo, solues clssicas. Avana-se, pelo contrrio, no sentido da
autenticidade do sistema. A medida de segurana, de carter
meramente preventivo e assistencial, ficar reservada aos
inimputveis. Isso, em resumo, significa: culpabilidade-pena;
periculosidade-medida de segurana. Ao ru perigoso e culpvel no
h razo para aplicar o que tem sido, na prtica, uma frao de pena
eufemisticamente denominada medida de segurana.
A reforma penal brasileira, segundo Toledo (1999), com isso,
[...] longe de retornar a frmulas clssicas, d um passo adiante, com
soluo coerente para o srio problema do agente imputvel que j se tenha
revelado um delinqente habitual ou por tendncia, sem necessidade de
recorrer-se pena totalmente indeterminada ou frmula do duplo binrio
que, como se viu, no foi bem assimilada pela experincia brasileira
(TOLEDO, 1999, p. 77-78).
Embora bastante semelhante, para no dizer idntica, a forma de execuo tanto
da pena quanto da medida de segurana, ambas so executadas com a privao da
liberdade. Contudo, certo que em um Estado Democrtico de Direito, segundo Ferrari
(2001, p. 135), a medida de segurana criminal, alm de constituir uma das espcies de
sano penal, est condicionada presena de dois pressupostos obrigatrios e
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irrenunciveis, quais sejam: 1) a realizao de um fato ilcito-tpico penal; e 2) a
presena da periculosidade criminal. Ainda de acordo com o autor, em um Estado
Democrtico de Direito a medida de segurana criminal (sano penal) est vedada a
estados de paradelinquncia, infraes exclusivamente polticas ou de marginalismo
criminoso, j que ausentes estaro as prticas dos ilcitos-tpicos criminais (FERRARI,
2001, p. 135).
O grande questionamento acerca da medida de segurana, em nosso
ordenamento jurdico, gira em torno da ausncia de um prazo mximo de submisso do
portador de sofrimento mental ao tratamento ou internao compulsria.
A forma penal desta coero compromete grandemente a liberdade das
pessoas a ela submetidas. Preocupa, sobremaneira, a circunstncia de
no terem as medidas um limite fixado na lei e ser a sua durao indeterminada, podendo o arbtrio dos peritos e juzes decidir acerca
da liberdade de pessoas que, doentes mentais ou estigmatizadas como
tais, sofrem privaes de direitos, ainda maiores do que aquelas que
so submetidas s penas. O problema no simples, e a pouca ateno
que geralmente se d s medidas de segurana, do ponto de vista
dogmtico, torna-a bastante perigosa para as garantias individuais.
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 731).
Numa anlise perfunctria do tema, verifica-se que a inexistncia de um limite,
acerca da durao da medida de segurana, representa evidente violao Constituio
brasileira, a qual determina, em seu art. 5, XLVII, b, a proibio da pena em carter
perptuo. Em outras palavras, significa dizer que ao portador de sofrimento mental que
comete um ato punvel dispensado tratamento muito mais gravoso, quando comparado
ao imputvel, que possua, ao tempo do crime, plena capacidade de discernimento e
autodeterminao.
A discusso a respeito do tema, por parte da doutrina, parece estar longe de
alcanar um posicionamento satisfatrio, prevalecendo, todavia, o entendimento de que
a medida de segurana encontraria o seu limite no mximo da pena cominada
abstratamente para o delito cometido. Ultrapassado tal limite e persistindo a
periculosidade do agente, cessa-se a interveno penal, passando-se a questo para a
esfera cvel. Proposta apresentada recentemente no Anteprojeto de Cdigo Penal que
ora tramita perante o Senado.
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Enquanto alguns pases tentam resolver tal questo por meio da pena, outros,
como a Alemanha, Estados Unidos, Sua, Japo e recentemente a Espanha, tambm
recorrem s medidas de seguridade como soluo do problema em testilha. Lado outro,
a apario dos meios de comunicao de alcance mundial, o desenvolvimento de novas
tcnicas de resposta penal (controle telemtico e outras formas de terapia social), aliado
ao interesse poltico e social no sentido de garantirem maior proteo aos bens jurdicos
mais caros, impulsionou a adoo de novas medidas para conteno dos delinquentes
reincidentes e/ou perigosos, envolvendo internao em centros de terapia social,
castrao qumica, controle telemtico, dentre outros.
Verifica-se, ainda, que atualmente, no Brasil e em diversas partes do mundo, h
uma tendncia muito forte em acabar com os chamados manicmios judicirios, onde
se tem verificado que o delinquente , geralmente, abandonado prpria sorte e
esquecido pela sua prpria famlia. Conforme sabido, desde o incio do denominado
Movimento Antimanicomial2, as diretrizes psiquitricas deixaram de serem aquelas
vinculadas ao tratamento por meio hospitalar e passaram a apregoar a prtica teraputica
integrada comunidade. Esta postura tem por escopo conceder o cuidado adequado aos
portadores de sofrimento mental, a partir, no s dos preceitos advindos da medicina e
da Psicologia, mas, tambm, do princpio da dignidade da pessoa humana. Desta forma,
a manuteno da medida de segurana no ordenamento jurdico vem de encontro
proposta acima, no podendo o delinquente perigoso acometido por uma doena mental
receber tratamento mais gravoso.
Concluso
Em definitivo, entendemos no ser a medida de segurana, muito menos por
tempo indeterminado, capaz de resolver o problema do delinquente portador de
sofrimento mental, que tambm no solucionado pela pena privativa de liberdade.
Conforme podemos constatar a periculosidade criminal, conceito subjetivo, vago,
indeterminado e carecedor de preciso cientifica, mas que, atualmente, alicera a
medida de segurana, remete ao direito penal do autor, prprio de regimes totalitrios e
antigarantistas.
2 Em termos normativos, a Luta Antimanicomial ganhou fora especialmente aps a Lei 10.216/01 (Lei
Paulo Delgado), a qual determinou a extino progressiva dos manicmios, estabeleceu um rol de direitos
do portador de sofrimento mental e novas diretrizes de tratamento.
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