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TELQUELISMOS LATINO-AMERICANOS A teoria crítica francesa no entre-lugar dos trópicos

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TELQUELISMOS LATINO-AMERICANOSA teoria crítica francesa no entre-lugar dos trópicos

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JORGE H. WOLFF

TELQUELISMOS LATINO-AMERICANOSA teoria crítica francesa no

entre-lugar dos trópicos

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© 2016 Jorge H. Wolff

Coordenação EditorialRafael Gutiérrez, Antonio Marcos Pereira, María Elvira Díaz-Benítez CapaMartín Rodríguez

Imagem de Capa“La beauté est dans la rue”, Poster-Art, Atelier Populaire, Paris, maio de 1968

RevisãoMarina dos Santos Ferreira

Consultoria de DiagramaçãoCeleste Ribeiro

Conselho EditorialAlberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP)Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá)Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wolff, Jorge H. Telquelismos latino-americanos : a teoria crítica francesa no entre-lugar dos trópicos / Jorge H. Wolff. -- Rio de Janeiro : Papéis Selvagens, 2016.

Bibliografia. ISBN 978-85-92989-01-9

1. Crítica literária 2. Ensaios 3. Entrevistas4. Literatura comparada 5. Literatura francesa6. Tel Quel (Revista) 7. Vanguarda (Estética) - França I. Título.

16-09072 CDD-809

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura : História e crítica 809

[2016] Papéis [email protected]

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Sumário

Prólogo por Raul Antelo 7

Apresentação 9

Ensaio

Telquelismos e antitelquelismos 13Silviano Santiago no entre-lugar 25Tropicalismos e antitropicalismos 39Leyla Perrone-Moisés e a atualidade francesa 49Beatriz Sarlo e a nova crítica 61Ricardo Piglia entre Mao e os Panteras Negras 73Antidogmatismo e flexibilidade 89

Entrevistas

Héctor Schmucler e Nicolás Rosa 95Germán L. García 117Leyla Perrone-Moisés 133Silviano Santiago 155Ernesto Laclau 179

Agradecimentos 185

Bibliografia 187

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Prólogo

Parte de Baudelaire a moderna fusão entre poesia e crítica. A Obra Total de Mallarmé ainda conserva essa aspiração à unidade e à síntese, à análise e à reflexão, submetida, no entanto, à pauta da música e do ritmo. Transgressão das fronteiras genéricas, ao mesmo tempo que subversão das artes, a estratégia acompanhava de perto a teoria das correspondências, uma modulação estética do eterno retorno. A vanguarda, em troca, concentraria suas forças no procedimento de cada linguagem, a qual encarava como utopia radical da pureza genérica: rechaço do verismo, busca da abstração, prioridade do significante. É o que se observa nos teóricos de Tel Quel.

No início dos anos 70, quando se lia Eu o Supremo como o paradigma do romance do ditador latino-americano, como ilustração de literatura sofisticada em torno do tema do poder e seu discurso, Ricardo Piglia prologava El frasquito de Luís Gusmán saudando-o como a revolução dentro da literatura, algo em sintonia com o que se lia nas páginas da revista Literal, da qual não Piglia, mas sim Gusmán, fazia parte. A posteriori pôde-se pensar que a base de tudo isso estava em Osvaldo Lamborghini, esse escritor secreto que se tornou, mais adiante, uma estética, algo que de algum modo também respirava nos primeiros livros de Aira ou Fogwill.

Mas já era tarde: o dualismo místico material, de remota origem em Bataille, e que sacudiu profundamente os telquelianos de Paris, tinha mexido com os telquelianos latino-americanos, pondo em crise as instituições, tanto a sagrada, quer dizer, os credos religiosos e a própria política, entendida como ritual de sacrifício, quanto a esfera profana, a ciência e sua ambição de domínio do vivente. A linguagem, o signo, a arqueologia passavam assim a mostrar-nos um mundo – o nosso – lacerado entre duas contradições, um espaço em que se jogava, de maneira inócua, a tensão dialética e o princípio de identidade, e outro em que a escritura continuamente expandia o mais além da impotência da palavra. Ali onde a primeira ainda supunha continuidade entre o discreto e o comum, a segunda rompia tal continuidade e postulava o rechaço ou desgosto ao comum – ao comunicável, ao comunitário. Contra a particularidade e seu vai-vem absoluto, a iridescente singularização da Escritura Total.

Jorge Wolff realiza com rara sutileza a genealogia dessa prática em um conjunto de escritores os quais não costumamos associar ao marco de ruptura teórica que Tel Quel representou nos anos 70. Não apenas os lê como os escuta. Eis aí a voz de Silviano Santiago, Nicolás Rosa, Leyla Perrone-Moisés, Héctor Schmucler, Germán García, Ernesto Laclau. É uma excelente janela para nos vermos, para ver nosso próprio devir.

Raul Antelo

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Apresentação

Iniciada ainda no final do século XX, esta investigação elegeu como canais daquilo que nela se denomina “telquelismos latino-americanos” dois periódicos culturais, o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo (1956-1966)[1] e a revista Los Libros (Buenos Aires, 1969-1976). Com tal denominação não se pretendeu apontar para nenhum telquelismo tout court, de origem brasileira ou argentina, mas antes buscou-se armar uma rede de leituras com o objetivo de destacar as conexões dos debates intelectuais dos dois países com a França nos anos 60 e 70. O texto se compõe de duas partes, um ensaio e uma série de entrevistas. O ensaio é dedicado à análise das trajetórias de alguns protagonistas dos diferentes periódicos – ambos vendidos em bancas – e de seus modos de praticar a “nova crítica” nos inflamados anos de sua juventude intelectual. Investigar os “telquelismos latino-americanos” significou sobretudo levar em conta as discussões dos anos de formação de quatro críticos-escritores, Beatriz Sarlo, Leyla Perrone-Moisés, Silviano Santiago e Ricardo Piglia, que vão ler e aclimatar, cada um a seu modo, o chamado “Pensamento 68”. Entre o reflexo e a refração, a ordem e a desordem, sua produção escrita responde às vertentes estruturalistas e seus avatares nas reflexões de Lacan, Derrida, Barthes ou Althusser, e a uma “consciência de época” encarnada pelo grupo da revista Tel Quel: experimentação estética e teórica + revolução política.

Boa parte da discussão posta em cena no ensaio que precede a segunda parte do livro, com as cinco entrevistas, pode ser condensada em uma observação de Héctor Schmucler na primeira delas:

O pessoal da Tel Quel em 68, em maio de 68, estava totalmente submetido ao PC. Como eles estavam submetidos ao PC, eram os únicos que podiam manter contato com os operários (...). Quando a fábrica da Renault ainda estava ocupada, o que era manipulado pela CGT e pelo PC, os únicos que tinham acesso a ela como intelectuais eram eles. Eles iam dar conferências, era como a realização da revolução: três mil operários escutando o pessoal da Tel Quel falar de cultura.[2]

É a essa euforia, de tonalidades demagógicas e plena de contradições, que se refere, por sua vez, o escritor Silviano Santiago, ao reler seus primeiros ensaios, dedicados então ao “conhecimento e desenvolvimento das artes e das culturas nacionais do Terceiro Mundo” e marcados pela teoria da

1  O grupo que o criou deixa o jornal em fins de 1966, mas o Suplemento Literário segue com este nome até meados dos 70.

2  As versões brasileiras dos textos em espanhol foram feitas pelo autor e por Flávia Cera; os textos em francês e inglês foram traduzidos pelo autor.

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dependência econômica. Sua releitura desses prototextos, feita em abril de 2002, sugere que “os novos tempos se alimentam de ideias discutidas nestes já velhos textos”,[3] o que serviu como estímulo a prosseguir discutindo-os através de um trabalho que, de fato, começou em 1998 por meio do testemunho de duas pessoas particularmente comprometidas com o tema: Nicolás Rosa e Héctor Schmucler, precoces leitores e tradutores de Roland Barthes na Argentina, a quem tive a sorte de reunir em agosto daquele ano, em Florianópolis. A partir de então, passo a realizar entrevistas com os quatro críticos-escritores mencionados anteriormente e também com o psicanalista Germán García e o cientista político Ernesto Laclau.

O diálogo entre Rosa e Schmucler é paradigmático: a princípio não aceitam a relação com os teóricos franceses, mas pouco a pouco e com bom humor vão considerando-a mais e mais. Sendo assim, para além dos rigores nacionalistas dos anos 60 e 70, a marca dos pensadores europeus é inegável e a mescla resultante de sua leitura em diferentes países da América Latina é um capítulo ainda pouco explorado da história intelectual do continente e dos “debates e dilemas”[4] de seus personagens, entre a “revolução” e a “rebelião”.

***

Dos materiais incluídos neste trabalho – originalmente uma tese de doutorado orientada por Raul Antelo no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, concluída em fevereiro de 2002 –, reunimos para este livro as entrevistas de Schmucler e Rosa, Perrone-Moisés, Santiago, García e Laclau. As entrevistas de Sarlo e Piglia não foram incluídas porque, por distintas razões, não autorizaram a sua publicação. Esta versão do livro resulta de uma total reescritura da tese, a qual está disponível em linha na Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina.

3  Cf. Santiago, S. “Nota à segunda edição” de Nas malhas da letra. Ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 9-10.

4  Segundo a expressão da ensaísta Claudia Gilman, cujo livro Entre la pluma y el fusil. Debates y dilemas del escritor revolucionario en América Latina  (Buenos Aires: Siglo XXI, 2003)  faz ouvir um grande coro de vozes protagonistas de órgãos como Marcha ou Casa de las Américas, tendo os rumos da revolução cubana e a cisão entre intelectualismo e anti-intelectualismo como centro de sua reflexão. Também é Gilman quem fala explicitamente de “telquelismos” (à p. 300 de seu livro), em referência aos “intelectualistas”, favoráveis à autonomização do campo artístico, opostos aos “anti-intelectualistas”, que aceitaram submeter a arte à política revolucionária.

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ENSAIO

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Telquelismos e antitelquelismos

Um artigo publicado em Buenos Aires trinta anos depois do Maio de 68 via o que chamou de “Operação Tel Quel” como uma capitalização oportunista da insurreição estudantil parisiense, de parte de intelectuais “desbordados”, cujas teorias “monumentais” foram surpreendidas por acontecimentos que não conseguiram antecipar, e que trataram de tomar em proveito próprio. O texto começa com uma referência ao método do sociólogo Pierre Bourdieu, ilustre inimigo da “operação” e em particular de seu guia, o escritor Philippe Sollers.[5] A operação foi inaugurada, segundo lembra o cronista, com a publicação da Teoria de conjunto (Théorie d’ensemble) em fins de 1968, a antologia-manifesto que melhor definiu o “telquelismo” em uma época na qual começou a exercer uma grande influência intelectual, até o declínio de uma certa imagem do império maoísta em meados dos anos 70, baseada em uma suposta prática de “revolução cultural”. A antologia telqueliana era encabeçada por Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida e Julia Kristeva, além de Sollers, seu editor. “O de Tel Quel é talvez o melhor exemplo de um grupo que foi catapultado à fama pelos acontecimentos de Maio”, afirmava o autor do artigo, decidido a polemizar:

Apropriar-se do Maio Francês permitia a Tel Quel aproveitar-se melhor do que qualquer outro grupo de esquerda de uma situação de trânsito que caracterizou a cultura gala: a passagem da imprensa à televisão, de escritores a celebridades; a transformação de volumes filosóficos e romances em talk-shows (ou em pretextos para talk-shows), dos movimentos literários em modas culturais, das obras-primas desconhecidas em nomes famosos.

Não se trata disso, contudo, nesta investigação. Não está em questão a denúncia dos cúmplices de um grupo de “terroristas que escrevem”, o qual – segundo o autor – não fez mais do que confundir o pensamento então dominante – o estruturalismo – com a insurreição jovem, transformando-os magicamente na própria definição do “Pensamento 68”, em oposição à “filosofia da consciência”, o existencialismo, e em contradição com um movimento que, a partir de um lugar comum típico dos 60, privilegia “as estruturas em detrimento da história, o frio em detrimento do quente”. Apesar do caráter determinista da argumentação, a acusação possui certa pertinência ao criticar a união do materialismo histórico com “um agora suspeito materialismo semântico” proposto pela vanguarda telqueliana, que em fins dos anos 60 passa a reivindicar de modo religioso a figura de

5  Grieco y Bavio, Alfredo. “La operación Tel Quel y la alucinación según la Escuela de Frankfurt”.   Página 12, Suplemento Radar, Buenos Aires, 3 de maio de 1998, p. 7.

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Mao Tsé-Tung e seu credo particular dedicado a uma revolução cultural que deveria ser permanente ou infinita.[6] Os ecos desta vanguarda são certamente mais determinantes na Argentina do que no Brasil, os lugares melhor definidos, as posições mais claras e mais radicalizadas. No entanto, considerada a “dinamização da atividade estruturalista” a partir de 1967, o que importa é distinguir o momento estruturalista – como o entende por exemplo o historiador François Dosse – e o momento telqueliano que o “enxertaria”, já que não se trata de sucessão ou evolução,[7] e muito menos de boa ou de má fama. Pode-se concordar com o que Leyla Perrone-Moisés, no calor da hora, pouco depois do Maio de 68, declarou em sua trincheira – o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo: “Não é que os estudantes tenham provocado as posições revolucionárias dos intelectuais, mas elas se incendiaram com o estopim revolucionário”.[8] Negá-lo equivaleria a reduzir tudo a “modas culturais”; tratou-se na realidade da culminação de um movimento progressivo em que artistas e letrados “se apropriaram do espaço público enquanto tribuna desde a qual podiam se dirigir à sociedade, quer dizer, converteram-se em intelectuais”[9] – alguns mais célebres ou famosos, outros nem tanto.

Em algumas linhas de um trabalho anti-enciclopédico destinado a uma enciclopédia (“Texto: teoria do”), Roland Barthes resumiu o ideário de uma época com duas grandes referências teórico-filosóficas, o materialismo dialético e a psicanálise.[10] Este ideário tem uma particular receptividade na América Latina, como é o caso de intelectuais como Héctor Schmucler que – do mesmo modo que Perrone-Moisés – estuda com Barthes na França e logo retorna à Argentina para criar a revista Los Libros, periódico em que aparecem alguns dos primeiros trabalhos críticos de Ricardo Piglia e de Beatriz Sarlo, que mais tarde tomarão a direção da revista enquanto bons discípulos de Mao Tsé-Tung. Por essa época, Perrone-Moisés e Santiago

6  Em sua Histoire de Tel Quel, Philippe Forest apresenta outra versão da mesma história e propõe o que seria uma revelação: o grupo da revista, apesar de seus laços com o Partido Comunista Francês (conforme observado por Schmucler em sua entrevista e mencionado acima na Apresentação), já se definiria como pró-chinês secreta e precocemente... Cf. Forest, P. Histoire de Tel Quel. Paris: Seuil, 1995.

7  Cf. Dosse,  F. História do estruturalismo  (vols.  I  e  II). Campinas:  Editora  da Unicamp,  1994. Em nota a essa edição brasileira do livro de Dosse, os editores recordam a dimensão do debate estruturalista em âmbito internacional e latino-americano em particular: já em 1968 o número de Les Temps Modernes dedicado ao tema (no 246, de novembro de 1966) é traduzido integralmente pela Editora Jorge Zahar, do Rio de Janeiro.

8  Perrone-Moisés, L. “Os intelectuais e a revolução cultural”. O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, 10 de agosto de 1968.

9  Cf. Gilman, Claudia. “El protagonismo de los intelectuales y la agenda cultural”. Entre el fusil y la palabra, op. cit., p. 59.

10  Barthes, R. “Texto: teoria do”. Inéditos, I: teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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estão indo e ∕ ou vindo de universidades francesas – mas o segundo (que será um dos introdutores do chamado pós-estruturalismo no Brasil) logo se dirige aos Estados Unidos. Todos viveram e trataram de contribuir com intensidade ao que Barthes chamou uma “mutação epistemológica concreta” na busca utópica deste “objeto novo”, o texto, cuja característica principal foi por em questão sua própria enunciação. Aí estão seus faróis com todas as letras: a referência materialista-dialética – Marx, Engels, Lenin, Mao – e a referência freudiana – Freud, Lacan; armas pesadas para manejar uma equívoca produtividade sem dono que é a fórmula básica da teoria do texto barthesiana. Mas a referência teórica objetiva do manifesto “textualista” publicado na Enciclopédia Einaudi provém do trabalho de uma jovem mulher: a exilada búlgara Julia Kristeva, que põe em circulação o conceito de intertextualidade. Assim, ao tomar o marxismo e o maoísmo como horizontes ideológicos imediatos, e a arte e a literatura como “experiências-limite” em nome da dissidência política e cultural na Europa ou na América, pode-se perguntar de que modo e com que meios e manobras terão operado os “dissidentes” latino-americanos da mesma vertente, a partir do final da década de 60.

Em um volume intitulado Literatura, política y cambio das Edições Calden (Buenos Aires, 1976), explicitamente dedicado à revista Tel Quel, aparecem alguns sintomas desta complexa relação. Uma imagem de Bertolt Brecht é reproduzida na capa mas não se fala do dramaturgo alemão: quatro sobrenomes a completam – Barthes, Sollers, Henric, Guyotat – mas o segundo é quem domina a antologia; não por acaso o livro é editado por Oscar del Barco, colaborador de Los Libros dos primeiros anos, em nome da “escritura como função da transformação social”, segundo o ensaio homônimo de Sollers presente no volume. Na mesma linha, Piglia (segundo seu testemunho para esta pesquisa) traduz artigos de Tel Quel para um projeto dos anos 60 que fracassa. Não creio que se tenha produzido algo parecido no fechado mercado editorial do Brasil ditatorial, mas o discurso seguia tons semelhantes, ainda que mais brandos, basicamente através dos textos de Perrone-Moisés e de Santiago no Suplemento Literário do velho jornal conservador paulista. O outro artigo de Sollers no livro argentino é o mesmo da Teoria de conjunto, “O reflexo de redução”, no qual afirmava: “Propor uma fraseologia ‘revolucionária’ está ao alcance de qualquer um, mas participar da revolução do pensamento que se escreve sabendo que escritura e revolução são precisamente homólogas no sentido de que exercem uma força transformadora ‘muda’, isto é muito mais difícil, isto exige uma certa amplitude decifradora e de produção incessante de deciframento”.[11] Muito mais tarde Sollers justificaria, em proveito próprio,

11   Sollers, P. “Le réflèxe de reduction”. Théorie d’ensemble (choix). Paris: Seuil, 1980, p. 303.

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o “gigantesco erro do maoísmo” ao declarar a Bernard Henry Lévy em “As aventuras da liberdade” (o documentário de 1990 sobre os intelectuais franceses) que a China terrorista, “por mais chocante que pareça, acabará com nossas últimas conexões stalinistas”. Em sua opinião, os dissidentes do Partido Comunista Francês deveriam receber homenagens por terem rompido a lei do silêncio que o PCF impôs com mão-de-ferro, abrindo uma “fissura no ponto mais sensível desse fenômeno”. Mas, para além do tom polêmico da afirmação, para o bem ou o mal, o terror ou o prazer, a adesão ou a oposição ao telquelismo, é preciso reconhecer a mudança epistemológica e o surgimento de uma “nova maneira de pensar” em torno de Tel Quel e a partir de seus faróis teóricos.

Em princípios dos anos 90, Perrone-Moisés trata de defender Barthes da acusação proferida post-mortem, de que foi “uma das figuras centrais do pós-modernismo”, como o disseram por exemplo David Harvey ou Andreas Huyssen. No entanto, para Silviano Santiago, isto não seria uma “acusação” e sim antes um elogio – o que de imediato serve para situá-los no debate. Mas escutemos primeiro alguns argumentos da defesa de Perrone-Moisés:

O termo pós-modernismo é uma criação americana que Lyotard levou para a França, provocando as polêmicas que se conhece. Barthes não viveu o suficiente para se pronunciar a respeito. Os norte-americanos puseram-lhe a etiqueta de pós-moderno porque ele colaborou para a derrocada das “metanarrativas totalizantes e legitimadoras”, lutou e rezou pela dissolução do sujeito em sua jouissance egotista, estetizou a vida, etc. Os norte-americanos sempre viram Barthes como uma espécie de Maurice Chevalier da teoria, um dândi tipicamente french, com uma taça de champanhe na mão e um dito picante na boca. Mesmo Susan Sontag, que o admirava, imaginava-o assim. Mas, para colar em Barthes essa etiqueta de esteta irresponsável e bem integrado ao mundo contemporâneo, é preciso ter lido muito mal sua obra ou senão varrer muita coisa para baixo do tapete, sobretudo suas preocupações éticas.[12]

Poucos anos depois, a professora emérita da Universidade de São Paulo publica Altas literaturas, uma pesquisa sobre “escolha e valor na obra crítica de escritores modernos”, como diz o subtítulo do livro.[13] Intelectual progressista e cosmopolita, desenvolve aí sua querela contra o pós-modernismo à maneira norte-americana e ao conservadorismo na

12 Perrone-Moisés, L.  “Barthes e o pós-modernismo”.  Inútil poesia e outros ensaios breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Publicado antes em La Quinzaine Littéraire no 618, Paris, 16 a 28 de fevereiro de 1993 (com o título “Roland Barthes: comment s’en débarasser”) e em O Estado de São Paulo, Suplemento Cultura, 10 de abril de 1993.

13  Perrone-Moisés, L. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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linha de Harold Bloom, em nome do que seria uma “modernidade atenta às diferenças”. Seu cânone particular é composto por oito “escritores-críticos”: Ezra Pound, T. S. Eliot, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Italo Calvino, Michel Butor, Haroldo de Campos e Philippe Sollers, estudados e equiparados através do conceito de “poética sincrônica”, caro ao poeta concretista brasileiro. De sua parte, Santiago, professor que fez escola na PUC-Rio, também é um precoce leitor de Barthes e de Derrida, mas difere de Perrone-Moisés basicamente em dois pontos: encontra-se próximo das praias cariocas e não da Avenida Paulista nem da USP – o que significa ser mais alusivo e menos sistemático sem perder o rigor crítico – e dissemina o pós-modernismo e os estudos culturais sem culpas através do conceito de “entre-lugar” do intelectual latino-americano, esboçado em um artigo de 1971, no qual são reivindicados os mesmos dois pensadores franceses, junto com Borges e Cortázar. A propósito das escolhas de Perrone-Moisés e Santiago, vale lembrar que a última nota do prólogo a Literatura, política y cambio, assinada por “J. M. L.”, propunha outra significativa lista de figuras-chave: “Dissemos Marx, Freud, Nietzsche, Sade, Mallarmé, Lautréamont, Derrida, Tel Quel; podemos dizer Lenin, Mariátegui, Borges”.

Tel Quel no entre-lugar da cultura latino-americana é, portanto, uma estranha realidade. Diz Ricardo Piglia no depoimento concedido a este trabalho:

Nós estávamos muito atentos às posições de Tel Quel porque em Tel Quel havia uma combinação de estruturalismo, maoísmo, crítica literária e psicanálise que era um pouco o clima intelectual comum que, em Buenos Aires, tinha uma força muito grande. Inclusive eu participei de um projeto para traduzir Tel Quel em Buenos Aires, com Jorge Álvarez, que era o editor com o qual publiquei meu primeiro livro [La invasión, 1967]. Conseguimos os direitos para traduzir Tel Quel em Buenos Aires, coisa que já se estava fazendo com a revista Communications. Então estávamos no processo, inclusive preparei alguns números e depois parou, acho que veio o golpe militar, não sei o que aconteceu e não continuou. Ou seja, a relação com Tel Quel não era uma relação pessoal, mas sim uma relação com uma vanguarda que nos interessava.

Entre os quatro escritores-críticos abordados aqui, a única que manteve uma relação pessoal mais constante com Barthes, Kristeva e Sollers foi Perrone-Moisés, o que contribuiu para transformá-la em uma leitora sistemática do telquelismo e sobretudo do barthesianismo. Tão competente quanto propagandístico (veja-se sua pequena biografia de Barthes, O saber com sabor, de 1983), seu discurso está preocupado com a melhor interpretação do mestre, à diferença de Beatriz Sarlo, cuja leitura em El mundo de Roland Barthes (1981) é um pouco mais crítica e distante.

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No entanto, o telquelismo latino-americano é sem dúvida uma vertente muito difusa; sua face mais óbvia e imediata seria a do cubano dissidente em Paris, Severo Sarduy, mas em meio ao furacão neo-vanguardista encontravam-se inegavelmente certos intelectuais brasileiros e argentinos que logo se destacariam. O objetivo central deste trabalho foi, portanto, escutá-los e reconstruir algo dessa história, que é a sua proto-história. Em uma entrevista, Beatriz Sarlo fala sobre Tel Quel de modo revelador – como Piglia – a propósito da vanguarda portenha dos anos 70 e a influência que teve nos anos de formação de ambos, passados em conexão estreita com o grupo de Los Libros:

O dia em que a revista Tel Quel chegou a Buenos Aires com os poemas de Mao escritos em chinês e a foto de Kristeva, Roland Barthes e Phillipe Sollers na Praça Vermelha de Pequim, falei para mim mesma: certo, efetivamente isso é assim, a revolução cultural chinesa e as vanguardas francesas podem coincidir na página de um livro. E como já se sabe que o mundo existe para coincidir na página de um livro, o teorema estava demonstrado. Coisas assim hoje parecem quase extravagantes, mas naquela época eram quase um lugar comum.[14]

Como disse algum dia o músico Baden Powell, “onde tem jovem tem revolução”. O lugar comum da época estava ancorado no materialismo histórico e no “materialismo semântico” desenvolvido em ensaios dedicados tanto à revolução cultural chinesa – é o caso de Piglia, que esteve no país e fez proselitismo do maoísmo em pelo menos dois extensos textos na revista Los Libros – como à vanguarda telqueliana –, sobretudo nas apropriações e referências a Barthes não somente de Beatriz Sarlo, mas também de Schmucler e Rosa. No entanto, se examinarmos a coleção da revista Tel Quel em sua extensa trajetória (1960-1983) é possível encontrar inúmeras alusões à China e a Mao, mas quase nenhuma ao Chile – cuja revolução socialista moderada foi mais importante que a chinesa para Leyla Perrone-Moisés (cf. entrevista). Há alguns textos de Jorge Luis Borges e Severo Sarduy, um poema, vertical e isolado, de Roberto Juarroz e somente um ensaio de origem brasileira (em verdade franco-luso-brasileiro) precisamente da professora e crítica paulista, chamado “Pessoa personne?” (Tel Quel nº 60, Paris, inverno 1974). O que leva a pensar, segundo sugere Claudia Gilman, que os fenômenos do latino-americanismo e do boom representaram de fato uma séria ameaça aos “nouveaux romanciers, critiques et philosophes telqueliens”.[15] Cortázar, por exemplo, não existe para Tel Quel e quando o

14  Cf. “Beatriz Sarlo”.  In: Hora, R. y Trimboli,  J.  (org.). Pensar la Argentina. Los historiadores hablan de historia y política. Buenos Aires: Ediciones El Cielo Por Asalto, 1994, p. 168-169.

15  Cf. Gilman, C. Entre el fusil y la palabra, op. cit., p. 91.

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escritor franco-argentino se refere ao grupo da revista, é com ironia e en passant utilizando um anagrama (como Schmucler em sua entrevista): Quel sel... Mas a disseminação e a existência mesma da ideia de “telquelismo” somente se torna realidade depois da primeira etapa da revista, quando se encontra muito perto do nouveau roman e é declaradamente “apolítica”, o que significava: politicamente comprometida no combate do engagement sartriano. O período que denominamos “telqueliano” iria até 1977, quando o grupo de intelectuais maoístas malsucedidos volta aos Estados Unidos de maneira espetacular. Los Libros termina em 1976 e Piglia também está vinculado à cultura norte-americana, mas à sua maneira, simultaneamente realista e pasticheira, crítica e ficcional.

E por que Estados Unidos de América?, seria preciso perguntar aos franceses. Entre a surpresa e o sarcasmo, Annette Michelson – uma das diretoras da revista telqueliana norte-americana October – procede ao enterro da maolatria e, como consequência, da ideia de revolução superestrutural em Tel Quel no artigo “The agony of french-left” (October nº 6, Nova York, outono 1978). O luto promovido por October está dedicado à edição de outono de 1977 da revista francesa, especial, dupla, inteiramente consagrada aos Estados Unidos. Na capa se vê, desde a ponte do Brooklin, a famosa imagem de Nova York com as torres gêmeas, desintegradas em 2001. As primeiras vinte páginas, sob a forma de uma entrevista entre Sollers, Kristeva e Marcelin Pleynet – a santa trindade do telquelismo em seu ocaso – apresentam uma espécie de “manifesto americano do norte” com o título de “Por que Estados Unidos?”, objeto de surpresa e sarcasmo da revista norte-americana, que publica a conversa imediatamente antes da crítica de Michelson, na qual Tel Quel aparece como sintoma de uma crise mais ampla, a de toda a esquerda intelectual da década de 70:

Tel Quel, a revista da qual procede a entrevista anterior, foi fundada durante o regime de Charles de Gaulle, estendeu seu projeto e seu modo de ler até o epílogo de Pompidou e sobrevive durante a coalizão de centro-direita que sustenta o liberalismo de Giscard d’Estaing. O projeto de Tel Quel – a articulação política de uma teoria semiológica ancorada na estética mallarmeana, a psicanálise lacaniana e o marxismo althusseriano – foi se transformando durante quinze anos de mudanças e revisões. Sua trajetória errática descreve de maneira hiperbólica o caminho da esquerda francesa, capturada entre a aspiração maoísta e o tenaz stalinismo do Partido Comunista Francês. Alienada nessa tensão da classe operária e da militância, Tel Quel agora descobriu que aqueles pólos são idênticos.

Farto do seu próprio discurso sobre a necessidade do socialismo, da revolução mundial e da unificação do pensamento que esta possibilitaria, Sollers, o autor de Sobre o materialismo, abdica do (neo)marxismo e, junto

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com seus colegas althusserianos, se une a Raymond Aron e ao grupo dos nouveaux philosophes pelo direito à dissidência em nome dos “direitos humanos”... A conclusão, segundo Michelson, é a de que a ideologia gaullista, que alardeava “le rayonnement de la culture française”, muda seus tradicionais artigos de exportação de uma intensa produção artística a uma prática teórica hipertrofiada, assim como seu objetivo muda do conceito de “transgressão” a diferentes formas de institucionalização. O que de algum modo ocorre também no Brasil e na Argentina, mas talvez com uma história menos previsível do que a de Kristeva, como na conversa reproduzida em October:

Eu tinha cada vez mais a impressão de que o que ocorria na França, como consequência dos diferentes desenvolvimentos do gaullismo declinante por um lado, e da ascensão das forças ditas de massas ou de massas pequeno-burguesas do outro, fazia do continente europeu uma história previsível. E, se estivéssemos interessados nas rupturas da história, da cultura e do tempo, seria necessário mudar de continente. Tentei fazer esta mudança também com um interesse pela China, entendida como um sobressalto anarquista no interior do marxismo. Mas finalmente os resultados da viagem à China me fizeram compreender que se trata de uma reedição, talvez revisada, mas reedição de qualquer maneira, do mesmo modelo stalinista, digamos marxista-stalinista. Foi então, por curiosidade e por desejo de descobrir outra solução para a encruzilhada ocidental, que voei três vezes, uma vez com uma permanência mais extensa, aos Estados Unidos.

Como escreveu Jorge Panesi, “a história americana é inconcebível sem o jogo pelo qual o americano vê os outros olhar América”.[16] O impasse ocidental é naturalmente parte da agenda dos telquelianos latino-americanos, cujas soluções são, no entanto, geralmente “bárbaras e nossas”, como diz o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Contra o dependentismo e sua ideologia, a das ideias transplantadas e “fora de lugar” (Roberto Schwarz), é preferível ler – diz Antelo – “uma modernidade dos pobres e dependentes que redefine a modernidade como universalidade desde uma atividade de inércia traduzida como energia diferencial ou transgressiva”,[17] com um olhar situado entre Georges Bataille (a ideia de despesa) e Mário de Andrade (a concretização da ideia de despesa em Macunaíma), por exemplo. Não é casualidade que um poeta como Haroldo de Campos (1929-2003) – mestre e interlocutor de Perrone-Moisés e à

16  Panesi, J. “Encantos de un escritor de larga risa” (sobre Un episodio en la vida del pintor viajero, de César Aira). Clarín, Suplemento Cultura y Nación, Buenos Aires, 6 de agosto de 2000.

17  Antelo,  R.  “Transgressão  e  estudos  culturais”.  Transgressão e modernidade.  Ponta  Grossa: Editora UEPG, 2001, p. 16.

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sua maneira um telqueliano – reivindique a primazia do uso do conceito derridiano de “desconstrução” (assim como fez em relação ao conceito de “neobarroco”) através do movimento antropofágico dos anos 20:

Para nós não é nova a idéia de “desconstrução” do orgulhoso logocentrismo ocidental europeu, à maneira de Derrida, já que tínhamos a antropofagia oswaldiana que é em si mesma uma forma “brutalista” de “desconstrução” sob uma espécie de devoração, de deglutição do legado cultural universal.[18]

Assim, parece possível colocar em paralelo uma série de questões referidas aos modos de ler dos intelectuais latino-americanos formados nos “anos de chumbo”, assim como o “telquelismo 68”, a Teoria de conjunto do mesmo ano e o conceito de texto, disseminado desde o encontro com Kristeva por um cada vez mais onipresente Barthes. Da mesma maneira que se publicam edições em italiano da revista francesa, Piglia, o autor de La invasión, trabalha em um projeto de versão argentina de Tel Quel que não se concretizou mas chegou a ser anunciado nas páginas de Los Libros em 1969. Muito mais que no Brasil do “desbunde” (a revolução comportamental), as chamadas “patrulhas ideológicas” agiram com intensidade na Argentina dos anos prévios à última ditadura militar (1976-1983), o que se verifica facilmente na revista portenha. Seu primeiro diretor dedicava a maior parte dos editoriais a se justificar e explicitar seu modo de adesão a determinadas tendências intelectuais europeias, sua compreensão dos modelos importados, em outra variante da velha tensão entre bárbaros e europeus, civilização e barbárie. Na segunda metade do século XX passam a se confrontar em Los Libros, segundo Panesi, “populistas” (identificados com o peronismo, caso de Schmucler e Rosa) e “cientificistas”, em um espaço político de uma esquerda mais eclética, na qual podiam aparecer lado a lado tanto o liberalismo de Bioy Casares como o comunismo oligárquico de Maria Rosa Oliver. Panesi sublinha igualmente, em seu detalhado estudo sobre a crítica da época, o caráter de “inquisidores” dos críticos de Los Libros, à maneira de Tel Quel.[19]

Vale lembrar também que José Sázbon, o professor de marxismo do grupo, aborda a “moda estruturalista” de maneira muito negativa nas edições n° 2 e n° 6 da revista argentina, e Eliseo Verón discute o mesmo problema no n° 9, ambos de um ou outro modo buscando saídas à institucionalização do mesmo estruturalismo e da sua dissidência telqueliana na França ou na Argentina. A Teoria de conjunto, por exemplo, pretendia se colocar para

18  Cf. Campos, H. de. “Minha relação com a tradição é musical”. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 261 (reportagem de 1983 a Rodrigo Naves).

19  Panesi, J. “La crítica argentina y el discurso de la dependencia”. Críticas. Buenos Aires: Norma, 2000, p. 17-48.

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além das “estruturas” e das “formas”, vale dizer, do “formalismo”, numa crítica do “sistema burguês” baseada simultaneamente em Freud, Marx, Derrida, Lautréamont e Mallarmé (segundo a lista de Forest), girando em torno de três eixos propulsores da “revolução”: a escritura textual, a gramatologia e o materialismo. Nesses primeiros anos de Los Libros a mistura de vozes teóricas francesas com práticas políticas e literárias dos trópicos sustentam o discurso da “filosofia da diferença”, apesar do potente discurso nacionalista da época. Talvez não seja casual que, durante a crise da primeira etapa da revista, os artigos apareçam mais preocupados com a difusão do pensamento de Jacques Derrida. Um dos tradutores-introdutores argentinos de Derrida, Ricardo Pochtar, escreve sobre a “Gramatología: ciencia de la escritura” na edição no 24, de janeiro de 1972. Trata-se de uma síntese do livro por alguém interessado e autorizado: é o “revisor técnico” da versão que a Editorial Siglo XXI recém-publicava, com tradução de Oscar del Barco e Conrado Ceretti.

Observemos então que o artigo derridiano aparece em Los Libros em um momento de transição, no qual são elucidadas as diferenças intelectuais e políticas no interior do próprio grupo, estimulado pelo clima de guerrilha generalizada. Um dos sintomas da crise é a mudança material da revista, que começa a circular em preto e branco. Também seria modificado seu conselho diretor que, a partir do n° 24, no início de 1972, passa a ser integrado por Ricardo Piglia, Carlos Altamirano e Héctor Schmucler. No editorial anônimo do número “uruguaio” de Los Libros é abordada a recente vitória eleitoral da direita no Uruguai, cujo esquema político “volta a ser organizado pela incômoda presença do Movimento de Liberação Nacional”, nome oficial dos Tupamaros, “o mais avançado movimento de guerrilha urbana latino-americana”. Daí ao outro lado do mundo é só um passo, um mergulho no continente chinês dos dazibaos e das palavras de ordem disfarçadas de ideogramas: a China como “poema dialético”, conforme a mitologia construída pelos bons franceses. Europeias ou americanas, as práticas destas vanguardas intelectuais “revolucionárias” resultariam em uma decidida institucionalização, um rápido trânsito da radicalização e a estridência para algum modo mais silencioso e inexorável de integração. Poderíamos perguntar como essas neovanguardas abandonam a ideia de se unir aos proletários, os que não têm, ou seja, como abandonam a ideia de unir o artista, o escritor e o poeta ao que não é, para retomar os termos de Sollers ao concluir o ensaio “Literatura e totalidade” (1966) sobre Mallarmé.[20] O telquelismo tinha sonhado pensar como Nietzsche vertido ao francês: “Je veux le monde et je le veux tel quel, le veux encore, le veux éternellement”.[21] Mas tudo leva a crer que Tel Quel nunca passou mesmo 20  Sollers, P. L’écriture et l’expérience des limites. Paris: Seuil, 1967.21  “Eu quero o mundo, e o quero tal qual, o quero ainda, o quero eternamente”.

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de L’Infini (nome da revista de Sollers que sucede Tel Quel), vale dizer, da consagração e estabilização de um discurso liberalizante em sua tradicional trincheira, profundamente enraizada na indústria cultural europeia, depois de sua disseminação por diferentes partes do Ocidente, o que não quer dizer que seus modos de aclimatação sejam os mesmos no Rio, em São Paulo, em Nova York ou em Buenos Aires.

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Silviano Santiago no entre-lugar

O célebre personagem de Ficções é o resultado de uma hibridação, um misto de Stéphane Mallarmé com o próprio Jorge Luis Borges. Assim o lê Silviano Santiago em “O entre-lugar do escritor latino americano”, seu influente ensaio de 1971:

Pierre Menard, romancista e poeta simbolista, mas também leitor infatigável, devorador de livros, será a metáfora ideal para bem precisar a situação e o papel do escritor latino-americano, vivendo entre a assimilação do modelo original (isto é, entre o amor e o respeito pelo já escrito) e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue.[22]

Sem dúvida, os “novos críticos” argentinos e brasileiros ocupam esse lugar discursivo ambivalente, assim como refletem os novos desafios e questionamentos do campo cultural latino-americano, sob perspectivas teóricas similares mas com marcas e trajetórias obviamente diferentes. Trata-se de um lugar mais diaspórico e internacionalizado, no caso dos intelectuais brasileiros, ao mesmo tempo que, no caso dos argentinos, foi mais duro e nacionalizado, em maior tensão com a cultura francesa e europeia em geral. Tomamos seus primeiros ensaios críticos como prototextos ficcionais ou “pequenos romances de formação”, cuja experiência narrada é para todos eles uma experiência de guerra vivida em função de um certo tipo de vanguardismo estético-político que se pode chamar de telqueliano.

“Nosso dramático século XX”[23] já parece longe, mas voltaremos “para o futuro” seguindo o rastro desses críticos-escritores no jornalismo cultural latino-americano dos anos 60, a década “louca” ou “prodigiosa”,[24] e da década seguinte, desde a perspectiva hibridizante representada pelo conceito de entre-lugar. Como possibilidade de saída do grande curto-circuito da modernidade na cultura ocidental, a perspectiva comum aos intelectuais latino-americanos incluídos nesta pesquisa resulta de uma forte emergência e plena expansão da cultura popular de massa, experimentada e entendida de diferentes ângulos por cada um deles. Vale a pena resumir o debate sobre a nova ordem mundial com a ajuda dessa mistura de intelectual

22  Santiago, S. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Uma literatura nos trópicos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 23 (1ª ed. 1978).

23  Expressão extraída de “Aspectos do Nouveau Roman”, artigo de Perrone-Moisés publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo no dia 2 de abril de 1960. 

24  Como  é  chamada  respectivamente  por  Caetano  Veloso  em  Verdade Tropical  (São  Paulo: Companhia das Letras, 1997) e Sempere y Corazón em La década prodigiosa, 60s, 70s (Madri: Felmar, 1976).

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e “superastro”[25] brasileiro chamado Caetano Veloso, conhecido defensor da indústria cultural que em Verdade Tropical, o romance de formação do movimento tropicalista, diz polemicamente:

Hoje são tantas as evidências de que, por um lado, toda tentativa de não-alinhamento aos interesses do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às liberdades fundamentais e de que, por outro lado, qualquer projeto nacionalista de independência econômica conduziria a um fechamento do país à modernidade.[26]

Digamos que o dilema e os esforços desses jovens intelectuais se concentravam em uma elaboração crítica desta opinião, apesar das posições mais brandas dos dois brasileiros, porque são brasileiros e porque se situam mais longe do maoísmo. No entanto, para o famoso cantor, que na juventude foi crítico de cinema, a cultura de massas é vista como um fenômeno muito saudável e produtivo. Hoje é possível verificar que quase tudo era verdade em relação ao futuro neoliberal do Brasil, o “país do futuro” (segundo Stephan Zweig), sendo, no entanto, uma “nação falida”, segundo o mesmo Veloso nos anos 90. Entre outras consequências, há uma “floração das revistas”, como percebe Perrone-Moisés nos 70, ao se referir outra vez ao universo intelectual francês: “O fenômeno mais característico da atividade literária francesa da atualidade tal vez seja a floração das revistas”, diz no começo de seu artigo dedicado a um pujante mercado editorial, de que trata de destacar três revistas em particular: Poétique, Tel Quel e Change (a dissidência de Tel Quel).[27] No entanto, esta “floração”, como costuma ocorrer no “entre-lugar descolonizante” da América Latina,[28] foi mais experimentada na qualidade de cópia transgressiva – pós-vanguardista e pós-utópica –, de ruptura em relação ao modelo original; cópia que além do mais aprende a viver perante a incerteza da própria sobrevivência. Haveria, então, nos trópicos um tipo de “floração” muito peculiar de revistas culturais, obrigando-as frequentemente a utilizar uma estratégia marginal de intervenção no campo da cultura. Ou, talvez, para utilizar uma metáfora mais bárbara e mais próxima de uma revista publicada por “bárbaros novos” como Los Libros, seria o caso de denominá-la uma “desfoliação”

25  Cf. o ensaio de Santiago “Caetano Veloso enquanto superastro” em Uma literatura nos trópicos, op. cit.

26  Veloso, C. Verdade tropical. São Paulo: Companhias das Letras, 1997, p. 52.27  Perrone-Moisés, L. “A floração das revistas”. O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, 23 de maio de 1970. Cf. capítulo 4.

28  Expressão-chave sugerida em diferentes  textos de Santiago, que apareceria de modo cabal em 1974 em sua “aula” sobre a vanguarda: “Vanguarda: um conceito e possivelmente um método”. Em Ávila, A. (ed.). O modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 117.

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de tipo vietnamita – procedimento de extermínio muito em voga naquele momento.[29]

Assim, à diferença dos intelectuais parisienses e de alguns epígonos locais, no terreno perigoso dessas neovanguardas tropicais, as empreitadas são obrigatoriamente heróicas, quer dizer, trazem colada a seus projetos de subversão teórica e prática a marca de um vitalismo inexistente em terras mais firmes. Terras – ou melhor, páginas – como as do Suplemento Literário do Estadão, o qual não poderia representar nenhuma via “alternativa” ao circular no corpo do velho jornal de tradição liberal-conservadora, mas que a reflete de vários modos, mais ou menos explícitos, amplificando assim o debate teórico-crítico centrado na Universidade de São Paulo por uma via comercial e massiva. O mesmo Suplemento Literário tinha alimentado constantemente a relação com o periodismo cultural através de uma seção semanal chamada “Revista das Revistas” por Lívio Xavier, um crítico moderado mas sempre atento à circulação internacional de revistas literárias e culturais em língua francesa e inglesa, além de portuguesa e espanhola. Quer dizer, a influência do Suplemento Literário – que teve seu auge, no entanto, na primeira metade dos anos 60 – é bastante reconhecida, assim como o fato de que seus leitores compartilhavam o hábito das citações em francês, ali onde a “floração das revistas” apareceu com sua cara mais progressista e contraditória.

Apesar das disparidades estruturais, as publicações de pequenos grupos de escritores independentes também respondiam à febre global de “ilustração”, vale dizer, de atualização e de confronto em torno da materialidade das ideias, assim como da vontade de compromisso. A diferença é que vão enfrentar os semanários dos grandes veículos de comunicação de sua época com as únicas armas disponíveis: suas maneiras invariavelmente contestatárias, seus métodos irredutivelmente desafiadores. Los Libros, inaugurada em meados de 1969, foi uma filha bastarda dessa floração ou desfoliação geral através da empresa bem calçada desse intelectual cordobês, Héctor Schmucler, ao lado de Ricardo Piglia, que sugeriu por sua vez o nome de Nicolás Rosa, crítico e ensaísta oriundo da cidade de Rosario que foi tradutor de Barthes (como Perrone-Moisés, como Sarlo, como Santiago), além de ter colaborado com o brasileiríssimo

29  Cf. Thet Tung, T. et al. “La guerra química. Efecto de la defoliación sobre la vida humana”. Los Libros no 18, Buenos Aires, abril de 1971, p. 9.

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Suplemento Literário de Minas Gerais.[30] Depois de militar sob o influxo de Gramsci na revista Pasado y Presente, Schmucler viaja à França, onde assiste aos seminários de Barthes e começa a cultivar a ideia de fazer uma revista cultural. A princípio e na superfície seria simplesmente a versão castelhana de La Quinzaine Littéraire[31] e essa seria a razão da recusa de Piglia ao convite para integrar seu conselho diretor, atuando somente nos bastidores até 1972, quando Schmucler é levado a deixar sua própria revista e Piglia a assume junto com Sarlo e Altamirano.

Sua primeira etapa é considerada tanto “estruturalosa” (para utilizar uma expressão de Jorge Onetti no nº 10) como “ressacralizadora do nada” (segundo Wouter Bosteels a propósito de Oscar del Barco).[32] Claro que tais posições não podem ser consideradas unânimes, já que nem tudo nela, mesmo nesse momento, poderia ser considerado “a-histórico” ou “absoluto”. No ensaio “A crítica argentina e o discurso da dependência”, Jorge Panesi problematiza a influência do estruturalismo francês na revista – “a coceira estruturalista, assincrônica entre países centrais e periféricos, já vinha com seu remédio incluído, com uma crítica ideológica posterior” – e questiona o ecletismo inicial de Los Libros.[33] Pouco a pouco, a revista vai se fazendo mais intervencionista e mais exposta aos acontecimentos políticos do momento, assumindo uma missão que se supunha redentora e regeneradora. O processo de desfoliação que vive Los Libros, isto é, sua gradual transformação em instrumento político, e sua deriva para a radicalização extrema, não só ocorre de modo irreversível, mas também revelará surpresas, por exemplo, ao passar de “Tel Quel a la Marcha Peronista”, conforme dirá duas décadas depois o escritor e psicanalista

30  Cf. Rosa, N.  “A sintaxe do  labirinto”  (sobre Borges). Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, 5 de junho de 1971. Em sua entrevista, Ricardo Piglia comenta: “Eu conhecia um artigo de Rosa sobre Cabrera Infante, em uma revista de Rosario, do qual tinha gostado muito, e quando começamos a ver com quem poderíamos fazê-la, pensamos também em Nicolás Rosa. A verdade é que quem participava no começo era Schmucler e eu, porque eu tinha sido contratado pelas pessoas que faziam a revista [Editora Galerna], mas não quis aparecer porque a revista me parecia muito eclética. A revista neste momento não tinha uma linha definida, era uma revista mais para criar um clima de discussão. Basicamente, o objetivo era discutir com a cultura de massas, centralmente  era  fazer  uma  revista  alternativa  aos  suplementos  dos  jornais,  aos  suplementos culturais dos jornais, atacar o modo como os jornais estavam se ocupando da literatura. Isto foi o que a revista fez durante todos seus primeiros anos, os três ou quatro primeiros anos, ajudada pela aparição do estruturalismo e, portanto, com a renovação da crítica literária, que nos permitiu criticar o tipo de crítica impressionista e comercial que se fazia”.

31  A  revista  de  Maurice  Nadeau  foi  inaugurada  em  1966.  Perrone-Moisés  resgatou  sua  longa trajetória, de 90 anos, em “O guardião do templo. Entrevista com Maurice Nadeau”. Folha de S. Paulo, Suplemento Mais, 13 de maio de 2001.

32  Bosteels, W. “Los Libros: desacralización o resacralización”. América. Cahiers du CRICCAL nº 15/16. Paris: Presses da Sorbonne Nouvelle, 1996, p. 428-31.

33  Panesi, J. “La crítica argentina y el discurso de la dependencia”. Críticas, op. cit., p. 39 e 43.

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Germán García, um de seus protagonistas.[34]

São estes os signos de uma extraordinária fermentação teórica, como anunciava então Perrone-Moisés no Suplemento Literário do mais tradicional jornal brasileiro, onde começou a “falar francês” ainda no fim dos anos 50 e a difundir o nouveau roman. O crítico Brito Broca foi seu predecessor imediato na seção “Letras Francesas”, mas com sua morte em 1961, a então pintora e literata paulistana[35] assume a seção em favor das tendências modernizadoras da cultura europeia, em oposição à linha conservadora e sem concessões de Broca. Da mesma “fermentação” participa Silviano Santiago, que no Brasil costumava aparecer nas páginas do suplemento do velho Estadão, assim como nas páginas dos “novos” jornais como Opinião, do Rio de Janeiro, ou o Suplemento Literário de Minas Gerais, criado por Aníbal Machado em 1967. Em “O banquete”, pequeno texto que aparece primeiro em São Paulo e logo vai finalizar seu livro homônimo, Santiago coloca-se estrategicamente entre os territórios da crítica e da ficção, da prosa e da poesia, de modo que vai publicar no mesmo jornal, desde o ensaio “Eça, autor de Madame Bovary” (em 28 de março e em 4 de abril de 1971) até “Dois poemas do abraço” (3 de junho de 1967) e “O banquete” (5 de outubro de 1968) – este com direito a uma epígrafe dadaísta, de Tristan Tzara, segundo a qual “a lógica é uma complicação, a lógica é sempre falsa”, em profissão de fé rupturista contra o que chamou então de “arte de vanguarda institucionalizada” (em referência ao concretismo).[36]

Ao lado do ensaio sobre o entre-lugar, que é um texto de estudada intervenção neste debate, seria possível ler em seu “Camões e Drummond: a Máquina do Mundo” (1966) outra manifestação pioneira por uma poética transgressora a partir da releitura modernista que o poeta Carlos Drummond de Andrade fez da fábula camoniana via ficção científica. Trata-se de um ensaio precoce que aparece primeiro nos Estados Unidos e um ano depois no Brasil, no qual Santiago já postulava uma “nova desprovincianização da

34  O criador da revista Literal – colaborador constante da primeira época de Los Libros – discorre longamente  sobre  a  época  em  “El  exilio  de  escribir”,  texto  publicado  em Hispamérica  nº  59 (1991), assim como em sua entrevista incluída neste livro.

35  Perrone-Moisés  estudou  pintura  com  o  húngaro  Samson  Flexor  (1907-1971),  exercitou-se  no abstracionismo geométrico e chegou a participar de exposições coletivas e a ilustrar textos para o Suplemento Literário. Cf. entrevista.

36  Em 1970 Santiago publica o livro de poemas Salto (Belo Horizonte: Imprensa Publicações), além dos “textos” de O banquete (Rio de Janeiro: Saga). “Eça, autor de Madame Bovary” é um dos seus ensaios mais importantes e reveladores (desde o título), escrito em inglês em 1970 e incluído em Uma literatura nos trópicos; está em franco diálogo com o ensaio sobre o entre-lugar.

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leitura”, como diz Raul Antelo.[37] O texto iria gerar o poema-brincadeira “Cammond & Drummões”, uma resposta bem-humorada do autor de Claro enigma ao artigo – “sem dúvida o melhor poema concreto radical de Drummond”, como assinala Santiago em sua entrevista.

Voltemos a esse escritor mineiro do mundo (à diferença do itabirano): é também durante os anos 60, portanto, que o ensaísmo literário e cultural de Santiago começa a explorar os caminhos da “nova crítica” e o “pensamento crítico francês mais atual, pós-existencialista”, como diria naquela época, de modo simpático, mas cauteloso.[38] Os artigos que aparecem nessa época nos dois países mostram que não se deixa levar pelos novos ventos sem alguma resistência. Em “Re-definir autodefinindo-se”, motivado pelo aparecimento do livro O poeta e a consciência crítica, do também mineiro Affonso Ávila, Santiago não apenas expõe sua concepção da vanguarda, referindo-se especificamente ao Brasil, como desafia o movimento concretista dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e de Décio Pignatari, ao designá-lo como uma “vanguarda institucionalizada”:

Essa constante manipulação da tradição pode, de certo modo, afetar o projeto criador (e de certa maneira está afetando), seja por querer impor uma severidade que não condiz com o próprio espírito anárquico e adolescente da obra de vanguarda, ou também por relegar a um segundo plano a possibilidade da destruição total e positiva/negativa (na medida em que se trata de arte de vanguarda, sublinhemos, e não de arte de vanguarda institucionalizada). Esse perigo também ronda todo o conceito de vanguarda (“chegou o momento da redefinição?”), tal como estava sendo explorado desde os anos 50 tanto em São Paulo, como no Rio e em Belo Horizonte. O lapso temporal que se dá de presente ao artista de vanguarda é curto e exigente.

Poderíamos ler a pergunta que aparece entre parênteses como uma afirmação – “chegou o momento da redefinição”–, na medida em que o texto questiona a hegemonia da já declinante vanguarda concretista, valendo-se para tanto da releitura do barroco de Ávila, a seu ver excessivamente exposta, como a de seus pares paulistas, ao influxo da tradição, o que resultaria em uma inevitável institucionalização, ou seja, na cristalização da veia crítica e transgressora, petrificação “em estátua pública” e absorção do discurso do escritor pela opinião corrente. Paralelamente, provocava Santiago, “poderia ser escrito todo um artigo sobre a recente manipulação

37  Cf. De Grandis, R. “La Ficción Crítica en los Noventa: Nuevos Textos, Nuevas Series-Posiciones y Reacomodos”. Entrevista com Raul Antelo. Luso-Brazilian Review vol. 32, no 1, University of Wisconsin, Summer 1995, p. 47.

38  Santiago, S. “Re-definir autodefinindo-se”. O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, 7 de fevereiro de 1970.

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e a constante consulta ao dicionário e à enciclopédia pelo grupo concretista paulista”.[39] O poeta-crítico auto-exilado deliberava nessa época a favor da ruptura a partir do lugar intersticial de seu próprio discurso, levando em conta simultaneamente o momento pós-utópico experimentado pelas poéticas modernas (e isto muito antes do “Pós-tudo” de Augusto de Campos):

Chegou o momento de analisar exatamente esse espaço vazio e aberto, não emocional, criador, instaurado pela ruptura entre os dois olhares, espaço quase imperceptível onde se move e escreve o poeta brasileiro de hoje. Espaço que seria inútil chamar de vanguarda e que, em verdade, delimita de maneira precisa o lugar onde pode sobreviver a poesia AGORA, poesia que não quer se tradicionalizar, mas que já não pode se vangloriar da destruição, e que (mais ainda) corre o perigo de se petrificar biblicamente no olhar concupiscente para o passado.

E, em conclusão, diz:

Que o poeta e sua consciência crítica nos sirvam de sinal de alerta. Já não somos de “vanguarda”, mas nos definimos por este compromisso com a vanguarda e a tradição, pela lucidez que não é de vanguarda e pela ousadia que não é a da tradição. Aproveitemos, enquanto dure, esse espaço aberto que se move ao se definir.

“Já não somos de vanguarda”: eis aqui uma precoce manifestação pós-vanguardista, correspondente ao que Ricardo Piglia diria, quase trinta anos depois, em uma entrevista ao mesmo O Estado de São Paulo: “O espírito de ruptura continua vivo, mas a ideia de estridência não interessa mais”.[40] Assim, sem estridência, a partir de 1970, Santiago propõe uma série de ensaios de interpretação “transnacional” através de leituras de literatura latino-americana à luz da teoria crítica francesa, entre Lévi-Strauss e Derrida – leituras estas que se querem bárbaras e não simplesmente galomaníacas. É o que se lê na advertência ao último ensaio de Uma literatura nos trópicos, “Análise e interpretação”: “Não se confunda, por obséquio, redução de campo de estudo a determinado grupo, cujo único fim é o de melhor (esperamos) apreender as ideias, com uma simples galomania”. Seu “manifesto”, no entanto, é o texto de abertura do livro, “O entre-lugar do discurso latino-americano”, espécie de fábula identitária paradoxal porque fala em nome da produtividade da repetição e da diferença, do acaso e do inconsciente, e postula um para-além da perspectiva dependentista dominante. Ou seja,

39  Ver  os  complementos  da  entrevista  de  Santiago,  onde  conta  o  que motivou  sua  ruptura  com Haroldo de Campos, depois de ter colaborado com Invenção, a revista concretista dos anos 60.

40  Cf. entrevista com Piglia por J. Castello. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 24 de junho de 1997.

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contra um olhar datado se propõe outro, avançado, ou “de vanguarda”, embora não se possa evitar o uso de um vocabulário de época, o qual com o tempo será matizado de maneira sutil e significativa por Santiago. O conceito de entre-lugar constitui, há já bastante tempo, uma espécie de talismã da crítica cultural em suas versões brasileira e latino-americana – com ecos também na América do Norte. No entanto, não deve ser empregado como lugar pacífico, moeda corrente do discurso intelectual, em processo de naturalização que significaria a rigorosa negação do mesmo conceito. De modo que cabe lê-lo no marco da transgressão estética e política no qual foi inscrito, destacando suas principais bases teóricas e filosóficas: de um lado, os modernismos brasileiro e hispano-americano (em seus diferentes momentos) e, de outro, a chamada teoria crítica francesa. O ensaio, escrito originalmente em francês no início de 1971, é dedicado a Eugenio Donato, um dos introdutores do estruturalismo nos Estados Unidos.

Também, lembremos que Santiago cunha – ou seja, rumina, traduz e devolve – a expressão, como título de uma conferência no Canadá, convidado pelo mesmo Donato; no entanto, este o faz mudar o título para “O nascimento do selvagem, antropofagia cultural e a literatura do Novo Mundo”, aparentemente por sua estranheza. Mais tarde, vai se disseminar pelo Brasil ao abrir a antologia cujo significativo subtítulo é “Ensaios sobre dependência cultural”.[41] Em certo sentido o lugar intersticial em questão não é senão uma ficção autobiográfica. Fiel à visão da crítica como ficção, trabalha o conceito a partir da sua própria “esquizofrenia” linguística e cultural, pois era “um brasileiro, professor de francês, numa universidade americana”:

Essa situação me fez voltar ao Brasil porque minha esquizofrenia tinha chegado a um ponto que já não aguentava mais (...). Não falava mais português, quero dizer, o português deixou de ser uma língua de utilidade para mim. E tenho a impressão que deve ter surgido desse caos (...). Foi para uma série de conferências que Eugenio Donato tinha organizado (...). Eugenio foi como professor-visitante para Montreal e me convidou – e realmente foi um luxo para mim porque estavam [René] Girard, [Michel] Foucault e eu (...). E depois penso que era um pouco enfrentar minha condição de não ter um lugar – eu não tinha literalmente um lugar. (Cf. entrevista)

Assim, na América do Norte durante a “década louca”, o poeta, crítico e professor gauche vai construindo à maneira desconstrutora o

41  Dir-se-ia  que  Santiago  “reinventou”  o  termo  assim  como  o  crítico  de  artes  Mário  Pedrosa “inventou” a arte “pós-moderna” em um texto de 1965 a propósito de Hélio Oiticica – não por acaso a principal referência artística de Santiago.

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seu próprio locus, que viria a ser o da folie do texto[42] sob a forma de uma “prosa carnavalesca”, e a ideia-mãe de uma “imaginação do paradoxo”. Paralelamente, com o conceito do “entre-lugar” Santiago busca “a ‘explicação’ de ‘nossa constituição’ (vale dizer, de nossa inteligência)”.[43] Há, então, duas tradições nesse texto-manifesto: de um lado, os escritores argentinos mais cosmopolitas, Borges e Cortázar, pai e filho, ambos celebrados mundialmente a partir dos anos 60; e, de outro, as grandes fontes são os Andrade e o movimento modernista dos anos 20 que, como se sabe, marcam profundamente a cultura brasileira com as primeiras reivindicações radicais de modernização e hibridação étnico-linguística surgidas no país, com o famoso gesto fundacional de Oswald de Andrade: “tupi or not tupi, that’s the question”. A respeito da conjunção ou (or, o), que não seria copulativa mas excludente, Santiago buscará matizá-la mais tarde, em um prefácio a um livro do sociólogo Gilberto Vasconcellos, em que define o tropicalismo como a soma de Dada com Oswald:

É mais do que curioso observar que não existe a conjunção ou no Manifesto Pau-Brasil (1924); ela se encontra esmagada pela conjunção e. O problema para Oswald é o de manter relações críticas entre todos os elementos, relações essas que acabam por exprimir a contradição inevitável entre os diversos componentes desse insustentável todo. O elemento já não expressa sua pureza (por exemplo: quando é julgado em separado), mas pelo que nele se deixou contaminar pelo seu oposto e pelo que nele contamina seu oposto.[44]

É assim que Oswald de Andrade, artista e “proletário” vanguardista, vai postular, no início dos anos 40, em plena guerra mundial e um pouco antes de sua morte, a mulatização da Alemanha – gesto do qual Santiago

42  A “loucura” da palavra francesa que em tradução bárbara ao português seria a “folia” (o carnaval), baseado  na  ideia  da  “participation  sans  appartenance”  própria  dos  gêneros  literários,  segundo Derrida em “La loi du genre”. Parages. Paris: Galilée, 1986, p. 256.

43  Em outro desdobramento da mesma  reflexão, o ensaio “Apesar de dependente, universal”, de 1980,  em  tom  fortemente  crítico  a  respeito  da  lenta  abertura  política  no  Brasil,  coloca  como epígrafe a famosa frase de Paulo Emilio Salles Gomes: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, para nós nada é estrangeiro pois tudo é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética entre o não ser e o ser outro”. Cf. Santiago, S. Vale quanto pesa. Ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 13.

44  Santiago, S. “Fazendo perguntas com o martelo” em Vasconcellos, G. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 6.

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não vai abdicar, muito pelo contrário[45]. Mas, assim como Oswald havia descoberto o Brasil em Paris, da França vêm os chamados “filósofos da descolonização” na qualidade de pensadores quase indiferenciados, já que no ensaio são ignoradas as polêmicas e as diferentes posições no campo intelectual de Lévi-Strauss, Lacan, Foucault, Barthes, Derrida ou Althusser, principalmente em relação ao estruturalismo. Em Québec, a fronteira franco-americana cujo ambiente político era tenso e propício ao debate, falava o estudioso de Lévi-Strauss, mas não ainda de Derrida (cf. entrevista). O texto é introduzido por um exemplo dos Ensaios de Montaigne e o conhecido capítulo sobre os canibais do Novo Mundo que não são, segundo um antigo rei, de nenhuma maneira bárbaros. Estimulado pelo “canibal letrado”,[46] adota um tom entusiasta próprio dos libelos vanguardistas e então vislumbra a possibilidade de uma inversão (ou transvaloração) de todos os valores. Anos depois, em uma nota de rodapé no começo do texto, superpõe na edição em livro uma passagem de A escritura e a diferença que elogia a etnologia em nome do descentramento da cultura europeia hegemônica. Evidentemente, a etnologia é Lévi-Strauss, sobretudo nos anos 60, e o ensaísta brasileiro vai se apoiar na pesada nostalgia lévi-straussiana sem problemas. No entanto, neste livro seminal Derrida travava seu combate contra a tristeza, de fato pouco tropical, do autor de Tristes trópicos. Se confrontarmos o primeiro ensaio de Uma literatura nos trópicos e o último, “Análise e interpretação” – pensado já sobre ideias de Derrida, além de Barthes – percebe-se que o autor realizava um work in progress teórico e, finalmente, responderia ao debate propondo uma interpretação pessoal do que denomina, em outro lugar, “o labirinto da différance”.[47] Trata-se, sem dúvida, de passos decisivos para sua própria “abertura gramatológica” que obtém suas melhores performances literárias uma década mais tarde, com os romances questionadores do gênero romance Em liberdade e Stella Manhattan.[48]

45  Sobre a “mulatização” da Alemanha ver Andrade, O. de. “Sol da meia-noite”. Ponta de lança. Obras completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 1991. No prefácio a Ponta de lança, reunião de crônicas  jornalísticas oswaldianas de 1943 e 44, o mesmo Santiago atualizaria suas posições a favor do pluralismo, oferecendo uma versão mais politicamente correta do incorreto e iconoclasta Oswald.

46  Como o mesmo Oswald chamou Montaigne em Ponta de lança (p. 78).47  Um dos lugares privilegiados da experiência desconstrutiva no Brasil, o Glossário de Derrida, com 62 verbetes, foi o resultado de um curso de pós-graduação na PUC-RJ dirigido por Santiago em 1975.

48  Segundo  Idelber  Avelar,  Em liberdade  (1981)  representa  a  grande  atualização  do  programa estabelecido no  ensaio  sobre o  entre-lugar. Cf. Avelar,  I. The untimely present. Postdictatorial Latin American fiction and the task of mourning. Durham/London: Duke University Press, 1999, p. 140.

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De acordo com o espírito da época, Santiago adotaria um tom politizado ao expor no ensaio os motivos práticos para a reivindicação do seu entre-lugar descolonizante: “O neocolonialismo, a nova máscara que aterroriza o Terceiro Mundo”. Para tanto postula a miscigenação de linhagem oswaldiana e ironiza, como Lévi-Strauss, a situação do novo como démodé, que era aquela da Europa colonial nos trópicos. É aqui, a partir do que chama de “pequenas metamorfoses, estranhas corrupções”, onde “o elemento híbrido reina”, que para ele é possível encontrar a grande contribuição da América Latina à cultura ocidental, caracterizada como um desvio da norma, mas “ativo e destruidor”. A respeito da função do intelectual, em uma citação silenciosa da carta de Pound a propósito do mercado literário e de Wall Street, diz Santiago: “Falar, escrever é falar contra, escrever contra”. O grupo de Los Libros poderia adotar o mesmo lema e de modo tal vez menos retórico que o de Santiago, porque as circunstâncias políticas o tornam cada vez mais colado ao “real”, ao mesmo tempo em que sua história – entre Tel Quel e La Marcha Peronista, entre uma ditadura militar e outra – condensa a da Argentina da época. De uma maneira ou outra, se a condição do etnólogo como herói anti-imperialista – os “verdadeiros responsáveis pela desmistificação do discurso da história” – é retomada várias vezes no ensaio, o jovem Santiago o faz em nome da sua grande questão: seguir o modelo central ou marcar sua diferença pela contaminação através da conjunção e. Mas se há um objetivo mais “prático” no ensaio, este foi o de fazer a crítica e postular a ruptura com os modelos reativos empregados na universidade brasileira, no caso das letras, os dos velhos estudos de fontes e influências, próprios do “pensamento colonizado”, do “saber introjetado”,[49] recalcitrante e falido. Sua intervenção, portanto, não procura mais que esvaziar – diz – a memória enciclopédica do crítico razoável. Para isso, entre outras coisas, vai sugerir, com ironia, a necessidade de uma investigação psicanalítica sobre o prazer que sentem certos professores no instante da descoberta de uma influência e de toda sua “verdade”. Na realidade, Santiago não procura mais do que a sua verdade, a de “um novo discurso crítico cujo único valor será a diferença”.[50] Mas, se no ensaio escolhe ignorar a polêmica entre os dois pensadores franceses, não vai deixar de destacar a mudança de Barthes com relação ao cientificismo estruturalista a partir de fins dos anos 60. Esta significa, para ele, um convite à práxis, à prática da escritura e à transformação do leitor em produtor de textos. Daí o compromisso incondicional com o “já dito”, que também menciona

49  Expressão empregada em “Apesar de dependente, universal”, op. cit., p. 21.50  Santiago, S. “O entre-lugar do discurso latino-americano”, op. cit., p. 18.

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a partir de Foucault (a seu lado, na mesa)[51] ou, ainda, com o “já escrito”, a obra segunda onde o leitor-autor buscaria surpreender o modelo original nas suas limitações, destruindo-as e rearticulando-as à vontade: “O escritor latino-americano brinca com os signos de outro escritor”.[52]

Em 1974 Santiago radica-se definitivamente no Rio de Janeiro, cidade que sobrevive, em plena era do desbunde, dos hippies e da cultura alternativa, em meio ao fogo cruzado do embate entre guerrilha e Estado, experimentado então por vários países latino-americanos. É assim que, entre o desbunde tropicalista e a seriedade do professor universitário, vai descrever, por exemplo, a escritura do “texto segundo” no ensaio sobre o entre-lugar: em parte, trata-se de uma experiência sensual com o signo estrangeiro e, nesse lugar, visto como o foco da subversão dos costumes, tudo deve ser possível através dos recursos da paródia, do pastiche, da digressão e do que chamaria de “tradução global”, para uma melhor configuração possível dos “antídotos” necessários. Estes antídotos serão três, pontualmente apresentados dez anos mais tarde em “Apesar de dependente, universal”, sem deixar de reconhecer a importância do concretismo: 1. a antropofagia cultural “brilhantemente inventada por Oswald de Andrade”; 2. a noção de traição da memória, “eruditamente postulada por Mário de Andrade”;[53] 3. a noção “bem pensante e possivelmente ideológica” de corte radical, “recentemente defendida e daquela forma nomeada pelo grupo concreto paulista”. A tradução seria “global” quando

o signo estrangeiro se reflete no espelho do dicionário e na imaginação criadora do escritor latino-americano e se dissemina pela página em branco com a graça e o dengue do movimento da mão que traça linhas e curvas. Durante o processo de tradução, o imaginário do escritor está sempre em cena.[54]

51  A propósito, como Foucault terá escutado a leitura dessa palestra simultaneamente lévi-straussiana e derridiana justo no momento mais hostil da sua relação com Derrida? Gayatri Spivak no prefácio a Of Grammatology narra a trajetória desse debate que vai da primeira (1961) à segunda (1972) edição da Histoire de la folie, onde Foucault decide incluir uma extensa e agressiva refutação às críticas de Derrida, que o julgava ainda amarrado a esquemas estruturalistas.

52  Idem, p. 21.53  Conceito de Mário de Andrade para responder às acusações de plágio da obra do etnógrafo Koch-Grünberg em Macunaíma (1928): “Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, nas Cartas pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quanto solene língua dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa”. Cf. carta do escritor em Ancona Lopez, Telê. Mário de Andrade: ramais e caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972.

54  Santiago, S., op. cit., p. 21.

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Para tanto, o exemplo oferecido e festejado é o do Cortázar de 62 modelo para armar[55] e assim Santiago responderia, ainda que lateralmente, ao próprio fenômeno do boom, uma vez que, além do seu caráter fundador, o ensaio sobre o entre-lugar também é um documento de época. A marca derridiana é muito valorizada no que se refere à questão da tradução: “Acompanhamos de perto o ensinamento de Derrida a respeito do problema da tradução em seus pressupostos gramatológicos”, diz em uma nota de rodapé, além de citar uma passagem de Posições sobre a tradução como prática da diferença entre significante e significado, ou seja, como transformação antes que tradução.[56] É quando Santiago introduz o tema mais importante da sua leitura em companhia de Pierre Menard, que representaria, como vimos, a “metáfora ideal” para “precisar a situação e o papel do escritor latino-americano”: o personagem borgiano seria assim o semblante dos escritores latino-americanos, ou sua linguagem sob a forma de máscara, em sua recusa à espontaneidade e em sua escolha consciente do conhecimento como forma de produção. Menard epitomizaria o mito da liberdade total da criação, “típica da cultura neo-colonialista ocidental”, uma vez que se instala na transgressão ao modelo, “no movimento imperceptível e sutil da conversão, da perversão, da viravolta”.[57] Significativamente, quando termina seu elogio a Menard fazendo menção à ideia de “formas-prisão” de Robert Desnos – e afirmando que “o artista latino-americano aceita a prisão como forma de conduta” e “a transgride como forma de expressão” –, Santiago dá a palavra a Althusser. Lembremos os termos da conexão: como sugere o personagem de Borges, o conhecimento jamais suspenderia a criação dos escritores latino-americanos porque ele é o próprio princípio organizador da produção do texto; sua técnica e sua leitura seriam, portanto, culpadas, como a bem conhecida leitura de Althusser a respeito de Marx, na introdução à segunda edição de Ler O Capital (1968): trata-se, como ele mesmo assume, de um leitor de outro leitor. O que conduzirá a sua tomada de posição perante o auditório canadense, da mesma maneira que o fará postular mais tarde um “socialismo democrático” em “Apesar de dependente, universal”. Assim, por um lado, como dissemos, vai combater na universidade brasileira aqueles que não querem ir além das dívidas do escritor com o seu modelo central e, por outro lado, “o discurso de uma crítica pseudo-marxista que reza uma prática primária do texto, observando que sua eficácia seria a consequência de uma leitura fácil”. É

55  Vale observar que neste ponto coincide com Héctor Schmucler, que dedica a 62 uma  resenha em que toma-o como modelo para a “nova crítica” enquanto “narrativa não-representativa”. Cf. Schmucler, H. “Notas para una  lectura de Cortázar”. Los Libros nº 2, Buenos Aires, agosto de 1969, p. 11.

56  Santiago, S., op. cit., p. 22.57  Idem, p. 24-25.

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o que se poderia definir como uma variante esquerdista anti-sectária, “tropicalista” – variante meramente “festiva” na opinião de outro intelectual brasileiro, Augusto Boal, por exemplo, mas nas páginas de Los Libros, como veremos a seguir. Esta “canção de protesto” desata o refrão grandiloquente e conclusivo, fórmula-limite e repetitiva do entre-lugar, segundo a qual

entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.

Digamos finalmente que o entre-lugar, como Madame Bovary, “sou eu”. O que equivaleria a dizer que a posição de Santiago como misto de escritor e professor universitário, artista e acadêmico, leitor e autor é a de um sujeito incerto que busca, como Derrida, a afirmação democrática da diferença, de uma “democracia por vir”, ou seja, não faz mais que reafirmar as “memórias póstumas” da utopia, o pós-tudo muito antes do famoso poema homônimo de Augusto de Campos.[58]

58  Poema publicado na contracapa do suplemento Folhetim da Folha de S. Paulo em 27 de janeiro de 1985, que abre acirrada polêmica com o crítico Roberto Schwarz.

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Tropicalismos e antitropicalismos

O inflamado artigo de Augusto Boal aparece no número de Los Libros dedicado ao Chile, no início de 1971.[59] O teatrólogo carioca errante, criador do “Teatro do Oprimido”, que viveu em São Paulo, em Nova York, em Lima e em Buenos Aires, entre outras cidades do mundo, era então um militante esquerdista ortodoxo radicalizado. Em sua passagem pela capital argentina, além de atividades vinculadas ao teatro,[60] mantém contato com o grupo de Los Libros, onde publica um artigo extremamente panfletário, no qual a “situação do teatro brasileiro”, de seu ponto de vista, é a situação de toda a cultura brasileira. O artigo é particularmente ilustrativo para contrastar com a visão de Silviano Santiago que acabo de apresentar; é sintomático, por outro lado, que Boal tivesse contribuído à época tanto com Los Libros quanto com o Suplemento Literário do Estadão. Mas o momento do seu exílio argentino coincide com uma intensificação da repressão no Brasil do General Médici e, quando viaja ao país, é novamente detido e torturado, o que a revista portenha não deixaria de registrar no número seguinte.

Augusto Boal postula então a divisão da cultura brasileira em três grandes áreas, em uma das quais se encontraria por inteiro o autor de Uma literatura nos trópicos. O setor é apelidado por ele – que escreveu um manifesto antitropicalista em 1967, lido na porta de uma faculdade de São Paulo onde Gilberto Gil e Caetano Veloso falavam – como “tropicalismo chacriniano-dercinesco-neorromântico”, resultando em uma sugestiva classificação que se pretendia ofensiva.[61] Em 1972 Santiago tinha publicado o ensaio “Caetano Veloso enquanto superastro” (incluído neste seu primeiro livro de ensaios) e em 1973 o “Rock de Carlos para Drummond”, para mencionar dois exemplos relacionados à “execrável” (para Boal) cultura de massa. O texto sobre Caetano é uma verdadeira ode ao “desbunde”, palavra-chave do imaginário contracultural brasileiro: o “desbunde”, diz Santiago, “não pode ser definido como se fosse um conceito nem muito menos como uma regra de comportamento. É antes um espetáculo onde se irmanam uma

59  Boal, A. “Situación del teatro brasileño”. Los Libros no 15-16, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1971, p. 8-10.

60  Nos cinco anos em que permanece na Argentina, para onde se dirige depois de  ter sido preso e  torturado  em 1971, Boal  desenvolve  o  chamado  “Teatro  Invisível”,  parte  de  seu  “Teatro  do Oprimido”.

61  Chacrinha (José Abelardo Barbosa de Medeiros, 1917-1988), personagem mítico do imaginário popular  brasileiro,  nasceu  no  interior  de  Pernambuco  e  foi  um  humorista  ao  mesmo  tempo grotesco,  anárquico  e  carismático  que  seria  o  primeiro  grande  apresentador  de  programas  de auditório – “A Buzina do Chacrinha” – da Rede Globo na década de 70 (censurado durante vários anos);  “dercinesco”  é  uma  referência  a Dercy Gonçalves  (Rio  de  Janeiro,  1907-2008),  atriz  e humorista da televisão, cinema e teatro brasileiros, famosa por ser desbocada.

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atitude artística de vida e uma atitude existencial de arte, confundindo-se”.[62] Já o “Rock” é uma colagem que se quer limitada à sua circunstância, como mostra a nota final: “Os dois poemas de Drummond [transcritos no texto] são do livro Sentimento do mundo (1940). O contraponto sonoro é de Sá, Rodrix e Guarabira [trio folk brasileiro famoso à época], de 1972, entrecortado pela voz de Caetano em 67”.[63]

A tensão com a cultura de massa entendida como porta-voz do sistema capitalista adquire formas contundentes entre os grupos esquerdistas radicalizados, e as boas relações com os tropicalistas brasileiros – a esquerda “festiva” – é vista como uma traição. Trata-se de uma perspectiva compartilhada por Boal e o discurso que se faz hegemônico em Los Libros, que passa a dedicar mais atenção ao tema, por exemplo, através de artigos assinados pela jovem Beatriz Sarlo Sabajanes. Seu primeiro texto na revista realiza, precisamente, uma crítica feroz a outra revista cultural, chamada Nueva Crítica.[64] Mais tarde, em Punto de Vista, Sarlo irá desenvolver o conceito de “videopolítica”, o qual se pode dizer que os tropicalistas anteviram de diferentes maneiras, desde a intervenção fundadora da “Tropicália” (1967), a instalação homônima de Hélio Oiticica constituída por um caminho de areia em espiral rodeado de verde, conduzindo a um aparelho de televisão permanentemente ligado.

Da mesma maneira ligado, mas ao teatro político e latino-americanista do período, Boal é merecedor de uma posição relevante no corpo da primeira edição de Los Libros do ano 1971. Seu panfleto é o segundo texto publicado nesse número, sucedendo outra feroz invectiva assinada por Nicolás Rosa, que seria como que o golpe final à revista Sur de Victoria Ocampo, então recém-extinta. Já o primeiro parágrafo do artigo de Boal, traduzido por René Palacios More (militante comunista e tradutor de literatura brasileira), é uma receita guerrilheira para esquerdistas “festivos, sérios ou sisudos”, nos termos do próprio Boal. Ou seja, um chamado à união de uma então vasta legião com um tom entre voluntarioso, conciliador e primitivo:

Os reacionários sempre buscam sob qualquer pretexto dividir a esquerda. A luta que deve ser empreendida contra eles às vezes é empreendida por eles no seio da própria esquerda. Por isso, nós – festivos, sérios ou sisudos – temos que nos precaver. Nós, os que em diferente grau desejamos modificações radicais na arte e na sociedade, devemos evitar que diferenças táticas de cada grupo artístico se transformem em uma estratégia global

62  Santiago, S., op. cit., p. 149.63  Santiago, S.  “Rock de Carlos para Drummond”. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, 28 de outubro de 1973, p. 11.

64  Sarlo Sabajanes, B. “Nueva Crítica”. Los Libros nº 10, Buenos Aires, agosto, 1970. Cf. capítulo 5.

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suicida. O que os reacionários desejam é ver a esquerda transformada em um saco de gatos; desejam que a esquerda derrote a si mesma. E contra isto temos que reagir: temos o dever de impedi-lo.[65]

De modo que o Brasil invade a oficina de Los Libros, em plena etapa de latino-americanização, quando o estentor do dramaturgo brasileiro antitropicalista abre sua porta com a típica eloquência dos discursos de propaganda política. Detentor da verdade redentora, Boal clamava pela união da esquerda e desafiava as ditaduras militares, nesse caso através de um libelo dedicado às três tendências majoritárias do teatro brasileiro, segundo sua opinião: o “neo-realismo”, mais documental que combativo, de por exemplo Plínio Marcos; a “exortação” ao povo do Teatro de Arena, de Gianfrancesco Guarnieri e do próprio Boal; e por último o chamado “tropicalismo chacriniano-dercinesco-neorromântico”. Este monstro cômico-grotesco “pretende ser tudo e não é nada”, diz Boal – e “ser tudo” porque o setor costumava abraçar, sem preconceitos, de Beatles a João Gilberto, de Noel Rosa a Haroldo de Campos. Mas concederia à criatura – neste que é um dos textos mais arbitrários aparecidos na revista à época – certas virtudes, como o fez o crítico Roberto Schwarz,[66] entre as quais (escreve Boal) a de ter inventado o “portunhol”. No entanto será, para ele, a tendência politicamente mais próxima às versões de direita, ao misturar Roberto Carlos com Jack [sic] Lennon e por ser importada e “antipovo” – em uma palavra, e sem exagero, os tropicalistas, segundo ele, não seriam mais do que um bando de “criminosos”. E então conclui pobre e melancolicamente seu artigo afirmando com todas as letras que “a Verdade” em breve estaria exposta na 1ª Feira Paulista do Opinião, vale dizer, da sua própria companhia teatral.

Lembremos aqui que a tarefa de animação cultural de Santiago nos Estados Unidos durante o ano de 1971 incluiu apresentações de “Arena conta Zumbi”, o maior sucesso do Teatro de Arena; uma exposição de Hélio Oiticica; e uma retrospectiva de filmes de Glauber Rocha, com a presença do diretor, na State Univesity of New York at Buffalo, onde o professor e escritor mineiro trabalhou. Vale a pena mencionar também – baseado no que se julgava a tendência politicamente correta à esquerda em uma revista político-cultural não menos “razoável” da Argentina – uma das notas de rodapé do artigo de Boal, a que faz referência a um ponto central da cidade

65  Boal, A., op. cit., p. 8. 66  Cf. Schwarz, R. “Cultura e política 1964-1969”. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Para Roberto Schwarz, além de trazer um “alento desmistificador” à cultura brasileira, o tropicalismo se vinculava a uma tradição de pensamento a-histórico e ideologicamente impotente, representado em sua leitura pelo grupo Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, rival daquele de Boal.

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de Rio de Janeiro, a famosa “Cinelândia”, cujo conteúdo é tão fascista como pode ter sido o regime de Fidel Castro ou o de Mao Tse-Tung no que tange à “caça aos marginais”: o lugar seria frequentado “caracteristicamente, por quanto travesti anda solto” (o destaque é meu).[67] Observe-se, por outro lado, que a referência teórica explícita de “Situação do teatro brasileiro” não é outra senão a do ensaísta Roberto Schwarz,[68] de tendência marxista adorniana, então claramente oposto aos esquerdistas “festivos”, como seria o caso de Silviano Santiago. Assim, entre a imposição da ordem e o chamado à união, a “análise exemplar” de Augusto Boal concentra, antecipa e revela, em um pequeno texto brasileiro em versão castelhana, o forte dogmatismo característico sobretudo dos últimos anos de Los Libros, no ápice da tensão política na Argentina. E é, sem dúvida, naquele gênero “festivo” e “alienado” que o discurso de Santiago seria situado pelos revolucionários maoístas e o grupo dos dissidentes do comunismo soviético, ao qual todos deveriam se unir. No entanto, a estridência transformava a voz alheia em “direitista”, “desenvolvimentista”, “entreguista”, “progressista” ou “fascista” – e assim o artigo de Boal é mais um sintoma da crise no interior da revista, entre os jovens intelectuais, altamente politizados e cada vez menos independentes, que a mantinham e disputavam. Deste ponto de vista, o autor de Em liberdade seria imediatamente transformado, vale dizer, travestido em membro ativo da cultura brasileira do “desbunde” – ou seja, “da gente que andava solta” – que tinha se insurgido contra o ideário nacional-popular de direita ou esquerda. No momento mais sectário, depois da cisão ocorrida em 1972, o conceito de entre-lugar seria rejeitado como mera abstração “declaracionista”, resultante de uma mente forjada na fina flor do idealismo, em suas versões modernizantes, estruturalistas.

A edição inaugural de 1971 apresenta um espectro heterogêneo de preocupações em uma revista em rápida metamorfose. Nicolás Rosa, então praticante de uma semiologia ainda cientificista, abre-a no campo da crítica literária, sob influência barthesiana, althusseriana e lévi-straussiana (mas não derridiana ainda) que funda a empresa dois anos antes. Depois Boal faz sua pregação nacionalista e anti-imperialista, sucedido por sociólogos – entre eles James Petras, Alain José e José Nun, que abordam a política no Chile; por um escritor, Ariel Dorfman, com um texto propagandístico sobre a “atual narrativa chilena”; e por um teórico dos meios, Armand Mattelart,

67  Em 1975, na Argentina, Boal escreve, por exemplo, uma paródia de romance barato, A deliciosa e sangrenta aventura latina de Jane Spitfire, em que não por acaso a sexualidade exacerbada da protagonista é sistematicamente atacada. A história, publicada então pelo Pasquim, foi reeditada em 2003 pela Geração Editorial de São Paulo.

68  Diz Boal:  “O mercado  é  o  demiurgo  da  arte;  este  lugar  comum  já  foi  destruído  por Roberto Schwarz (Teoria e Prática nº 2), que anota que entre o artista e o consumidor, em uma sociedade capitalista, se insere o capital mediador, o mediador-patrocinador. O dinheiro, sim, é o verdadeiro demiurgo do gosto artístico colocado em funcionamento” (op. cit., p. 8).

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que aborda a comunicação de massas no país.[69] Também há espaço (trata-se de um número duplo e especial) para uma longa entrevista com líderes do “acampamento de pobladores Che Guevara”, dos sem-terra chilenos, e para um texto sobre a economia do país (setor que os editores não deixaram de atender desde os primeiros números); concluídas as páginas chilenas, surge uma homenagem ao filósofo Carlos Astrada,[70] então recém-falecido, assinado pelo discípulo de vertente althusseriana Raúl Sciarreta. E finalmente se publica a continuidade de uma polêmica a respeito das “comunidades terapêuticas”, já que a saúde mental é outro setor abordado em toda a trajetória da revista, da primeira à última edição, com especial ênfase na última etapa, quando os preceitos antipsiquiátricos basaglianos aparecem como um instrumento a mais na luta revolucionária.

Em abril de 1971 Los Libros dedica um novo espaço ao dramaturgo brasileiro, sob a forma de uma nota de protesto pela detenção de “Agustín” Boal, a qual remete a seu panfleto publicado dois números antes.[71] Há um vasto elogio a sua intensa atividade artística e política e uma longa citação de uma resposta a um “circunstancial discípulo” sobre o teatro como arte popular e sobre a possibilidade de que qualquer artista ou cidadão brasileiro possa ser preso. Não se tratava das “formas-prisão” de Desnos mas de prisão tout court, com direito a sessões de tortura – como relembra Boal em uma entrevista em 2001.[72] Mas, a partir desse tipo de discurso panfletário na revista, se poderia perguntar: quem representaria o papel do intelectual “festivo” em seu interior? E é provável que a resposta recaísse sobre a dissidência psicanalítica reunida na revista Literal, sob a influência do escritor e psicanalista Oscar Masotta, que igualmente colaborou em Los Libros, difundindo a obra de Freud e Lacan desde sua primeira etapa.

Quando os pratos se quebram em 1972, o grupo encabeçado por Germán García arremete decidido contra as “políticas da felicidade”, características de Los Libros –sobretudo com o novo comitê diretor formado por Sarlo, Altamirano e Piglia –, assim como das revistas Crisis, Nuevos Aires ou El Escarabajo de Oro. O grupo de Literal, por sua vez, dedica-se às políticas do corpo e da escritura através de uma publicação subterrânea que resultaria em marginalidade e aversão deliberadas a respeito da legibilidade dos textos em geral, e que ficaria particularmente marcada pela

69  A sociologia brasileira era o setor que dialogava efetivamente com a intelectualidade hispano-americana, o que pode se verificar tanto em Los Libros como na Revista Civilização Brasileira. Já    Mattelart trabalharia com Schmucler no seu exílio no Chile.

70  Astrada, considerado em Respiración artificial “o único verdadeiro filósofo que este país produziu em toda sua história”, foi o introdutor do existencialismo na Argentina.

71  A nota não assinada apareceu em Los Libros nº 18, abril de 1971, p. 29.72  Boal, A. “Exilado”. Revista Caros Amigos, São Paulo, abril de 2001, p. 28-33.

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escritura selvagem de Osvaldo Lamborghini e pelos textos anônimos.[73] É de Lamborghini, ainda que não esteja assinado[74] (assim como toda a primeira metade do primeiro número), o breve texto programático final, “La intriga”, que reivindica Nietzsche e Sade a partir de Deleuze e Guattari – e todos eles, vale observar, estão na raiz do olhar “tropical” de Santiago, cujo marco é a questão da diferença.

Escreve Lamborghini:

Se a cultura é culpada, nossa inocência não tem limites. Abolida a culpa, tomado o gozo como horizonte, a vontade de disparar uma ideologia contra o alvo de outras ideologias coloca a diferença como primeiro problema. Portanto, esta ideologia vai se exibir fortemente marcada. Sua marca específica será a ficção, o relato, o engano. Vai-se fingir o saber que não se tem. Vai-se narrar com certo gesto espalhafatoso e teatral – como quem conta um conto a uma criatura inteligente – o romance científico importado nessa década, opondo-o ao da década anterior: a ver qué pasa.[75]

São de fato políticas similares – o gozo e o fingimento, a literatura e o Mal –, em que o autor de Uma literatura nos trópicos também investe, mas seria preciso assinalar que sua atividade crítico-artística se localizaria outra vez (e sempre) em um lugar intersticial, ou seja, de um lado vinculado ao “lacanismo de combate” (na expressão de Néstor Perlongher) de Literal, no sentido de sua política de vanguarda que era a da dispersão e a da “festa”, e de outro à perspectiva histórica e ao formalismo radical de um Ricardo Piglia, no sentido do seu vanguardismo literário. Algo parecido com o que também ocorre com o próprio diretor de Literal, Germán García, cujo diálogo com Piglia se mantém constante (cf. entrevista). Este, a propósito, não suportaria o futuro apoio declarado do casal Sarlo-Altamirano ao governo isabel-peronista, o que o transforma, já nos estertores de Los Libros, em um novo dissidente, situado entre Mao, Brecht, Arlt e, de maneira incômoda nesse momento, Borges.

Mas também é preciso sublinhar que na única ocasião em que a voz de Osvaldo Lamborghini se faz ouvir em Los Libros, em resposta a uma

73  A Biblioteca Nacional Argentina publica, em 2011, uma edição fac-similar da coleção de Literal, a cargo de Juan Mendoza.

74  Germán García “delata” a autoria no artigo “La intriga de Osvaldo Lamborghini” (Innombrable n° 2, Buenos Aires, 1985, p. 54-57).

75  Lamborghini,  O.  “La  intriga”.  Literal  nº  1,  Buenos  Aires,  novembro  de  1973,  p.  120-121. Ao  abordar  “o  regime  da  loucura”  neste  texto,  Lamborghini  se  refere  explicitamente  à  noção derridiana ativada por Santiago anos antes: “Havia, em estilo patético, chegado o momento de aceitar que  ‘entre’  a  fábrica ocidental  e os métodos, gráficos  e organogramas da  esquizofrenia reina um estado de semelhança; e que esta instituição monárquica ri sossegadamente de outros supostos poderes. Porque um texto é um jogo ‘entre’ um texto e um jogo”.

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enquete, é justamente para criticá-la de maneira contundente. À questão “existe a crítica literária na Argentina?”, ele responde assim:

Não há crítica literária na Argentina; mas acredito que deve responder a pergunta quem a formula: Los Libros, que pede a um autor que em sessenta linhas (autor que por sua parte não se nega a responder) responda sobre literatura, crítica, seus projetos e o papel dos meios de informação. Como parte do fenômeno, a opinião de Los Libros é mais importante que a minha. Poderia informar aos leitores a respeito de sua própria tendência crítica. Tenho uma enorme vontade de ficar sabendo a que se deve tamanha hibridez entre estruturalismo e essa outra coisa que tem invadido suas páginas, especialmente as dedicadas à crítica de livros. No número 5 nos é informado, por exemplo, que um autor possui, segundo a afirmação de Roa Bastos que assina a resenha, “um inato talento narrativo”, enquanto outro (é Carmen Sgrosso quem diz) propõe a seus leitores um jogo “diabolicamente infantil”, enquanto um terceiro escreveu um “sugestivo romance” (Alberto Perrone assina neste caso). Enfim, a pergunta paira no vazio. Formulá-la ou respondê-la implica certa dose de humor sinistro e muita vontade de brincar de esconde-esconde.[76]

Tão assertiva quanto insolente, a resposta de Lamborghini fazia eco à posição lacaniana em relação às “políticas da felicidade”, o que Germán García traduziu, por sua vez, mediante certas palavras de Lacan, citadas no artigo “Música Beat: los jóvenes en el espejo” (no mesmo n° 18 de Los Libros onde se anuncia que Boal foi detido): “O habitual protesto idealista contra o caos do mundo apenas delata, de modo invertido, a forma pela qual aquele que desempenha um papel nesse caos se vira para viver”. A partir daí, é possível concluir que os desencontros desses discursos setentistas, sempre estentóreos, são alimentados pelos conceitos antitéticos de revolução e de pluralismo ou ecletismo. O primeiro, como se sabe, representou a principal ideia-força da época tanto à direita como à esquerda, cada lado supondo que é seu proprietário indiscutível. Já o segundo, não menos difuso, significaria a dissolução de toda teleologia e ortodoxia. Assim, em nome da revolução, fruto da cruzada pró-chinesa e anti-imperialista, isto é, simultaneamente anti-Estados Unidos e anti-União Soviética, o editorial da última edição especial de Los Libros, a de n° 35 – que segue religiosamente a estratégia guerrilheira lançada na revista por, entre outros, Augusto Boal –, é exemplar a esse respeito: a República Popular da China, em tempos de Mao, é entendida como espelho para “a liberação nacional e a construção de uma nova sociedade na Argentina”, e a revista, com o foco no problema superestrutural, pretende apresentar uma “imagem verdadeira da China”.

76  Cf. “La literatura argentina 1969”. Los Libros nº 7, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1970, p. 12.

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Como conseqüência da visita do presidente Richard Nixon ao país asiático em 1972, se propõe então um desmonte da operação publicitária da “imprensa burguesa” que serviria para neutralizar a Revolução Cultural, que era o modelo de processo político com conteúdo de classe e de ruptura radical pela via armada (considerada indispensável aos países coloniais e dependentes) e, não menos importante, como modelo para a difícil questão das relações da classe intelectual com as massas, “para a superação entre trabalho manual e intelectual”.[77]

No entanto, se o ideal revolucionário faz unânimes e uniformes seus discursos nesse momento – entre “festivos, sérios ou sisudos”, pois em Santiago também se fazia ouvir –, a ideia de pluralismo os separaria em definitivo, já que é reivindicada pelo próprio escritor brasileiro, estando na base do conceito de entre-lugar; assim como seria rejeitada com veemência pelo grupo de Los Libros, em sua batalha mais e mais dogmática contra toda forma de ecletismo. De modo que, antes de qualquer significante, e de todos os lados, a revolução. Com a diferença de que a revolução segundo Santiago (ainda que sua atitude tenha caráter paradigmático) é um instante fugaz que chega com dificuldade à segunda metade da década. Sugerem-no as modificações realizadas nas diferentes versões do ensaio sobre o entre-lugar. A versão original, de 1971, é praticamente idêntica à definitiva, de 1978, salvo alguns cortes significativos em seus enunciados finais, destacados na transcrição que segue: “O escritor latino-americano nos ensina que, se a Revolução ocorre, o será em difíceis, laboriosas circunstâncias”. O autor retira esse trecho e se corrige: o escritor latino-americano nos ensina que “é preciso liberar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval e a fiesta [em castelhano no original], colônia de férias para turismo cultural”.[78] E conclui de modo grandiloquente, com um parágrafo muito citado que sofre não menos importantes cortes (destacados):

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, entre neocolonialismo e radicalismo, ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, a biblioteca e o campo de batalha, ali se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.[79]

77  Ver o editorial de Los Libros nº 35, Buenos Aires, maio-junho de 1974, p. 3. 78  Sigo a versão em inglês: “Latin American Literature: the space in between”. Special Studies nº 48. Council on International Studies, State University of New York at Buffalo, dezembro de 1973, p. 18-19.

79  A tradução da versão inglesa é minha. A versão castelhana incluída em Absurdo Brasil segue a brasileira, ou seja, apaga os trechos destacados.

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Tais modificações de substância através de “miúdas metamorfoses” do “manifesto” de Santiago demonstram que todas as verdades políticas – sempre algo perdidas entre os tropicalistas – perdem-se em definitivo. Coloca-se em questão o caráter messiânico e teleológico da empreitada da esquerda ortodoxa, assim como a dicotomia “neocolonialismo/radicalismo” perde sua força. O “campo de batalha” da macro-revolução que parecia tão próxima surge dominado por um esquerdismo destinado à implosão. Para o bem e para o mal, este fracasso representou o fim esperado mas nem sempre assumido de “um pesadelo teórico” – ou seja, político –, para dizê-lo com palavras de Beatriz Sarlo (em sua entrevista). Restaria a biblioteca, o corpo e a rua sob a forma de micro-revoluções cotidianas e plurais, com a reabertura de um campo de batalha remodelado, se não mais pacífico, mais pacificador, quer dizer, conservador, povoado de legiões de marginais e já sem nenhum herói. No entanto, as lutas continuam: a ver qué pasa.

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Leyla Perrone-Moisés e a atualidade francesa

Do mesmo modo que Beatriz Sarlo é autora de uma mini-biografia do pensador francês na introdução a El mundo de Roland Barthes,[80] Leyla Perrone-Moisés oferece uma visão panorâmica dele no estilo vida e obra, para uma coleção de grande difusão no auge da editora Brasiliense.[81] Os livros aparecem na mesma época e o de Perrone-Moisés foi considerado “indispensável” por Haroldo de Campos.[82] Dos personagens dessa história, a professora da USP, como vimos, é a que tem sua imagem mais colada à do mestre francês. Dele traduziu, entre outros, Crítica e verdade e uma antologia dos Ensaios críticos em um só volume de 1970, assim como Roland Barthes por Roland Barthes (1977) e a Lição inaugural (1980).[83] Ao lado de O saber com sabor deve-se destacar o ensaio de Perrone-Moisés cujo título demonstra a devoção a seu objeto, o telquelismo: Texto, crítica, escritura. Sem vacilar, a autora propõe então a substituição, que se supunha “revolucionária”, da noção de literatura pela de “escritura”, sobre as mesmas bases teóricas de Santiago: Althusser, Barthes, Derrida, Deleuze, além de Blanchot, Kristeva e Sollers. O livro, cuja nota prévia tem duas datas – Paris, março de 1973 e São Paulo, março de 1975 –, representa uma síntese introdutória da teoria crítica francesa, com a valorização do escritor como crítico e com especial atenção a três vertentes: a “crítica-obsessão” de Maurice Blanchot, a “crítica-invenção” de Michel Butor e a “crítica-sedução” de Roland Barthes. É, portanto, outra espécie de “panfleto” telqueliano com fins de difusão no meio universitário e intelectual brasileiro da época, que coincide com a do fervor maoísta do grupo Tel Quel.

Depois da sua estréia em livro com O novo romance francês, em 1967, Perrone-Moisés publicaria, em 73, Falência da crítica – Um caso limite: Lautréamont, igualmente tributário da linhagem telqueliana, em que rastreia os equívocos, as indecisões, a estupefação e os problemas experimentados pela crítica com relação a Isidore Ducasse, o enigmático escritor franco-uruguaio, o qual seguiria decifrando mais tarde, e com mais êxito, ao lado de Emir Rodríguez Monegal.[84] No seu estudo desse 80  A antologia de textos de Barthes compilados por Sarlo e publicados em 1981 pelo Centro Editor de América Latina, para o qual pôde trabalhar durante a ditadura militar argentina.

81  O livrinho se chamava Roland Barthes. O saber com sabor (São Paulo: Brasiliense, 1983).82  Campos, H. de. “Sobre Roland Barthes”. Metalinguagem & outras metas. Ensaios de teoria e

crítica literária. 4a ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 124.83  No século XXI, não apenas seguiu traduzindo a obra de Barthes mas reorganizou suas edições no  Brasil através de caros volumes publicados pela editora Martins Fontes.

84  O ensaio “Isidore Ducasse et la rhétorique espagnole”, escrito com Monegal, aparece na revista Poétique nº 55, Paris, setembro de 1983, p. 351-377. Depois da morte do crítico uruguaio, Perrone-Moisés conclui o projeto do livro em parceria Lautréamont austral, revelando a marca hispano-americana do escritor (Montevidéu: Brecha, 1995). Cf. entrevista.

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“caso limite” adotaria o mesmo tom manifestário do discurso de seus pares franceses ao sugerir, por exemplo, o certificado de óbito de “certa crítica” na introdução (datada em outubro de 72): “A escritura de Lautréamont”, diz citando Sollers, “institui a morte do sujeito falante, pela ambiguidade da enunciação”.[85] O editor de Tel Quel tinha lançado desse modo a bandeira da “desenunciação generalizada” a partir das reflexões de Freud, Lacan, Benveniste e Derrida, abrindo novas possibilidades de leitura do enigma. Ao final de Falência da crítica, a autora exalta explicitamente o trabalho da vanguarda telqueliana: “Os resultados aos que chegou a crítica de Tel Quel a respeito de Lautréamont nos parecem extremamente importantes, porque essa crítica possibilitou a solução de muitos problemas até então insolúveis”.[86] A “desenunciação generalizada” levava à destruição da ideia de gêneros literários e vice-versa:

Vemos então chegar o momento do encontro, o momento no qual a crítica e a literatura, com o mesmo objetivo, a mesma atitude e os mesmos meios, irão se fundir finalmente na escritura e vão correr todos os riscos dessa “experiência inaugural”. A crítica, como a literatura e a arte em geral, será então coisa do passado.[87]

Lembremos que a militância francófona de Perrone-Moisés no jornalismo cultural começa já em fins dos anos 50. Já então falava dos novos romancistas franceses que a fascinam e, desde o início dos anos 60, fazia referências à revista Tel Quel, ainda que, nesse momento inicial, pouco reverentes. Em uma resenha do primeiro romance de Sollers, Le parc, diz sem meias palavras: “Se P. S. chega a ser um grande escritor, o que é possível, sem nenhuma dúvida vai se arrepender da publicação desse esboço de romance”[88] – o que de fato ocorre. Nessas primeiras contribuições de Perrone-Moisés ao Suplemento Literário do tradicional diário paulistano há uma coerência que antecede a sua ênfase nas “altas literaturas”, a qual se transformará em marca registrada, ainda que buscando se opor tanto à linha de Harold Bloom quanto à do “pós-modernismo”.

No entanto, é facilmente verificável como a linearidade do seu discurso crítico se mantém, ainda depois da sua progressiva aquisição de informação teórica e política, desde Blanchot e Barthes até o Maio de 68 e Salvador Allende – a quem escolhe então como líder, rejeitando o maoísmo.

85  Perrone-Moisés, L. Falência da crítica. Um caso limite: Lautréamont. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 133.

86  Idem, p. 134.87  Ibidem, p. 166.88  Perrone-Moisés, L. Ramo “Literatura”,  seção “Resenha Bibliográfica”. O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 16 de junho de 1962, p. 2. 

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Em fins de 1960 aparece uma resenha de Le livre à venir de Blanchot, considerado decisivo para sua formação.[89] A “Literatura”, tal qual a “Arte”, é ainda uma “Senhora” a que se deve respeitar antes de qualquer coisa, mas que não está longe do fim: “O romance se transformou em investigação sobre o romance; a poesia se tornou meditação a respeito da essência da poesia e com isso está se suicidando”, diz. Com essa visão ainda tradicional da literatura, a jovem crítica lê e reage, algo incrédula, ao teórico francês para quem – diz ela – “um Artista não é alguém que tem algo a dizer mas alguém por meio do qual a Arte quer falar. O artista deve pois ser um instrumento passivo da Arte”. Caberia lembrar que, assim como Perrone-Moisés, os telquelianos são, nesse momento, antes blanchotianos do que propriamente telquelianos – no sentido da sua virada teórica e política no fim dos anos 60.

Desde então Perrone-Moisés exerce seu papel de crítica literária com uma performance incisiva, apesar de ser a neófita entre os criadores e colaboradores do Suplemento Literário, todos da geração anterior: Antonio Candido (o idealizador do projeto), Décio de Almeida Prado (o diretor do caderno), Paulo Emilio Salles Gomes, Ruy Coelho, Wilson Martins, entre outros. Os juízos emitidos sobre seu objeto exclusivo à época, a literatura francesa, não deixam jamais lugar a dúvidas, são certezas absolutas – o que não deixa de ser surpreendente em alguém tão jovem no meio da crítica literária, e o é mais ainda por se tratar de um sintoma e de um traço permanente em sua larga trajetória profissional. Leiamos, por exemplo, as frases sibilinas do artigo “Aspectos do Nouveau roman”, de abril de 60, que também – como é o caso da resenha de Le Parc a respeito de Sollers – se revelaria uma plausível antevisão da obra de Alain Robbe-Grillet. Como se sabe, o romancista francês foi também diretor de cinema mas se faria célebre por suas “frágeis” tramas literárias, segundo a autora: “Para compensar a pobreza do conteúdo, seus romances são os mais bem cuidados na parte formal. Seu estilo é puro, clássico, preciso, frio. É um daqueles casos de estilo em busca de assunto”.[90] As polêmicas a respeito do nouveau roman não demoram a dar lugar às da nouvelle critique.

No entanto, vale a pena chamar a atenção sobre o fato de que, já nesse momento, Perrone-Moisés demonstrava ter simultaneamente o veneno e o remédio no que se refere à discussão sobre as conexões entre os escritores da “já famosa trindade do roman nouveau” (em uma curiosa inversão da expressão que seu predecessor Brito Broca costumava fazer, mas cheio de desdém): Robbe-Grillet, Sarraute, Butor. Se, por um lado,

89  Cf.  entrevista.  O  texto  sobre  Blanchot  também  aparece  em  “Literatura”  da  seção  “Resenha Bibliográfica” do Suplemento Literário, um espaço menos nobre, com caracteres mínimos e aberto aos mais diferentes campos do saber.

90  Perrone-Moisés, L. “Aspectos do ‘Nouveau Roman’”, op. cit., p. 2.

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seriam todos tratados como continuadores de Proust, Kafka e Joyce, por outro

diríamos que essa continuação era uma oposição; é assim, e principalmente porque os representantes do “nouveau roman” se caracterizam por um esteticismo próximo à “arte pela arte” dos parnasianos, e alheio aos predecessores citados. Mas, enquanto Robbe-Grillet constrói obras em que a compreensão formal é o mais importante, Butor e N. Sarraute correm menos perigo com relação a essa esterilizante tendência. Seria esse esteticismo, presente em todos eles, uma inclinação dos romancistas a fechar os olhos aos problemas medulares do nosso dramático século XX, para pensar apenas nos problemas puramente estéticos, de solução individual e portanto mais fácil? Somente no futuro saberemos.[91]

A jornalista cultural previa então, quase sem querer, o advento de uma década tão louca como prodigiosa, tempo suficiente para afirmar a certeza de que, em torno de 1970, tinha realmente chegado a hora na qual a Literatura seria anônima escritura e a Revolução urgente e permanente. Senão vejamos:

O grupo da revista Tel Quel solicitou aos programadores da União [dos Escritores] uma plataforma mais precisa, ao que eles responderam que um programa muito rígido seria contrário às intenções da União, que deseja uma discussão o mais aberta e livre possível. Os participantes dos debates pouco a pouco fixariam, sobre a base de reflexões comuns, as escolhas teóricas do movimento. Em outras palavras, o trabalho da União seria um trabalho criador.[92]

Em 1968, a já conhecida crítica literária do Estadão volta profundamente “estruturalizada” e politizada de seus périplos franceses, seja como leitora ou viajante. Colocando em contraste a semiologia barthesiana e o advento de Para uma teoria da produção literária, de Pierre Macherey, a autora apresenta no artigo “Uma necessidade livre”[93] uma das etapas da sua leitura do pensamento mutante de um Barthes ainda “estruturalista”, em pleno momento das insurreições estudantis. Juntamente com elas, tudo passa a ser redefinido e Perrone-Moisés se vê obrigada a oferecer sua versão do Maio de 68 através da sua (por enquanto) protegida trincheira no Suplemento Literário, que tinha entrado em declínio com a saída do diretor Almeida Prado em fins de 66, mas que manteria seu

91  Idem, p. 3.92  Perrone-Moisés, L. “Os intelectuais e a revolução cultural”. O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 10 de agosto de 1968.

93  Cf. O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 6 de julho de 1968, p. 1.

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nome até o início dos anos 70. E “se vê obrigada” porque no começo do texto tenta justificar sua pertinência – “Uma coluna dedicada às Letras Francesas não poderia se manter alheia à crise que tem agitado a França durante os últimos meses e suas repercussões no campo artístico e literário” –, como se desejasse antes de mais nada evitar qualquer censura dos editores do jornal, algo que logo seria comum no Brasil, a partir do Ato Institucional nº 5 outorgado pela junta militar no dia 13 de dezembro de 1968, quando a violência de Estado passa a ser a norma. Já no fim do artigo com título “chinoísta”, “Os intelectuais e a revolução cultural”, detectaria e faria ressoar a imperiosa necessidade da tomada do poder pela “imaginação”, e ainda assim com o tom distante de quem não quer se comprometer:

O problema fundamental dos intelectuais franceses nos dias turbulentos de maio foi justamente o de confrontar a cultura com a ação, de integrar o intelectual à realidade, de sacudir a poeira das velhas estruturas culturais, para ver se algo resiste ainda ou se tem que começar tudo outra vez.

O texto que dedica em julho de 68 a Pierre Macherey, ao mesmo tempo que o critica cautelosamente, prepara o terreno para a série de conferências do teórico francês na Faculdade de Filosofia da USP, proferidas um mês depois. Ao tomar a obra artística como um sistema de signos cujas estruturas formais busca explicitar, em detrimento do seu conteúdo ou mensagem, diz Perrone-Moisés – que reproduz rigorosamente o jargão de seus pares à época –, a crítica de extração estrutural segue, através de “muitos críticos jovens”, “a marca de Lévi-Strauss e Jakobson”, com o detalhe de que Barthes e Butor são então situados lado a lado como “os grandes representantes desse tipo de crítica”. “Frente à crescente onda do estruturalismo, que se tornou a ‘coqueluche’ ou o ‘ópio’, como se quiser, da nova crítica francesa, Pierre Macherey, jovem crítico marxista, busca encontrar uma posição intermediária”, afirma ela, que se deixa levar pela mesma “doença” ou “adição”. Macherey, que propunha de modo pioneiro saídas para o cientificismo estruturalista (e que teria na figura de Noé Jitrik, na Argentina, seu mais fiel leitor), postulava “a constituição de uma questão crítica nova: quais são as leis da produção literária”. “Pois” – continuaria a autora em sua missão pedagógica e organizadora que era “uma necessidade livre”– “a palavra ‘criação’ é também sinônimo de ‘invenção’, ou seja, criar uma forma nova ou um novo arranjo, e nesse sentido nada tem de mítico. A visão do escritor como operário da produção literária dá ao artista uma função puramente mecânica; negar a criatividade do homem é vê-lo como puro joguete das forças produzidas ao acaso”. Porém, se a crença na “criatividade do homem” soa a resíduo existencialista e a crença na “criação” – ainda que seja como “invenção” – parece discrepante com relação ao caráter aberto

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da obra de arte, Perrone-Moisés tentaria precisar seu argumento a favor da “peculiar faculdade de criar”, no fim do artigo: para o estruturalismo (ou seja, nessa época, “para mim”), “a obra é necessária não como o produto de um estado de coisas mas como uma resposta a certas faltas, a certas falhas em um estado de coisas. É nesse sentido que a obra é criadora”.

Além do mais, “Uma necessidade livre”, em sua defesa apaixonada do estruturalismo, já disseminava a querela básica do debate intelectual da época, que poderia ser sintetizada em um “ser ou não ser a-histórico”. Tal questão motiva o ataque que Macherey faz simultaneamente a Mallarmé, a Blanchot e a Barthes, em função do qual a autora insiste na luta pelo seu credo: “Ainda e sempre, o crítico atribui aos estruturalistas um formalismo absoluto que não existe”. Ao mesmo tempo, a crítica que nasce da leitura, diria ela lendo Barthes, Roubaud e Butor, “não deve ser repetição”, “pura leitura” (Macherey), “mas prolongamento inventivo”, já que toda obra deve ser considerada “inacabada” (Butor). Em nome dos prolongamentos inventivos da “criação”, assim como de sua sólida pedagogia, os parágrafos finais adquirem o tom de um libelo, como o exigia o momento:

Em linguagem artística, o sentido não é único e claro. A obra pode ser lida a partir de diferentes planos, e nenhum é definitivo. O sentido está sempre em suspenso, como diz Barthes, ou aberto, como diz Umberto Eco. Quem o compreenda, compreenderá o Novo Romance, o cinema de Godard, a Pop Art e tantas outras manifestações artísticas de nosso tempo. Esta compreensão escapa aos críticos que se obstinam em buscar na obra um sentido definitivo e único, como se a arte fosse resposta e não busca, dogma e não proposta, conclusão limitadora e não interrogação fecunda.

Mas aqui Macherey se “estruturaliza” também ele, segundo Perrone-Moisés, pois suas divergências existiriam antes sob forma de objetivo do que sob forma de princípios, uma vez que, à maneira da moda intelectual da época, ele rejeitava as ilusões da crítica “de gosto”, “de juízo” e “de interpretação”, apesar de não se interessar por significantes ou significados e sim pelas condições da produção literária. E também, “suas oposições aos estruturalistas nascem ou de uma interpretação inexata de suas posições, ou de uma confusão terminológica. Ambos utilizam os mesmos termos com sentidos ligeiramente diferentes”. O equívoco de Macherey residiria no fato de que dá um sentido de “determinismo absoluto” à idéia de que a obra procede de uma “necessidade livre”. Por uma teoria da criação literária, a autora, que é militante precoce da “Sociedade dos Amigos do Texto”,[94] além de futura “dissidente” de Tel Quel, conclui a sua análise comparativa afirmando – sem mencionar sequer uma vez o nome de Althusser – que 94  Cf. Barthes, R. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973, p. 23.

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Macherey busca “uma posição mais avançada na linha marxista”, avanços estes que vão determinar táticas e estratégias do telquelismo de combate, no ápice da sua capacidade criativa que é sinônimo de capacidade produtiva. Por fim, o que a voz conciliadora da cronista paulista percebe como mais importante para a problemática telqueliana na Europa ou na América, em sua discussão sobre Macherey, aparece em uma pequena frase cristalina que diz: “É difícil fugir do paradoxo quando se quer conciliar a liberdade da obra de arte com uma ideologia determinista”.

Mesmo assim, em 1970, a colunista de “Letras Francesas” abraça com força a ideia de coletividade, recorrente em muitos artigos. “A floração das revistas”,[95] mencionado anteriormente, reivindica – e não só divulga – a inundação teórica desencadeada especialmente por certos periódicos literários e culturais, já que, depois de sublinhar a existência (externa) de “um acordo tácito a respeito da necessidade de elaboração conjunta de uma fundamentação teórica da práxis literária”, não vai deixar de afirmar que “o que se publica de mais interessante na França nasce hoje nessas revistas e/ou nas coleções que se abrigam a sua sombra. As obras contemporâneas são assim frutos do diálogo, e estão inseridas numa linha de reflexão coletiva”. Mas antes de traçar as grandes linhas de suas três revistas de eleição – Tel Quel, Poétique e Change – vai afirmar mesmo assim que seus integrantes têm “uma afinidade maior do que admitem, ou do que podem ver sem a devida distância”. Ao se referir a Tel Quel no artigo, faz uma rápida alusão à receptividade argentina (além da italiana e japonesa) ao “teoricismo coletivista” característico de parte da intelectualidade francesa. Segundo Perrone-Moisés, a publicação, então com seis mil exemplares (que vão chegar a vinte e cinco mil com a edição chinesa de 1975), já “aparece em italiano, em espanhol (na Argentina) e vai aparecer em breve em japonês”. Sabe-se que realmente foram editados alguns números na Itália; em castelhano, ainda que a tradução de Piglia tenha sido anunciada em Los Libros, o projeto não chegaria a se concretizar.[96]

Resumindo os objetivos do grupo telqueliano em um momento de prestígio crescente – objetivos ideológicos, científicos e políticos tão genéricos que parecem valer para a nova esquerda intelectual de distintos países, em nome da vanguarda e da integração da teoria à prática revolucionária –, Perrone-Moisés aponta para o público da revista, “constituído sobretudo por universitários e aquela pequena burguesia

95  Em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 23 de maio de 1970, p. 1.96  A  única menção  de  aparecimento  efetivo  de  um  número  da  revista  de  Sollers  em  castelhano está no primeiro número de Los Libros (p. 31): “R. Barthes, P. Klossowski, Ph. Sollers y otros. El pensamiento de Sade.  Paidós,  186  págs,  $  580. Traducción  de  un  excelente  número  de Tel Quel”. Existem também anúncios de futuras edições de Tel Quel em Buenos Aires (salvo erro, não realizadas) nos números 1 (p. 9) e 4 (p. 27) de Los Libros, ambos do ano de 1969.

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intelectual capacitada a ver e questionar as estruturas arcaicas nas quais vivemos”. Entre a fascinação de um estudante e a cautela de um scholar, tampouco deixará de acolher os frequentes ataques ao grupo, cujo caráter “coletivo”, por exemplo, seria antes um expediente retórico. “Se fala inclusive de certo aspecto teológico de suas formulações, o que, em um contexto intelectual materialista é paradoxal”. No entanto, para ela, a verdadeira aporia telqueliana (incluindo aí algo do próprio Barthes) não seria questão de excesso de autoridade mas questão de excesso de linguagem – conclusão esta que serve para marcar sua posição peculiar com relação à teoria crítica francesa. Se, por um lado, sua atividade parecia “estimulante” – já que “dali surgiram importantes postulações sobre as relações da literatura com a linguagem, a noção de ‘texto’ que toma o lugar dos antigos gêneros literários, a visão de escritura como produtividade, as relações dessa produtividade com as estruturas econômicas, a localização do problema literário no campo, vasto e novo, da semiótica” –, por outro, “o grande problema de Tel Quel parece ser o de sua própria linguagem”. Confessa então sua rejeição ao “delírio terminológico” que acometeria os telquelianos na época do chamado “terrorismo teórico”:

Os integrantes do grupo sofrem de uma espécie de delírio terminológico, compreensível se considerarmos o fato de que o grupo trabalha com ideias novas que exigem um vocabulário novo; no entanto, como já tinha sido observado, seus neologismos nem sempre correspondem a um referente novo. Além do mais, não só os termos empregados carecem de definição prévia mas, o que é mais grave, ressentem-se de um uso às vezes impreciso e flutuante.

Vale relembrar que Santiago, no seu prólogo ao Glossário de Derrida, registrou algo similar, ao afirmar que o pensador “das desconstruções” não estava preocupado em voltar a explicar conceitos utilizados em textos anteriores, justificando assim a empreitada realizada com seus alunos cariocas no início dos anos 70. Porém, se Derrida insuflou o “delírio” em questão, em seu momento telqueliano – que representou a melhor etapa da revista, justamente pela absorção teórico-crítica de seu pensamento – não se poderia dizer que a terminologia de Derrida fosse “imprecisa” ou “flutuante”, já que a própria continuidade de seu pensamento (algo de que se ressentiria o telquelismo) demonstrou o contrário. Na conclusão de “A floração das revistas”, Perrone-Moisés aponta finalmente para o tema dos imitadores, e este “fica particularmente agudo”, segundo diz, “quando essa linguagem começa a ser usada por epígonos sem o talento dos criadores, ficando assim um esnobismo muito parisiense e vazio”. Por outro lado, pergunta-se, “o próprio fato de que existam epígonos não demonstra a força

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atuante de Tel Quel?”.A operação de sistematização da vanguarda teórica francesa dos

anos 70 realizada por Perrone-Moisés encontra uma fratura na “patrulha” exercida com relação ao que deve ou não deve ser a escritura como escritura poética, assim como no caso da terminologia mais apropriada e da aversão ao “delírio” antes mencionado. Nessa direção, trataria de tomar partido contra o “espontaneísmo”, no prefácio que escreve para a edição brasileira de O rumor da língua:

A liberação da linguagem, na escritura, não se alcança com espontaneísmo. O espontâneo, contrariamente à crença dos defensores da “criatividade solta”, é o domínio do estereótipo, o campo do já-dito (“Jovens investigadores”). A liberdade supõe escolha e crítica, sem o qual o próprio conceito de liberdade não faz sentido. Essas considerações de Barthes, reiteradas no presente volume [originalmente de 1984], são oportunas porque justamente aqui no Brasil ocorreu uma interpretação abusiva da sua teoria da escritura, assimilada indevidamente ao criativo vale tudo, ao inefável subjetivo, ao prazer sem preocupações.[97]

Assim resulta manifesto o desejo de legislar sobre a matéria: ninguém pode ser barthesiano nos trópicos, a menos que se sigam determinadas regras, traduzidas como uma ética da ciência. A partir daí resta apenas um passo para o veredito da impossibilidade da desconstrução de um discurso ainda muito “frágil”, no qual o problema do epigonismo está sempre em questão:

Aqui no Brasil muita gente pensa que ser barthesiano é desaprender sem nunca ter aprendido, e parte para a desconstrução de um discurso cultural ainda extremamente frágil em particular e no coletivo. Pois, o prazer da escritura barthesiana se sustenta em um saber (plural, disseminado) e se alcança através de um trabalho de linguagem. A escritura pratica o imaginário “em pleno conhecimento de causa” (“Da ciência à literatura”).[98]

Poder-se-ia vincular esta crítica à má cópia ao reino da cópia, à chamada “pós-modernidade” em toda sua ambivalência, crítica detectada outra vez em artigos de Perrone-Moisés dos anos 90, sempre a propósito do seu mestre. Em “Barthes e o pós-modernismo”, conforme foi visto, o conceito é considerado como um estéril, retrógrado e conservador vale tudo: Barthes estaria situado, como de fato estava, “entre o classicismo e a modernidade,

97  Perrone-Moisés, L. Prefácio a Barthes, R. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 14-15.

98  Idem, p. 15.

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entre o prazer e o gozo”. Mas em “O lugar de Barthes” diz: “Curioso lugar o de Barthes. Em sua inadaptação ao moderno, em sua nostalgia dos valores clássicos, ele era um homem do passado; por seu ceticismo, seu ecletismo, seu hedonismo e sua errância, era um pós-moderno”. Ser e não ser: os dois pólos remetem a uma ambivalência intrínseca ao conceito de entre-lugar, que é a antítese de um significante-amo, na medida em que o amo em questão se coloca entre ficção e crítica, como argumenta por sua vez Antelo, a propósito de dois célebres dissidentes: “Entre Bataille e Lacan, de fato, Barthes encontra a energia de uma nova posição discursiva, a que se situa entre o escritor e o crítico perante um mesmo objeto, a linguagem”.[99]

Detenho-me finalmente em um debate que revela uma vez mais a modernidade em seu limiar, tanto nas páginas do Suplemento Literário paulista como nas de Los Libros. A revista portenha ocupa-se, através de outra contribuição de Ricardo Pochtar – como Perrone-Moisés o faria – de Qu’est-ce que le structuralisme?, a antologia editada por François Wahl. Segundo o relato da crítica brasileira em “Por uma poética estrutural”, “o livro foi escrito por cinco autores da ‘segunda geração’ estruturalista” (Ducrot, Todorov, Sperber, Safouan e o próprio Wahl). Dir-se-ia que colocava em prática então um “estruturalismo de combate”, uma vez que incensava o seu objeto à maneira de um jornalismo crítico em extinção, situado entre o fait divers e a prática teórica:

O estruturalismo continua dominando os meios intelectuais de Paris. A favor ou contra, todo o mundo fala do estruturalismo, e o máximo do esnobismo é considerá-lo coisa do passado, sem dizer obviamente o que é que interessa no presente. A verdade é que toda Paris pensante corre às conferências dos “estruturalistas”, sejam eles Lévi-Strauss, Lacan, Greimas ou Derrida. No campo literário, as aulas de Roland Barthes são a máxima atração da École des Hautes Etudes. É muito difícil se inscrever nesse curso, e mesmo assim é necessário chegar uma hora antes para conseguir entrar na sala.[100]

Ou seja, Barthes “representa atualmente – diz Perrone-Moisés – o papel que Sartre representava faz alguns anos na literatura: a palavra de ordem”. E é dessa palavra de ordem que o grupo Tel Quel vai se apropriar, com o consentimento do próprio Barthes. Mas se Perrone-Moisés restringe sua abordagem ao estruturalismo literário, Pochtar, no limitado espaço de uma resenha em Los Libros, escolhe discutir sobretudo a contribuição

99  Antelo,  R.  “A  invenção  do  finito”.  Conferência  lida  na  “Escola  Brasileira  de  Psicanálise, Delegação Geral de Santa Catarina”, Florianópolis, 22 de março de 2001, p. 4.

100  Perrone-Moisés, L. “Por uma poética estrutural”. O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 25 de janeiro de 1969, p. 1.

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do editor do livro, Wahl, em uma pesada crítica a seu texto, chamado “A filosofia entre o antes e o depois do estruturalismo”. Politicamente moderado e sublinhando a encruzilhada a que tinha chegado a primeira geração, o francês postula o máximo rigor no tratamento da noção de estrutura e remete em especial a Tel Quel, sem nomeá-la, ao rejeitar “um tipo de transgressão que entranha um retrocesso aquém das fronteiras do estruturalismo”, em referência à ideologização ou “fenomenologização” das teses de Foucault, Merleau-Ponty e Derrida. Mas Pochtar não está de acordo com isso e prefere alinhar-se com os emissários da revolução textual e cultural: “Tarefa mais urgente para uma elaboração do material apresentado neste rico volume deveria ser a de esclarecer o alcance de uma distinção tão problemática como a althusseriana entre ciência [marxista] e ideologia [burguesa]”, dirá na conclusão de sua resenha.[101] É verdade que Wahl foi o braço direito de Tel Quel na editorial Le Seuil e que participou da delegação telqueliana que viajou à China, mas, ainda mais que Barthes, vai considerar o regime comunista de Mao muito suspeito. Assim como Perrone-Moisés ou Santiago, que foram ou são, de maneiras radicalmente diferentes, os dois mais produtivos leitores brasileiros do autor de S/Z.

101  Pochtar, R. “Estructuralismo: la segunda generación”. Los Libros nº 19, Buenos Aires, maio de 1971, p. 29.

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Beatriz Sarlo e a nova crítica

Sobre Los Libros diz Ernesto Laclau, um dos seus primeiros (e mais efêmeros) colaboradores: “Era uma das muitas coisas que se começava a publicar nesse momento de radicalização política” (cf. entrevista). O futuro teórico pós-marxista da hegemonia e do populismo era então um jovem intelectual peronista revolucionário que, já em 1969, deixa a Argentina para viver na Inglaterra e, como se vê, guarda da revista, onde publicou dois artigos sobre o nacionalismo,[102] uma lembrança difusa. Porém, a imagem de uma Quinzaine Littéraire aclimatada é a visão mais associada aos seus primeiros números até chegar à sua “maturidade”, ou seja, a sua independência em relação às editoras latino-americanas e inclusive à editora Galerna, a partir do nº 21 de agosto de 1971, que também corresponde a sua entrada em crise e posterior reconfiguração maoísta. Uma intervenção paradigmática em Los Libros – e oposta à ideia de simples aclimatação – é o testemunho do “socialista libertário” (como se autodenominava) Noam Chomsky: o editor promove aí uma canibalização literal de uma revista por outra, ao fundir uma reportagem com Chomsky (por Jean-Marie Benoist), publicada na Quinzaine parisiense em junho de 1969, com outra (por Clara Kuschnir) para a revista argentina. Com o título de “Chomsky, lingüística y política”,[103] as perguntas sobre política são as do grupo de Los Libros e aquelas de ordem linguística e filosófica são do francês. O que isto quer dizer? A justificativa do editor se resume ao questionamento da relação entre intelectuais e política, que está na raiz deste número, o segundo de 1970 (há um primeiro hiato na publicação mensal, entre fevereiro e abril), onde se anuncia com entusiasmo, no editorial anônimo “Etapa”, a latino-americanização do periódico com o aporte financeiro de grandes editoras do continente (participam inicialmente o Fondo de Cultura Económica, Losada, Monte Ávila, Siglo XXI e Editorial Universitaria de Chile). Tal aporte aparece em páginas e páginas de publicidade de livros e se concretiza através da difusão continental e até mundial da revista, o que por um momento concede ao grupo a perspectiva de ocupar um lugar hegemônico no debate político-cultural da “década frustrada”. A experiência da expansão mercadológica alimenta a ilusão de uma “absoluta independência”, que infelizmente vai durar pouco. Porém nesse momento de euforia intercontinental, em que a revista chega à Espanha e aos Estados Unidos, há outros motivos de preocupação manifestados no mesmo editorial “Etapa”, como a defesa

102  “Los nacionalistas”. Los Libros nº 1, Buenos Aires,  julho de 1969, p. 16; e “El nacionalismo popular”. Los Libros nº 8, Buenos Aires, maio de 1970, p. 16-17. O primeiro é uma resenha do livro de Marysa Navarro Gerassi sobre o nacionalismo argentino; o segundo é outra resenha, sobre uma antologia de artigos do ideólogo peronista Raúl Scalabrini Ortiz.

103 Los Libros nº 8, Buenos Aires, maio de 1970, p. 12.

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contra as acusações de “aparelho ideológico estrangeirizante”, elitista e estruturalista, na forma de um pedido de desculpas ao se reconhecer o “tecnicismo” e a “incomunicabilidade” de algumas colaborações, sem mencionar nomes. Chega-se a prometer a superação do “inconveniente” em função de sentimentos ambíguos entre as categorias de nacional e popular, os mesmos que parecem se dissipar ao afirmar, na conclusão, sua razão vanguardista de ser, que “justifica sua existência” através do mágico sintagma “a busca do novo”.

Sua metamorfose latino-americanista ocorre de modo concreto paralelamente ao abandono da vertente exclusivamente bibliográfica, ao se analisar pela primeira vez um filme – El santo de la espada, de Leopoldo Torre Nilsson, “o filme mais caro do cinema argentino”, sobre San Martín, por um “estruturaloso” Máximo Soto –, com a promessa de abrir-se a todos os gêneros da atividade cultural e a todos os meios. Os tempos assim o exigem e Los Libros se mostra atenta, ainda que algo discretamente atenta, para um além dos livros. Vale sublinhar, também, que o significante “etapa” reaparece nos paratextos finais do nº 8 (p. 28), onde o primeiro livro de ensaios de Nicolás Rosa, Crítica y significación, é festejado como a própria encarnação argentina do “novo”: “Viñas, Mafud, Cabrera Infante, Sartre e Genet [os temas do livro]: uma nova crítica se esboça entre seus problemas, seus requerimentos e suas incertezas. Pelo rigor e profundidade, quem sabe inicie uma etapa”. Lembremos igualmente que foi o discípulo rosarino de Barthes que inaugurou a primeira edição da revista, com uma crítica ao volume Nueva novela latinoamericana, organizado por Jorge Lafforgue, ao lado de textos de Jorge B. Rivera (contra Ernesto Sábato), Santiago Funes (contra Héctor Murena), Ricardo Piglia (sobre Joseph Heller), Oscar del Barco (sobre Sade), Enrique Pezzoni e Néstor García Canclini (sobre Octavio Paz), Ernesto Laclau (sobre o nacionalismo), Mario Levin (sobre Lacan), José Aricó (sobre Marx), J. Carlos Torre (sobre a “nova oposição estudantil”), Osvaldo Heredia (sobre o arqueólogo Rex González), Eduardo Gudiño Kieffer (sobre os grafites) e Aníbal Ford (sobre Rodolfo Walsh).

Os então desconhecidos novos críticos desenham aí um característico quadro de nomes, objetos e tonalidades críticas e políticas, com seus ilustrados componentes, jovens na maioria, escolhidos cuidadosamente. A crítica de Nicolás Rosa à nova crítica presente no livro editado por Lafforgue propõe uma separação entre o “velho” e o “novo”, o que o faz rejeitar polemicamente as presenças de Angel Rama e de Mario Vargas Llosa. Crítica y significación, de Rosa, é por sua vez objeto de crítica de Josefina Ludmer,[104] que em sua trajetória intelectual parte da busca da “ideologia literária”, desde os primeiros ensaios dos anos 60, e posteriormente, em nome de uma “flexão literal” entre psicanálise e literatura, vai reelaborar com extremo 104  Ludmer, J. “La literatura abierta al rigor”. Los Libros nº 9, Buenos Aires, julho de 1970, p. 5.

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rigor esse problema básico, “tratando de autorizar cientificamente uma das categorias mais complexas da teoria da crítica contemporânea: a do sujeito produtor da obra-texto”, segundo retribui muito mais tarde Nicolás Rosa, em uma importante retrospectiva intelectual.[105] Ludmer publicou, além do artigo favorável sobre Rosa, duas resenhas nos primeiros números da revista (sobre Miguel Barnet e Emilio Rodrigué) e respondeu ao debate “Hacia la crítica” do nº 28, em 1972. Porém reapareceria involuntariamente na etapa final, quando na seção “Información de Los Libros”, nas primeiras páginas do nº 41 (maio-junho de 1975), criticam a ela e a Noé Jitrik: são impugnadas as propostas de atualização teórica feitas pelos dois na apresentação da coleção “Narradores de Nuestro Mundo”, da Librería del Colegio, onde se identifica nada mais nada menos que “a espuma da vanguarda de Tel Quel”.

O processo de gradual “desfoliação” da revista ocorre entre os números 20 (junho de 1971) e 29 (março-abril de 1973), quando o preto-e-branco invade suas páginas – nos sentidos físico e ideológico – e duas correntes pouco homogêneas se confrontam durante quase dois anos, até a implosão na última edição em formato grande (nº 28, setembro de 1972). Nesse momento há uma profunda crise no grupo, que culmina com um artigo de seu (ainda) diretor, cuja linguagem é caracteristicamente barthesiana ou telqueliana: ao mesmo tempo rigoroso e panorâmico a respeito das vertentes teórico-críticas em jogo entre os candidatos a novos críticos argentinos, o texto “La búsqueda de la significación literaria” seria o réquiem do “editor responsável” em sua própria máquina de textos, assim como o réquiem de seu modelo de revista, posto em discussão desde a proclamação de “independência” um ano antes, porém mantido de algum modo até então. Aproveitando a presença de muitos colaboradores do segundo volume de Nueva novela latinoamericana, que é o objeto de sua resenha, Schmucler ataca com inédita contundência vários colaboradores da revista, alguns deles presentes nessa mesma edição, tendo em Jitrik seu grande alvo. O trabalho de Eduardo Romano (que havia exaltado Jitrik no texto imediatamente anterior ao de Schmucler) é considerado eticamente “indemonstrável”, assim como o do Centro de Investigaciones Literarias Buenosayres (que incluía Sarlo) sobre Marechal, é visto como de “uma insuperável carência imaginativa”; o de Aníbal Ford sobre Walsh, considerado limitado; o de Ana María Barrenechea – por que “sua inclusão em uma tentativa de nova crítica?”, pergunta-se –; o de César Fernández Moreno – a quem sugere com sarcasmo uma inversão no título de “El caso Sábato” para “El caso Fernández Moreno”). O ciclo da crise culmina com referências laudatórias a Piglia, que proporia “sucessivas aberturas” à leitura de Puig,

105  Cf.  Rosa,  N.  “Veinte  años  después  o  ‘la  novela  familiar’  de  la  crítica  literaria”. Cuadernos Hispanoamericanos (La cultura argentina. De la dictadura a la democracia), n° 517-519, Madri, julho-setembro de 1993, p. 335.

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assim como o faria Rosa com relação a Borges, visto ousadamente para a Argentina de 1972 como “revolucionário”. Não é gratuita sua reivindicação da “nova crítica” como “prática da escritura” e da gramatologia derridiana, como não é gratuita a ruptura representada pela vigésima oitava e última edição do “primeiro ciclo”, cujos dois editoriais anunciavam “O silêncio de Trelew”, sobre o massacre de dezesseis militantes esquerdistas, e a necessidade de ir “Hacia la crítica” (em proposta de enquete respondida apenas por alguns intelectuais, como se verá adiante com Piglia), cujo alvo é “a forma de produção da cultura dominante no contexto da luta de classes na Argentina”. Na reconfiguração seguinte do grupo, feita em nome do marxismo-leninismo, Piglia vai persistir, mas não até o final.

Mesmo assim, cabe registrar que, ainda antes da etapa do lema “Por uma crítica política da cultura”, a partir do nº 22 (setembro de 1971), este foi enunciado com todas as letras no editorial do número anterior, de agosto; estava portanto no ar nesse momento, no qual se modificam não somente os protagonistas da revista mas também seus conteúdos e objetos críticos. E, apesar de ser mais pobre no nível material, surge politicamente cada vez mais rebelde e faminta: “Hoje, Los Libros deseja constituir um espaço adequado para uma crítica política da cultura, o que não significa abandonar as primeiras propostas”, pelo contrário, ao menos no momento, quando é preciso ler “com lucidez” tanto os textos que “oferece a escritura” como “esses outros textos que constituem os feitos histórico-sociais”. Experimenta-se um momento-chave de politização geral e de vontade de intervenção na esfera pública, ao que o grupo responde sob a influência do Maio de 68, tratando-se, “em última instância, de contribuir para a mudança das condições em que se produzia cultura e que inclui a possibilidade de uma leitura radicalmente diferente dos livros”.[106]

Apesar da participação de Piglia – que é ao mesmo tempo um “distinto” e um “radicalmente distinto” leitor de Los Libros – na fundação da revista, seu engagement parece ser efetivo (ou assumido como tal) somente a partir de 1972, isto é, na hora da independência. Esta significaria, de modo paradoxal, porém concreto, uma breve abertura para o futuro fechamento, quase imediato, que vai se consolidar com sua aliança com Sarlo e Altamirano em torno de um projeto de um órgão de intervenção e combate, ideologizado portanto de maneira vertical. Os textos de Piglia desde a etapa de autonomização, ainda mais que os de Sarlo, merecem o epíteto de idiossincráticos, e assim são lidos aqui (cf. cap. VI). Como “aparelho ‘revolucionarizante’”, o periódico experimenta um processo de homogeneização – em contraste com o pluralismo do início – que tem a finalidade de adotar uma nova ordem para impor a total reconfiguração da revista e do grupo. Tal reconfiguração era extensiva em seus objetivos 106 Los Libros nº 21, Buenos Aires, agosto de 1971, p. 3.

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a toda a nação, que vive em permanente estado de sítio em sua já larga e terrível jornada de respiração artificial que vai se estender, entre milhares de expurgos, como é bem conhecido, até a década seguinte. Não só para Piglia, como quer Sarlo (cf. adiante), o lema é ordenar (com ênfase no sentido de dirigir).

Assim, não parece fortuito que Sarlo estreie em Los Libros – em seu segundo ano e em sua décima edição, de agosto de 1970 – com uma resenha sobre, ou, melhor dizendo, contra outra revista cultural, chamada justamente Nueva Crítica, cujo primeiro número havia sido apresentado em Buenos Aires em julho. O contra-ataque mistura Roland Barthes e Jorge Luis Borges uma vez que, coincidentemente, se trata do número no qual o último aparece na capa, destacando o conto, então inédito, “El otro duelo”. A resenhista, desde sua primeira frase, reivindica Barthes para denunciar em Nueva Crítica a “reação” e “a expressão do subdesenvolvimento cultural”, a exemplo da revista Mundo Nuevo, de Emir Rodríguez Monegal, ambas financiadas por instituições norte-americanas. Para a jovem Beatriz Sarlo Sabajanes (como assinava então), a própria denominação da revista estaria usurpando “um nome que não lhe pertence, esvaziando-o de significado real”. Do mesmo modo que devemos a Barthes o fato de que um obscuro professor, Raymond Picard, tenha entrado na história intelectual do Ocidente, ainda que como derrotado, esta mesma história deve a Picard o batismo da “nova crítica”, como reconhece Sarlo em sua biografia do autor de O prazer do texto, dedicada a Carlos Altamirano:

O vocabulário, as maneiras, do que ele [Picard] chamaria “nouvelle critique”, consagrando-a com esse nome, e cumprindo assim o destino ingrato de certos polemistas que encontram um nome adequado ao objeto que atacam, havia começado a aparecer nos cursos de literatura: a linguagem da psicanálise, ou sua vulgata, os passos da estruturação, a consideração antipsicologista dos personagens, analisados por sua posição na estrutura. O assalto ao quartel general da crítica acadêmica tem seu programa de defesa no livro de Picard: Nouvelle critique ou nouvelle imposture, publicado em 1965.[107]

Nesse texto composto ao abrigo do Centro Editor de América Latina sob a ditadura, Sarlo discorre sobre um autor de sua predileção que havia sido excluído de sua biblioteca pelas razões conhecidas. Em “Planeta Sarlo”, resenha que celebra uma nova edição de El imperio de los sentimientos (1985), o crítico Daniel Link oferece um breve testemunho da vida de Sarlo na clandestinidade, quando faz sua reciclagem teórico-política com a ajuda de Pierre Bourdieu e Raymond Williams e faz um resgate –“reverente”– 107  Sarlo, B. El mundo de Roland Barthes, op. cit., p. 21.

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de Barthes e do estruturalismo. Link se refere ao Centro Editor, “editora fundada por Boris Spivacov com os restos da energia que havia colocado previamente em Eudeba”, como o lugar de onde Sarlo

começou a desenvolver suas hipóteses teóricas no Capítulo: Historia de la literatura argentina e algumas antologias publicadas com o pseudônimo (para evitar, seguramente, os rigores políticos da época). Ainda continua se consultando com proveito a compilação El análisis estructural (1977) com prólogo de Silvia Niccolini. Poucos sabem que essa assinatura imprevista é a que Beatriz Sarlo Sabajanes usava durante os anos da ditadura para despistar os censores. Sarlo impôs como último título de uma dessas bibliotecas milagrosas que publicava o Centro Editor – e a decisão foi, em seu momento, muito discutida – El mundo de Roland Barthes (1981), onde se percebia uma reverência da qual também dá conta o título El imperio de los sentimientos.[108]

Dadas as reservas ao nome de Barthes, é necessário lembrar que, a exemplo do conservadorismo acadêmico francês, o conservadorismo político argentino na versão maoísta vai censurar os discursos de vanguarda por “idealistas” e “a-históricos”, tal como ocorre em Los Libros. Por isso, quando Sarlo faz referência, na introdução ao “mundo” de Barthes, aos discursos proibidos por seu caráter inovador e vanguardista, não faz mais do que narrar sua própria trajetória, na etapa anterior e mais dura de sua experiência política e intelectual: “O discurso cuja liberdade se pretendia restringir, era o que, a partir da metade da década de 60, circulará e criará novos prestígios nas aulas universitárias, nas bibliotecas e nas revistas”. [109]

O primeiro ponto de inflexão de sua passagem – e permanência – em Los Libros se encontra na edição dedicada à Bolívia, de maio de 71 (nº 19), em pleno fervor latino-americanista e cubano. Depois das primeiras contribuições estritamente literárias e culturais, Sarlo parece aderir definitivamente ao grupo depois de sua viagem ao “país do altiplano” com a missão de traçar uma radiografia da situação política e social da Bolívia e de obter um testemunho de um escritor, Augusto Céspedes, considerado modelo de consciência social e política na época. Sem dúvida, antes disso, em outubro de 1970 (nº 12), Sarlo reaparece na revista com uma resenha sobre uma narrativa de Eduardo Mallea, um escritor que – ao contrário de Céspedes – era o modelo a ser evitado por burguês, individualista e idealista. Mallea, adverte Sarlo – futura colaboradora de La Nación, graças às vertiginosas mudanças experimentadas a partir dos anos 70 – “não em vão é dos incondicionais de Sur e La Nación”. A jovem autora de Juan María Gutiérrez: historiador y crítico de la literatura (1967) – seu primeiro livro – 108  Link, D. “Planeta Sarlo”. Página 12, Radar Libros, Buenos Aires, 9 de julho de 2000, p. 5.109  Sarlo, B. El mundo de Roland Barthes, op. cit., p. 24. 

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passa a frequentar as páginas de Los Libros de maneira mais intensa do que, por exemplo, Ricardo Piglia. Em dezembro de 1970 (nº 14), a propósito de um relato de Beatriz Guido, volta a iniciar um texto com remissões a Barthes e ao estruturalismo, cobrindo-o com termos como “vanguarda”, “subversão”, “estrutura” (com especial insistência) e “ideologia”; ideologia esta que, no que se refere ao tema da resenha, não seria senão uma variação do “antiperonismo liberal e burguês, que não entende bem seu filho, o frondizismo”, segundo as palavras da então militante nacionalista, ainda nas hostes de Perón. Da viagem a La Paz, documentada em textos e imagens, Sarlo traz um “Informe sobre Bolivia” e a entrevista com Céspedes.[110] Ambas as colaborações estão na edição especial sobre o país, que inaugura as intervenções da revista na esfera política. O informe não é senão um panfleto contra o imperialismo e a favor da união dos latino-americanos, como já propunha Los Libros desde seu novo subtítulo, que passa de “Un mes de publicaciones en Argentina” a “Un mes de publicaciones en América Latina” (a partir do nº 8, de maio de 1970).

Em março de 1972, o nº 25 marca a trajetória da revista com a ampliação do conselho de redação e a adoção do lema “Para una crítica política de la cultura”. Sarlo escreve neste número uma crítica do “romance argentino atual” a partir dos conceitos de verossimilhança e de escritura nos moldes de Barthes, que em seguida seria totalmente reprimido pelo grupo. As perguntas centrais do ensaio, publicado poucas páginas antes de uma longa matéria de Piglia sobre Mao Tse-Tung, de algum modo traduzem os problemas e as transformações ideológicas do momento: “Um novo verossímil significa uma vanguarda? Existe uma vanguarda na Argentina?”. A resposta que propõe pode ser resumida em outra espécie de slogan: “por uma vanguarda sem virtuosismo cínico”. A face vanguardista de Barthes é despertada, como é sabido, pelo dramaturgo Bertolt Brecht, entre certa estética da provocação e da materialidade das formas. A partir de 1954 – vale lembrar –, depois de conhecer a montagem de “Mãe Coragem” pelo Berliner Ensemble, transforma-se em um propagandista de sua obra através da revista Théâtre Populaire. Ao mesmo tempo passa a reivindicar a chamada literatura “objetivista”, como observaria Sarlo em El mundo de Roland Barthes, acrescentando: “Dez anos depois, Barthes era o crítico de uma nova vanguarda: Sollers, Sarduy”.[111] Para chegar a este auge de ebulição telqueliana, vem de um passado sartreano (a vanguarda do pós-guerra) e marxista, porém marxista só até certo ponto, segundo essa espécie de ajuste de contas de sua velha leitora argentina:

110  A  entrevista  é  ilustrada  com  uma  foto  de  Sarlo  vestindo  roupas  de  guerrilheira,  ao  lado  de Céspedes.

111  Sarlo, B. El mundo de Roland Barthes, op. cit., p. 18.

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Por “marxista” se poderia entender antes o propósito de aceitar como objeto da crítica literária também o sistema das condições sociais e históricas e, ao mesmo tempo, o sistema de vibrações ideológicas de termos como “valor” e “trabalho” da forma. Nada sem dúvida que lembre o que Barthes afasta de si com certo horror: a histeria da política ou um inferno dogmático entrevisto de longe. [112]

Destaco esta última frase porque é possível atribuí-la a sua própria autora, com a diferença de que ainda experimentava a “histeria da política” e o “inferno dogmático” a partir de dentro. A “liberação” de seu pensamento seria retomada à base de mudanças teóricas e práticas – precisamente como as que vai detectar em Barthes, cuja causa, segundo a interpretação de Sarlo, seria uma “estética da transgressão” que lhes dava sentido. Frente ao fascismo da linguagem, Barthes decide responder com outra forma de violência vanguardista que se pretendia antiburguesa, os chamados textos-limite ou de ruptura; ou então, em palavras da Sarlo pós-maoísta, “a subversão simbólica, que Barthes difunde na década de 70”, reunindo “em um mesmo ato o costume das vanguardas com o projeto de uma liquidação intelectual de ordem estética da burguesia”.[113] No entanto, antes de tudo isso, a jovem crítica, sob a influência das Mitologias, se dirige aos meios massivos de comunicação, reproduzindo “a forma insolente e segura” que havia identificado neste primeiro Barthes, que seria igualmente sua a partir da estreia na revista. Assim, em julho de 1972, Los Libros (nº 27) surge com uma televisão na capa e quatro páginas dedicadas a “Los canales del Gran Acuerdo”. Observemos que Sarlo vai citar, de imediato, no texto, as Recherches pour une sémanalyse de Kristeva e seu conceito de “ideologema” – como “função intertextual materializada nos diferentes níveis da estrutura de cada texto” –, o que a levaria a uma polêmica com Schmucler, preocupado – como vimos – com o vocabulário excessivamente “técnico” (um eufemismo para “telqueliano”) presente, a seu ver, em Los Libros. Depois deste episódio, Sarlo só voltaria a publicar um texto na edição de nº 33, de janeiro-fevereiro de 74, e a quatro mãos com Altamirano.

O movimento em direção à China aparece de forma concreta na reinauguração da revista, no início do ano de 1973, em seu novo formato pequeno e em sua nova diagramação, que respondem ao modelo ideal de periódico “antiburguês”, segundo o novo conselho de redação, assumido – ou “tomado” – pela trindade Piglia-Altamirano-Sarlo. Os últimos “panfletos” assinados por Sarlo Sabajanes (nos nºs 28 e 29) miravam, de modo hipercrítico, a carreira de Letras na Universidade de Buenos Aires e, mais uma vez, a televisão, em razão da campanha eleitoral de 1972, demonstrando 112  Idem, p. 15 (grifo meu).113  Ibidem, p. 20.

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sua grande preocupação perante o momento inicial de consolidação do que denominaria, mais tarde, “videopolítica”, em série de artigos para Punto de Vista. Em seguida há um hiato em sua produção escrita, quando se dedica menos do que gostaria à literatura, conforme declarou em seu testemunho, devido à intensificação das obrigações da militância política. Tratando-se de telquelismos latino-americanos e de sua negação (que oculta então, em Sarlo, uma inegável fascinação), é particularmente ilustrativo do debate sua resenha de Yo el Supremo, de Augusto Roa Bastos, ao lado da réplica de um certo Antonio Carmona, na edição seguinte.[114] O texto sobre o Supremo pretende exibir as fraquezas do romance mais ambicioso do escritor paraguaio, ao vinculá-lo a duas linhagens: uma, mercadológica, ligada ao boom da “nova literatura latino-americana”; outra, telqueliana, dados os “ecos – nem sempre absolutamente consequentes com as fontes originais”, ela sublinha, “das teorias sobre a escritura, em especial as francesas”. O uso que Roa Bastos faz de tais teorias, que parecem suspeitas nesse momento por “idealistas” (a exemplo do que afirmara Altamirano em outro lugar da mesma edição), seria questionável em função da “unilateralidade do poder sobre o qual está centrado o romance”, ou seja, em função da ausência de outras vozes que não a do Supremo, conforme sua conclusão. A essa altura os papeis haviam sido trocados: Antonio Carmona – nome falso – seria o verdadeiro representante de uma “nova crítica” e não mais Sarlo, que também inaugura a edição nº 38 com cinco páginas de pesadas críticas a um dos principais ideólogos da esquerda peronista, Hernández Arregui, fazendo outro ajuste de contas com seu passado político recente. Carmona, por sua vez, vai criticá-la no outro extremo desse número da revista, cada vez mais caracterizada pelo exercício explícito da polêmica. Em “Yo el Supremo: ¿La escritura del poder o la impotencia de la escritura?”, o misterioso interlocutor defende o grande autor paraguaio, concluindo – em uma leitura inteiramente oposta à de Sarlo – que “Roa pretende (...) desprestigiar o narrador individual, tão prestigiado pela literatura burguesa, para revalorizar o relato como produto coletivo, social, no qual o escriba não é mais do que um matizador, compilador em certo sentido da escritura do ‘Comum’ que o Supremo não soube ler”. Digo “misterioso interlocutor” porque – como garante em seu testemunho – este entregaria sua réplica em mãos da própria Sarlo. Nada assegura, no entanto, que não se trate de seu verdadeiro nome e que o texto não tenha sido escrito por outra pessoa.

Com informações cada vez mais fragmentárias, Los Libros chega a seus estertores depois da saída de Ricardo Piglia. A defesa das posições adotadas a respeito do governo peronista ressurge desde as primeiras

114  Cf.  Los Libros  nº  37    (setembro-outubro  1974)  e  nº  38  (novembro-dezembro  1974), respectivamente.

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páginas do nº 42 (julho-agosto de 1975), no editorial assinado por Sarlo e Altamirano, que destaca também um texto inédito de Mao e a carta-renúncia de Piglia. Como comentou Ernesto Laclau, “havia muitos grupos maoístas que estavam dentro do peronismo” (cf. entrevista). No número seguinte, de setembro-outubro, só duas notas aparecem com a abreviatura “B. S.”, uma sobre a literatura do interior do país – na qual se critica a centralização da cultura na capital federal, o que prefigura a canonização de Juan José Saer celebrada em seu próximo (e último) texto na revista – e outra dedicada ao cinema argentino. Na última edição conhecida, publicaria um ensaio dedicado a outra trindade de romancistas argentinos com suas novidades de 1975: “Saer-Tizón-Conti. 3 novelas argentinas”, onde apresenta o autor de El limonero real como o de sua preferência, apesar de sua filiação (destacada duas vezes) ao chamado “objetivismo francês”.[115] Contra os supostos excessos “imaginativos”, na vertente de García Márquez, de Mascaró, el cazador americano, de Haroldo Conti, e de Sota de Bastos, caballo de espadas, de Héctor Tizón, exalta a narrativa de Saer, na qual “a temática de uma zona de sua província resulta, sem estridências, numa proposta literária para a qual são capitais o elemento regional e popular”. Ao lado de Altamirano, conduz a revista até o começo de 1976, quando os militares fecham suas portas com violência, fazendo desaparecer a edição nº 45, que, segundo ela, já estava pronta, incluindo uma resenha sua sobre Nombre falso de Ricardo Piglia, então recém publicado. Como é sabido, os três voltariam a se encontrar na clandestinidade – ainda que não voltassem a configurar um “grupo” – para criar a revista Punto de Vista já em 1978, cheia de nomes falsos por razões óbvias.

Quando o golpe se anunciava, a “nova crítica” há muito havia desaparecido de Los Libros e, sob o terror de estado, seria impelida a reciclar-se por completo para, em um futuro próximo, ressurgir das cinzas até a institucionalização através do ingresso na universidade argentina nos anos 80, da qual tinham sido excluídos, e não apenas Sarlo ou Altamirano, como todos os companheiros de geração sob o guarda-chuva da “esquerda”. Com a consolidação de Punto de Vista, a ex-militante revolucionária passa a fundir a tradição das polêmicas jornalísticas com o debate acadêmico, transformando-se numa crítica cultural estabelecida, a partir de uma completa profilaxia teórica, sobretudo “antiparisiense”, nos termos de Miguel Dalmaroni,[116] encarada depois do “golpe gorila”; é como se dissesse que o “pesadelo” dos últimos anos não havia sido em vão: a luta continuava em silêncio, agora pela definitiva descolonização intelectual. Como é

115 Los Libros nº 44, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1976, p. 3-6.116  Dalmaroni, M. “La moda y ‘la trampa del sentido común’. Sobre la operación Raymond Williams 

en Punto de Vista” em Giordano, Alberto y Vázquez, María Celia (eds.). Operaciones de la crítica. Rosario: Beatriz Viterbo, 1998, p. 35-44.

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sabido, este seria o sentido da “operação Raymond Williams”, apresentada ao público argentino, ao lado de Richard Hoggart, em um artigo de um dos primeiros números de Punto de Vista (o sexto) sob o título de “Insularmente independientes de las modas culturales”. Os culturalistas ingleses são oferecidos aí, segundo Dalmaroni,

como “alternativas” frente às “modas teóricas”, ligadas a “uma formidável indústria cultural, apoiada numa exportação de livros que é a maior do mundo”, modas responsáveis “talvez” por nossa leitura mutilada dos formalistas russos. São Althusser e Macherey, “o estruturalismo de Barthes, Todorov ou Kristeva”, e Tel Quel aspirando a “ocupar o campo da crítica literária como única forma da ‘modernidade’ teórica”, a linguística operando como “ciência piloto” das disciplinas sociais. (p. 35-36)

A importação de Williams significaria, por outro lado, um modo de por em prática uma estética vanguardista da teoria e, ao mesmo tempo, “abandonar um socialismo indefectivelmente dependente do conceito de ‘revolução’ sem abandonar de todo o socialismo”. No entanto, é interessante reter aqui uma hipótese de Dalmaroni a partir do que Sarlo e Altamirano chamaram “linguagens de temporada”, “catecismo” ou “conexão francesa”, e que Schmucler e Rosa a princípio rejeitam e depois, no transcurso de sua entrevista, são levados a aceitar:

A hipótese poderia dizer, aproximadamente, que o inconsciente da operação Williams não é inglês, nem historicista, nem culturalista nem populista. É parisiense, estruturalista, semiológico e esteticista: é Barthes. Porém já não o Barthes que em uma das perguntas que Sarlo dirigia a Williams em 1979 era colocado junto com Tel Quel em um “formalismo francês (...) realmente muito mais abstrato e formalista do que Saussure” (...). É, em troca, o Barthes semiólogo da vida cotidiana, o Barthes ensaísta, o Barthes das Mitologias, de quem Sarlo escreveria, em 1981, que desbaratava “a armadilha do sentido comum” estendida pela Doxa. (p. 39-40)

Do desdobramento dessa reflexão “segura e insolente” de Sarlo, resultaria “uma continuação involuntária de um Barthes abandonado por Barthes, como uma tradução para o inglês do primeiro Barthes”. Traduzida para o inglês e logo para o espanhol, conforme o autor, ou diretamente para o castelhano por um Nicolás Rosa, a obra desse “crítico insuspeito” (segundo Antelo), além de “francês” como poucos,[117] sempre volta, entre o bem e o mal, o real e o inconsciente, contra os dogmas do pensamento, seja

117  Ver,  a  propósito,  sua  profunda  “francesidade”,  conforme Sarlo  na  introdução  a El mundo de Roland Barthes, op. cit., p. 33-34.

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ele franco-chinês ou franco-chinês-argentino. O discurso da dependência parece estar na raiz dessa necessidade quase paranoica de se distanciar da França, e, por outro lado, o discurso da crítica cultural elaborado em Punto de Vista exibiria os mecanismos de compensação com que são reelaboradas as questões do nacional e do popular, prefigurados por exemplo no texto sobre Arregui. De sua parte, Sarlo volta a dialogar em código político-crítico com essa tradição, exercitando sua perspicácia de tons progressistas e democratizantes, por exemplo, no artigo “Menem”, em sua trincheira de “resistência intelectual”. Trata-se de uma nova atitude com finalidades revisionistas, agora no que se refere a esse avatar do peronismo que seria o fenômeno do menemismo, que continuou assombrando o país até o início do século XXI, entre o cinismo e o excesso em sua relação mercadológica e populista com uma nação tão ou mais desnacionalizada do que o resto do “terceiro mundo”.[118] En la batalla de las ideas (1943-1973), a antologia de Sarlo que busca resgatar os discursos menos audíveis do longo período – como aqueles da universidade ou da igreja –, cujo eixo é “a passagem das soluções reformistas às propostas revolucionárias”, sua etapa de formação (que coincide com a história de Los Libros) é vista como particularmente promissora:

Se o movimento histórico vai para o lado da radicalização, isto não aconteceu no vazio de outras posições. Seja como for, quando chega o início da década de 70, se tem a sensação de que a esquerda ganhou uma batalha cultural que a torna muito visível no campo intelectual e artístico. Que essa vitória cultural durasse pouco é parte do término terrível do período que este livro considera.[119]

Observe-se que a antologia de tons autobiográficos, que vai “da ilusão à derrota, do reformismo à revolução, do peronismo de estado ao peronismo guerrilheiro, do golpe de junho de 1943 aos prolegômenos do grande golpe de 1976”, chegaria ao fim precisamente, no caso de Sarlo e Altamirano, no âmbito de um pequeno periódico portenho chamado Los Libros, fechado à força no mesmo e fatídico ano de 76.

118  Sarlo, B. “Menem”. Punto de Vista nº 39, Buenos Aires, dezembro 1990, p. 1-4.119  Sarlo,  B.  (com  a  colaboração  de  Carlos Altamirano).  La batalla de las ideas  (1943-1973). Buenos Aires: Planeta, 2001, p. 14-15. Concomitantemente, Altamirano publicaria Bajo el signo de las masas, dedicado ao debate político do mesmo período.

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Ricardo Piglia entre Mao e os Panteras Negras

Em duas décadas, a trajetória intelectual de Ricardo Piglia no mundo editorial portenho desemboca no romance Respiración artificial, cujo impacto o consagraria dentro e fora do país. Especificamente em Los Libros – mais um dos diversos periódicos em que então publicava – suas intervenções são quantitativamente escassas porém ideologicamente decisivas para o desenho do perfil da revista, de etapa em etapa, em exatos dez textos.[120] Como seu especialista em literatura norte-americana, começa escrevendo sobre Joseph Heller, cujos relatos são lidos como um “novo estilo de romance” nos Estados Unidos, entre a comicidade e a vanguarda, ou seja, nada a ver – diz com ênfase – com o grande êxito das experiências vanguardistas francesas e “tropicais” da América Latina, esclarecendo suas reservas a respeito das novidades francesas e do boom. Nesse momento Piglia estava igualmente vinculado à editora Tiempo Contemporáneo, onde dirigia a “Serie Negra”, que publicou vinte e oito livros exclusivamente norte-americanos. Paralelamente ao veio policialesco hard-boiled, ainda ressoa em seu discurso da época o veio sartreano representado pelo grupo Contorno, a vanguarda existencialista portenha dos anos 50. Não por acaso volta a escrever na última edição do primeiro ano, abrindo o nº 6, de dezembro de 69, com uma resenha de Cosas concretas, do contornista David Viñas. O relato de Viñas é visto ali como “o discurso clandestino, silencioso da prática revolucionária”, inimigo da “literatura que atua na legalidade do mercado”.

Em março do ano seguinte realiza uma entrevista particularmente importante com o escritor Rodolfo Walsh, desaparecido em 1977. O título do diálogo idiossincrático é uma sentença do autor de Operación masacre, que resume o sentido da relação arte-política para os revolucionários do país: “Hoje é impossível na Argentina fazer literatura desvinculada da política”.[121] Mantendo-se sempre distante do nacionalismo, Piglia trataria de mundializar a crise ao reconhecer nos Black Panthers e seus cronistas os melhores representantes de suas posições: com quatro páginas dedicadas à “Nueva narrativa norte-americana”, vai protagonizar o décimo primeiro número de Los Libros (de setembro de 1969) com um ensaio que reproduz

120  Na conta estão incluídos sua resposta ao debate “Hacia la crítica” e sua carta de despedida de 1975 (cf. Bibliografia).

121  A entrevista permanece inédita até sua publicação como introdução a um conto de Walsh, Un oscuro día de justicia por Siglo XXI em 1973. “Existem duas versões da mesma, uma de 1973, em pleno auge do terceiro governo peronista; outra de 1987, durante a revisão crítica do peronismo da década precedente”, informa Rita de Grandis. “Piglia reelabora a primeira versão, resgatando principalmente  as  reflexões  do  próprio Walsh  sobre  sua  prática  literária”.  Cf.  De Grandis,  R. Polémicas y estrategias narrativas en América Latina. Rosario: Beatriz Viterbo, 1993, p. 94.

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o discurso violentamente ideológico dos Panteras Negras,[122] reconhecidos como “propagandistas” em busca de “espaços de resistência e de oposição à voracidade do sistema”: Malcolm X, Eldridge Cleaver, LeRoi Jones, Ralph Brown seriam os primeiros a tentar uma prática política com perspectiva coletiva, segundo sua leitura. Nessa linha, Walsh estaria para a Argentina assim como Burroughs para os Estados Unidos. Desde a tribuna ainda pluralista da revista, sugere tratar-se do “mais importante dos romancistas norte-americanos desta década”. No entanto, se por um lado destaca sua “escritura desintegrada” e a quebra das leis de “produtividade textual admitidas pela burguesia”, por outro afirma que a experiência de Burroughs “se fecha em si mesma afogada por uma oposição que cai ‘da literatura’ sem sair do sistema” – ao contrário do que fariam os Panthers, constantemente associados aos chineses no artigo. É nesse momento de culminação dos discursos de guerrilha que vai enunciar, conforme as tendências radicais de então – ou seja, conforme a “desenunciação generalizada” proposta por Sollers –, a ideia do fim dos gêneros literários e do conceito de “livro”. A partir de frases nesse estilo apodíctico, como a do título da entrevista com Walsh, se desenhava a chegada do discurso dogmático e sem concessões, tributário de Mao Tse-Tung, e não apenas anti-soviético como anti-cubano, no seio da revista.

Já em março de 1972 diria Piglia num texto sobre Mao: “Para quem escrever? De onde? Quem pode nos ler?: toda a reflexão ‘estética’ de Mao se destina a definir a produção artística como resposta específica a uma demanda social, diferenciada, que nasce na luta de classes”.[123] No entanto, em toda a primeira etapa de Los Libros, Burroughs é uma referência maior, que culmina com a reprodução de uma entrevista bombástica do autor de Naked lunch a um escritor francês em abril de 1971 (nº 18). Seus trinta fragmentos apontam de modo perfeito ao clima da época, apesar de suas muitas contradições no melhor “estilo tropical”: manifesta seu apoio à China vermelha e à insurreição estudantil e define os Estados Unidos como “pesadelo absoluto”, ao mesmo tempo em que considera seu país o lugar ideal para fazer dinheiro, além de fazer menções positivas e negativas sobre as drogas.[124] Porém, o desvio de Piglia em direção à literatura norte-americana ocorre pela vertente negra ou policial: tratava-se, segundo ele, de uma resposta mais eficaz à nova esquerda para o debate sobre as possibilidades de uma literatura simultaneamente “aberta” e de cunho

122  Ver as relações de Silviano Santiago com os Black Panthers e os Young Lords (porto-riquenhos) na Universidade de New York-at-Buffalo em sua entrevista. 

123  Piglia, R. “Mao Tse-Tung. Práctica estética y lucha de clases”. Los Libros nº 25, Buenos Aires, março de 1972, p. 22.

124  Cf. “Diálogo con William Burroughs”. Los Libros nº 18, Buenos Aires, abril de 1971, p. 20, 22 e 24.

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social. Assim – como confirmaria muito depois –, o modelo de Piglia nesse âmbito era antes o de Dashiell Hammet, ligado ao Partido Comunista, do que o de William Burroughs, alheio ao fenômeno da luta de classes. Encontra então “uma tradição de esquerda que não tinha a ver com o realismo socialista, nem com o compromisso nem com a teoria do ‘reflexo’ no sentido de Lukács, mas com uma forma que trabalha o social como enigma”.[125] Quanto ao seu melhor “contramodelo” para além das fronteiras norte-americanas, o encontramos logicamente em Borges – considerado por Piglia como a literatura argentina –, porém, por suposto, um Borges lido desde “o indigno” Roberto Arlt.

Por volta de 1975, dois historiadores da cultura entrevistam o autor de Ficciones a propósito do gênero policial. Discutindo a grande incidência do gênero na Argentina, e a tendência de seus autores de deixar-se levar pelo gosto da paródia (em referência a suas próprias experiências ao lado de Bioy Casares), afirma de modo enigmático: “Creio que o autor argentino costuma desdenhar o que está fazendo”. Frente à pergunta “é também seu caso?”, Borges tergiversa e mente: “Em 55 perdi a visão. Desde então me dediquei a outras coisas. A estudar línguas, ao anglo-saxão e, ultimamente, ao escandinavo. Agora já não me interessa a literatura policial”.[126] No entanto, logo vai dar uma aula bastante minuciosa sobre o conto policial, recolhida em Borges oral.[127] Nela reafirma categoricamente que Allan Poe foi o criador do gênero e lança de imediato uma breve discussão a respeito do que chama de “um pequeno problema prévio: existem, ou não, os gêneros literários?” A resposta seria naturalmente positiva, porém em favor da leitura e do leitor, conforme um fragmento de “El cuento policial”:

Os gêneros literários dependem, quiçá, menos dos textos do que do modo como estes são lidos. O fato estético requer a conjunção do leitor e do texto e só então existe. É absurdo supor que um volume seja muito mais que um volume. Começa a existir quando um leitor o abre. Então existe o fenômeno estético, que pode parecer-se ao momento no qual o livro foi engendrado.[128]

125  Cf. entrevista en Ricardo Piglia. Conversación en Princeton. Program in Latin American Studies, Princeton University, 1998 – programa no qual atuaria como professor durante uma década, até aposentar-se  em  2011.  Seis  das  dez  intervenções  de  Piglia  em Los Libros  foram  apagadas  da bibliografia dessa publicação, todas de sua etapa mais fervorosamente maoísta.

126  A entrevista aparece em uma antologia de dois colaboradores da primeira etapa de Los Libros: Lafforgue, J. y Rivera, J. B. Asesinos de papel. Una introducción: historia, testimonios y antología de la narrativa policial en la Argentina. Buenos Aires: Calicanto, 1977.

127  Borges,  J.  L.  Obras completas  vol.  IV  (1975-1988).  Barcelona:  Emecé,  1996.  A  aula  foi ministrada na época da última ditadura militar, em 1978. 

128  Idem, p. 189.

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Muito mais tarde, e na mesma linha de Borges, Ricardo Piglia afirmaria em sua entrevista que os gêneros são “protocolos de leitura” ou “modos de ler”, ou seja, abandona a ideia de sua extinção em nome de sua eficácia prática:

Eu creio que os gêneros têm um lugar importantíssimo, que os gêneros são protocolos de leitura, digamos, são marcos, e que portanto jamais vão desaparecer. O que pode ocorrer é que podem se misturar. Um gênero seria a estabilização relativa de um protocolo, de uma forma e de uma expectativa de leitura. Um gênero é um modo de ler e nada além disso.

Porém, Piglia era adepto do policial ao estilo norte-americano e não inglês, como Borges. Além disso, o gênero policial é pensado e funciona mais organicamente em Piglia do que em Borges – a quem, contudo, reivindica como um “pai” que ignora deliberadamente o que se chamava de “literatura social”. O preço dessa posição foi, certamente, seu “assassinato”, à maneira parricida do grupo Contorno, no período de radicalização política, com uma importante diferença póstuma: o faria para ressuscitá-lo em posição central. Por outro lado, o debate sobre o policial nos anos 60 tem íntima relação com estas “mortes”, ainda que se desenvolva através de uma leitura anárquica do social. A abordagem crítica da “nova literatura norte-americana” de Piglia nesse momento, assim como a de Arlt, se fundamenta no pressuposto básico da transgressão, a partir da ideia de que a própria sociedade está estruturada no delito. Não haveria, portanto, origem ou fim do delito, não haveria sequer assassino segundo esta concepção do gênero, porque o crime é nela um parti pris, o crime está disseminado. A noção de transgressão implícita do seu ponto de vista leva a concluir que todo gênero representa um debate social e que o novo romance policial, em que “a alta potência do falso”[129] é o elemento-chave, exibe nesse debate, segundo Antelo, uma origem dupla, intelectual e popular, um registro duplo, entre o enigma e o romance, e um duplo regime de leitura, o hermenêutico e o narrativo.[130] Nesse panorama caótico da nova narrativa negra, cuja peculiaridade reside no fato de que o criminoso e o detetive aparecem sobrepostos e indecidíveis, o elemento social surge como “massa”, ao passo que a subjetividade se constituiria em forma de transgressão. Esta dupla face dos relatos policiais, teorizada a seu modo por Borges, seria portanto reconstruída por Piglia em código socialmente transgressivo, a partir de um jogo de indistinção genérica e de uma experiência de limites político-críticos. No entanto, se no fim do século os gêneros são também para Piglia “modos de ler”, nos anos 60, no “laboratório ideológico” (segundo uma 129  Cf. Deleuze, G. “Philosophie de la Série Noire”. Arts et Loisirs no 18, Paris, 1966, p. 12-13.130  Antelo, R. “Notas performativas sobre el delito verbal”. Variaciones Borges, 2, Aarhus, 1996.

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expressão de Sarlo) de uma revista cultural argentina, não o eram ainda. Ao passar a limpo, em tom de manifesto, a “nova narrativa norte-americana”, o então jovem escritor conclui o texto com o mais puro espírito coletivista, oposto a todo protocolo:

Da narração como refúgio nos romancistas do “herói”, à negatividade absoluta de Burroughs, todo um circuito encerra a literatura norte-americana numa oposição integrada aos valores do sistema: a prática dos Black Panthers, ao criar uma perspectiva revolucionária no interior dos EE.UU. dá lugar a uma das escrituras mais radicais deste tempo. Quebrando a ideia de “gêneros”, desfazendo as diferenças retóricas entre “poesia”, “ensaio” ou “narração”, liberando-se inclusive da ideia de livro, a atividade dos propagandistas negros vem a redefinir na prática a função da escritura. Se levarmos em conta que ao abrir uma nova frente de combate contra o imperialismo norte-americano, os militantes do Black Panthers integram sua ação no contexto das lutas do Terceiro Mundo, se vê a importância que pode ter entre nós (respeitando diferenças e mediações) o estudo e o debate dessa experiência que, deixando de lado as estéreis polêmicas entre “Realismo”, “Vanguarda” ou “Compromisso”, faz também da linguagem o lugar da revolução.[131]

Em tempos de campos políticos bem demarcados, e de uma busca radical de pureza no sentido da redenção socialista, a revolução deveria estar cada vez mais em todas as partes, além de ter caráter permanente, conforme os postulados de Brecht, cuja ascendência sobre Piglia também é conhecida. Muitos números e polêmicas depois, Brecht é seu tema na edição de Los Libros, que estampa não apenas um editorial mas também duas cartas lado a lado: sua despedida “fraterna”, em função de divergências na avaliação do governo de Isabel Perón, e a resposta de Sarlo e Altamirano. Trata-se de suas últimas intervenções no quadragésimo número (de março-abril de 1975), em cuja capa se destacam quatro temas, um deles brasileiro: a restauração do capitalismo na União Soviética; Brecht; o marxismo e a revolução na Ásia; e a pedagogia – impugnada por “reformista” – de Paulo Freire. Uma prova de que a separação foi fraterna de fato é sua reunião apenas três anos depois para a fundação de Punto de Vista, com o apoio financeiro do grupo Vanguardia Comunista. Outra prova seria a própria eleição das “Notas sobre Brecht” como principal texto do número. Nas “Notas”, pretextando resenhar trabalhos inéditos sobre literatura e arte de uma antologia vista como “um dos acontecimentos mais importantes na crítica marxista desde a publicação dos cadernos do cárcere de Antonio Gramsci”, aproveita para fazer propaganda e, mais uma vez, insiste na

131  Piglia, R. “Nueva narrativa norteamericana”. Los Libros no 11, Buenos Aires, setembro de 1970, p. 14.

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“prática” como “fundamento último de qualquer trabalho cultural”: “Uma crítica materialista se funda, justamente, no controle que, em um campo à primeira vista tão ‘espiritual’, deve exercer a experiência concreta para evitar o risco de uma especulação idealista”.[132] Insiste mesmo assim no papel orgânico dos aparelhos culturais e na literatura como um campo material da luta de classes: “No fundo os críticos trabalham todos com uma ficção teórica: a de um sistema de valores independente do dinheiro. Para Brecht o mais ‘refinado’ crítico de arte no capitalismo, o ‘gosto’ estético, não é outra coisa que uma sublimação da capacidade aquisitiva”. Finalmente, oferece uma chave para sua própria visão da realidade e da literatura, sobretudo porque vai se consolidar em seu relato famoso de 1980. Na última nota, a de número 17, escreve:

O realismo brechtiano combina diferentes técnicas e instrumentos de trabalho para produzir um efeito de realidade. Neste sentido para Brecht não é realista quem “reflete” a realidade (...) e sim quem é capaz de produzir outra realidade. (“Não sou realista, sou um materialista; fujo do realismo indo em direção à realidade”, dizia Eisenstein com palavras que parecem de Brecht). Esta outra realidade é “artificial”, construída, tem leis próprias e exibe suas convenções.[133]

De sua parte, Brecht propunha, de modo sarcástico, em escritos da década de 20, um retorno ao gênero policial –“os romances policiais são a única ocasião em que me torno mordaz contra a literatura. Voltemos a eles!”. Além disso, jogava com a própria ideia de que a história da instituição da literatura funcionava como um romance policial: “Noto que para toda uma série de escritores os romances policiais não existem. Porém ao menos um deles deveria servir-lhes (...), sem exceção de leitura, às vezes: a história da literatura”.[134] Nos anos 60, o que poderia ser o novo romance policial da nova história da literatura? Os postulados brechtianos atuam como estímulo não apenas para a releitura do gênero feita por Piglia, como antes o fizeram para a vertente deleuziana da teoria crítica francesa, ao dedicar-se à “Serie Negra”. Celebrando sua milésima edição num artigo que seria expandido em Imagem-tempo,[135] o filósofo francês descreve a morte do “romance propriamente policial” em termos caros ao autor de Nombre falso, na luta contra a injusta verdade capitalista:

132  Piglia, R. “Notas sobre Brecht”. Los Libros n° 40, Buenos Aires, março-abril de 1975, p. 4.133  Idem, p. 9.134  Brecht, B. El compromiso en literatura y arte. Barcelona: Península, 1973, p. 33.135  Em seu capítulo sobre as “potências do falso” estão implicados não somente Nietzsche e Robbe-Grillet mas Hugo Santiago, Borges e Bioy Casares. Cf. L’image-temps. Cinéma 2. Paris: Minuit, 1985, p. 165-202.

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É que a verdade não é em absoluto o elemento da investigação: não se pode sequer pensar que a compensação dos erros tenha por objeto final o descobrimento do verdadeiro. Ela tem ao contrário sua dimensão própria, sua suficiência, uma espécie de equilíbrio ou de restabelecimento do equilíbrio, um processo de restituição que permite a uma sociedade, nas bordas do cinismo, ocultar o que quer ocultar, exibir o que quer exibir, negar a evidência e proclamar o inverossímil. O matador não encontrado pela polícia pode fazer-se matar pelos seus, em nome dos erros que cometeu, e a polícia sacrificar os seus por outros erros, e eis que estas compensações não têm outro objeto senão a perpetuação de um equilíbrio que representa a sociedade inteira em sua mais alta potência do falso.[136]

Com o original destacado desse modo, chama a atenção que Gilles Deleuze exalte precisamente alguns dos escritores rejeitados por Piglia, como é o caso de Miguel Ángel Asturias e de Robbe-Grillet. Porém, a propósito de um escritor latino-americano situado entre a China e os Estados Unidos, importa sobretudo enfatizar na leitura deleuziana a relação crime-capitalismo, utilizada por sua vez na releitura pigliana de Arlt. Esta estaria próxima, simultaneamente, das teorias “numismáticas” do telqueliano Jean-Joseph Goux, quem conecta o marxismo, a psicanálise e a linguística a partir de Bataille: seu ensaio na Teoria de conjunto, “Marx e a inscrição do trabalho”, propõe uma “marxização” da gramatologia derridiana. No entanto, Piglia, sempre distante das posições desconstrutivas, preferiria sem dúvida reivindicar ao “filósofo da dispersão”, que define o único crime realmente “teológico” na sociedade da acumulação infinita: “Sabemos que uma sociedade capitalista perdoa melhor a violação, o assassinato, a tortura de crianças, do que o cheque sem fundos, único crime teológico, o crime contra o espírito”.[137] No mesmo diapasão, Brecht, ao abordar o que chamou de “gêneros marginais” em outro breve artigo, “Da popularidade do romance policial”, diz que são sempre as circunstâncias sociais as que fazem possível ou necessário um crime: “violentam o caráter, da mesma maneira que o formaram”.[138] As “circunstâncias sociais” engendrariam, portanto, a não menos violenta “maolatria” pigliana, assim justificada em sua revisão daqueles anos de chumbo:

No meu caso, tomei distância rapidamente da Revolução Cubana, no momento em que se aliou com os soviéticos porque eu era maoísta, o que pode parecer exótico visto hoje, porém não era tão exótico nesses anos. O maoísmo naquele momento representava posições basicamente anti-soviéticas, porém também anti-cubanas, contrárias à linha que

136  Deleuze, G. “Philosophie de la Série Noire”, op. cit., p. 12.137  Idem, p. 13.138  Brecht, B., op. cit., p. 345.

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estava tomando a Revolução cubana, o foquismo pró-soviético e o latino-americanismo à García Márquez. O maoísmo era uma saída extravagante, porém não havia muitas opções. Naquele tempo a discussão girava sobre as experiências políticas concretas e então a experiência chinesa, a experiência vietnamita apareciam como tradições populistas que nós líamos a partir da vanguarda, à luz de Brecht, do Me-Ti, o livro chinês de Brecht sobre a história do marxismo.[139]

Na edição de março de 1972 de Los Libros (nº 25), Marx e Freud estão na capa e Mao, lido por Piglia, ocupa quatro páginas em “Mao Tse-Tung: práctica estética y lucha de clases”. Nessa longa resenha das Charlas en el foro de Yenan sobre arte y literatura,[140] o escritor argentino insiste no fato de que o sistema literário está determinado por interesses de classe, porém introduz a leitura desses textos de Mao a partir de Brecht. Nessa fusão também inclui os formalistas russos em nome da arte como “prática social”, naquela que é considerada a melhor tradição estética marxista: Tretiakov, Lissitsky, Meyerhold, Tinianov (tomado mais tarde como antídoto às “modas intelectuais francesas”),[141] culminando em Brecht. Através da reinvenção não de uma, mas de duas tradições – a do marxismo e a da literatura argentina –, as verdades elementares da política e a releitura da cultura literária do Prata se farão igualmente presentes em Respiração artificial. Sua visão social da arte aparece, portanto, carregada de populismo, um “populismo de vanguarda”: o povo, o leitor e o escritor do grande texto comum, estimulado pelos intelectuais orgânicos, irá subverter as relações de produção capitalista, que até então garantiam ao autor a propriedade privada do sentido. Por isso, era necessário “tirar o debate marxista sobre arte e literatura do lugar cego em que o ancoraram o stalinismo e o liberalismo”[142] – apagando-se obviamente desse discurso o fato de que o regime comunista chinês postulava justamente o resgate da figura de Joseph Stalin, contra a “camarilha revisionista e socialimperialista” hegemônica na União Soviética.[143] Sobre estas bases se construiria o novo romance policial da nova história da literatura argentina, entre crítica, política e ficção.

Para retomar o “pequeno problema prévio” – a pergunta de Borges sobre os gêneros –, digamos que o mito moderno do romance policial, noir ou não, representa o mito dos heróis do bem e do mal, leitores-detetives, escritores-criminosos cujas posições são híbridas e mutantes por definição

139  Piglia, R. Conversación en Princeton, op. cit., p. 39-40. 140  Buenos Aires: Marxismo de Hoy Ediciones, s. d. (dados da revista).141  Piglia, R. Conversación en Princeton, op. cit., p. 9.142  Piglia, R. “Mao Tse-Tung: práctica estética y lucha de clases”, op. cit., p. 25.143  Santiago Mas reivindica Stalin contra Trotsky em “Un ajuste de cuentas. Trotski y el trotskismo”. 

Los Libros nº 38, Buenos Aires, novembro-dezembro de 1974, p. 23.

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e cuja atividade constrói narrativas cindidas entre a ordem e a desordem, o alto e o baixo, o eterno e o transitório. Ainda que teóricos como Tzvetan Todorov tenham tentado estabilizar a questão,[144] a “lei da lei dos gêneros” é também ela um enigma e jamais dá lugar a certezas, muito pelo contrário: assinala antes uma “loucura”, uma “folia” do gênero, configurando-se, segundo Derrida, como “participação sem pertencimento”.[145] Nesse sentido, contra os postulados de Piglia, um escritor utilizaria a desordem como meio, em nome de um princípio de ordem – proposição reforçada adiante. Antes é necessário fechar o círculo (não o labirinto) do “decálogo” pigliano em Los Libros. Em julho de 1972 (nº 27), a matéria de capa, assinada por Beatriz Sarlo Sabajanes, denunciava a manipulação política pela televisão e Piglia abordava um livro de Andrés Rivera, Ajuste de cuentas, que então parece modelar ao unir um tipo de literatura política com o que chama de linguagem do desejo, em contos cujas tramas abertas ou duplas exibiriam seus próprios procedimentos, “um jogo de espelhos que faz ver o que o relato jamais nomeia”. No número seguinte, de setembro, contribui com as respostas à pesquisa sobre a crítica literária, claramente interessada na produção de ideologias no campo cultural – e isto a tal ponto que uma das participantes, Josefina Ludmer, se nega a responder às duas primeiras perguntas, por “dirigidas”.

Los Libros quer saber, basicamente, por que algo é legível como literatura e propõe uma crítica à forma de produção da cultura dominante como arma de luta ideológica. Assim, Piglia, que começa citando Gramsci – “todos aqueles que sabem escrever são escritores” –, responde de forma previsível: seria preciso analisar os códigos de classe que decretam a propriedade do literário. Para isso é necessário praticar a crítica materialista, a única capacitada a decifrar a produção e os contratos sociais que se interpõem entre um texto e sua leitura – e, assim dizendo, faz pensar que o próprio Piglia teria elaborado o editorial e as quatro questões da enquete às quais Osvaldo Lamborghini reage com violência irônica, como se viu no capítulo 3. Na Argentina, por exemplo – diz –, a crítica burguesa determinou os usos sociais da legibilidade como naturais ou eternos. Por essa razão, Piglia investiga as relações entre literatura e dependência, tomando por eixo a questão da tradução “como modo de apropriação e gênese de valor” – tendendo por certo, nessa “marxização” da questão, mais às posições de Schwarz ou Boal que às de Santiago ou Lamborghini–, que seria um dos temas de um livro anunciado mas não publicado. De qualquer modo, as

144  Cf., por exemplo, “L’origine des genres” em Todorov, T. La notion de littérature et autres essais. Paris: Seuil, 1987.

145  Derrida, J. “La loi du genre”. Parages. Paris: Galilée, 1986, p. 256.

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atenções se dirigem sobretudo a Arlt, “o indigno”,[146] a quem dedica não apenas a homenagem de Nombre falso (e depois a de Respiración artificial) como também as homenagens dos ensaios que os engendram. Um desses ensaios é “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria”, antecedido por um conto inédito de Arlt, “El poeta parroquial”.[147] Seria um capítulo do livro que não se publica mas que já tinha, inclusive, um título: Traducción: sistema literario y dependencia, anunciado com o ensaio, em cuja conclusão também seria revelado o título de outro capítulo do livro inexistente, “La traducción: legibilidad y génesis del valor” – anunciado para o número seguinte; Piglia, não obstante, só reapareceria cinco edições mais tarde, no número especial sobre a China, depois de conhecer in loco a situação da revolução cultural proletária do outro lado do planeta: são seis páginas com finalidades estritamente didáticas e militantes e com um título mais do que ilustrativo: “La lucha ideológica en la construcción socialista”. O escritor – membro da Vanguardia Comunista, dissidência do PC, como o Partido Comunista Revolucionário, de Sarlo e Altamirano – resume aí o que seria, para ele, a grande questão colocada pelos socialistas chineses: “Antes que classes econômicas, trata-se de enfrentar ideias e posições de classe. Assim a luta de classes toma fundamentalmente a forma de uma luta ideológica”. Conclui então que “a revolução cultural é uma grande campanha de retificação do estilo de trabalho no partido, realizada no seio das massas (e não unicamente entre os quadros e com os militantes)”.[148] Outro desses ensaios arltianos não por acaso se chamaria “La ficción del dinero”, publicado em 1974 na revista norte-americana Hispamérica, de Saúl Sosnowsky, com a seguinte observação final: “Este texto é parte de um estudo mais amplo: Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria, que sob o selo ‘Librería del Colegio’ será publicado proximamente pela Editorial Sudamericana”. Este livro também não constaria na bibliografia do escritor, porém tais vacilações parecem conduzir à maturidade de sua opção pela “ficção crítica”, que é a de Nombre Falso e também de Respiración artificial. Para Piglia, Arlt escreve bem porque escreve mal, o que equivale a dizer que, em sua releitura, joga a literatura “má”, folhetinesca de Arlt contra toda a tradição liberal da cultura argentina – de Borges e do grupo Sur –, dado que o autor de El juguete rabioso escreveria por necessidade material e não por luxo, além de depositar no fracasso a condição de sua escritura, conforme o ensaio aparecido em Los Libros:

146  Conforme Borges o apelidaria, seguindo a leitura pigliana do conto homônimo de El informe de Brodie: “¿Qué otra cosa es ese cuento sino un homenaje de Borges al único escritor contemporáneo que siente equipararse a él?”. Cf. Respiración artificial. Buenos Aires: Pomaire, 1980, p. 173.

147  Em Los Libros nº 29, Buenos Aires, março-abril de 1973, p. 20-27.148  Em Los Libros nº 35, Buenos Aires, maio-junho de 1974, p. 4-9.

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Arlt inverte a moral aristocrática que se nega a reconhecer as determinações econômicas que regem toda leitura, os códigos de classe que decidem a circulação e a apropriação literárias. (...) Ao nomear o que todos ocultam, desmente as ilusões de uma ideologia que mascara e sublima no mito da riqueza espiritual a lógica implacável da produção capitalista.[149]

Assim, Respiración Artificial aparece como uma síntese da atividade de Piglia durante a década “prodigiosa”, a de sua formação, e a seguinte, que o institui como intelectual às custas de um discurso da contravenção.[150] Como é sabido, neste relato se misturam todas as suas vozes para, de um lugar bem determinado, a Argentina de 1979 (ainda que o situe no século XIX, por razões óbvias), construir-se a autobiografia de um traidor, à maneira e simultaneamente diferente de Borges – que jamais conheceria esta obsessão pelo gênero romance e suas técnicas, verificável do início ao fim de Respiración artificial. O estilo do romancista Roberto Arlt, por sua vez, seria o reprimido na literatura argentina, ou seja, o que se opunha ao bom uso da língua, desvelando a função ideológica da literatura praticada até então. Muitas das páginas “críticas” do romance de Piglia serão transcritas, às vezes literalmente, em sua antologia de ensaios sob a forma de entrevistas publicadas pela primeira vez em 1986, precisamente com o título de Crítica y ficción.

Finalmente, cabe destacar a leitura que Beatriz Sarlo faz, em meados dos anos 80, sobre a produção literária argentina sob a ditadura militar,[151] inaugurada justamente pelo relato “histórico-didático” (segundo Rita De Grandis) de Piglia, que recebe o Prêmio Boris Vian em 1981 e passa a vender sucessivas edições e traduções. Para Sarlo, apesar de contar a história dos vencidos, o romance, “por um caminho clássico na Argentina”, quer “ordenar”, desenvolvendo o tema das ideologias culturais e da identidade nacional onde o passado é ordenado na dupla linhagem do século XIX, a gauchesca e a estrangeira, que culmina em Borges. Historiador graduado pela Universidade de La Plata, Piglia retoma a ideia de pensar o desenvolvimento cultural na perspectiva histórica e com função ideológico-política, “a partir do pressuposto de que ajustar contas com o passado é indispensável para captar as linhas do presente”.[152]

Porém, na etapa final de Los Libros – que poderia se dividir entre o antes e o depois de Piglia – não há senão o presente. A revista conta então com um grupo fechado de colaboradores dispostos a tudo na busca de “uma

149  Piglia, R. “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria”, op. cit., p. 22-23.150  Cf. Bratosevich, N. Ricardo Piglia y la cultura de la contravención. Buenos Aires: Atuel, 1997.151  Sarlo, B. “Política, ideología y figuración literaria” em Balderston, D. et al. Ficción y política. La

narrativa argentina durante el proceso militar. Buenos Aires: Alianza, 1987.152  Sarlo, B. “Política, ideología y figuración literaria”, op. cit., p. 49.

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análise concreta da situação concreta”, como repetem Sarlo e Altamirano em artigo sobre a cultura argentina, no qual pretendem dissolver o “equívoco” a respeito do que é uma “verdadeira cultura nacional e popular”, de uma perspectiva gramsciana e marxista-leninista, até uma crítica do populismo peronista de matriz “fanoniana”.[153] A revista havia sido claramente devorada pelo engajamento político e, no lugar de “los libros”, eram oferecidos “guias para a ação”; regras para “a saúde do povo” – onde psicólogos declaram que “somos todos doentes em busca do verdadeiro caminho” –, ao mesmo tempo em que a experiência chilena é considerada “a via pacífica para o fracasso”; Paulo Freire é um “conscientizador pequeno-burguês”; o estruturalismo e o althusserianismo são perigosos vírus; e só resta esperar “o desenvolvimento das energias revolucionárias de nosso povo”. Em seu texto sobre a China, no nº 35, de maio de 1974, Piglia rogava “por uma revolucionarização ideológica”, antecipando-se aos metropolitanos de Tel Quel, que realizavam sua famosa viagem à Ásia no mesmo momento em que aparece em Los Libros. Nesse número é traduzida uma verdadeira bíblia maoísta escrita por um francês, André Pommier – que, entre outras aberrações, pretende justificar a utilidade do culto à personalidade –, e no nº 40 este porta-voz chinês de Los Libros lança novos disparates em nome de Stalin e da China, o que só enfatiza o acento francófono do maoísmo dos membros da Vanguardia Comunista. Simultaneamente, prossegue o ataque ao estruturalismo em sua “última versão”, que seria explicitamente kristeviana e telqueliana, conformando a chamada “espuma da vanguarda” com suas mais recentes modas teóricas escriturais, idealistas e formalistas (como se lê no editorial do nº 41). Contra isso, no que se refere à educação, o grupo propõe simplesmente uma escola concreta à maneira argentina, ou seja, franco-chinesa,

que rompa com as concepções mais retrógradas da literatura e da arte e que proponha a docentes e alunos a situação das mensagens culturais no contexto americano e argentino, no marco da dependência, e através de “modernizações” que não percam de vista a realidade da escola.[154]

Por outro lado, se o editorial do nº 37 (de setembro-outubro de 1974) clama “pela liquidação do poder econômico e político dos ianques em nosso país” e no relatório bibliográfico se divulga a obra de “dois” Roland Barthes, com comentários reveladores que vão do respeito ao primeiro e o desprezo ao segundo, do aceitável científico ao deplorável hedonista. O

153  Sarlo, B.  e Altamirano, C.  “Acerca  de  política  y  cultura  en  la Argentina”. Los Libros  nº  33, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1974, p. 18-24.

154  Cf. “Información de Los Libros. Para el Colegio, para la Literatura”. Los Libros nº 41, Buenos Aires, maio-junho de 1975, p. 5.

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primeiro livro da seção “Crítica literária” pertence a um Barthes ainda muito estruturalista e se chama, na versão castelhana, Investigaciones retóricas I. La antigua retórica. Ayudamemoria (Ed. Tiempo Contemporáneo); dele se diz, de modo reverente, que “põe em foco algumas questões importantes referentes à origem da retórica, seu caráter de instrumento para a produção de textos e os traços de convencionalidade que definem o caráter da leitura e a apropriação da literatura”. O segundo livro desta seção é do “novo” Barthes e se chama, como no original, El placer del texto (Ed. Siglo XXI), em tradução de Nicolás Rosa; sua impugnação é categórica: “Mais uma vez Barthes propõe o jogo mais amplo da ambiguidade e a arbitrariedade de um discurso – seu próprio texto – cuja única razão é registrar ocorrências que a esta altura nem sequer são brilhantes”. De modo que foi um Piglia “estruturalizado” que editaria, para a editora Tiempo Contemporáneo, a compilação Yo, de 1968, incluindo dezessete narrativas autobiográficas (de Rosas, Sarmiento, Perón e Che Guevara até Macedonio Fernández, Arlt, Borges e Cortázar), um projeto na linha daquele primeiro Barthes, citado também nominalmente em sua nota introdutória.

Em meados de 1975, quando Piglia sai da revista, a guerra do Vietnam já tinha acabado, porém no “país dos psicólogos” (segundo María Moreno) o golpe estava no ar. Ainda assim, entre os maoístas não restava dúvida de que “o socialimperialismo provocará sua própria queda”, e se alguém pensava que o comunismo burocrático da União Soviética ainda tinha sentido, se convenceria definitivamente do contrário com a publicação de um inédito de Mao dedicado ao tema no nº 42 (de julho-agosto de 1975). Uma ilustração grosseira – de David como o “Povo” vomitando moedas ao ser enforcado por um Golias no papel de “Monopólio” – antecede o relatório inicial do nº 43 (setembro-outubro), cheio de dados e notas sobre a República Popular da China pela via francesa, entre as quais uma que se refere aos intelectuais “ainda não reeducados”. O número final de janeiro-fevereiro de 1976, apresenta em suas páginas um grande quadro da crise e algumas surpresas. Beatriz Sarlo inaugura a edição com o ensaio em que exalta a obra de Juan José Saer, porém a matéria principal está dedicada à situação pós-revolucionária de Portugal. Fala-se também do Laos revolucionado, porém a caricatura mais completa do estado de coisas e das ideias nesse momento é, seguramente, o texto de um certo Tchang En-Tse sobre “La verdad concreta”, que diz:

A verdade é objetiva e é concreta. O que se chama “verdade objetiva” designa o conteúdo objetivo do pensamento; o “caráter concreto da verdade” significa que este conteúdo objetivo é concreto. Toda verdade é concreta. Lênin escreve: “O princípio fundamental da dialética é que não há verdade abstrata e que toda verdade é concreta”. O que é pois o caráter concreto da verdade? (...) O marxismo considera que a análise concreta

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das realidades concretas e a análise dos fenômenos sociais constituem o método mais radical e o único para investigar e alcançar a verdade. A análise concreta das situações concretas é a alma viva do marxismo.[155]

Como ler tal enunciado? Que noção de verdade encerra esse discurso? O que é o caráter concreto da verdade? A verdade para quem?, perguntaria Piglia, fazendo eco a Lênin. Pois é justamente Piglia quem aparece em dose dupla no epitáfio de Los Libros, seu nº 44, seja nos paratextos finais, onde se divulgava Nombre falso, recém-publicado (assim como Fazenda Modelo/Novela pecuária. de Chico Buarque, e Água viva, de Clarice Lispector), seja como um dos cinco vencedores do “Primer Concurso Latinoamericano de Cuentos Policiales”, promovido pela revista Siete Días, cujo júri estava composto por... Jorge Luis Borges, Augusto Roa Bastos e Marco Denevi. A promoção de Siete Días, que fez publicar um volume com os contos vencedores (de Eduardo Mignona, Juan Fló, Eduardo Goligorsky, Antonio Di Benedetto e Piglia), é vista naturalmente de modo suspeito pelos rivais de Los Libros, além de funcionar de algum modo como crítica a Piglia, ao ser eleito por intelectuais “idealistas” e “ainda não reeducados”. Segundo “C. S.” (outra máscara de Sarlo?), a iniciativa “se mostra como uma nova instância de um processo que vem se operando no mercado literário de nosso país, e em Buenos Aires, particularmente, há alguns anos e que poderia definir-se como de consagração da ‘legitimidade cultural’ do consumo da literatura policial”.[156] Empresa de consagração em que a mercadoria da banca da esquina ascende “a livro de livraria (ou seja, o livro que se consome e se conserva, que não se troca como se trocam Rastro e Séptimo Círculo)”, o certame mostra sua verdadeira face, para C. S., a partir da própria escolha do júri, com prestígio nos meios jornalísticos, “particularmente influentes no condicionamento dos gostos culturais”. Porém se, como era de se esperar, Borges – e Denevi – consideram o policial um gênero menor, o autor ou autora da matéria acredita (como Piglia) num novo tipo de leitor, que não entende o gênero como mera literatura de evasão – “leitura tradicional do policial inglês e norte-americano, e sim como quadro preciso da sociedade contemporânea”.

Infelizmente, este quadro não somente seria preciso e policial como irreversivelmente militar, conforme prenunciava um anúncio da revista do PCR, estampado ao lado do último texto da última edição de Los Libros: uma resenha de Ramiro Castelli sobre o livro Tiempo Geopolítico Argentino (Ed. Pleamar), do “General de División (RE)” Osiris Guillermo Villegas.[157] O General Villegas propõe aí um enfoque do chamado “Projeto Nacional” que 155  Em Los Libros nº 44, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1976, p. 17 e 20.156  Idem, p. 21.157  Ibidem, p. 26-27.

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possa, segundo ele, gerar a liberação de um país dependente. Não obstante, o mesmo autor – “ainda contra seus propósitos declarados”, observa Castelli – demonstra que tal objetivo é impossível: seu “nacionalismo geopolítico” não seria senão “uma expressão de chauvinismo” ao crer na hipótese de um “acordo das superpotências”, e não na evidente (para o resenhista) “vitória dos povos” e “derrota do imperialismo e do hegemonismo”, paralelamente ao “aguçamento das contradições entre ambas superpotências”. Em outras palavras, a página encarnava uma sinistra e clara antecipação do golpe. Não por acaso, o anúncio da Teoría y Política, a revista do PCR, rezava: “Diante do golpe gorila” e, com letras maiúsculas, anunciava: “Na hora da definição”.

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Antidogmatismo e flexibilidade

Em carta de março de 1972 ao poeta Jean Ristat, Barthes – a encarnação do telquelismo na América Latina – reconhece sua “dívida derridiana”, além de desculpar-se por não poder aceitar o convite de Les Lettres Françaises para colaborar no número em sua homenagem. Diz então Barthes:

[Derrida] foi quem desequilibrou a estrutura. Ele abriu o signo; ele é para nós quem desatou a ponta da cadeia (...). Nós lhe devemos palavras novas, palavras ativas (no que sua escritura é violenta, poética) e um tipo de deterioração incessante do nosso conforto intelectual (...) Enfim, há em seu trabalho alguma coisa guardada que é fascinante: sua solidão vem do que ele vai dizer.[158]

O que Barthes diz é, de certo modo, o que dele dirá Derrida em “As mortes de Roland Barthes”,[159] logo depois de seu desaparecimento: Barthes encarnou o antidogmatismo e a flexibilidade, em nome de uma “escritura desencadeada” e de sua “monstruosa força”; como a que, com esses termos, reivindicou Oscar del Barco em Los Libros (no 1), a propósito de Sade, no único artigo dedicado ao Marquês – um dos faróis de Tel Quel – em mais de seis anos de existência da revista argentina.[160] O mesmo Del Barco que, como tradutor de Derrida e de Bataille, faz publicar nela seu manifesto dissidente – ainda que nas últimas páginas e com tipos mínimos –,[161] no momento em que o dogmatismo e a inflexibilidade haviam invadido o grupo, com a proposta de uma sociedade unidimensional e homogênea em que tudo ficaria submetido ao político (no sentido imediato do termo). O texto responde à polêmica aberta pelo caso Padilla,[162] que provoca um editorial pró-regime cubano, intitulado “Puntos de partida para una discusión” (no 20, junho de 1971). A este Del Barco replica precisamente com “El enigma Sade”, quando, não por acaso, se inaugurava a fase “Por una crítica política de la cultura” (nº 22) – considerada pelo dissidente

158  Barthes, R. “Lettre à Jean Ristat”. Oeuvres Complètes tome II 1966-1973. Paris: Seuil, 1994, p. 1417.

159  Derrida, J. Las muertes de Roland Barthes. Trad. Raymundo Mier. México: Taurus, 1998, p. 85.160  Como observaram Luz Rodríguez  e Wouter Bosteels  em  “El  objeto  Sade. Genealogía  de  un discurso crítico: de Babel, revista de libros (1989-1991) a Los Libros (1969-1971)”. Descartes nº 15-16, Buenos Aires, julho de 1997, p. 138.

161  Del Barco, O. “Respuesta a ‘Puntos de partida para una discusión’”. Los Libros nº 22, Buenos Aires, setembro de 1971, p. 32.

162  O poeta cubano Heberto Padilla  (1932-2000)  foi preso e  torturado em 1971 por suas críticas à  revolução  e  obrigado  a  fazer  uma  autocrítica,  o  que  desencadeou uma onda  de  protestos  de intelectuais até então favoráveis ao regime de Fidel Castro.

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Germán García como um retrocesso à revista Contorno (cf. entrevista). Em sua resposta, Del Barco relaciona o Marquês com Marx em matéria de capacidade de destruição de mitos burgueses e, simultaneamente, adere à ideologia da escritura, conforme o diriam seus detratores, cuja ideologia por sua vez poderia ser vista como uma “ideologia da ideologia”, traduzida em forma de um sectarismo obscurantista, simétrico ao de seus adversários militares. Com o golpe gorila, um de seus protagonistas, Ricardo Piglia, vai para os Estados Unidos – ainda que não como Tel Quel, que o faz em nome do abandono do marxismo. Em “Los relatos sociales”, diz Piglia: “No fim de 1976, fui dar aulas na Universidade da Califórnia, um semestre em La Jolla, a cidade onde Chandler viveu. E decidi voltar”.[163] Decide voltar ainda que sob a ditadura, como faz Santiago, que volta ao Brasil em 1973. Perrone-Moisés vai e vem da França, Sarlo adota pseudônimos para não sair de seu país e, como Piglia, não suportaria fazê-lo por muito tempo (segundo seus depoimentos).

As circunstâncias históricas determinaram que o texto tenha atravessado sem hiatos os textos dos intelectuais brasileiros em questão, que seguiram um percurso menos acidentado da obra ao texto. Distintas circunstâncias, ainda que com traços comuns, levam o último grupo de Los Libros a um retrocesso do texto à obra, do texto-limite ao panfleto, do ideologema à ideologia tout court, da festa ao manifesto, do gozo à delação de modo irredutível. Não obstante, no caso de Sarlo – cuja autoproclamada obsessão pela reinvenção da esquerda no infinito da modernidade[164] ensaiaria uma guinada à direita em sua cruzada contra o populismo de esquerda no início do século XXI –, a tendência seguiria sendo a de voltar às incertezas do autor de S/Z – e, certamente, ao das Mitologias –, como deixou claro em seu depoimento:

O aparecimento de S/Z marca, como para o próprio Barthes, o fim do estruturalismo duro e o começo de uma teoria do texto que se poderia dizer que é, a meu ver, muito mais sutil do que a bakhtiniana. (...) E portanto eu diria que, como crítica literária, em minha tarefa de crítica literária, Barthes, a presença de Barthes é constante, até hoje.

Na mesma época, e significativamente em um debate sobre “Literatura e valor” com o crítico Roberto Schwarz, a autora de El imperio

163  Entrevista  com  Piglia  por  Raquel Angel. Página 12,  Buenos Aires,  12  de  julho  de  1987  – republicada na segunda edição de Crítica y ficción. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1990, p. 182.

164  Cf. Sarlo, B. “Contra la mimesis. Izquierda cultural, izquierda política”. Tiempo presente. Notas sobre el cambio de una cultura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2001, p. 230-235. 

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de los sentimientos volta a reivindicar Barthes com fervor.[165] Na entrevista de Perrone-Moisés – reproduzida adiante neste livro, ao lado daquelas de Héctor Schmucler e Nicolás Rosa, Germán García, Silviano Santiago e Ernesto Laclau –, se escuta, previsivelmente, o mesmo. Diz a crítica brasileira: “Eu penso que Barthes, como inspirador de uma postura perante a literatura, está plenamente vivo e atual”. De tal modo que, contra a ideia de mimese no sentido de resignação (“comparar”), a opção dos telquelianos latino-americanos seria finalmente por uma tradição mimética[166] no sentido de cumplicidade (“compartilhar”): uma tradição vanguardista flexível, antidogmática, situada entre vanguarda e instituição.

165  Cf. “Literatura e valor” (Congresso da ABRALIC, Florianópolis, 1998), reproduzido em Barros Camargo, Maria Lucia de et al. Leituras do ciclo. Chapecó: Grifos, 1999, p. 296.

166  Segundo uma expressão de Germán García: cf. entrevista.

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ENTREVISTAS

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Héctor Schmucler e Nicolás RosaFlorianópolis, 20 de agosto de 1998

A revista Los Libros estaria localizada em algum lugar entre Contorno e Tel Quel, correto?

Nicolás Rosa - Supõe-se que Los Libros tem algo a ver com a Contorno e isto é uma situação muito mais importante que a coisa telqueliana. Tudo isso até o número vinte três, vinte quatro – Toto[167] vai precisar melhor, porque isto era dirigido por Toto. Estava Ricardo Piglia, que tinha uma presença bastante importante, e eu. Tínhamos dividido um pouco os números. Ricardo era especialista em literatura norte-americana, ocupava-se dela, enquanto eu cuidava mais da parte francesa. E Toto dirigia tudo. Los Libros também era uma revista que tratava de subsistir desde o ponto de vista econômico. Tinha todo um mercado de livros que eram publicados, todos os livros que eram mandados pelas editoras. Essa é minha versão, depois ele vai te dar a versão que pode ser mais ou menos igual, mas um pouco diferente, não? Eu cheguei até um número determinado. Teríamos que ver, o vinte três, vinte quatro. Depois apareceram na redação da revista Carlos Altamirano e Beatriz Sarlo.

A partir de 1972, não? NR - Aí houve de alguma maneira uma opção diferente, a revista

foi se politizando... Sempre foi política, mas uma política mais focada na cultura que não sei se Carlos e Beatriz compartilhavam totalmente. A partir do seu ingresso se converteu em uma coisa política. O que acontecia em Buenos Aires, o que acontecia no país, era uma coisa bastante feia, e foi se enegrecendo o panorama político, e isso terminou na ditadura. E a revista que era muito bem editada e em cores, passou a ser, por problemas econômicos, em preto e branco, como uma metáfora da violência política do país. A partir daí, eu não participei mais.

Nem como colaborador? NR - Não... Toto, você foi até onde? Nós tínhamos opções diferentes. Héctor Schmucler - O ideal é que você fale com Beatriz Sarlo para

recuperar tudo o que foi essa história melhor que nós mesmos. NR - Mas ela vem depois. Toto e eu neste momento, creio, tínhamos

opções políticas fortes que não cabiam na revista. Ele dirigiu praticamente todo o curso de Letras da Universidade de Buenos Aires, com essas pessoas que morreram, foram assassinadas, e eu passei a ser decano da Faculdade de Humanidades de Rosário. Lembra-se de quando você queria que eu fosse diretor do curso de Letras? Eu disse: “Não sei, espera, eu vou a Rosário”... É 167  Apelido de Héctor Schmucler.

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o que eu me lembro [HS: Sim, sim]. A partir de então, eu não fiz mais parte da revista. Inclusive, e isto nada tem a ver com a história da revista, mas diz respeito à história: quando a Punto de Vista é fundada vai se produzir um pouco o mesmo: Beatriz nos convoca. Então vamos a um bar – estavam Ricardo, Beatriz, claro, Carlos não sei se estava, e outras pessoas, Maria Teresa Gramuglio – e bem, eu participei na época da fundação de três números. Depois me retirei porque as opções políticas não me pareciam convincentes. E creio que no quarto número, Ricardo Piglia também se retirou. Isto poderia servir como termo de comparação, era outra revista e que ainda existe, você a conhece, não? Eu participei até aí, e eu te diria no caso da Los Libros que foi uma experiência apaixonante. Sempre sob a direção de Toto. E Toto lhe dá outra história do mesmo.

Interessa-me conhecer a origem de Los Libros. Por que “Los Libros”? HS - Isto eu posso te contar. Digo que daí vem certa confusão

com Tel Quel, o estruturalismo. Eu estava trabalhando na França, fazia um estudo com Roland Barthes, então estava muito vinculado ao ambiente. Isto foi em pleno auge do estruturalismo. Derrida recém começava a fazer seus primeiros trabalhinhos [NR: 66! Sim, a Gramatologia é de 1966], 1966, 1967 e 1968. [NR: E publicava-se a Semiotiké da Kristeva]. Claro, o maio francês, Roland Barthes, Lacan, Lévi-Strauss já havia assentado todas suas bases e já existia Tel Quel. Tel Quel dá uma virada mais política ao estruturalismo. O grupo Tel Quel sempre foi mais político, primeiro vinculado ao Partido Comunista Francês.

NR - Depois chinês, aí está: a viagem à China quando vai Kristeva, quando vai Sollers e simultaneamente ao Japão, que não é o mesmo, mas essas culturas os impressionaram muito.

HS - Fazia algum tempo que existia a Quel Sel librairie...[168] Foi um tanto casual, eu regressava da França com muitas destas ideias. Eu estive três anos, quase três anos, dois anos e meio na França. Mas todo esse clima, não? Enfim, isso é outra história. E me ocorreu junto a um editor, que é Guilhermo Schavelzon, da Galerna [NR: Schavelzon, claro, meu primeiro livro saiu pela Galerna], fazer uma revista ao estilo da Quel Sel... Mas eu diria com uma marca mais vanguardista em um sentido. Digo, o número 1 tem uma espécie de manifesto. E até a diagramação é espantosamente estruturalista. Por ironia, o que acontece é que tudo isso – e aí o que disse Nicolás é muito importante –, tudo isso trazido ao espaço argentino imediatamente começa a ter tons políticos, sobretudo porque aparecia no ano de 1969. Sim, é certo,

168  Schmucler  joga  com  o  nome  da  revista  (como  o  fez  Cortázar),  neste  caso  em  referência  à “Biblioteca Tel Quel”.

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estava preparando o primeiro número quando ocorreu o Cordobazo.[169] Foi um símbolo! Então há um processo de politização aceleradíssimo, de tal maneira que a marca sobre este enfrentamento não originalmente político se modifica, adquire cidadania argentina. E crescentemente vai mudando, até uma política cultural que depois, dois anos depois, vai passar a ser política tout court. Enfim, é algo que fizemos, não? Assim que [risos] há uma culpa aí... Foi, na verdade, uma manobra de um grupo político: Beatriz, na época, conhecia uma posição política mais... o PCR [NR, ao mesmo tempo: O PCR! (Partido Comunista Revolucionario)].

NR - Vinculações de certa forma raras porque se supunha que eram marxistas, mas havia tendências um pouco nacionalistas: terminou apoiando o governo de Isabel Perón, por exemplo. Essas são coisas raras, não? Sim, sim [risos].

E por isso Piglia deixou a revista, não? HS - Claro, porque Piglia se diferenciava disto. Piglia era mais

maoísta. [NR, ao mesmo tempo: Muito mais maoísta! Chinófilo!] Era da vertente chinófila. Nicolás assinala algo importante, nós estamos em outra posição política como exercício da prática, não?

NR [fala ao mesmo tempo que HS] - Tudo isso que depois se chama entre aspas de subversão, os grupos revolucionários do país tinham hipóteses basicamente comuns, mas se diferenciaram muito, muito radicalmente porque alguns eram da vertente mais nacional, digamos a esquerda nacional, e outra mais internacional, eu diria. Estou equivocado, Toto? O que se chamou de ERP [Ejército Revolucionario del Pueblo, braço armado do Partido Revolucionario de los Trabajadores], por um lado, e o grupo montonero.

HS - Havia uma história concreta. Eu ainda guardo uma nota que nunca publiquei na Los Libros... Pois bem, para vocês talvez pareça um pouco exótico toda a história do Acordo Nacional. Aí foi onde eles se fizeram muito antiperonistas, este foi o momento... [NR: ... de ruptura.] Mas isto já é o final porque, na realidade, a importância da Los Libros se deu em todo o período anterior, não porque éramos nós, mas porque ela se articulou a um processo cultural bastante significativo que tem a ver também com esses arranjos políticos. Houve um momento de expansão, de explosão de formas culturais. Voltando ao tema da Tel Quel, eu creio que, em parte, fui eu quem trouxe isto. [NR: Estava em todas as revistas...] Mas a partir de um campo propício. Toda nossa cultura era basicamente francesa, não?

169  Insurreição ocorrida na cidade de Córdoba no dia 29 de maio de 1969, violentamente reprimida pela ditadura militar de Juan Carlos Onganía.

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NR – Que curioso, porque agora, com os cultural studies, a cultura tende mais ao campo norte-americano, mas era uma cultura tipicamente europeia e, dentro da europeia, França.

Isto lhes era de algum modo incômodo? NR - Por que incômodo?

Há certo desconforto nos testemunhos de Beatriz Sarlo, por exemplo, a respeito disto.

NR - Não creio, aí não. Ela reivindicava muito Roland Barthes, ela é filha, como eu, de Roland Barthes. Ela, em um dado momento, escreve não sei que coisa e o assinala. Eu fui, se supõe, o tradutor de Barthes na Argentina graças a Toto. Não todos, mas praticamente todos os textos fundamentais eu traduzi. E ela reivindicou ontem [na mesa do Congresso da ABRALIC de 1998, ao lado de Roberto Schwarz] essa linha dos estudos culturais, mas também a linha francesa e basicamente Barthes. Na melhor das hipóteses, desde a perspectiva americana se considera que não tem nada a ver com os estudos culturais, não tem nada a ver com esta proposta um tanto política – o multiculturalismo, os problemas feministas. Porque na França não se tem a virulência que há nos Estados Unidos, na Alemanha, em setores da América Latina, mas a essência fundamental da abertura do campo, digamos, do campo da literatura a outros campos – literatura-antropologia, literatura-história –, isso vem também da França e não há por que esquecê-lo.

HS - Não, isto é fundamental.

Mas há um evidente incômodo, por exemplo, em um texto sobre Raymond Williams no qual, um pouco ironicamente, Sarlo se refere aos franceses como “a conexão francesa”, tentando distanciar-se.

HS e NR - Sim, sim, sim... NR - Agora o pensamento, a atitude de Sarlo, que pode ser muito

positiva, tem mudanças muito aceleradas politicamente, não? Há uma coisa fundamental: as pessoas que têm a ver com isso são pessoas que estão vinculadas à cultura estadunidense, às u-ni-ver-si-da-des. Porque tampouco é a cultura, são pequenos focos que se encontram em certas universidades, não em todas, não? As universidades americanas são totalmente conservadoras. São pequenos grupos de certo tipo de universidade. Quando ela começa a entrar nos Estados Unidos, muda. Nós em geral, viajamos para a Europa.

HS - Estou pensando nesse momento – não havia pensado – que a menos “telqueliana”, para usar isto como metáfora, era Beatriz. Quer dizer, Beatriz vem de outra formação. Nós estávamos muito apegados aos

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textos franceses. [NR: A única coisa que absorveu... Roland Barthes. Claro, a única coisa...] Ela não se preocupou muito. Foi um momento, mas depois o estruturalismo quase não a tocou, depois soube que não a tocou. Então ela tinha um rechaço, biograficamente falando. E isto ela conta explicitamente. Inventa sua biografia, como todos... [NR: Sempre, sempre inventamos]. Mas ela chega à preocupação pelo campo intelectual tardiamente. Tardiamente porque ela era militante política fundamentalmente. É muito curioso porque era peronista.

NR - Originalmente foi peronista, eu a conheci peronista. E mudou seu nome: ela não é Beatriz Sarlo, ela é Beatriz Sarlo Sabajanes. Seu primeiro livro, um livro acadêmico, mas mal acadêmico [risos], um livrinho sobre Juan María Gutiérrez, ela assina Beatriz Sarlo. Para mim – talvez ela não compartilhe isso – a modificação do sobrenome é a modificação de toda uma atitude. [HS: Sim, sim].

Li textos de Beatriz Sarlo como Sabajanes na Los Libros... HS - Na Los Libros... NR - Aha, então você conhecia esta história? HS - Na Los Libros ela sempre assinava Beatriz Sarlo Sabajanes. No

começo era Sabajanes. NR - Sim, sim, era o nome da mãe[170]. Agora reivindica a sua mãe no

último livro dela. A mãe foi professora escolar.

Em La máquina cultural [Buenos Aires: Ariel, 1998]. NR - Exato. Ela conta isto porque sua mãe foi professora, não? HS - Então, para voltar ao tema da Tel Quel, eu creio que há uma

espécie de clima de época. Influência direta não, todos tínhamos outras influências. Por exemplo, estou associando-a ao que acontece no momento em Córdoba. Oscar del Barco, por exemplo, entre outros [NR: Aí está!]. Eles leem Tel Quel.

NR - Mas são muito blanchotianos! Muito blanchotianos! HS - Sim, claro. NR - Mas este Blanchot é Tel Quel! HS - Blanchot também é reivindicado pela Tel Quel, não? E Tel

Quel reflete algumas ideias que também circulam por aí. Tel Quel foi althusseriana numa época, Althusser também passou por ali, foi parte de todo o movimento. Claro, também foi tomado na Argentina por outro grupo importante neste sentido, não? Que era o grupo que tinha vindo da [revista] Pasado y Presente, o que tem um forte peso. Em Córdoba, os livros saem, publicam-se ainda que fossem proibidos na Argentina. E aí está Oscar del Barco. [NR: Sim, Oscar del Barco]. Suas referências, sua legitimação 170  Os dois sobrenomes pertenciam ao pai, segundo Sarlo em seu testemunho.

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intelectual era Tel Quel, também Tel Quel. O mesmo com o pensamento chinês – Ricardo, por exemplo. Ricardo passou por uma etapa telqueliana, assim como os telquelianos se tornaram chineses. Portanto, parece-me que... [Falam ao mesmo tempo.]

NR - Sim, o que importa é que, se você levar adiante esta hipótese com que está trabalhando, que trate de sutilizá-la um pouco. De tal maneira que nós, que fizemos parte disto, não nos reconhecemos muito no que você diz. Creio que há algo, agora estou pensando, há algo. [HS: E há, há.] A revista Tel Quel, os quarenta e dois primeiros números da Tel Quel estão na minha biblioteca, mas são dele! Nunca os devolvi! Eu fico um pouco mais, depois me exilo na Europa – e fiquei com os livros de Toto. Estão ali!

A propósito trouxe uma citação de Sarlo justamente vinculando-a a Tel Quel naquele momento, em 1974, quando os franceses viajaram para China. É uma entrevista recente, de 1994, e é especular a relação feita com Tel Quel. Diz: “O dia que chega a revista Tel Quel a Buenos Aires com os poemas de Mao escritos em chinês e a foto de Kristeva, Roland Barthes e Philippe Sollers na Praça Vermelha de Pequim, me disse: bem, efetivamente é assim, a revolução cultural chinesa e as vanguardas francesas podem coincidir na página de um livro. E como já se sabe que o mundo existe para coincidir na página de um livro, o teorema ficava demonstrado [risos de Rosa]. Coisas assim hoje parecem quase extravagantes, mas então eram quase um lugar comum”.[171]

NR - Não, não me parece descabido [risos] o que Beatriz diz. HS - Eu creio que isso é toda uma construção. Há uma construção.

Quer dizer, há algo disto. É claro que Tel Quel com o prestígio que tinha... eu conhecia Philippe Sollers, conhecia Julia Kristeva e o resto do grupo, tínhamos boas relações pessoais com Roland Barthes – o que não era a mesma coisa, não? Tel Quel era como a sombra, uma sombra temerária para Roland Barthes. Lembro-me que uma vez me disse: “Cada vez que Julia Kristeva fala, entro em pânico”. É como alguém que era seu discípulo, mas que encarnava algo que escapava a ele, não? Manteve-se em certos limites, quero dizer, nunca teve a soberba da Tel Quel. Porque Tel Quel, se tinha algo, era uma soberba infinita! Eram os donos...

NR - Sobretudo na comunidade intelectual francesa, não? Eles tinham que lutar também contra a reação, o que pesa muito. A cultura francesa é basicamente reacionária, é uma cultura europeia, certo? Há pequenos grupos. É o mesmo percurso de Sartre, o mesmo percurso de Roland Barthes, vão ser professores em lugares estranhos. Vão de Lisboa à

171  Beatriz  Sarlo  em Hora,  Roy, Trimboli,  Javier  (org.). Pensar la Argentina. Los historiadores hablan de historia y política. Buenos Aires: El Cielo Por Asalto,  1994,  p.  162-196. A  citação aparece nas páginas 168-169. 

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África, vão ao Oriente porque não cabem direito na universidade. E o caso – em outro nível – de Lacan, isso com o prestígio de Lacan, prestígio um pouco estentóreo, não? Mas Lacan tinha algum amigo, alguém importante que lhe deu uma cátedra na École Normale, uma coisa assim, mas não é que na universidade fosse reconhecido, não o reconheciam. E também em nosso país, não? Em nosso país a coisa é muito mais frouxa.

Em uma entrevista de 1993, Sollers disse que os telquelianos deveriam receber homenagens porque ajudaram a esquerda a separar-se definitivamente da sombra do PC francês...

NR - O PC francês foi muito forte, não somente do ponto de vista intelectual, mas também do ponto de vista político. Podia dirigir a política francesa de uma retaguarda, não?

HS - Tel Quel... Era um pequeno grupo. Pequeno com influência entre os estudantes. E sim, a relação foi diferente com o PC e com o maoísmo. Teriam o mesmo modelo de descobrimento da verdade. Por quê? Porque o que era verdade antes, deixou de ser verdade e a traduzem com a mesma ênfase... [NR: A outro campo!] A outro campo! Ou seja, descobriram que a verdade estava em algum lugar, mas era a verdade...

NR - A verdade com maiúscula. HS - A verdade com maiúscula. E a atitude é muito interessante,

a atitude dos Tel Quel em 1968: no Maio de 1968 estavam submetidos totalmente ao PC. Como estavam submetidos ao PC, eram os únicos que podiam ter contato com os trabalhadores! Lembro-me perfeitamente: quando a fábrica da Renault ainda estava ocupada, o que era controlado pelo sindicato e pelo PC, os únicos que tinham acesso como intelectuais eram eles. Eles iam dar conferências, era como a realização da revolução: três mil trabalhadores escutando a Tel Quel falar de cultura. Mas eram os únicos. Depois, não muito depois do Maio francês, toda a proposta fracassa e eles se voltam ao maoísmo. Eu não sei bem por que razão. Eu nunca conheci uma argumentação... Certamente a tiveram, não? Se voltam ao maoísmo e à revolução cultural e ao pensamento Mao. Foi no fim de 1968, 1969, mais ou menos, certo? [NR: Sim, sim.]

Quando aparece Los Libros... HS - Claro. Eu voltei no fim de 1968 da França. Então nós também

estávamos entusiasmados com a revolução cultural chinesa. Alguns de nós – não foi o caso de Nicolás, mas sim foi o meu –, nós também tínhamos sido militantes do Partido Comunista. E o pensamento chinês era mitificado de uma maneira incrível, mas aparecia como uma força muito grande. Há alguns artigos de Ricardo na Los Libros esclarecedores neste sentido.

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NR - Claro! Toda a dialética maoísta, a dialética a partir do pensamento maoísta e não do pensamento marxista, não?

HS - Você se lembra das discussões que às vezes tínhamos por uma teoria da literatura?

NR – Aí está, sustentado nisto. Isso foi muito potente. E eu volto um pouco a isso, ao fato de agora, por exemplo, voltar a ler alguém que – na linha mais burocrática, eu diria – não foi pensado nunca. Se se fala de literatura e se fala de teoria da literatura, todos apelamos a Marx, não é isso?, e em parte a Engels, mas Marx: os famosos textos de Marx a respeito do folhetim, por exemplo. Mas aí está toda a interpretação de Lênin a respeito da literatura. E isso vem desta linha, vem da linha da tradição marxista europeia e basicamente francesa, na qual todos bebemos, não? É outra linha. Então, em uma etapa posterior, que é esta etapa na Los Libros, aparecem coisas sobre Lênin... [HS: Sim, sim.] e dez anos antes ninguém havia pensado em publicar um texto de Lênin. Tinha que publicar textos de Marx! Isso marca também a Los Libros, mas em pontos distintos.

HS - Sim, a ideia de produção, o texto como produto. NR - Agora não estaria nada convencido com isto, mas naquele

momento eu estava. HS - Sim, claro. Nesse sentido, quero dizer, houve uma influência,

uma coincidência onde todos aqueles textos, como antes haviam sido outros, para alguns de nós, não se assentavam em uma matriz de tipo teórica muito sólida, não é? Estava no espírito, o ato literário como revolução, e tinham uma teoria que o sustentava.

NR - E Tel Quel iria publicar esse texto, esse texto que reúnem, tirando artigos da Tel Quel, e que se chama Teoria de conjunto. [HS: Sim, sim] Isso é muito importante... Por que se chama “teoria de conjunto”? A Théorie d’ensemble... E aí, agora me lembro, há um texto sobre Lênin. Muito importante! Tenho certeza que você vai reconhecer como eles queriam oferecer uma espécie de programa.

HS - Lembra que havia um grupo que se chamava “Pensamento Mao Tsé-Tung”?, não “Pensamento de Mao” [Juntos: de Mao.]

NR - Isto é muito importante. HS - Essa eliminação do genitivo é fundamental porque é uma

espécie de substancialidade. Ou seja, o coletivo não como soma, mas sim como alguma consciência que percorre, que sai de... Era a maneira em que se estava interpretando as leis da história. Porque é isso: a consciência proletária não é a consciência da soma dos proletários, mas algo que está por cima inclusive da individualidade.

NR - Isto é a dialética. A história não é feita pelos homens, a história se faz na história mesmo, para além da boa vontade dos homens.

HS - E dominar esta teoria dava um poder extraordinário. Dominar

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as leis do processo do campo cultural. É muito interessante. Agora estou pensando, seria muito interessante compará-lo com outras correntes similares. Mas isso é a força. Eu me lembro que Ricardo sustentava isto: que se alguém tivesse uma boa teoria do romance, poderia escrever um bom romance. Você lembra disso?

NR - Sim, sim. E ele tentou provar. No romance Respiração Artificial, ele coloca dentro todos os formalistas russos. Pode-se ler os formalistas russos no texto. Mas ele o fez muito bem, não?

HS - Ele escreve bem e então é outra história. Quer dizer, pode haver algum excesso. Porque eles levaram ao máximo o pensamento cultural telqueliano. A cientificidade... Esse texto sobre a semiótica de Kristeva é realmente emblemático.

NR – Para uma semiótica do paragrama… HS - A linguagem é a ciência de toda a ciência... Mas o objetivo era

o seguinte: vamos dominar a língua. Estou pensando agora o quanto isto tem a ver com a novilíngua de 1984.[172] Vamos dirigir a linguagem porque temos a verdade sobre isto. Depois, como dizia, esta teoria é a teoria da linguagem.

NR - O texto se chama Ciência crítica ou crítica da ciência. Apelava para a semiótica como parâmetro universal. Isto durou seis anos [HS: Sim, sim.] A Kristeva muda, muda também, o que me parece muito bom. Faz muitas outras coisas, escreve romances, é psicanalista. Nela, esse tipo de rigor quanto à exposição, aceitável mas ao mesmo tempo rigor político, quer dizer, impor-se.

A escritura no lugar da literatura. NR - Eu sustento isso, não é? Porque quando se fala de literatura

e de escritura me interessa mais a linha derridiana, porque o conceito de escritura me permite ir a outros campos. Interessa-me muito a relação com o campo de uma antropologia cultural. Como de alguma maneira se inscrevem os fenômenos sociais no campo da literatura. Porque eu escolho uma época da literatura argentina – que é muito clara porque nossa época não parece ser tanto – que vai dos anos 1880 até 1914. Então aí aparecem conflitos próprios da imigração, mas relatados claramente nos romances, são todos romances de tese. Ou, senão, os problemas da prostituição, os problemas da Lei da Residência, todos os problemas do direito, da psiquiatria – a psiquiatria da época funda um romance que se chama irresponsável, o conceito de responsabilidade e de irresponsabilidade faz parte de uma espécie de entrecruzamento entre a psiquiatria e o direito. A quem se declarava irresponsáveis? Precisamente isto é o que se chamam os loucos da época. Loucos que normalmente não teriam pertencimento social, 172  Um dos objetos de sua conferência no Congresso ABRALIC 1998 em Florianópolis.

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eram imigrantes, então é preciso suspeitar, o que acontece? Isso é o que me interessa neste momento. Mas a base do conceito de escritura nos permitiu fazer uma extensão em direção a outros campos que não são puramente literários. Porque, pelo que vejo finalmente, parece que estes setores, que antes eram marginalizados, agora têm uma potência muito grande, pelo menos nos Estados Unidos. Dizíamos outro dia: bem, Clinton na segunda eleição se reúne com todo o movimento gay porque ele calculou, eram três milhões de votos, e no total são oito! Então têm potência política. E há um romance de Philippe Sollers que marca isto, que fornece a chave de muitas coisas. Depois de todos os romances de caráter tão experimental, difíceis de ler, Drame, por exemplo, este romance se chama Femmes, Mulheres, e fala da conexão de negros, lésbicas, homossexuais e mulheres que dirigem todas as universidades americanas. E que dirigem todas as universidades francesas. Eu creio que exagera, mas aponta para um fato concreto. Por outro lado, Harold Bloom zomba disto. Claro, tem um bolsista boliviano, mas que é um idiota, mas porque é boliviano teria que estar representando a multi-setorialidade. É exagerada a prova... Quer dizer, não é somente um processo histórico para a constituição de novas emergências sociais, de novas emergências de certas tribos, o que se chama de tribos sociais vão aparecendo. Eu, por exemplo, vivi no Canadá; ofereceram-me a direção do instituto de literatura, de literaturas comparadas. E o corpus, as pessoas que escolhiam eram quatro mulheres e dois homens. Mas nós, por decisão política, temos que escolher uma mulher. Chapeau! Te dizem diretamente, diretamente... Estas são as feministas americanas. Vale! É preciso aceitar... Uma cultura franca... Nesta época tudo isso aparecia ainda como muito incipiente, não tinha tanto poder político. Mas está traduzido este romance para o espanhol. Femmes, traduzido com o título de Mulheres. E é um romance fofoqueiro... Agora, escuta, Toto, a interpretação que ele dará: – Vocês querem que eu, de alguma maneira, sutilize a influência telqueliana... E então dirá: – Mas passaram a entrevista falando sempre dos franceses! [HS: Claro!] Daí que vai nos cagar!... [risos].

HS - Não, ao contrário, parece-me que não era pequena a influência. Mas é preciso ter em conta o viés brutal da circunstância latino-americana, argentina neste caso. É tudo mais carnal. Alguns de nós já escreveram sobre este tema. Porque aquilo era... era teoria! Eles podiam ser chinófilos, podiam ser estruturalistas, podiam ser stalinistas, poderiam ser o que quisessem, mas eram críticos, eram os críticos que falavam desde suas posições acadêmicas. Na Argentina e em todos os outros países, também no Brasil, tudo isto passa a ser carne. Digo carne, as pessoas que põem os corpos aí, poderia dizer materialidade política e ação política.

NR - Eu sofri duas tentativas de fuzilamento, mas Toto perdeu um filho. Isto é o que se chama de uma ideologia encarnada: se colocava o

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corpo, não somente as ideias. Perderam-se filhos, mataram Paco Urondo, toda uma geração liquidada...

HS - E Régis Debray, que foi um dos porta-vozes disso, ele mesmo se salva.

NR - Sim, bom, o que escreve agora teria a ver com isso... HS - Quando se quer ver as influências, é preciso ter em conta

que são influências mediadas por uma realidade histórica, uma realidade estrutural, mas de um ponto de vista sócio-econômico-político são muito distintas. Aí é onde as comparações deveriam, me parece, ter esta mediação. Este dado é fundamental.

As relações da Los Libros na sua primeira época com Cuba eram bem próximas, não?

NR - Há todo um número dedicado a Cuba. HS - Claro. Nós éramos cubanófilos, pelo mesmo lado marxista. NR - A revolução latino-americana, como se podia produzir isto

com todas as mediações necessárias. HS - Sim. A revista nunca deixou de sê-lo enquanto existiu, depois

cada um tomou o seu caminho. Mas não se pode generalizar. Porque Los Libros era um grupo com maior ou menor coincidência, mas era uma massa de colaboradores.

NR - Toda intelectualidade argentina colaboraria. As pessoas que agora têm grande prestígio em campos separados – Germán Garcia, Oscar Masotta que morreu em Barcelona –, todas essas pessoas, todos, uns mais outros menos, todos colaboraram.

HS - Mas isso não quer dizer que todos coincidiram. Havia uma ideia da revista, dos que a faziam, mas se abria uma frente muito ampla, não? Depois, quando nós saímos, tornou-se mais política. Era isso, rigorosamente foi assim quando passou a ser um órgão do PCR.

Quando entram Sarlo, Altamirano e Piglia. HS - Sim, quando eles se aproximaram da direção. NR - Nós tínhamos outras tarefas, mais no campo da história que

estava se desenrolando no nosso país. HS - Sim, mas aí era uma etapa muito clara, são várias etapas.

Também era possível, através da leitura da Los Libros, ver este processo de crescente politização. Se você toma os primeiros cinco números da Los Libros, seis, mais talvez, sim, é política mas não tanto. Depois, o número do Chile, o número dedicado ao Chile foi um ponto de inflexão, não? Foi a época do triunfo da Unidade Popular no Chile, Allende e tudo isso. Creio que aí se tornou mais política, quer dizer, com mais ênfase no político.

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Lembro-me de uma menção do editorial já no primeiro número, que se referia a uma característica principal da revista, que ela não seria meramente literária ou cultural, mas também política.

HS - Sim. A literatura, a cultura, toda esta expressão mais atualizada, mais forte da cultura era para nós um fato revolucionário. E eu creio que não a serviço de uma matriz política e muito menos de um partido. Mas sim, sempre nos pensamos políticos. [NR: Sempre.] Quer dizer, ligados a um partido, não; mas não é uma coisa excluída da política e sim um elemento ativo.

HS - Uma coisa que seria interessante conhecer naquele momento é a produção bibliográfica na Argentina, os livros que se publicavam. No Brasil ainda se publicava pouco.

NR - Agora se publica mais no Brasil que na Argentina. HS - Mas naquele momento, eu creio que seria interessante

ver, não? Você se lembra da série de [José] Sazbón, todos os grandes do estruturalismo. [NR: Sim.]

NR - Tudo, tudo. [A editora] Nueva Misión os publicou.

Havia alguma subvenção de algum grupo editorial para Los Libros? Como a revista era financiada?

HS - Los Libros começou financiada pela editora Galerna, que continua existindo com outro dono. Começou assim e depois, durante anos, foi financiada com publicidade de várias editoras. E cada vez se tornava mais difícil. [NR: Sim, os problemas econômicos] Mas havia mil e uma editoras...

Havia, por exemplo, [a editora] Tiempo Contemporáneo. HS - Sim, claro. E lá estava Ricardo Piglia. NR - E como se subvenciona a Punto de Vista? Tem quarenta,

cinquenta, sessenta números já, e não creio que se vendam. HS - Acho que a Punto de Vista deve receber subsídios de fundações. NR - De uma fundação alemã, não? HS - Pode ser, não sei. NR - A revista sai muito substanciosa.

Deve ter muitas assinaturas hoje. Outra coisa que Beatriz Sarlo me disse sobre sua época na Los Libros é que a revista tinha um tom não somente maoísta, mas sim – e são os termos dela – “absolutamente psicótico”...

HS - Psicótico, sim. A revista, nessa época, creio que era assim. Eles eram psicóticos. Seu pensamento era psicótico, sim! [risos de NR.] O PCR tinha um pensamento absolutamente psicótico. Tinham armado o esquema do “amigo do inimigo” que era verdadeiramente psicótico. Bom, o apoio que

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deram a [José] López Rega![173]

NR - Estava inscrito em todas as paredes da cidade, o apoio a Isabelita.

HS - Mas a López Rega! NR - Mas qual era a razão? A razão era que o governo existente

estava sendo influenciado pela União Soviética, e eles eram radicalmente antissoviéticos. López Rega estava agrupando forças, não importa se eram fascistas ou não, contra a influência soviética. Esta era a razão que davam para apoiá-lo, era uma coisa delirante.

NR - Delirante, psicótica. HS - Delirante e psicótica, sim. HS - Parece uma espécie de caricatura grotesca, este esquema

do inimigo. E eu creio que, sem querer, puseram isso em funcionamento também na revista, porque a revista tinha adquirido tons mais sectários, não? Está certo o que ela disse, mas é outro momento do maoísmo. Porque esse é o maoísmo PCR. O primeiro momento maoísta seria este telqueliano.

NR - Esse é mais Vanguarda Comunista. Claro, sim, e tinha outro estilo.

NR - Outro estilo – e inclusive intelectualmente era muito mais potente.

HS - Exatamente. NR - Existe a coleção completa da revista? HS - Eu tenho uns quantos. NR - Eu tenho uns quantos também, mas quantos números saíram

ao todo?

Quarenta e quatro. NR - Quarenta e quatro. Beatriz a tem completa? HS - Não sei, não sei.[174]

Há uma coleção completa em Barcelona, se não me engano. NR - Ah, viu! Eles levam... Sim, certamente. Como essa outra revista

importantíssima que tem sete números, oito números, a Contorno, que teve uma influência muito grande e é muito difícil de conseguir. Inclusive do ponto de vista econômico, as pessoas que têm a coleção completa da Contorno a valorizam muito. E não sei quanto à Los Libros, não é?

Qual seria a tensão existente entre Los Libros e Contorno? Quais seriam, para vocês, suas diferenças fundamentais?

173  Ministro do governo peronista dos anos 70, ligado à extrema-direita e a grupos de extermínio.174  No ano seguinte, quando Sarlo foi entrevistada, ela gentilmente ofereceu sua coleção completa para fotocopiar.

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HS - Não são contemporâneas.Sim, mas há uma tentativa de superação. NR - Aí as gerações estão praticamente coladas, não é? Porque aqui

esteve Noé [Jitrik]. Noé esteve na Contorno. Eu creio que nunca publicou em Los Libros. O que aconteceu? Nunca publicou seus artigos? [risos] Não vão te perdoar!

HS - Ele não estava aqui. Noé estava na França, ou não? NR - Sim, na França. Pode ser, mas não lembro que exista um

artigozinho de Noé.[175]

HS - Sim, David [Viñas] estava muito vinculado, mas Noé não. NR - Sim, David também, sim. E também... Como se chama o outro

do grupo Contorno, o filósofo? HS - [León] Rozitchner. NR - Rozitchner. Não estava no país, mas houve então esse tipo

de contato. Não esqueça que esta geração está ainda operando, integram órgãos da faculdade. David Viñas, diretor do Instituto de Literatura Argentina. Portanto está operando, não?

NR - Por isso a pergunta é muito pertinente. E é preciso ver a continuidade, provável, possível, entre Los Libros e Punto de Vista.

NR - Existem coisas que não aparecem por nada na Contorno, mas sim aparecem em outros lugares. Reorientação e revisão totalmente crítica de autores totalmente críticos. Crítica à tradição de direita, à tradição de certas formas conservadoras da literatura argentina – exemplo: [Eduardo] Mallea. É interessante porque a Punto de Vista reivindica Mallea. Coisa curiosíssima, é preciso analisar! Deve estar louca! Maria Teresa Gramuglio escreve um lindo artigo reivindicando o Mallea esteticamente. O romance de Mallea, em um plano absoluto, reivindica-o. Então você vê como é esta linha, não? Este seria o exemplo, e por trás disso está a [revista] Sur, mas eles fazem esse movimento. Então, qual é o fenômeno?, era preciso repor outros escritores. Eles são a ponta de lança da revalorização do nosso grande escritor, Roberto Arlt. Coisas bem esquemáticas, você analisando depois vai descobrir uma série de coisas. E analisam muito politicamente o que é o campo da literatura argentina. É provável que eles não tenham usado a palavra campo, estou extrapolando, campo vem de [Pierre] Bourdieu, eles não tinham lido Bourdieu, eles leram [Lucien] Goldmann. E depois fazem uma reivindicação... [HS: De quem?] ...da literatura argentina no sentido mais profundo. Eles se ocupam disso. E outra coisa que parece interessante analisar, pelo menos na minha perspectiva: usam pseudônimos, que foi uma parte da tradição argentina. Sarmiento usou uns vinte e sete pseudônimos. Mas esse grupo usou pseudônimos femininos. De tal maneira que eu, que nunca participei da revista mas os conhecia, me confundia... Eu estava 175  Há um artigo, no número 28 (setembro de 1973), sobre um livro de Josefina Ludmer.

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em Barcelona e me convidaram para dar seminários na Universidade de Macerata. Macerata é uma cidade belíssima que fica perto do Adriático e, digamos, a parte alta da cidade, enquanto uma cidade italiana, é muito moderna. Então, é totalmente modelar e deslumbrante. A Universidade de Macerata foi fundada quarenta anos depois da Universidade de Bolonha que é a primeira da Europa. Deslumbrante! Maravilhoso! Quando terminei de dar o seminário, um jovem argentino que assistia ao seminário se aproxima e diz: – Professor, eu moro aqui, muito perto daqui, em Recanati. –Ah, Recanati, a pátria de Leopardi, o grande poeta romântico italiano. E me disse: – Gostaria que você viesse, eu tenho um carrinho, porque de carro são trinta minutos. –Infelizmente não poderei ir. –Não, ele disse, eu gostaria que vocês viessem porque eu falei de vocês a uma mulher que vive em Recanati, e ela quer vê-lo, conhecê-lo. –Quem? –Adelaida Gigli, a primeira mulher de David, a mãe das crianças que mataram. Ela é parente de Benjamin Gigli e os pais de Adelaida tinham sido não sei o quê, e lhe deram uma casa, muito pequena, e uma pensão. Vive disso. Quando eu lhe disse que logo voltaria à Argentina... Eu não podia ir porque já tinha as passagens, mas fiquei surpreso. Está lá, tem setenta e três anos aproximadamente, mas vive só e muito deprimida... e me deprimiu muito. Quer dizer, é uma parte dessa história da Contorno, uma parte muito pessoal da história da Contorno. A pergunta seria: para onde foram as mulheres da Contorno, para onde foram os homens, não? É uma geração que teve e ainda tem uma grande produtividade. Se há um trabalho a ser feito, este é buscar o longo trabalho de Ramón Alcalde. São personagens que não têm tanta vigência atualmente, mas que eram muito sólidos. Eles tinham uma grande solidez do ponto de vista filosófico-ideológico. Isso é muito importante. Eu me sinto bastante tributário da Contorno, mas nunca participei. Depois outro personagem foi muito importante para a cultura argentina para o bem e para o mal – um personagem muito apaixonante – que é Carlos Correas, que continua escrevendo, escreveu um texto belíssimo sobre Roberto Arlt. E outro personagem, Juan José Sebreli. É um best-seller. Eu não tenho nada a ver com este senhor, não gosto do que ele faz... Como se chama este personagem que segue a linha mais sociológica e que escreveu essa coisa extraordinária em dois tomos? [HS: (Martín) Caparrós.] Caparrós. Tem coisas que vêm da Contorno, então é preciso fazer um mapa. Depois está a direita, de seu lado.

O que poderia explicar esta tradição tão forte de revistas na Argentina, muito mais forte que em outros lugares?

NR - As revistas de esquerda: você teria que ver esse número do debate que tivemos com a Beatriz e com o Noé Jitrik, está publicado na revista Estudios. O assunto era, precisamente, as revistas literárias argentinas. Noé fala da experiência na Contorno, a Beatriz e eu falamos da

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experiência na Los Libros. Isso foi uma coisa que a Beatriz recuperou depois na sua perspectiva pessoal. A pergunta que se fazia, uma das perguntas: por que se escreve em uma revista. E eu disse: se escreve em uma revista porque não se pode escrever um livro.

HS - Há uma tradição de revistas na Argentina desde o século passado. Sempre, sempre as revistas.

NR - Há, inclusive, Figurines, mas é também uma revista política. Têm revistas muito políticas do fim do século passado, revistas culturais, a Revista del Río de la Plata.

Há uma velha revista popular mencionada por Viñas que se chamava El alma que canta.

NR - Já no século XX. HS - Era uma revista comercial que publicava letras de canções

populares. HS - Quando você for a Buenos Aires, você deveria ver o trabalho de

Jorge Lafforgue e Jorge Rivera sobre as revistas. NR - Tem todo um trabalho e, simultaneamente, entrevistas com

personagens que participaram das revistas. HS - Jorge Rivera, inclusive, escreveu na Los Libros.

A respeito do conceito de literatura na época da Los Libros, acontecia o fenômeno do boom...

NR - Saiu um número sobre isso.Que literatura vocês elegiam? Porque combatiam o boom, não é? HS - Sim, sim. NR - O boom do romance americano, digamos. Você tem que

buscar, agora me lembro, duas edições – estamos todos aí – duas edições, ou melhor, dois volumes publicados pela editora Paidós, que é um mapa da época. Com variações, porque tem gente muito velha e gente muito mais jovem e aí está Jorge Lafforgue, está Eduardo Romano, está Jorge Rivera, está a Beatriz quando era estruturalista. Como se chamava aquela moça que militava conosco? Estava nesse grupo que trabalhava o Adán Buenosayres [risos] você lembra disso? Está publicado. Creio que era a mulher de Jorge Lafforgue.

HS - Ah, sim, Nora Dottori. NR - E se você lê esse artigo que está publicado nessa coleção,

nestes dois livros você descobrirá uma marca totalmente diferente, separada da eleição de objeto, um autor que as vanguardas, as vanguardas políticas nunca aceitaram. Como se chama o autor de Adán Buenosayres? [Leopoldo] Marechal! Porque Marechal foi peronista. Aí ... é um fato que afrontou muita gente. Estratégias políticas e estratégias militares diferentes

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entre “montos”, os que se chamavam de “montos” eram os montoneros do ERP. De alguma maneira víamos outros aspectos positivos, não é mesmo?, no peronismo. Nós integramos o peronismo que se chamou de esquerda. Eu gostaria de lê-la. Não é fácil conseguir isso. A única pessoa que pode tê-las é Jorge Lafforgue. Porque a introdução é dele.

Ele vive em Buenos Aires? NR - Sim. E trabalha nas oficinas [talleres] ainda. Estão em vigência.

Mas a minha pergunta se referia à literatura que vocês reivindicaram na época. Então, por exemplo, nos artigos da Los Libros vimos textos sobre Roa Bastos, Arguedas, García Márquez...

NR - A revista Contorno é muito argentina. Los Libros, por muitas razões que teríamos que analisar, mais latino-americana. A preocupação de Toto era ter mercado [risos]. Isto por um lado, mas apoiamos Roa Bastos porque aí há uma dimensão política também. E ao mesmo tempo isto significava que a revista circularia mais, pelo menos na América Latina. Me equivoco, Toto?

HS - Não, é isso. Bom, Onetti. Nesse sentido havia uma distinção bem clara e crítica da política de mercado. Isso era muito claro, sem dúvida.

NR - Lembro-me do primeiro romance de Vargas Llosa, que teve um êxito extraordinário porque transformava as técnicas narrativas, todo esse tipo de coisa, não é?, pelo menos na literatura latino-americana, que foi La ciudad y los perros. E não aconteceu nada. Eu não gostava dos outros romances. Mas lhe puseram pompa e circunstância, e eram pura bolha de sabão os romances de Vargas Llosa, repetindo experiências que tinham sido levadas às últimas consequências por um Faulkner, por um Joyce. E essa é a consequência inclusive ideológica de seu pensamento, de Vargas Llosa, não é?

Eu gostaria de saber mais sobre essas opções da Los Libros, sobre essas diferenças de que tínhamos falado há pouco.

HS - Havia uma opção coletiva, digamos pensada, que era a oposição às modas, as modas no sentido de uma coisa fabricada. Mas também havia muitas opções determinadas por colaboradores da revista e as opções eram, melhor dizendo, de quem se convidava para colaborar e não tanto um pensamento coletivo sobre a literatura. Mas sim, havia um grupo mais próximo da revista, uma valorização de uma literatura que foi coerente com esta ideia da cultura em geral que tínhamos como valorização daquela cultura que era revulsiva, que era crítica – crítica em um sentido amplo, não? Na Los Libros havia artigos sobre Sade, artigos sobre a forma romance, sobre o romance latino-americano onde fazíamos outro percurso que não

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era o percurso comum nesse momento de moda. Reivindicamos Borges da nossa posição, quando a esquerda ainda não falava de Borges. Quando a esquerda tipo Contorno...

NR - Um cara da Contorno que estava na periferia da Contorno, que foi meu professor, um homem muito interessante no seu pensamento, escreveu seu primeiro livro – era muito jovem, vinte e três anos – contra Borges. Um livro que depois, de alguma maneira, ele rechaçou. Chama-se Adolfo Prieto, foi professor na Flórida por muito tempo.

HS - Neste ponto temos uma relação de vinculação e de conflito com certo pensamento Contorno. Contorno era mais Goldmann-Sartre e Lukács via Goldmann. Esses eram como que os mestres. E Blanchot. Nós éramos marxistas, por um lado.

NR - Marxista barra Estruturalistas... HS - E por outro lado estava toda a reivindicação de um

pensamento destrutivo. Por isso Sade, por isso as escolhas que fazíamos de certas discussões. Mas não tínhamos nenhuma corrente estética, quer dizer, privilegiada. Mas a linha geral é esta, de certo rigor crítico, às vezes alcançado, às vezes não, e de uma valoração nem simplistamente sociológica nem simplistamente hedonista. Esses eram como os extremos que a gente sorteava. Há uma anedota de [Alejandra] Pizarnik e David [Viñas]. Eu trabalhava ao mesmo tempo na Galerna e na Siglo XXI. E publiquei o que foi lamentavelmente o último livro de Pizarnik, El infierno musical [1971], poucos meses depois ela se suicidou. Saiu o livro e David Viñas vinha quase todas as tardes até a redação da revista, a própria redação era uma espécie de café literário. Depois das duas da tarde até às dez da noite. Tinha saído o livro e David vem, mas nunca se sabe se está representando ou não... E chega com o livro irritadíssimo e tenta me bater, a sério. Eu pensei que fosse uma piada, mas não... E por quê? [NR: Porque não entendia nada!] ...porque não era de um autor comprometido... Mas é interessante a anedota por outra coisa: teve uma época no país onde qualquer um poderia brigar por um livro, o que é bom, não é? Mas, por outro lado, era um olhar diferente... Por quê? Porque a Pizarnik era a literatura da burguesia [NR: Para ele!] Mas também, em outro sentido, é uma diferença, quero dizer, na Contorno não havia escritores à la Pizarnik, mas por opção, assim como nunca escreveram sobre Borges. É outro olhar. Mas David também escrevia na Los Libros. É outro momento, não? Havia uma grande aposta no criativo, em um pensamento crítico. Foi a revista que acompanhou o Instituto Di Tella, a [revista] Primera Plana neste espaço.

NR - O Di Tella havia se transformado em um lugar da produção de artes experimentais, a vanguarda, uma vanguarda muito experimental, que teve uma vinculação com circuitos europeus e mais que europeus, com circuitos americanos, New York. New York era de alguma maneira Paris, e

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Buenos Aires foi um centro dessa época na arte experimental. E com isso Buenos Aires se transformou em um eixo fundamental. Vinham todos os teóricos e traziam um personagem para analisar: Romero Brest, o Tucumán Arde, uma declaração da morte da pintura... e aquilo que se chamou depois nos Estados Unidos de arte da repetição... E, bem, isso ficou na Los Libros, e agora estão trabalhando sobre isto, agora recuperam todas estas revistas, há todo um trabalho muito interessante.

HS - O movimento de agitação cultural e modernização começa com [o ex-presidente Arturo] Frondizi, não?, em 1958, que é quando vai nascer o Di Tella, que teve uma importância realmente notável.

NR - Fechado pela primeira ditadura! Supunha-se que isto era a revolução [risos].

HS - Há um golpe muito forte, sobretudo na universidade, e depois começa a se recuperar, ainda com o modelo da ditadura militar, mas com os meia-oito... e todo este movimento se renova de uma maneira surpreendente, não? Tem um grande peso: se começa a fazer cinema... É todo um momento.

NR - Da outra experiência de Tucumán Arde apareceram muitos textos...

HS - E não se pode entender um fato sem outros satélites... que criam a estrutura, não? O jornalismo, Primera Plana teve um papel fundamental.

NR - Como se chama esse cara que está na Espanha, que é romancista? Era jornalista da Primera Plana. Custé...

HS - Tomás Eloy Martinez é participante de toda essa experiência... e esse que ainda vive que é Timermann, não? Tomás Eloy, que foi secretário de redação, tem muito boa memória de tudo isso. Tudo se estimulava, não? Quando saiu Los Libros era isso, era Primera Plana. Eu trabalhei no Primera Plana nesse momento. Tudo era celebratório. Existia o Bar Baro de Noé, Bar... Baro, um bar, um café que era de Luis Felipe Noé... Era isso, era um lugar de festa, festivo, tinha algo de festivo em tudo isso.

NR - O que era a Rua Corrientes! Que é uma rua intelectual. Os cafés transbordavam, se sentava nas mesas, se sentava no chão, depois se sentava na rua, porque havia tanta gente! Essas pessoas desapareceram, desapareceram! Todos jovens. E a moda, sabe qual era? – porque isso é interessante: jeans azul e pulôver vermelho. Íamos ao Di Tella em 1966, querido, vestidos dessa maneira. A polícia nos detectava por isso, percebe? Estávamos vestidos todos iguais.

HS - Certa influência tardia do hippismo na época. Porque depois esse momento pode ser tomado como o passado político que vai se transformar em um processo de violência. Aí não há solução de continuidade, não é que sejam todos... estão os mesmos personagens às vezes... um continuum histórico, não?, o clima...

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NR - Primera Plana era um semanário e o importante é que dava preponderância ao que chamamos arte, a arte pictórica.

HS - Instalou-se um processo de modernização da Argentina. NR - Tinha todos os limites que tem toda empresa econômica,

industrial, não?, mas nos apoiou muito, nos interessava muito. HS - Era uma revista de esquerda, era de centro-esquerda. NR - Não há biografia sobre Timermann, não? O fundador da

Primera Plana e depois de outro periódico também muito importante, La Opinión.

HS - Em sua época era um jornal. NR - Mas muito moderno. HS - Primera Plana tinha elementos do L’Express da França, era seu

modelo. Assim como La Opinión tinha como modelo Le Monde, não?

Há um artigo de Luz Rodriguez-Carranza sobre os jovens da Primera Plana e da Los Libros, uma espécie de comparação. Disse que a Primera Plana tinha uma certa tendência conservadora, no sentido de marginalizar certos jovens mais ousados, o que a Los Libros não fazia. Sobre os usuários de drogas, por exemplo, tinha um discurso conservador em relação aos marginais.

HS - Não sei. Mas a Primera Plana teve um papel ativíssimo. O boom latino-americano não seria de todo entendido sem a Primera Plana.

NR - Jorge Lafforgue dirigiu durante um período o suplemento cultural da Primera Plana.

HS - Foi uma revista que teve a audácia de por escritores na capa.

Mas nunca puseram Osvaldo Lamborghini na capa. NR - Lamborghini não existia, digamos, não existia do ponto de

vista de sua produção. Não era visível, neste momento Lamborghini não era visível para mim, não era visível para ninguém. Como pessoa sim, existia. Cortázar preenchia todo o imaginário da época. Cortázar e Borges preenchiam o imaginário da época.

HS - Lezama Lima não é comparável com Lamborghini em um sentido, mas... Na Argentina, [a editora] De La Flor o publicou. Sessenta mil exemplares! E é um livro para que o leiam sessenta, Paradiso.

NR - Não! A edição teve sessenta mil exemplares, mas leitores terão sido sessenta...

HS - Mas se vendeu e se instalou no mundo. Tomás Eloy o tomou de um artigo de... que era o artigo de Cortázar sobre Lezama Lima... Cortázar que era Cuba, não?, e Lezama não era Cuba. Ele tinha a aura, esta espécie de estrafalário... e, além disso, Cuba carregava o encanto da revolução cubana. E isto era claro... Porque era este o programa da modernização, o resgate de valores literários muito amplos. Ao contrário, nesse sentido era

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anticonservadora, claramente anticonservadora... Não participou desses critérios, escever algo contra a Sur, por exemplo. Certamente ... Não era politizada no sentido de partido, mas foi uma renovação. E, se se vinculava com alguma coisa, era com o desenvolvimentismo. O mesmo aconteceu aqui com Kubitschek, não? Que é também um momento de auge cultural, de abertura. Para os dados objetivos de que você precisa, há um livro sobre Nuestros años sesenta que não é um grande livro, mas que é interessante porque traz muitos dados. É de Oscar Terán.

NR - Sim, Oscar Terán. E, além disso, a pesquisa de Silvia Sigal. HS - Bem, não sei o que mais. Depois, o que é que nós temos que

pensar disso, não é? [risos].

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Germán L. GarcíaBuenos Aires, 18 de junho de 1999

Para começar, o que lhe atraiu no projeto de Héctor Schmucler e o que te fez um colaborador constante da Los Libros?

Eu descobri por casualidade a revista Los Libros em uma livraria, a número 2, acho, um ou dois, e estava muito interessado pela linguística neste momento. Estava começando a ler Saussure e Martinet, Jakobson e quando vi que era uma revista orientada por prismas estruturais, digamos, esse ar de estruturalismo foi o que me atraiu. Então me aproximei. Me conheciam porque eu já tinha publicado Nanina. E comecei com um pequeno necrológico muito rápido quando Grombowicz morreu em 1969, acho[176], e a partir de então comecei a escrever. Depois passei a ser amigo deles e inclusive participei da direção durante alguns números. Conhecia algumas pessoas de antes, mas não conhecia Schmucler, o conheci neste momento e também Santiago Funes. Havia um grupo de pessoas que vinha de Córdoba. E depois, Nicolás Rosa, conheci todos eles a partir da revista Los Libros. Piglia sim, eu o conhecia porque tínhamos publicado no mesmo ano o primeiro livro, ambos pela editora Jorge Alvarez[177].

Los Libros teve duas etapas bastante distintas. Como você lê a primeira e a segunda?

Eu acho que quando fiz Literal foi para me desmarcar, sair da identificação com a segunda etapa porque estava de acordo em criar um espaço de política cultural autônomo com relação à política social, pode-se dizer. Então, em um determinado momento, quando a revista tomou a inclinação de uma revista que se subordinava aos imperativos de linhas políticas e coisas assim, fui para o lado da Literal, onde me parecia que podia continuar esse projeto inicial da Los Libros. No primeiro número da Literal pus uma frase, inventei uma frase como slogan que dizia: “não matar a palavra, não se deixar matar por ela”. Quer dizer, essa foi a primeira coisa. Pensava que estávamos entre deixar-se matar sacrificialmente ou matar o que podíamos dizer, subordinando o que podíamos dizer a discursos codificados em função de estratégias políticas, etc. Creio que a primeira etapa para mim foi de muita aprendizagem das coisas e, bem, de polêmicas. E a segunda já não a segui porque sempre tive a ideia de que a política não é uma questão doutrinária e sim que a política utiliza qualquer elemento de qualquer tipo para produzir efeitos pragmáticos, para dizê-lo em termos de Jakobson, o valor conotativo é o que predomina na política. Então não

176  “Leer a Grombowicz”. Los Libros nº 2, Buenos Aires, agosto de 1969, p. 12.177 La invasión, de Piglia, apareceu em 1967 e Nanina em 1968 – este um romance autobiográfico proibido pelo governo militar.

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via qual sentido podia ter ser um ideólogo, ser alguém que fazia discursos para a política. E como não queria ser um militante político tampouco, não me sentia nada confortável lá. E, além disso, via que isso era como deixar-se arrastar. E já no período mais político da revista participei de uma polêmica com várias pessoas em torno de um livro que havia saído e que se chamava Cuestionamos, de psicanalistas de um grupo chamado Plataforma, que haviam saído da IPA, a Internacional Psicanalítica. E eu zombei um pouco deles, escrevi um artigo chamado “Cuestionamos: las aventuras del bien social”. Então me respondeu o Gregorio Baremblitt – que vive no Brasil –, respondeu e participaram da polêmica Miriam Chorne, Baremblitt, eu, e mais outros. E eu faço um longo artigo dizendo explicitamente que considerava absolutamente negativo o compromisso político de pessoas que não tinham meios para sustentá-los. Pode-se dizer que, de imediato, vejo tudo isso como uma coisa artificial. Sempre entendi assim o momento político, e lamentavelmente estava certo. Quer dizer, isto está relacionado inclusive com uma questão, se quiser dizer assim, de origem de classe: eu sou da classe trabalhadora, e então tenho certa consciência do que significam as forças armadas, a polícia, os aparatos de poder. Então me parecia que um grupo de intelectuais desarmados... porque de um lado havia os lemas e de outro havia os procedimentos.

E como era não ser marxista em um grupo predominantemente marxista?

Digamos que isso tem a ver também com a sensibilidade das pessoas. Por um lado, o peronismo obrigava o marxista doutrinário a ser mais brando, ou mais confuso. Schmucler mesmo estava muito perto disto. Aí tem uma coisa interessante: os lemas da JP, a Juventude Peronista, de esquerda, eram: “Mao y Perón un sólo corazón”. Percebe-se que havia uma certa confusão. Mas digamos que minha simpatia estava ligada ao peronismo, mas estava ligada ao peronismo pelo lado em que o peronismo não exigia que tivesse que fazer doutrina com seu discurso. Ou seja, que o peronismo, paradoxalmente, com sua aderência ao líder, deixava uma grande liberdade discursiva, porque se poderia ser peronista e lacaniano, peronista e espírita, peronista e qualquer coisa. Não se estava obrigado a adequar seu discurso a uma exigência doutrinária. Acho que por isso também os marxistas que vieram do Partido Comunista – Schmucler saiu de lá –, os marxistas da chamada nova esquerda na Argentina eram muito mais flexíveis neste sentido, não poderiam ser muito dogmáticos, porque além disso havia problemas internos: alguns eram maoístas, outros eram althusserianos, outros não sei o quê. Ou seja, isso criava um clima que permitia a convivência de alguma maneira, porque por sorte não era o stalinismo, não era uma doutrina oficial que se tinha de seguir.

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Falamos de Perón. E de Mao, o que você achava? Eu não acreditava muito nisso. Eu era amigo de um rapaz que

mataram, que era um deputado peronista, Leonardo Betanin; naquele momento ele era uma pessoa que tinha certa importância na estrutura, e que fazia uma revista, El Descamisado. Tinha publicado uma revista com a foto de Mao e Perón. Encontrei-o por causalidade e eu disse: “Mas vocês acreditam nisso?” Ele disse: “Não, isso é para as pessoas da universidade”... Ninguém acreditava em nada. Quer dizer, havia um jogo de máscaras. Ou seja, a esquerda argentina tinha aprendido duramente que isto ficava limitado em uma coisa de universidade. E então o peronismo impunha todos os rituais sacrificiais. E se aceitava porque era isso ou nada. Mas não se tratava de inocentes, isso é mentira. Sempre lembro de um livro de Elio Vittorini, que se chama El clavel rojo [Il garofano rosso, 1948]. É um livro sobre como ele, quando adolescente, se tornou fascista junto com outros adolescentes. E contava uma história que parecia a história da minha geração no começo dos anos 1960. Isto é, estar nos bares lendo livros. Estava no bar, não tinha nem para tomar café, e um dia entrou um montão de jovens camisas pretas empurrando os garçons, fazendo o que queriam. E ele junto com outros amigos deixaram os livros e se tornaram camisas pretas para ir ao bar também... [risos]. Em um livro que fiz com umas conferências na Espanha sobre Oscar Masotta, tratei de organizar para mim mesmo a questão, já que estava na Espanha e lá contava uma versão dos fatos. E com três palavras claras: o compromisso nos anos 1950, a militância no começo dos 1960 e a luta armada depois de 1969. Ou seja, era como o que levaria Clausewitz na ascensão aos extremos. Primeiro era o compromisso: o intelectual devia comprometer-se, etc. Depois era: “não, o compromisso não basta, é preciso militar politicamente”. Depois era: “não, militar não basta, é preciso pegar as armas”. Essa foi a escalada que houve, como uma espécie de paixão mortífera, de destruição da cultura argentina em duas gerações.

Literal à parte, que tipo de “ruptura” intelectual poderia se esperar de Los Libros?

Vou recorrer a minha “ajuda-memória”. Eu tenho uma caracterização da Los Libros que era... se encontro, te digo.[178] Eu dizia: “Los Libros foi objeto de investigação por Bosteels e Luz Rodriguez-Carranza, que escrevem: ‘A história da crítica literária argentina, e particularmente a das suas conflituosas relações com os modelos franceses, se parece muito com uma letra de tango: histórias de seduções e culpabilidades, de fascinação e de questionamentos morais’.” Eu digo: “De maneira acertada os autores

178  Germán Garcia lê um texto seu escrito em 1998 intitulado “Una encrucijada literaria”, solicitado por Noé Jitrik para integrar uma enciclopédia de literatura argentina que Eudeba publicaria e que finalmente foi recusado por Jitrik.

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tomam ‘o objeto Sade’ – escritura para Los Libros, implicações aterrorizantes para uma revista posterior à última ditadura, como é Babel, a revista Babel. De alguma maneira essa crítica substitui o seu objeto, propõe-se em seu lugar: a literatura, o objeto culpado da Contorno, se converte em um objeto ausente de uma crítica que quer ser uma escritura autônoma. A diferença é que Los Libros polemiza com outras correntes críticas ao invés de julgar as obras de ficção. Uma das objeções à revista era que era ‘estruturalista’ e que escamoteava os juízos de valor. Para uma crítica política da cultura – o lema da segunda etapa da revista mostrava que o contorno do supereu voltava a se desenhar, que Contorno retornava às urgências da violência política e nas esperanças de grandes transformações. A crítica que propunha um método ‘analítico, imanente e concreto’ – segundo Josefina Ludmer ao comentar Tres tristes tigres - não resistiu ao canto das sereias da política. À distância, creio, Contorno, Los Libros, Babel e Punto de Vista aparecem como conjuntos que contam vicissitudes da crítica, enquanto mantém relações equívocas com a ficção, a que pretende tomar como objeto (quando se crê uma metalinguagem) ou substituí-la diretamente quando desespera da função que adjudica”. Ou seja, creio que são revistas “francesas”, entre aspas, enquanto na França a crítica é um gênero, que inclusive acaba usurpando mais de uma vez a própria ficção.

O tema da tese é precisamente a presença da teoria crítica francesa nas revistas e intelectuais sul-americanos.

Eu chamo isto de “a tradição mimética” [lê a partir do mesmo texto]: Contorno, como tantas outras propostas anteriores e posteriores, se inscreve dentro da tradição mimética da cultura argentina, patente na mímica deliberada da arquitetura que imita Paris – tanto quanto o fez Chicago, Tóquio ou Istambul, no começo do século –, com o orgulho de parecer-se ao seu modelo. Os sistemas literários autóctones não são, é óbvio, autônomos: formam parte, ainda que seja de maneira periférica, de uma rede internacional que se reverencia nas traduções, nos comentários e as citações de nomes de livros, artigos e reportagens. Contorno, entre outras coisas, responde a outra importação, a do ‘surrealismo francês’: levanta a ‘política’ frente à ‘vanguarda literária’. Por outro lado, polemiza com as importações da revista Sur e do Partido Comunista. Assim, o morcego de Sartre...” O morcego é uma piada que eu faço sempre com La Fontaine. Há uma fábula de La Fontaine, a qual eu pus na revista “El murciélago”,[179] onde uma doninha agarra um morcego no chão e diz: “Sempre quis comer um rato”. O morcego pobrezinho diz: “Um rato? Não vês que tenho asas? Onde já se viu um rato com asas?” A doninha envergonhada o deixa ir. Quando se

179  El Murciélago. Para orientarse en la oscuridad, disponível em www.descartes.org.ar, a página da Fundação Descartes, de Buenos Aires, criada e dirigida por Germán García. 

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vai, outra doninha o agarra e diz: “sempre quis comer um pássaro”. Ele diz: “Mas pássaro? Onde estão as penas? Onde já se viu um pássaro sem penas?” E a doninha o deixa. Diz: “E assim, com hábeis saídas duas vezes salvou a vida”. E eu disse: a revista tem que se chamar “El murciélago” [risos]. Então digo [retoma o texto]: “Assim, o morcego de Sartre plana sobre a cidade de Buenos Aires – pássaro e/ou rato, como em La Fontaine – segundo a esquerda ou o peronismo. Nossa citação de Carlos Correas...” segue assim.

Este artigo nunca foi publicado? Foi rechaçado por Noé Jitrik. Está por aí, foi publicado no Brasil

e fica tudo em casa [risos]. Censurado em seu país, artigo censurado na Argentina, efeito Mercosul [risos].

Insistiria um pouco nessa ideia da “iminência” da revolução, muito presente na época.

A mim não parecia. Inclusive, eu estava tão convencido de que não era assim, que havia proposto isto que te dizia hoje da questão da morte. Citava Glucksmann, o livro de André Glucksmann que se chama O discurso da guerra,[Le discours de la guerre, 1967] onde diz: “A morte não pode ser incluída em nenhum sistema porque fecha qualquer sistema por igual”. Essa era um pouco a minha posição. Então, havia uma espécie de paradoxo se te convidavam para participar de atividades políticas, você pedia explicações e diziam que não podiam te dar porque você estava fora, e que não podiam revelar seus segredos estratégicos. Mas os que estavam dentro não podiam dar por segurança. Quer dizer que todos, às cegas, atuavam em um aparato verticalizado, militarista, etc.

A ideia mais presente na época era uma tentativa de conjugar a vanguarda revolucionária com a vanguarda estética. No seu caso, como pensava a questão da vanguarda?

Vou ser anacrônico porque agora tenho outra linguagem, mas digamos que o que estava em jogo para mim era algo assim como a construção de um eu, no sentido das Confissões de Rousseau, ou seja, como eu construía um lugar de enunciação. Quer dizer, não me sentia identificado com um coletivo determinado. Sou da província de Buenos Aires; vim para cá aos dezessete anos, vivia só em pensões, hotéis. Vim porque briguei com a minha família, não tinha nada, briguei e não vi mais minha família. E trabalhava durante o dia, estudava em um colégio noturno e escrevia, escrevia desde criança. Mas não me sentia identificado com os coletivos, nem sequer os estudantis. Havia uma discussão entre secular e livre, duas correntes ou o que seja. Eu terminei deixando o colégio porque não me interessava nada disso. Tinha uma ideia um pouco melancólica à la Kafka e

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depois um pouco festiva à la Henry Miller, mas isso não passava nunca por uma identificação com os coletivos sociais onde eu me encontrava. Nunca pude sentir-me plenamente integrado. Por exemplo, lembro-me que depois do “Cordobazo” fomos à Córdoba e o único que disse algo sensato para o meu gosto foi José Aricó, que escrevia sobre marxismo. E votaram, votaram ali coisas, e Aricó disse: “Uma eleição na universidade não é uma eleição no país. Que votemos isto ou aquilo aqui não tem nenhuma importância para o que acontece”. Foi o único sensato que eu escutei em todo esse ruído. Era confundir o micromundo da universidade e suas adjacências, era confundi-lo com o mundo social e político. Então, isso era visto da perspectiva do que era esse país de fascistas naquele momento. Lembro de um sindicalista, um fascista, que me disse uma vez: “A única coisa que invejamos da esquerda é que eles não pagam para conseguir gente, conseguem grátis na universidade. Já nós temos que pagar se queremos alguém que vá fazer algo...”.

“Toda política da felicidade instaura a alienação que tenta superar”: isso se lê na capa do primeiro número da Literal. Volto a perguntar: esta revista foi fundada como uma resposta aos que ficaram com Los Libros?

Não exclusivamente, mas de alguma maneira sim, no sentido de que nós – quando digo nós quero dizer eu, Luis Gusmán, Osvaldo Lamborghini –, nós líamos psicanálise e desconfiávamos de uma política-representação. Quer dizer, de alguém que representasse o bem-estar de outro. Nós não estávamos de acordo com isso. E, a partir de Lacan, também desconfiávamos da felicidade como projeto, como aplicação. Lembro que uma vez apresentei uma metáfora a Aricó, lhe disse que antes de comer um churrasco ao meio-dia o mundo era marxista, mas depois do churrasco o mundo era freudiano. Porque antes de comer o churrasco tudo se regulava pela necessidade, e depois do churrasco começam as piadas picantes, a falar de mulheres, o mundo se torna erótico. Então, lhe dizia que eu não podia ser marxista porque Marx n’O Capital falava da mercadoria como o que satisfaz uma necessidade, e colocava no pé da página, Marx, citando um autor medieval, colocava que dava no mesmo se a necessidade fosse do estômago ou da fantasia. A primeira coisa que Lacan faz é dizer necessidade, demanda e desejo. A fantasia é transfinita em relação à necessidade. Então, não há ninguém, não há nenhum Fidel Castro, nenhuma pessoa que possa fazer uma política que inclua os desejos. Os desejos são eles mesmos política.

Em que sentido a noção de transgressão era importante na Los Libros de um lado e na Literal de outro?

Aí é preciso fazer uma diferença interna. Havia em Los Libros gente que gostava de Georges Bataille, então acreditavam na transgressão e esse tipo de coisas, como Santiago Funes e não sei, algum outro. Entre

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nós da Literal era Lamborghini quem gostava disso. Eu, particularmente, não acreditava na coisa da transgressão porque, do ponto de vista de Lacan, a mesma ideia de transgressão é nada mais que uma desobediência obediente a uma lei que se aceita. Por exemplo, na psicanálise Lacan pode fazer uma diferença que Gilles Deleuze trabalhou muito depois em um livro que se chamou Apresentação de Sacher-Masoch, que é a diferença entre a posição sádica de Sade, e apontar a causa, a lei, a inclusão mesma da lei – a proibição do incesto – e a posição do masoquista que é jogar com os efeitos da lei. A mim, por sensibilidade, a noção de transgressão não parecia que fosse uma coisa importante. Ao contrário, eu gostava da ideia lacaniana de subversão, a ideia de Lacan de subversão como fazer saltar um centro de algo. Lacan propunha a metáfora barroca da passagem do centrado à coisa com dois centros, a elipse kepleriana. A subversão consiste em poder provocar efeitos de elipse dentro de uma cultura. Ou seja, há um centro aqui e há que colocar outra coisa aqui que descentra o centro. Isso me parece interessante. Mas a ideia de transgressão, não sei se na revista se escrevia muito sobre isso. Recordo, por exemplo, que quem amava Bataille era nosso amigo Oscar del Barco. Ele era o mais batailliano da questão. Eu escrevi alguns exercícios tipo as Mitologias de Roland Barthes, análise do fenômeno do rock, coisas assim, mas influenciado um pouco pelas Mitologias. E depois escrevi algumas coisas que estavam ligadas já à psicanálise.

A propósito de Barthes, em que medida ele influenciou em sua formação e para o projeto da Literal?

Acho que Barthes teve influência mais nas pessoas que seguiram profissionalmente a crítica literária. Por exemplo, o mais barthesiano de todos, me parece que é Nicolás Rosa. Para mim o primeiro trabalho de Barthes [O grau zero da escritura, 1953], sua introdução à semiótica, era formidável. Depois eu gostei da sua noção de escritura. Quando escrevi sobre Macedonio Fernández estava muito influenciado por esse livro. Era a ideia de, digamos, o estado da língua como atravessado por um estilo que a rompe. “Língua e estilo são objetos”, dizia Barthes, a escritura é função “da relação entre a criação e a sociedade, a linguagem literária transformada por seu destino social, a forma captada em sua intenção humana e unida assim às grandes crises da História”.[180] Isso resume o que Barthes foi para mim, esta ideia de como a função da escritura pode operar no seio do discurso socialmente estabelecido.

E para o projeto da Literal, Barthes era uma referência ou não? Não, já não porque, por exemplo, O prazer do texto, que foi a última

180  Citação do primeiro ensaio do livro de Barthes, “O que é a escritura?”, que é também a epígrafe ao seu texto na antologia Hablan de Macedonio Fernández organizada por García em 1969.

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coisa que li dele, já me parecia uma frivolidade. Dizer que a tragédia é o gozo, e que a comédia é o prazer, para mim, que conhecia bem Lacan, já parecia que era de salão. Estava bem, era um homem de gosto do século XVII ou século XVIII. Mas não tinha nada a nos ensinar. Nesta época estávamos no meio de uma máquina tão infernal, então líamos Glucksmann sobre Clausewitz, líamos Lacan, líamos o Marquês de Sade, por isso pegam o objeto Sade, não é? E então Barthes já não dava, não tinha como se sustentar. Lembro que na Literal, por exemplo, isto: “não matar a palavra, nem deixar-se matar por ela” é uma translação retórica de um conceito lacaniano. A relação da linguagem e da morte, que é uma ideia hegeliana, por sua vez. A palavra é o assassinato da coisa, etc. Sustentar a palavra é cortar com a coisa. Então, parece-me que a esta altura da questão, não.

O que representava a figura de Borges para os membros da Literal? Eu me inspirava na ideia de que não se tinha que estar, a esta

altura dos acontecimentos, nem a favor nem contra Borges, mas sim que era preciso fazer uma espécie de desconstrução de Borges, para dizê-lo nos termos de Derrida. Ou seja, era preciso desarmar o borgismo e armá-lo de outra maneira. Então nós fizemos uma intriga que chamávamos de literatura de dispersão, jogando com a tradução da palavra diáspora que quer dizer dispersão. Literatura da dispersão. Então começamos a aliar, a fazer alianças simbólicas, por exemplo, com José Agustín do México, um cara que publica de tempos em tempos com personagens muito especiais naquele momento, ou Reinaldo Arenas de Cuba, ou localmente Manuel Puig, os caras assim, meio deslocados em relação aos verossímeis literários. E a resgatar autores que eram deixados de lado por outros. Então se publicava por exemplo um louco, um cara louco, mentalmente louco, que havia escrito um livro de mil páginas, de tempos em tempos se publicava três ou quatro páginas destas selecionadas de tal maneira que pareciam textos experimentais ou ultra-estruturalistas. Então publicamos sonhos, por exemplo, sonhos anônimos, sonhados em tal data. Um sonho de alguém que tinha sonhado e anotava o sonho. Não tinham um ar surrealista: pegar algumas coisas da retórica dos surrealistas, mas para armar uma coisa que no fundo se referia a Macedonio Fernández. Então nossa ideia era essa. Quer dizer, por um lado recordo que líamos bastante Lezama Lima, Paradiso, Sarduy, o barroco – sobretudo Lamborghini estava muito engajado nisso. E em relação a Borges pensávamos isso, que o borgismo, como dizia a “pequena borgesia” [risos] não tinha saída, ia terminar mal, e que condenar Borges era uma estupidez. Então, por exemplo, Borges foi inspirador de políticas de todo tipo; agora estou escrevendo sobre isso justamente, o assunto da irreverência borgeana, quando Borges diz que o melhor que um argentino pode fazer é pegar o exemplo dos judeus e dos irlandeses, que podem

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estar na cultura inglesa, dentro ou fora ao mesmo tempo; ou os judeus que em cada cultura que estão, dentro ou fora, porque são e não são, sempre estão inscritos em outro lugar. E creio que isso convergia entre nós com Gombrowicz, que tinha exatamente a mesma posição – ainda que Borges e Gombrowicz não se gostassem – em relação a quais estratégias tomar com as culturas centrais, como se descolar da mimese cega. Eu hoje dei a Piglia uma definição da estratégia de Borges e Gombrowicz [lê um manuscrito]: “Borges cita [Thorstein] Veblen que diz que os judeus se sobressaem na cultura ocidental porque atuam dentro desta cultura e ao mesmo tempo não se sentem atados a ela. Acrescenta de sua parte que os irlandeses, que descendiam dos ingleses, que não tinham sangue celta, mas que ao sentirem-se diferentes podiam evocar como algo exterior, que não lhes pertencia, a cultura inglesa. De minha parte acrescento que quando Gombrowicz propôs o mesmo para a cultura polonesa, estava em Buenos Aires. Entretanto creio que nem Borges nem Gombrowicz chegaram a entender essa afinidade. Horrorizava Gombrowicz a possibilidade de ser aceito pelos argentinos, de aquerenciar-se em uma cultura subordinada e reverente como a nossa. Para Borges parecia que Gombrowicz era um invento de Mastronardi. Para Borges se tratava de dissolver os critérios de autoridade pela multiplicação das referências, pela enumeração e pela alusão, por uma perplexidade simulada – porque sempre se estará perplexo enquanto Borges pensava. Para Gombrowicz se tratava da tática do bufão, do que consegue situar-se em uma situação com o poder que lhe permite julgar com a verdade. A tática de Borges é irônica. A de Gombrowicz se move entre o grotesco e a intriga”. Mas eu acho que os dois apontavam para o mesmo: como liberar-se de um modelo de cultura esmagadora, que te transforma sempre em uma espécie de admirador estéril, em um consumidor estéril da cultura.

Há textos “acéfalos” na revista Literal. Por quê? Eu tirei isso de uma revista de Lacan que se chamava Scilicet,

onde Lacan propôs fazer textos sem nome para pôr em primeiro plano o deslocamento do discurso mais que a função do autor. Tomei de Lacan, que tinha realizado materialmente, tinha feito três números ou cinco de uma revista onde não se assinava. Então, como a gente que escreve literatura, escreve muito em função do nome próprio, os textos literários estão assinados, e nos textos literários de algum modo se encarregava de um produto singular, e o que fosse teorizar, criar um corpus, uma corrente de opinião, aí não.

O que chamava a atenção neste primeiro número é que alguns textos estão assinados e outros não.

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Sim, mas os que estão assinados são sempre textos literários. Ou seja, são ficção. A ideia era assinar a ficção e não assinar a teoria.

Como você vê o conjunto da revista Literal hoje?[181]

Digamos que a tomo como um lapso, um lapso no sentido freudiano, ou seja, parece-me que é uma coisa muito pequena e que tem um valor testemunhal no sentido de dizer que (quando se faz essas generalizações): “Nos anos 1960 todo mundo estava com a revolução...”, ou dizer, “estes quatro gatos não estavam”. Ou seja, vale como adversativo, é um “mas”. Mas não é tudo [risos]. Dou esse valor para matizar uma generalização, porque Borges disse que não há nada como a morte para melhorar a gente. E lamentavelmente aqui morreu muita gente, então muita gente se tornou melhor. Há um traço de maldade que fica aí isolado.

E por que a revista termina em seu quarto/quinto número? Pelo golpe militar. Inclusive não íamos fazer o último número

porque já estavam os militares no poder, mas como havia me distanciado de Lamborghini, estava muito interessado em que se soubesse que Lamborghini não tinha mais nada a ver com a revista, fiz o número, que inclusive tem um chiste de uma frase em latim: “Quem diz o um, nega o outro”, na capa. Que era cômico, que era como dizer: “É preciso calar-se”.

Lamborghini participou só até o terceiro número. Sim, porque Lamborghini sempre foi muito alterado pessoalmente.

Eu o ajudei muito, porque quando me conheceu, eu já era muito conhecido. Fiz com que ele editasse “El fiord”, com um prólogo meu; o prólogo era mais extenso que o livro. Pusemos como epílogo e com uma letra menor, porque senão era ridículo! Então o ajudei a publicar “El fiord”, a publicar “Sebregondi retrocede”. E era uma pessoa muito intrigante, era insuportável...

Esse artigo apareceu na revista Sitio, não? Na Sitio, sim. Mas isso não importa, eu o aguentava. O que não

aguentei é que ele se pôs em uma posição muito sórdida em relação à política. Tinha contatos com a direita peronista, e eu queria me desmarcar disto, que não ficasse nenhuma dúvida que não estava ligado a isto.

Por que existem ou se criam revistas culturais em sua opinião? Sou um apaixonado pelas revistas. Quer dizer, me parece que as

revistas criam um pertencimento; há pouco eu lia isso em um romance

181  Em  2002  Santiago  Arcos  Editor  publicou  uma  compilação  da  Literal,  a  cargo  de  Héctor Libertella. Em 2011  a Biblioteca Nacional Argentina  publicou  a  edição  fac-similar  da  revista, coordenada por Juan Mendoza.

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americano. Há sempre uma figura, há um conflito com a cidade anônima e uma pessoa solitária, neste romance norte-americano. Então se cria sempre... estou pensando nos autores que li ultimamente, não? O encontro de duas pessoas. O encontro de duas pessoas não é nem o anonimato nem a solidão. É a amizade como um laço que permite circular pela cidade sem estar sozinho e sem integrar-se à cidade. E que é um pouco a psicanálise também, de certa maneira. Então para mim a revista sempre foi como o sonho de um grupo de amigos fazendo algo. Eu gosto dessa coisa de vanguarda. Quando leio como eram os dadaístas ou os surrealistas me agrada, mas eu gosto disso, a coisa do bando de pessoas que são amigas. E me parece que é um bom laboratório para pensar. Porque não te obrigam a integrar as máquinas normais ou normativizantes, e tampouco a cair no mito trágico, solitário, romântico, estar deitado na sarjeta. Formar grupos que podem gerar coisas, propostas, etc. Sempre tive uma certa inveja disso. Sempre quis fazê-lo existir. Eu gostava muito quando havia coisas sobretudo de literatura, aí tem uma foto da equipe da Contorno, em que aparecem Viñas, Masotta, Sebreli disfarçados de Sartre [risos]. Sempre gostei desse tipo de coisa. Hoje, agora me dei conta, é impossível. Naquela época era possível. Agora eu faço uma revista, duas revistas, mas são mais institucionais. Acho que a revista está muito ligada a isso de criar grupos. Está ligado a isso e não há que renegar a função iniciática que ela teve, de rito de iniciação, do grupo jovem, do Bildungsroman, ou seja, um romance cultural inclusive, no sentido de formação, Bildung. Um grupo de pessoas jovens que queria fazer um nome, se provar, etc. etc. Hoje as revistas estão muito ligadas à promoção, à autopropaganda, à autoexaltação... Na Literal se dizem coisas que são coisas da vida. Às vezes porque um empurrava o outro a dizê-las, não?

E essa institucionalização, como você a vê? Tenho uma experiência muito especial porque me criei sempre em

grupos particulares. E digo às vezes, para provocar, que tenho uma educação de príncipe porque me eduquei com pessoas e não com instituições. Quando eu era jovem, conheci Carlos Astrada, que foi o melhor filósofo que existiu na Argentina, que estudou com Heidegger. E Astrada me passava leituras. E depois conheci Masotta, e com Masotta estudei psicanálise, e assim sucessivamente. E então vou a França, e me ligo a instituições orgânicas, e à Escola da Causa Freudiana. E me acontece uma coisa: eu dou aula para pessoas que vêm me escutar porque querem. Angustia-me dar aulas para cativos. Não suporto ver um aluno que está assim, que não se interessa, porque está fazendo nada mais que uma matéria. Então me parece que o aparato institucional ao converter em um meio o que faz, o mata. Porque para mim tem que ser um fim. Então, faço uma revista porque o que quero é

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um fim. E se faço uma revista para o departamento de literatura não sei onde, já não é um fim, é um meio para que me paguem um salário, por exemplo. E eu particularmente, como me criei sempre desta maneira, nas margens, fiz partes inteiras de minha carreira como ouvinte, fui escutar um linguista interessante em linguística, ou fui estudar lógica ou outras coisas, e jamais o fiz para me dar créditos. Para mim os certificados ou coisas assim são coisas exigidas, mas realmente subordinantes. Além disso, porque me parece que na Argentina é muito pequeno o institucional. Além disso, porque ninguém lê ninguém, não interessa nada a ninguém, não é assim? Não sei como será no outro lado, mas os professores entre si, o que lhes interessa é deslocar o outro. O que escrevem não interessa a ninguém.

Neste caso seria uma espécie de instituição paradoxal, digamos, uma instituição nas margens.

Sim, claro: “êxtima”, a palavra “êxtima” é uma invenção de Lacan, para o que está dentro e fora. Digo dentro e fora porque, por exemplo, paradoxalmente eu formei muitas pessoas que são professores na faculdade... [Retoma seu texto “Uma encruzilhada literária”] Deixa eu ver se poderia dizer algo mais sobre as revistas. Falando da entrada do surrealismo na Argentina: “Na nova distribuição Oscar Masotta se encarrega de Jacques Lacan, Raúl Sciarreta de Althusser, Eliseo Verón de Lévi-Strauss, Nicolás Rosa de Roland Barthes e nossos editoriais da tradução dos espelhos correspondentes. Mas não se importam os grandes espelhos biselados com marcos barrocos, por medo de que o peso de bronze e a abundância de mercúrio tenham consequências mortíferas. Importam-se espelhinhos de bolso em convenientes ‘dossiês’”. Porque a cultura argentina é tão contrabandista e mentirosa que todos os autores que difundimos em castelhano foram editados por mexicanos e não por nós. Nós editamos “dossiês”. Então, por exemplo, todo Lacan foi editado no México, mas foi descoberto em Buenos Aires. Todo Lévi-Strauss foi editado no México. E o editor argentino, uma vez que isso se editou, pega três ou cinco artigos e faz aqui um dossiê Lacan, um dossiê, etc. Por isso faço a piada dos espelhinhos. [Segue lendo:] “E abundante segunda mão referida a livros desconhecidos. Os grandes espelhos foram importados do México e desde lá foram distribuídos aos diferentes países ibero-americanos. A universidade se encarregou de alguns que naquele momento não encontraram um duplo, nem uma dublagem adequada – Foucault, Derrida e outros. O providencial retorno de Héctor Schmucler e sua criação – a revista Los Libros – completou o quadro: Georges Bataille encontrou Oscar del Barco, Derrida, a um postulante em Santiago Funes e uma jovem estudiosa Alicia Paez”. Eu ao final faço em uma página – se não se incomoda, leio – uma espécie de resumo do que eu falava há pouco. [Lê o final do texto:] “Em 1968, depois de

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publicar meu primeiro livro, queria saber onde havia me metido. Porque, ao converter-me em ‘polo de atribuições’, tive a certeza de que tinha me metido em algo que me excedia. Encontrei por acaso, como tantas outras coisas, um nome: ‘campo intelectual’. Encontrei-o em um artigo de Pierre Bourdieu. O parágrafo assinado por Proust, dizia: ‘As teorias e as escolas, como os micróbios e os glóbulos, devoram a si próprios e com sua luta asseguram a continuidade da vida’”. Isto é citado por Bourdieu. “Neste campo magnético existiam linhas de força e pelo fato de ter publicado um romance pela editora Jorge Alvarez fazia parte de uma delas. Por exemplo, Rodolfo Walsh escreveu sobre mim, em uma nota de conjunto onde também falava de Ricardo Piglia, Aníbal Ford e Ricardo Frete. David Viñas, em uma revista editada em Cuba, me nomeava como um dos filhos de Cortázar – junto com Néstor Sanchez e outros – reproduzidos depois da morte de Che Guevara [risos]. O ‘referente’ dessas verdades não era que eu havia escrito, mas o lugar que este livro tinha no ‘campo intelectual’: êxito de venda e proibição da censura do governo militar. O livro como tal era citado, mas mais pelos que pertenciam a outros campos intelectuais do que pelos imediatos, cujos ‘elogios’ tanto quanto suas críticas levavam em conta o lugar do livro, e não o que o livro dizia. Quanto aos leitores, para além desta barreira encontravam coisas incomensuráveis (uma mulher de La Plata assegurava, em uma carta que me enviou, que Nanina – a gata que aparecia no meu livro – era a reencarnação de outra gata, que havia sido sua)” [risos]. Uma vez que não estão atravessados pelos críticos literários, o que acontece com os livros é qualquer coisa... Aí está esse espaço institucional de que falamos aqui. “Surgida fora dos diversos grupos literários, fora da universidade, a autoridade de uma editora como Jorge Álvarez dependia da combinação de nomes do seu catálogo (nomes famosos, nomes não famosos, etc.) e das relações com os suplementos culturais”. Que escapa ao controle da universidade. Então: “Sabe-se que a revista Primera Plana era chave nesse jogo e que o ‘mercado’ entre aspas era rechaçado pelos universitários que tentavam impor um ‘cânone’ que era esse mesmo ‘mercado’, com alguns anos de atraso”... Porque não sei como é no Brasil, mas aqui a universidade sempre está contra o mercado. Mas o que a universidade lê é o que foi sucesso no mercado há dez anos. É mais lento porque tem a burocracia enquanto compra os livros. E isso é um cânone em relação ao que acaba de aparecer. Então: “Tinha me metido entre jovens aspirantes (Jorge Alvarez publica o primeiro livro de Manuel Puig, de Ricardo Piglia, de Anibal Ford e um dos primeiros de Juan José Saer), aspirantes que eram da província de Buenos Aires”. Então todos eles não eram de Buenos Aires, mas essa é outra questão. “Também o é Briante, Castillo, Soriano”. É muito interessante, porque Buenos Aires é como o lugar onde se faz a viagem iniciática, a pessoa que é da província de Buenos Aires. Quase todos os escritores de Buenos

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Aires não são de Buenos Aires. Digo: “Era para mim evidente que a província de Buenos Aires ‘triunfava’ na capital (Saer que é de Santa Fé vai a Paris, o mesmo com Bianciotti que é de Córdoba).” Quer dizer, as pessoas que são de províncias, estruturadas, próprias, vão fazer a viagem a Paris. Mas é curioso que as pessoas da província de Buenos Aires, que são povos por decreto (eu nasci em Junín), são todas cidades que têm entre trinta e sessenta mil habitantes, e que eram a linha de frente contra os índios. Umas cidades terríveis, todas iguais. Então tem tudo isso em relação à identificação da capital. Um pouco disso é um chiste, não é tão sério... “Era para mim evidente que a província de Buenos Aires ‘triunfava’ na capital, desde Ernesto Sábato, passando por Haroldo Conti, até o Río Grande”, porque todos também são da província, Rojas... “Tinha me metido no circuito com seus matizes, um circuito que se propunha como um estilo de vida, com seus jogos de palavras, e suas brincadeiras, suas formas de amar e suas mulheres-chave (uma delas tinha ganho o pouco amável apelido de “A fragata de Sarmiento” porque iniciava os cadetes da literatura)”. A fragata de Sarmiento é um barco argentino muito antigo com que os cadetes da Marinha davam a volta ao mundo. E havia uma mulher, uma sacerdotisa que chamavam assim. Como se pode imaginar, para Noé Jitrik, isto pareceu uma blasfêmia. Noé Jitrik não pode aceitar isso como crítica literária. Mas a mim, pediu um testemunho [risos]. Não tinha me pedido uma coisa crítica. Então eu dizia: “Os valores e os mitos eram compartilhados e o mercado era um limite, implacável, o mercado. Desejado e temido, era uma aspiração contraditória que conduzia a uma aporia: os que não podiam distinguir entre verdadeiro e falso ficavam presos na alternativa êxito/fracasso”. Na história isso acontece. Um texto parece verdadeiro ou parece uma porcaria. Mas se você tem na cabeça quantos exemplares vendeu, o outro está perdido, não? Eu digo: “Um círculo sem saída entre um fracasso exitoso e um êxito vivido sempre como fracasso e/ou traição”. Parece-me que o círculo é esse. Então: “Sem dinheiro, com carreiras universitárias abandonadas, estes jovens de classe média – muitas vezes procedentes de bairros da capital, quando não da província – ignorávamos o ‘campo intelectual’ e queríamos explicá-lo desde conceitos políticos que adquiriam a monotonia da generalização abusiva. A importação dos problemas conduzia à paródia e alguns reproduziam personagens da cultura metropolitana e, como nas festas estudantis, teatralizavam alguma discussão (o compromisso versus a arte livre, por exemplo). Advertido por Pierre Bourdieu – a quem não imitava porque a sociologia não era de meu interesse – adotei a bandeira da autonomia da arte, posto que a literatura era para mim a iniciação em uma forma de vida diferente da do lugar de onde eu havia saído. Esta autonomia era relativa, posto que dependia dos leitores e da mediação dos comentaristas e das universidades. O surgimento da revista como ‘ensaios críticos’ propõe

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metalinguagem, etc.”. E eu digo “Entendo que Los Libros foi interrompida por isso, e entendo que por isso fizemos a Literal”. [Lê um parágrafo anterior:] “A solidariedade entre escritores, jornalistas e alguns críticos desenhava um espaço de autonomia que suportava as pressões, quando não as calúnias do ‘processo de politização’”, e Los Libros foi tragada por isto.

Piglia segue em Los Libros na época, torna-se muito maoísta. No ano passado declarou que segue sendo marxista. O que lhe parece esta posição hoje?

Bem, Piglia é uma pessoa muito singular. Isto é um paradoxo, mas é um marxista muito singular. Deve ser porque a consciência de uma classe é a consciência de si mesmo [risos]. Não sei, penso que talvez seja como uma posição ética da parte dele, porque é uma pessoa muito ética. Uma posição ética frente a tanto oportunismo. Todo mundo se disfarça de outra coisa, em seguida se diz: “Caiu o muro de Berlim, acabou-se”, é a pós-modernidade [risos], o fim dos grandes relatos... Parece-me que é uma posição ética, um pouco como eu que sigo sendo lacaniano, no sentido de que poderia ser o liberal e dizer, bem, é preciso matizar Lacan e não sei o quê. E é tudo mentira porque são exigências de configurações de coisas. Então creio que a posição dele está ligada a isso. É um marxismo ético porque não é metodológico, porque não creio que ele seja metodologicamente marxista, nem tampouco isso se reflete em sua literatura. É como tomar uma posição ética: “Não renego disto que...”.

Você mencionou há pouco essa palavra para muitos mágica hoje, a ideia de pós-modernidade. O que você pensa dela?

Para mim, o mais interessante da pós-modernidade foi que me levou a estudar a sério a modernidade. Nunca li tanto sobre o século das luzes. Pus-me a estudar isso. Mas não me parece que exista tal coisa. Parece-me o contrário, que existe o que os ianques chamam ideias-força, ou o que Lacan chama significantes-amo. Ou seja, que de repente uma palavra, um termo reestrutura, reorganiza a leitura. Isso me parece bom. Mas não o tomo como um fenômeno. Não creio nem no progresso nem na decadência. Creio que o mundo pode se explodir todo, mas não significa que progrida ou que decaia. Creio que há configurações, mais ao estilo da teoria do caos, digamos que existem coisas que se configuram. E que a palavra pós-modernidade a mim, particularmente, serviu para ler sobre a modernidade.

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Leyla Perrone-MoisésSão Paulo, 15 de maio de 2000

Gostaria de começar abordando os seus primórdios, a sua formação literária: o que a conduz à crítica e ao jornalismo na São Paulo da década de 60?

Acho que temos de começar um pouco antes, não para me alongar, mas para dar algumas informações prévias. No começo dos anos 50, quando eu tinha dezesseis anos, eu queria ser pintora. Tive aulas com Samson Flexor, que fundou o Ateliê Abstração, aqui em São Paulo – eu era a caçulinha do grupo. A gente fazia abstração geométrica, e eu cheguei a expor em duas Bienais, e várias exposições coletivas do grupo. E nisso eu fui até os vinte e dois anos, por aí. Então a minha intenção era ficar na pintura, mas quando terminei o secundário, eu já tinha terminado o curso superior da Aliança Francesa, tanto o de história da literatura como o de história da arte, e aí eu ganhei uma bolsa (houve um concurso) para ir a Paris. E aí – é preciso ver que nós estamos ainda nos anos 50 – os meus pais, “de modo algum, imagina uma jovem assim, ir sozinha para Paris, aquele local de perversão”. Então eu não fui, apesar de ter ganho a bolsa. Mas eu fiquei com aquela formação francesa que foi da Aliança. Então colocou-se o problema do vestibular, e eu queria ir para a Escola de Belas Artes. E aí meus pais também ponderaram que ser pintora não era profissão, e que ser professora era, e até muito adequada às mulheres, não é? E como eu também me dava bem nos estudos literários, que eu devia fazer o curso de Letras, e ao mesmo tempo eles me pagariam aulas particulares de pintura com o Flexor, o que eu já estava até fazendo, desde o secundário. Então eu fui para o curso de Letras, lá na antiga Maria Antônia, e fiz Neolatinas – o curso da época era dividido em Anglo-germânicas e Neolatinas. Mas na verdade em francês eu já tinha uma formação maior do que a que dava o curso de literatura francesa, porque a Aliança era muito boa, e porque nos cursos de Letras não havia uma integração curricular, então era muito aleatório. Eu passei quatro anos estudando Baudelaire, Racine, Racine, Baudelaire, e ninguém mais. Porque os professores franceses que estavam aqui eram especialistas disso, e cada um dava o que queria, e de um modo bem tradicional. O método deles era a antiga “explication de texte”. E aí, no fim de 58, eu li em algum lugar que existia um novo romance francês. Eu freqüentava muito a Livraria Francesa. Comprei La modification do Michel Butor, e quando li achei aquilo incrível. Escrevi então meu primeiro artigo no Suplemento Literário do Estado de São Paulo, uma resenha de La modification. Isso em dezembro de 58. O diretor do Suplemento era o Décio de Almeida Prado. Aí eu continuei trabalhando, lendo os outros do novo romance, e oferecendo ao Décio, e o Décio publicando: o Robbe-

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Grillet, o Claude Simon, a Nathalie Sarraute, etc. Comecei a fazer resenhas regularmente, das resenhas passei aos artigos. E logo depois faleceu o Brito Broca, que era o responsável por uma coluna, “Letras Francesas”. O Suplemento, como você sabe, é considerado como o melhor que já houve no Brasil, pela qualidade dos colaboradores – porque era assim: poemas inéditos do Drummond, desenhos novos de todos os grandes artistas da época, era António Cândido, era Anatol Rosenfeld, Otto Maria Carpeaux, os poetas concretos. Era muito eclético também, muito aberto, tinha todas as tendências. E aí quando o Brito Broca morreu, o Décio de Almeida Prado me ligou e disse: você não quer ficar responsável pela coluna “Letras Francesas”? Me deu aquele friozinho. Porque substituir o Brito Broca não era pouca coisa, não é? Era um homem de grande cultura literária, e substituí-lo seria mudar completamente o estilo das “Letras Francesas”, que comigo deixariam de ter um enfoque histórico e se tornariam uma informação sobre a atualidade francesa. Aí eu disse: “O senhor acha que eu posso?” E ele disse: “Está havendo muito interesse por seus artigos sobre o novo romance, então você continua nessa linha”. Naquela época, havia no Brasil um público culto que lia diretamente em francês. Por isso os artigos sobre esses livros da França interessavam, porque eles iam à Livraria Francesa, compravam e liam. O que depois acabou completamente, não é? Nas minhas primeiras resenhas e artigos no Suplemento Literário– isto é, de 58 até 65, por aí – as citações eram em francês! Coisa que hoje em dia não é mais possível no jornalismo cultural. Mais tarde, muitos escritores brasileiros me disseram que liam aqueles artigos sobre o novo romance. O Osman Lins, por exemplo, de quem eu fiquei amiga depois. E o próprio Osman Lins fez uma entrevista com o Michel Butor, na mesma época. O Raduan Nassar também lia, e agora me diz: “Eu lia, eu achei interesssantíssimo e achei que não era pra mim aquilo”... [risos]. Mas, por ironia, eu encontrei uma moça agora em Paris – em março eu estive lá – e disse que queria me entrevistar, porque ela está fazendo uma tese lá em Paris sobre o Raduan Nassar e o novo romance. Ela disse: “Eu acho que há muito de novo romance nele” [risos]. E eu disse a ela: “Olha, não sei se ele vai gostar”... Então eu escrevia sem saber muito bem para quem. Eu tinha respostas, principalmente de uma certa sociedade paulista “quatrocentona”, culta, umas senhoras que me convidavam para uns chás. Uma era sobrinha da Dona Olívia Guedes Penteado, sabe? E nos seus chás eu conheci os remanescentes da Semana de 22, o Rubens Borba de Morais, o Guilherme de Almeida. Eu também freqüentava o bar do Museu de Arte de São Paulo, que era lá na Sete de Abril – isso antes mesmo de eu escrever no Suplemento, porque eu me lembro que eu ia com o uniforme de escola ainda, e as pessoas diziam: aquele ali é o Sérgio Milliet, aquela ali é a Patrícia Galvão, a Pagu, nossa! E aí então eu ficava vendo todas aquelas figuras. Agora me parece que vivi numa outra encarnação, não é?

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Sem que seus pais soubessem. Não, eles sabiam, porque São Paulo era uma cidade muito civilizada,

muito tranquila. [Nesse exato momento ouve-se uma sirene a todo volume]. As meninas de escola podiam frequentar o centro da cidade. A Aliança Francesa era perto do Museu, do bar do Museu. E a gente ia às exposições, e eu também já estava nesse mundo de pintura, não é? Para chegar ao ponto: para a minha formação contribuiu o fato de eu ter começado pela pintura, uma pintura não acadêmica, abstrata, e portanto com a convicção de que as vanguardas é que interessavam – embora a pintura abstrata geométrica já não fosse tão vanguarda no mundo. Mas aqui em São Paulo era! [risos] Mas foi no Suplemento Literário que eu tomei o meu caminho, interessada por um tipo de romance que desmanchava toda a narratividade anterior. E aí teve um livro decisivo, que me fez a cabeça, no começo dos anos 60: Le livre à venir, do Maurice Blanchot. Aí então realmente eu achei que as coisas que eu tinha aprendido sobre literatura estavam completamente caducas. Enquanto isso, também entrei em correspondência com o Michel Butor, com o Claude Simon, com o Robbe-Grillet... Eles não eram ainda tão famosos na França. A imprensa não dava tanto espaço para eles como eu dava aqui, no Suplemento. Eu não, porque era o Décio de Almeida Prado que dava. Eu mandava pelo correio os artigos e eles me respondiam, eu tenho uma vasta correspondência com eles. Depois eu me encontrei com eles em Paris, entrevistei Butor e Claude Simon. Tudo isso foi muito importante para eu chegar ao que foi o grande acontecimento, que foi encontrar o Roland Barthes. Então, eu tive toda essa formação mista de pintura abstrata, de novo romance. E, ao mesmo tempo, nos anos 60, o grupo dos concretos começou a se interessar pelos meus artigos, começaram a me citar na revista Invenção. Acabei me encontrando com eles, e fiquei amiga principalmente do Haroldo, como eu sou até hoje, e desses franceses todos que eu fui conhecendo. E uma coisa vai ligando a outra, porque o Haroldo viajava muito nessa época, e conhecia deus e todo mundo das vanguardas de toda parte, e da teoria literária, e de tudo, não é? No começo dos anos 60, o Haroldo já era amigo do Jákobson, já tinha contato com o Todorov e o grupo Tel Quel, o Philippe Sollers, a Kristeva, etc. O Todorov eu conheci através do Haroldo. Porque em 68-69, eu fui com uma bolsa, durante as férias, para terminar a minha tese sobre Lautréamont, e levei o endereço do Todorov. Aí eu o convidei para vir a São Paulo. E me pus em contacto com as pessoas do Rio, que também queriam convidá-lo, e ele veio. Já havia então, aqui, um grande interesse pelo formalismo russo e pelo estruturalismo francês (o Jákobson tinha vindo fazer conferências em 67). Já havia muitos universitários brasileiros tabalhando nessa linha, e, depois da vinda do Todorov, realizamos uma série de encontros Rio-São Paulo. Eu dava aula na PUC nessa época. Porque primeiro eu fui jornalista literária, e depois

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eu fui convidada pra dar aula de literatura francesa na PUC, e só voltei pra minha universidade de formação em 70. Quer dizer, quando o Todorov veio eu ainda estava na PUC. Na Universidade de São Paulo predominava uma tendência sociológica, mas havia espaço para acolher outras. No começo de 69 também conheci o Barthes, sobre quem eu já tinha publicado dois artigos no Suplemento. Alguém me apresentou ao Barthes, eu dei os artigos para ele, ele me mandou um bilhete dizendo que queria me encontrar com mais vagar. Desde então, eu freqüentei os seminários dele, e fiquei amiga dele até a sua morte, em 80.

Com relação ao nouveau roman, aquele pequeno livro seu... Esse foi de 66, eram os artigos do Estadão, que foram recolhidos ali.

Foi seu primeiro livro, não? Foi o meu primeiro livro. Aquela coleção era dirigida pelo Décio

de Almeida Prado, pelo Antonio Candido e outros. Eu nunca fui aluna do Antonio Candido, mas ele já era uma referência intelectual e ética para todos os de minha geração. O Antonio Candido sempre teve uma grande abertura para todas as tendências da crítica. Acho que todo grande crítico tem essa abertura, porque quem lida com a literatura sabe que a literatura tem mil enfoques possíveis, não é? E não existe um que seja o bom e o certo. Depende do que se faz com aquilo. Então eu me lembro que o Antonio Candido dizia na época, numa mesa redonda no Rio da qual nós participamos: “Há um movimento pendular na crítica entre o “conteúdo” e “forma”, e no momento esse movimento está favorecendo a forma, o que não é mau”. O Antonio Candido me deu apoio no Suplemento, na edição do livro O novo romance francês e quando eu fui para o curso de francês da USP. E foi ele que me viu um dia lá, muito cansada (eu estava dando aulas em vários lugares, a situação política do Brasil estava horrível), acho que eu devia estar com uma cara muito desanimada, e ele me disse: “A senhora” – porque ele sempre me tratou assim – “a senhora nunca pensou em pedir uma bolsa da Fapesp e passar um tempo em Paris?” Eu disse: “Não”, e ele disse: “Mas a senhora devia pensar”. Foi ele quem me deu o conselho. Aí eu pedi essa bolsa da Fapesp, e fui, e fiquei lá esses dois anos e meio, de 72 a 75. Foi então que entrei em contato mais intenso com tudo isso. Porque enquanto eu estava aqui, eu fiz uma espécie de divulgação das tendências, das revistas Poétique, Tel Quel, Change – tem até um artigo meu dos anos 60 intitulado “A floração das revistas”. A teoria literária estava em alta, não é? E a revista Communications no 8, sobre a análise estrutural da narrativa, era a nossa Bíblia. Então eu fazia essa divulgação aqui, e nos meus cursos eu comecei a aplicar o Greimas, as estruturas narrativas, o Todorov, etc. Mas eu nunca publiquei nenhum texto estruturalista de aplicação. Porque eu

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sempre achei que o estruturalismo tinha um valor didático, isto é, apenas preparatório para a crítica literária. Acho ainda. No secundário é que a literatura deveria ser ensinada no estilo do formalismo russo. Para mostrar “como é feito” o texto literário. Eu acho que jovens têm esse prazer de desmontar e remontar, e saber que um texto literário é feito, é um objeto, e que o sentido nasce do agenciamento daqueles elementos. Nas minhas aulas daquele tempo, eu tentei aplicar os esquemas actanciais do Greimas, e logo vi que não dava certo – e os meus ex-alunos estão aí para comprovar. Porque o esquema – nem sei se você chegou a ver algum dia os esquemas actanciais do Greimas – era assim um conjunto de quadrinhos, para encaixar o sujeito, o que ele desejava, quem era o adjuvante e o opositor, etc. E aí, como todo o estruturalismo da fase mais ortodoxa, funcionava perfeitamente bem para os textos da tradição popular, para os textos de comunicação de massa, para os textos mais estereotipados. Mas quando você pega um romance... Eu dava o Le rouge et le noir, por exemplo, nessa época. Então você põe o Julien Sorel no lugar do sujeito. Aí pergunta o que que ele deseja – o que ele deseja já é supercomplexo, não é?

Eu vi alguns textos com essa aplicação, mas soavam ridículos. É, fica ridículo porque, primeiro você pergunta: “O Julien Sorel”,

só para dar um exemplo, “o que é que ele quer? Ele quer se promover socialmente, casando com uma aristocrata rica”. Mas é claro que não era só isso. O objetivo dele era ser um herói, realizar o que Napoleão realizou, pelas formas possíveis no seu momento histórico, não é? E, no fim do romance, ele muda de objetivo. Então você não podia pôr um objetivo simples ali no quadrinho do objeto. Depois, quem era auxiliar dele nessa busca? Madame de Rênal? Mathilde? mas por outro lado, elas atrapalhavam, por isso e por aquilo. Quem que era o opositor? O pai dele, que não queria que ele estudasse, que ele lesse? Mas, também, por outro lado... Então tudo tinha o “por outro lado”, porque a grande literatura é muito complexa para aqueles quadrinhos, não é? E então eu fui abandonando rapidinho isso aí. E a minha desconfiança também se vê no fato de que eu publiquei uns poucos textos inspirados na análise estrutural da narrativa, mas guardei sempre os esquemas preparatórios na gaveta. E nunca fui também amiga de uma terminologia muito rebuscada. E isso talvez eu deva ao meu começo como jornalista cultural. Na década de 70 era bonito escrever dificílimo, inventar mil termos novos, inclusive o Barthes. E eu achava sempre aquelas palavras um pouco rebarbativas, um pouco pesadonas, então não usava essa terminologia. E também, ao mesmo tempo que eu me “estruturalizei”, eu já estava pós-estruturalista, porque eu freqüentava o grupo Tel Quel. Publiquei um artigo na revista Tel Quel sobre Fernando Pessoa, em 74, e já era sobre a questão do sujeito segundo Lacan, então já era pós-estruturalismo – só que

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eu não sabia que era, que viria a se chamar assim – publiquei esse texto em Tel Quel, e fui seguindo os seminários do Barthes, que foi abandonando a análise estrutural da narrativa, a semiologia... Fui seduzida totalmente pelo Barthes, acompanhando tudo isso, não é? Também nessa época eu já tinha lido Derrida. No começo do grupo Tel Quel, ele fez coisas fundamentais, já pós-estruturalistas. Ao mesmo tempo, o ensino dele era na École Normale Supérieure, e era supertradicional. Eu assisti a um curso inteiro do Derrida sobre a Poética de Aristóteles, preparação da Agrégation, era a coisa mais tradicional possível. Era assim: a Poética parágrafo por parágrafo, o que que Aristóteles queria dizer, os termos gregos, era uma coisa que não tinha nada a ver com A escrita e a diferença e a Gramatologia – ele não falava dessas coisas nas aulas. O que para mim foi ótimo, principalmente porque ele estava dando a Poética de Aristóteles – foi assim uma oportunidade única, não é? Meu livro Texto, crítica, escritura é o fruto principalmente desses dois anos e meio que eu passei em Paris, e da proximidade com essas pessoas. Publiquei também vários artigos na revista Poétique, que era dirigida por Todorov e Genette, de modo que eu não era mais apenas uma divulgadora estrangeira mas uma participante desses debates estruturalistas e pós-estruturalistas.

Adiante eu gostaria de voltar a esses temas. Mas antes – me faltam dados biográficos seus dos anos 60 – eu gostaria de saber se você atuou no Estadão apenas como colaboradora, ou se chegou a ser editora do Suplemento Cultural?

Não. Eu fui só colaboradora.

Uma questão que tem a ver com o que a gente conversava antes: o que significava ser de vanguarda nos anos 60? Ou então: era possível ser jovem e não ser de vanguarda nos anos 60?

É, nos anos 60 se falava da “nova vanguarda”, não é? Porque já se fazia a distinção entre as vanguardas históricas dos anos 20, e as novas vanguardas. Então o grupo concreto era de nova vanguarda, assim como o grupo Tel Quel, havia poetas italianos muito ativos da nova vanguarda, e tudo isso. Mas foram os últimos suspiros da idéia de vanguarda, não é? E aí houve a grande ruptura de 68. Eu estive em Paris poucos meses depois da revolução de maio, eu fui em dezembro de 68 para lá.

Pela primeira vez? Pela terceira vez. Eu já tinha ido antes, por conta própria, como

turista. Em 61, eu entrevistei o Butor, quando estava na fase do novo romance. Mas eu não fazia curso nem ficava muito tempo – ficava uma semana, quinze dias. Foi no fim de 68 que eu fui para ficar mais tempo. Naquele tempo,

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em Paris, as pessoas se comunicavam ainda muito por cartas. E tinha também uma coisa que não existe mais, que datava da primeira metade do século, que era o pneumatique, uma mensagem rápida, intermediária entre carta e telegrama, que se chamava assim porque passava por uns tubos pneumáticos, sei lá como. Então eu recebia uns pneumatiques pra marcar encontro, e eu tenho um pneumatique do Barthes, que foi o primeiro que ele me mandou, marcando encontro. Mas você estava falando de vanguarda, não é? Então: com a virada de cabeça total de 68, vanguarda já não tinha muito sentido para as pessoas mais jovens. Ninguém fazia questão de ter esse título. O que se queria era um mundo totalmente outro.

Pergunto isso porque a idéia de vanguarda estava em Tel Quel e também tinha tomado conta dos mass media na época. Virou uma coisa até popular.

Eu nunca pensei nesse assunto seriamente, mas eu acho que o termo vanguarda começa a declinar porque vanguarda sempre supõe uma retaguarda que está fazendo uma coisa, e tem uma vanguarda mais adiantada, não é? E o que se começou a produzir em torno de 68, e de 68 pra diante, não se colocava mais como algo se opondo na produção artística anterior, mas como algo totalmente diverso, que implicava não só o fazer artístico e literário, mas implicava a pessoa mesmo – todas as experiências com o próprio corpo. E a distinção também entre arte de elite e cultura de massas se desfez. Então, ficou tudo no mesmo plano: os Beatles, a contracultura toda, aqui no Brasil a poesia marginal, e a Tropicália, e tudo isso, não é? Mas é uma história muito comprida e muito complicada, que se fôssemos falar de tudo, não tinha fita que bastasse. Porque em 70 – você vê, tudo isso influi, porque você está querendo saber como que eu cheguei lá –, em 70 eu estava em Paris, e o Haroldo de Campos passou por lá – porque ele fazia os périplos dele pela Europa, contactos com todos os poetas e aquelas coisas dele – e aí ele ia à Itália, e da Itália ele ia para Londres, encontrar o Caetano e o Gil. E aí ele me convidou, se eu queria ir junto. E é claro que eu quis ir junto, não é? Então eu fui com o Haroldo. E aí, você imagina, era um clima assim incrível, anos incríveis. Porque na Itália, nós fomos a Milão, e lá o amigo dele era o Umberto Eco. E houve uma festa em homenagem ao Haroldo na casa do editor Feltrinelli, que estava foragido por ter explodido uma bomba numa torre de transmissão – porque o Feltrinelli era um terrorista de extrema-esquerda. Então ele morava num apartamento tipo palácio em Milão, porque ele era multimilionário, requintadíssimo. Eu não vi, portanto, o Feltrinelli, mas vi a mulher dele e toda aquela aristocracia milanesa chiquérrima, de super-nova vanguarda, semiológica, etc. E todos ouvindo “Irene rir”, do Caetano. De lá, nós fomos para Londres, visitar o próprio Caetano, que estava tristinho na época. E então houve uma grande

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noitada lá na casa dos baianos, o Caetano cantou as músicas londrinas que acabara de compor e o Haroldo contou, a pedidos, a história dos amores de Oswald de Andrade. Cada lance era recebido com aplausos. Depois eu voltei pra Paris porque eu tinha compromissos de pesquisa. Em 70 eu ainda estava terminando o meu Falência da crítica, o Lautréamont, eu precisava voltar a Paris para trabalhar na Biblioteca Nacional, e o Haroldo ficou em Londres. E aí o Haroldo sofreu um acidente de carro, fraturou a bacia, e passou um tempo hospedado lá, com os baianos cuidando dele e tocando música para ele. E daí essa relação de amizade que eles têm até hoje. Era uma época em que tudo era muito estimulante. Em 73, teve o 1o Congresso de Semiótica em Milão – porque o estruturalismo avançou em direção da semiologia, da semiótica, as duas tendências – e eu estive também lá, e lá estavam todas as estrelas: o Lacan estava presente, o Barthes, sem falar que foi organizado por Umberto Eco, não é? No meu livrinho sobre o Barthes, eu conto que encontrei o Barthes no meio da multidão do congresso, no meio do saguão, e aí eu disse: “Puxa vida, quem ia pensar que ia ficar uma coisa tão grande!”... Aí ele, com um ar entediado disse: “Vous voyez, tout ça!” – porque ele já estava saindo fora da semiologia e da semiótica, ele estava lá em presença mas já estava noutra, não é? Como ele escreveu depois: “a ciência veio, e ela era triste”.

Como você diz no posfácio à Aula dele, que ele fica impressionado com tantas notas tomadas em seus seminários – ele se pergunta, “por que isso? o que vão fazer com tudo isso?”...

É verdade... Mas então, foi isso, os anos 70 foi isso para mim [risos].

Você se engajou politicamente naquele período de maneira efetiva? Efetiva, no sentido de uma militância, não. Eu estive muito próxima

de pessoas que militaram de modo bastante perigoso, principalmente meu irmão, que era deputado e ficou muitos anos exilado. E eu era muito ligada, aqui em São Paulo, aos dominicanos. Eu freqüentava o convento dos dominicanos, que era um lugar de resistência. A missa do meio-dia, onde se diziam coisas que não podiam ser ditas fora – tanto é que acabou mal para alguns dos dominicanos depois. E vários amigos próximos, que foram interrogados pela Operação Bandeirantes aqui em São Paulo. Enfim, foram os anos de chumbo. O que eu fazia era dizer tudo o que eu pensava nas aulas, talvez com algum risco, porque alguns alunos, às vezes, me diziam lá na USP: “Cuidado, professora, cuidado que essa classe tem ouvidos!” Porque todas as classes tinham gente infiltrada, e eu nunca consegui saber quem era. Os próprios alunos me falavam para ter cuidado. Mas eu nunca fui incomodada, provavelmente porque eu não representava nenhum perigo, do ponto de vista político. E também porque – agora já é outro capítulo –

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eu sempre fui de esquerda, digamos, socialista, e sempre tive dúvidas com relação à União Soviética. Meu irmão era comunista, foi dirigente da UNE, foi à Tchecoslováquia e a Moscou quando era jovem. E eu discutia demais com ele porque, primeiro teve a invasão da Hungria – eu era muito jovem mas já achei aquilo muito ruim –, e depois foi a Tchecoslováquia, e em 68 eu já tinha condições de avaliar. Então, a invasão da Tchecoslováquia foi assim meu desgosto do estalinismo. Na mesma época – você vê que anos que foram! – em janeiro de 71, eu fui visitar meu irmão que estava exilado no Chile. E aí eu vi o Chile do Allende. O Chile do Allende era uma coisa maravilhosa, porque era – dizem os descrentes – a utopia realizada (por isso não durou muito, não é?). Porque era o socialismo com liberdade total de imprensa e de tudo. E aí, meu ideal político passou a ser o Chile do governo Allende. Uma esquerda democrática. Como toda a minha geração, e acho que as gerações seguintes também, sempre tive o maior respeito e admiração por Cuba, mas eu nunca fui muito castrista, por causa das restrições da liberdade, talvez necessárias, mas que me deixavam sempre com um pé atrás. Então, com relação a Cuba, eu sempre fui assim: faziam uma pregação totalmente pró-cubana, eu me opunha; se o grupo era ultra-reacionário, anti-Fidel e anti-Cuba, eu me tornava a mais pró-Cuba possível – porque realmente a gente tem de admirar e continuar admirando aquela ilhota, que ali na boca do gigante resiste até hoje. E todas as conquistas sociais no campo da saúde e da educação. Mas eu sempre tive o pé atrás com governos que têm censura e perseguição. E infelizmente Cuba teve, não é? Eu tinha amigos escritores, como o Severo Sarduy, que não podia voltar, por ser homossexual. E da União Soviética então nem se fala, porque na União Soviética nos anos 70... só continuava totalmente favorável à União Soviética quem quisesse fechar os olhos pra tudo que já se sabia do estalinismo e do goulag, não é?

Você foi sensível ao maoísmo em algum momento, como o próprio Barthes fugazmente?

Nem fugazmente, embora fosse muito próxima do grupo Tel Quel, nos anos 70 eu via com muito ceticismo aquela “chinesice” deles, porque era muito de fachada, e o livrinho vermelho do Mao nunca me seduziu.

O Barthes foi um pouco marcado pela China, não? Inclusive participou da famosa viagem para lá.

Mas ele não gostou quando ele foi, não é? Foi um escândalo: quando ele voltou, ele publicou um artigo que se chamava “La Chine est fade” – a China é sem graça – e saiu no Le Monde. E o Sollers ficou bravíssimo com ele. Ele achou a China muito militarizada, não se podia fazer nada sem ser acompanhado, tudo muito organizado e muito vigiado. Então ele só trouxe

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de lá umas roupas estilo Mao, mas não aderiu. Para voltar a minha modesta pessoa, a morte do Allende, em 73, foi o maior luto político da minha vida. E por isso tudo o que tem acontecido ultimamente com o Pinochet é algo que me emociona, porque eu vi o Chile do Allende, e eu vi o que aconteceu logo depois, porque eu estava em Paris, meu irmão tinha dado aula no Chile, e chegavam os que conseguiram escapar e passavam pela casa do meu irmão. Muitos morreram dos amigos que eu conheci no Chile, que eram do MIR, do movimento da esquerda revolucionária, da extrema esquerda, e alguns conseguiram se exilar em Paris, onde chegavam em péssimo estado. Assim como eu vira chegar, no Chile, alguns dos prisioneiros políticos brasileiros trocados por aquele embaixador seqüestrado. Então, um país que eu tenho no meu coração político é o Chile – muito mais do que Cuba.

No momento de auge do grupo Tel Quel, a Literatura era vista enquanto concepção idealista do mundo e a Escritura seria a prática materialista desejável, unindo Marx e Mallarmé...

E Freud...

E Freud, claro. Você ainda considera possível aquela “escuta política” de Mallarmé, segundo Roland Barthes? E a idéia de escritura enquanto “não-gênero” continuaria valendo como possibilidade?

Não, eu acho que a teoria da escritura foi um momento muito importante da crítica de um conceito idealista de literatura, mas querer chamar de escritura algo que seria totalmente novo, e até oposto à literatura, os próprios defensores dessa idéia foram abandonando, não é? Tanto é que o Barthes, na Aula, diz: “Eu vou usar indiferentemente escritura, texto ou literatura”. Porque, na verdade, aquilo de que trata meu livro Texto, crítica, escritura – que é a teoria da escritura – é simplesmente a escrita poética, no sentido de poiesis, independente de gênero, é a escrita poética da modernidade, com relação à concepção clássica da literatura. Então não havia necessidade de dar um novo nome – só havia uma necessidade tática naquela época, não é?

E, portanto, bastante datada. É, datado. Agora, eu acho que ainda tem utilidade a distinção

escrita e escritura, porque se a gente definir a escritura como a escrita poética moderna, então não é qualquer escrita que é escritura. E nós temos essa riqueza em português, como eu comento no posfácio da Aula. Há escritores que têm uma escrita muito bonita (que Barthes chama de estilo), mas que não é a escrita poética da modernidade. Mas isso também, essas fronteiras, também não acredito mais nelas. Não sei se você viu o meu livro Altas literaturas? Lá eu digo que havia uma contradição interna

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na teoria do Sollers, naquele “Programa” de Tel Quel. Ele queria conciliar a teoria da escritura com o marxismo revolucionário, ele tinha uma visão linear e progressista da história, e ele via, em determinado momento do fim do século XIX, uma ruptura, onde começaria a escritura. Mas havia aí uma contradição de base, porque a concepção de escritura era mais espacial do que temporal. E também a fusão de Marx com Freud era bastante difícil. E o que se viu, depois, foi a própria evolução política do grupo Tel Quel... – porque isso aí que você está me fazendo não é uma entrevista, é um verdadeiro testemunho geral político, literário... Eu me afastei do grupo Tel Quel – atualmente eu nem os vejo mais, apesar de ter sido muito amiga deles – por divergências éticas e políticas. Quando eu conheci o Sollers, logo depois de maio 68, ele era comunista. Todos os outros da esquerda francesa riam dele, porque era o momento em que muitos já eram maoístas, como se vê no filme “A Chinesa”, de Godard. Depois, nos anos 70, ele se tornou maoísta – Tel Quel lançou um manifesto, a China, tudo aquilo...

Tem inclusive uma edição En Chine da revista. É, e aí ficou tudo chinês, não é? É até engraçado porque, na época

em que eu frequentava o Sollers maoísta, meu irmão exilado dizia: “Cuidado com esses maoístas, porque são todos agentes da CIA!”. Com o tempo eu vi que esse alerta não era tão descabido como parecia. Porque quando o Allende foi assassinado, o Sollers não se comoveu a mínima; como maoísta, ele era sobretudo anti-soviético e caçoava do “camarada Allende”. E a China foi o primeiro país que reconheceu o governo Pinochet. Você vê que eu não podia ser maoísta, já que eu te disse que no cerne do meu coração político estava o Chile. Então a China reconheceu o Pinochet imediatamente, porque convinha a ela apoiar os inimigos de Moscou – a esquerda era portanto muito complexa.

Esse nó explica muitas posições da época, não é? É. E aí, logo em seguida, o que aconteceu com o grupo Tel Quel? O

grupo Tel Quel descobriu os Estados Unidos em absoluto deslumbramento.

Outra edição especial da revista... Aí houve o número sobre New York. Bom, eu já conhecia os Estados

Unidos, já tinha passado tempos lá, e, como latino-americana, a nossa visão dos Estados Unidos nunca pode ser idílica, não é? Nunca foi e não podia ser. E aí eu achei os telquelianos muito deslumbrados, quase ridículos. O Sollers me falava das maravilhas de New York, dos arranha-céus, que você estalava os dedos assim na rua e paravam três táxis... Eram coisas que até São Paulo [risos] já tinha na época. Aí eu percebi que Saint-Germain-des-Prés é uma aldeia, e que nós, latino-americanos, somos menos provincianos

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do que eles em muitas coisas. Eu ainda continuei vendo o Sollers até o começo dos anos 80, mas nossas conversas foram rareando. Acabou dando no pior, porque ele saiu da editora Seuil e começou a revista L’Infini. E no primeiro ou segundo número de L’Infini – acho que é naquele sobre New York, se você tiver dúvida, você vai ver – saiu um artigo da Kristeva em que ela diz que os Estados Unidos são Davi se defendendo do gigante Golias, que é o Terceiro Mundo grouillant à ses portes – grouillant é assim [emite um rosnado]. Aquilo meu deu um enjôo de estômago. Você já viu a inversão total? Os Estados Unidos é que estariam ameaçados pelo Terceiro Mundo...

Não seria antes uma provocação? Não sei, eu sei que era uma adesão total aos Estados Unidos como

salvador do mundo. E aí eu não suportei mais aquilo. O último encontro que eu tive com o Sollers terminou mal, porque ele me perguntou: “Quando você me dá um artigo para L’Infini?” E aí eu respondi: “O infinito me dá vertigem”... E como as nossas conversas sobre política estavam já azedando, ele não gostou, porque ele viu que eu tinha restrições às posições políticas de L’Infini, e também porque, na imensa pretensão dele, de estar lá no centro intelectual do mundo, ele achava que estava fazendo o grande favor de pedir um artigo a uma brasileira e ainda levava uma recusa. Porque a América Latina não interessava a mínima pra eles, a América Latina era assim, nada! Muito diferente do Barthes, que sempre foi interessado na política dos países latino-americanos, e solidário com os exilados. E aí eu me afastei do Sollers, do grupo Tel Quel, e eles provavelmente não sentiram a menor falta de mim. A partir de L’Infini e depois de Femmes também. Porque, nos anos 70, o Sollers me dizia: “Espere dez anos e todos estarão reconhecendo a literatura que eu faço”, que era Paradis, aquela literatura experimental de tipo joyceano que ele fazia então. E, de repente, ele cansou de esperar e resolveu escrever um best-seller com personagens da época. Um deles era o Barthes, que tinha morrido há pouco, e que ele retratava de modo impiedoso. Ora, o Barthes adorava, simplesmente, o Sollers. O Sollers era como um filho, para ele. Ele desculpava qualquer coisa que o Sollers fizesse...

Até o fim? Até o fim, até o fim. No último encontro que eu tive com ele, em

79, eu disse: “Mas o Sollers está fazendo isso, está fazendo aquilo, como é que pode?”. E ele disse: “Ah, Philippe est très imprudent”. Porque o Barthes nunca falava mal de ninguém, muito menos de pessoas de quem ele gostava. Então o adjetivo máximo que ele usava era “imprudente”. “Philippe é muito imprudente”. Até o fim ele adorou o Sollers e a Kristeva, que ficaram junto dele no hospital até o último momento. E aí o Sollers escreve Femmes, e

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trata a personagem de Barthes com distanciamento, como um velho homossexual patético e um pouco ridículo. E eu ainda fui pedir contas a ele. Eu perguntei: “Como é que você trata o Roland daquele jeito no livro?” E ele respondeu: “Minha cara, você é muito psicológica. Um escritor diz sempre a verdade”. Mas não era só essa coisa do Barthes, é que Femmes é muito má literatura, não é? E depois de Femmes continuou no mesmo estilo. Aliás, eu soube por pessoas do mundo editorial francês, que os livros do Sollers só são lidos na França. Ele é pouco traduzido fora. Na França ele continua tendo um poder editorial e midiático considerável. Porque ele é muito inteligente, muito culto, muito sedutor, ele é cheio de qualidades – mas não é uma pessoa fiável. Tel Quel teve um papel muito importante no pós-estruturalismo, porque o Sollers teve a inteligência de chamar para junto deles o Foucault, o Derrida, o Barthes... Mas o Derrida, pelas mesmas razões éticas e políticas, também se afastou deles nos anos 80, e foi caricaturizado maldosamente por Kristeva em seu romance Les Samouraïs (que faz par com o Femmes do marido).

Interessante isso que você falava antes a respeito do desdém pela América Latina, porque o grupo Tel Quel tem uma influência na Argentina, no Brasil, isso é notório. É claro que é recebido com ceticismo também, em função talvez dessa figura histriônica do Sollers. Mas, pelo que você estava falando, a América Latina não existia...

Não era bem um desdém, era um desinteresse pela América Latina. Porque os interesses deles primeiro se concentraram na China, e depois se deslocaram para os Estados Unidos, onde a Kristeva teve e tem um enorme sucesso. Com relação à América Latina, eu sempre senti assim um desinteresse. Tanto é que o único escritor latino-americano que o Sollers prezava era o Severo Sarduy, mas o Severo já era ultraparisiense.

Haveria outra exceção, que seria Borges... É, mas o Borges já não era considerado como latino-americano. O

Borges sempre foi absorvido não como argentino, mas como um “escritor europeu no exílio”, como ele próprio se definiu, uma vez.

Embora profundamente argentino também. Sim, também acho. Mas, por exemplo, Tel Quel nunca se interessou

por Cortázar. Nem se conheciam. Ou, se conheciam, não se interessavam.

A única menção que eu conheço do Cortázar a Tel Quel aparece num dos seus almanaques, em que ele faz um trocadilho com o título da revista – ele fala: Quel Sel!

É porque o Cortázar era profundamente engajado, e sério no

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engajamento político. Sollers não se interessou nem pelo Cortázar, nem pelo boom da literatura latino-americana. García Márquez, nada disso passou por Tel Quel. Apesar dos convites, eles nunca tiveram muita vontade de vir, nem ao Brasil, nem, que eu saiba, à Argentina.

Tentando tratar de entender as posições políticas do grupo, que você abordava há pouco, eu gostaria de perguntar ainda: a que você acha que se deveu a “supervalorização do momento revolucionário” do Philippe Sollers dos anos 60-70? Voluntarismo, ingenuidade, modismo?

Ingenuidade, não.

Oportunismo? Eu diria oportunismo, porque ele pegou carona na revolução de

Maio, não é?

Mesmo não aderindo no momento. Por isso que eu estou dizendo: ele pegou carona posteriormente.

O que chama a atenção é a estridência: foi estridentemente marxista e...

Ah, mas ele é sempre estridentemente alguma coisa, não é? Mas você não acha que já falamos demais de Sollers?

Uma das coisas que eu lembro do Altas literaturas é que você elogiava o artigo dele sobre Mallarmé, “Littérature et totalité”.

É, o do Mallarmé é o que eu gosto mais. E o do Joyce também é muito bonito.

Em “Littérature et totalité” ele propunha a reunião do poeta e do proletário...

É, nesse filão ele estava certo. Você antes perguntou se é possível uma leitura política do Mallarmé. Não só é possível, como ela está feita, por alguém que sempre foi militante de esquerda, o Jacques Rancière. Rancière escreveu um livro que é uma leitura política do Mallarmé. Política no sentido largo, não no sentido da defesa de uma posição política particular. Mallarmé participava daquela utopia moderna – você sabe que eu não conoto negativamente essa palavra, porque utopia é imaginar o que pode ser, o que é sempre necessário para não cairmos num conformismo – de oferecer o “biscoito fino” da poesia para todos. A concepção que ele tem da linguagem como moeda que se gasta, e toda a crítica que ele faz ao economicismo, permite uma leitura política, não é? E quando ele se refere ao proletariado, ele diz “infelizmente, esses não me lerão”.

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Texto, crítica, escritura foi reeditado em 1993. De que modo você enxerga, hoje, as idéias-força emitidas nesse trabalho da década de 70? O livro sofreu alterações para sua reedição?

Não, nenhuma. Quando eu vi já estava reeditado, a Ática me comunicou que tinha sido reeditado. Mas eu não modificaria, porque eu acho que as coisas que a gente escreve têm data, é o que a gente pensava naquele momento. E também não renego, de modo algum. Visto agora à distância, eu acho que há uma confiança excessiva nessa teoria da escritura, que depois eu não perdi mas nuancei, como eu te disse. Para mim, hoje, a escritura é apenas a escrita poética da modernidade.

Eu coloquei a pergunta porque achei que a reedição teria sido um projeto seu.

Não, foi porque esgotou e a editora quis reeditar. É um livro que continua sendo muito utilizado universitariamente. Eu não tenho o hábito de reler os meus livros, e até já me lembro mal do que eu digo em Texto, crítica, escritura. Mas acho que não mudaria nada. No fim do Falência da crítica, por exemplo, tem algo que eu não diria mais. Eu digo que tudo caminha para a escritura, que a crítica não existirá mais, coisas assim. Agora eu acho que foi um arroubo [risos] que eu tive, na época, ou de época. O fim de Falência da crítica me parece mais datado do que Texto, crítica, escritura. Porque Texto, crítica, escritura questiona a concepção idealista de literatura, o logocentrismo, o sujeito psicológico, trata da intertextualidade... São coisas que eu pus em prática no meu livro sobre Pessoa, por exemplo. É um livro de crítica esteado naquela teoria. Eu não mudei muito com relação a ela, só que eu acho que no novo contexto que a gente está vivendo agora, há um interesse tático em recuperar a palavra literatura de um modo amplo – não uma literatura mumificada, escrita com L maiúsculo, essencializada, desistoricizada, absolutamente não. Quem passou por Texto, crítica, escritura não pode mais acreditar nisso, não é? Mas eu acho que, taticamente, convém recuperar a literatura, porque seu ensino está ameaçado. Os “estudos culturais”, resultado do pós-estruturalismo nos Estados Unidos, deixam de lado as qualidades específicas do texto literário, então acho que atualmente convém recuperar a palavra literatura, com minúscula e com toda a sua contextualização conforme a literatura de que se está falando.

Ricardo Piglia afirmou a uma revista brasileira que um intelectual como Roland Barthes já não teria mais o lugar central que lhe era concedido nos anos 70. Você concorda que houve exagero na avaliação de sua figura e de sua influência?

Acho que há um grande problema com relação ao Barthes: é que

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muita gente que se refere ao Barthes, leu um, dois livros do Barthes. E como Barthes sistematicamente mudou de lugar – quando algo se tornava a doxa ele ia para o paradoxo... Então, alguns que leram Elementos de semiologia continuam falando mal do Barthes, como se o Barthes tivesse parado lá. Ele não foi abandonado pelos discípulos, ele abandonou os discípulos [risos]. E ele fala disso, da tática do déplacement para não ser pego no estereótipo, na doxa, etc. Então, acho que muita coisa que se diz, declarações assim como a do Piglia, eu não sei no caso dele, se baseiam num determinado Barthes que não é o último. E eu acho pessoalmente que a Aula é um texto de extrema atualidade. Ela foi profética de muita coisa que ia acontecer, porque ele foi dos primeiros a dizer que o terreno literário estava desertado, quando em 77 ninguém achava isso. Ele diz com ironia: “Está um terreno vazio, a literatura. Et, bien, c’est le moment d’y aller”. Já que está desertado, vamos ocupá-lo. E define a literatura como revolução permanente da linguagem, e tudo aquilo. Aí, como sempre, ele estava decepcionando muita gente que o tomava por guia. O Barthes nunca foi um teórico que oferecesse modelos aplicáveis, não é? E então “barthesianismo” não pode dar noutra coisa senão bobagem. Porque, ou dá a fixação numa das etapas que ele posteriormente abandonou, ou dá – o que felizmente não deu aqui por razões de língua –, num epigonismo de escrever à la Barthes, o que é muito chato, porque o estilo Barthes é dele, e repetido já não tem a menor graça. Então eu acho que o Barthes, como inspirador de uma postura diante da literatura, ele está plenamente vivo e atual. Aliás, esse ano, vigésimo aniversário da morte dele, saíram duas páginas no Le Monde des Livres, anunciando colóquios e exposições sobre ele, em várias partes do mundo. Quando um escritor morre, principalmente um teórico, durante uma década ou duas ele fica numa espécie de purgatório. Mas eu acho que o Barthes não está de modo algum esquecido, e o que ele diz na última fase está totalmente vivo. Na Aula, não só ele prevê um possível fim da literatura, no sentido em que se conheceu a literatura antes, mas ele diz: “É preciso agir como se ela fosse soberana e imortal”. A descrença dele nos grupos “libertários”, que ele exprime lá, é quase que uma pré-descrição do que aconteceu depois nos Estados Unidos com as chamadas “minorias”. Ele diz, falando de maio de 68: “Eu vi os grupos em nome da liberdade oprimirem-se uns aos outros, e usando o discurso do poder”. Então acho que isso está plenamente realizado, porque cada grupo, feminista, gay, etc., embora defenda causas justas, usa um discurso de poder que é terrível, não é? Nos Estados Unidos, o das feministas se tornou um discurso de poder censório, autoritário e exclusivista. Uma coisa assim assustadora. As feministas do Brasil não gostam muito de mim porque eu sou, segundo elas, tributária de uma estética patriarcal. Então eu brinco que, se a estética tem sexo, então a ontologia também devia ter, não é? Todos os ramos da filosofia seriam assim sexuados.

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Você poderia sintetizar o significado do livro dividido com Emir Rodríguez Monegal, Lautréamont austral, e o que pensa a França da “vertente austral”?

Agora é que nós vamos ver o que eles pensam, porque até agora os editores franceses estavam de pé atrás. O livro foi escrito em 82, e desde que o Monegal morreu, em 83, eu tive uma certa dificuldade, eu fiquei com esse livro como uma herança pesada, porque eu tinha de publicá-lo sem o auxílio do Monegal, que era alguém muito bem relacionado no campo editorial de todos os países. E já foi difícil no domínio hispano-americano, porque o artigo que deu origem ao livro foi publicado na Vuelta, do Octavio Paz. O Octavio Paz tinha um enorme interesse por esse trabalho, que o tocava duplamente – o Lautréamont sempre foi uma paixão dele, pelas origens surrealistas do Paz, e segundo porque ele era muito amigo do Monegal. E eu tive ocasião de conversar com ele sobre isso aqui em São Paulo. A promessa do Octavio Paz era de publicação do Lautréamont austral nas edições Vuelta, mas depois da morte do Monegal e do Nobel, o Paz ficou pairando numas alturas nobelianas, com outros afazeres. Ele se afastou das edições Vuelta, que não me davam resposta, e o livro acabou sendo publicado no Uruguai pelas Ediciones Brecha. E o livro teve outros percalços no mundo hispano-americano, porque o Monegal não era bem-visto pela esquerda hispano-americana, por causa de toda a história, muito mal-contada, da revista Mundo Nuevo. Era até um dos projetos do Monegal esclarecer essa história. Ele começou a escrever suas Memórias, que teriam um segundo volume em que ele ia contar a história de Mundo Nuevo, mas infelizmente ele morreu antes. Tudo porque a Mundo Nuevo era financiada pelos Estados Unidos, como o Cebrap aqui, como tanta coisa no mundo.

E por isso ele foi demonizado. Ele foi demonizado também pelo fato de ter ficado ensinando nos

Estados Unidos. Na verdade, para simplificar as coisas, o Monegal não era um marxista, e ele tinha o direito de ser outra coisa – ele era um liberal, um democrata liberal, de centro, digamos, num período em que era quase que obrigatório ser de esquerda na América Latina. Então, pessoalmente, eu muitas vezes nas conversas discordava dele. Ele era anticubano, por exemplo. Assim, o Monegal era uma das pessoas com quem eu me transformava numa castrista entusiasta, para fazer o contraponto do anticastrismo. Ele era amigo de todos os anticastristas, do Cabrera Infante, do Severo e de muitos outros. Por isso ele foi demonizado, é boa a palavra, no mundo hispano-americano, houve aquela cisão uruguaia entre ele e o Ángel Rama, que era o bem-pensante, enquanto o Monegal era “o agente da CIA”. Na verdade, o Monegal era também muito mal visto pelos militares uruguaios, porque ele tinha uma filha tupamara, que se exilou na Suécia. O governo uruguaio

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negava sistematicamente os vistos de que ele precisava em seu passaporte. Então, ele era profundamente contra as ditaduras militares, só podia ser. Mas são as complicações, não é? – você está me fazendo reviver os anos 60, 70, e a história do Monegal também faz parte dessa época. Umas editoras para quem os amigos do Monegal me aconselharam a mandar o livro, na Espanha e na Argentina, me responderam quase malcriadamente que não publicavam livros do Monegal, por razões políticas.

Isso ainda nos anos 80. Isso nos anos 80, até 90. E aí foi publicado no Uruguai, e ironicamente

em Brecha, que era um jornal de esquerda! Mas eles tiveram essa grandeza de publicar o livro do Monegal. Aí começou minha batalha para publicar em francês. Eu tenho uma coleção de cartas de editores franceses, que são verdadeiras jóias. Porque elas são quase raivosas, por outras razões. Os leitores das editoras diziam que “esta hipótese de que o Isidore Ducasse fosse bilíngüe é muito frágil”. Ora, não é uma hipótese, existe o texto escrito por ele em espanhol... Depois, é mais do que óbvio: ele passou dois terços da sua vida no Uruguai! Ia falar que língua, além do francês? E nosso livro não diz que ele não é um escritor francês – ele é um escritor francês, ele escolheu a língua francesa, ele viveu num ambiente francês, foi educado num ambiente francês. É um escritor francês – mas não é um francês pleno, o que explica muitas das esquisitices dele, inclusive erros de francês que são espanholismos, como Monegal e eu mostramos. Mas foi recusado por várias editoras na França, por uma espécie de patriotismo francês quase que inesperado nos dias de hoje. Estava claro que eles pensavam: “Vocês estão querendo tirar o Lautréamont de nós!”.

Quem vai acabar publicando o livro? Finalmente, quando eu já estava até desistindo, a editora

L’Harmattan, numa coleção dirigida por um historiador especialista em América Latina, Denis Rolland, que não tem absolutamente esse preconceito de que o Lautréamont é nosso, francês, nada dessas patriotadas. Ele disse: “Imagina!, esse livro precisa ser publicado”. Outros franceses também pensavam assim, entre eles o Marcelin Pleynet, do ex-grupo Tel Quel, e autor de um livro fundamental sobre Lautréamont, que é o Lautréamont par lui-même. Marcelin Pleynet me dizia que a única pessoa que publicaria esse livro na França seria o Sollers – só que o Sollers não publicaria mais livro meu [risos].

Então você nem o contatou a esse respeito. Claro, não tinha mais sentido.

Não, não dava mais, não tinha sentido. Mas o Pleynet fez o que

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pôde. Na revista L’Infini, onde ele tem uma espécie de crônica, ele referiu o Lautreámont austral como um livro passionant sobre Isidore Ducasse, e estranhava que os editores franceses não o publicassem. Quer dizer, ele deu uma força. E agora vai sair pela L’Harmattan. Quando saírem algumas críticas, se saírem, a gente vai ver como os franceses vão receber, não é?

Sobre Haroldo de Campos, de que modo poderíamos relacioná-lo, nos anos 60/70, com as pautas telquelianas?

Não só telquelianas. O Haroldo esteve sempre em toda parte, antes de todo mundo – eu digo antes dos universitários porque ele não era universitário na época. Ele tinha conhecimento do formalismo russo, tinha contatos antes de mim com o grupo Tel Quel, com o grupo Change. Aliás, ele ficou mais próximo do Change, do Jean-Pierre Faye, do que do Sollers. Foi o primeiro que entrou em contacto com o Todorov, com a Kristeva, com todo mundo. Em compensação, fui eu que o apresentei ao Barthes, num encontro memorável no café L’Atrium. Por um breve período, ele foi bem afinado com o grupo Tel Quel, porque o Sollers tinha aquela escrita de tipo joyceano, que era a mesma que interessava ao Haroldo, o mesmo paideuma, como eu mostro em Altas literaturas – Homero, Dante, Mallarmé, Joyce... E o Sollers sempre foi leitor do Pound também. Então eles tinham muitas afinidades, mas o Haroldo também acabou se afastando do Sollers. Aqui no Brasil, o Haroldo teve um papel importante na difusão do formalismo russo e do estruturalismo. Primeiro, ele apoiava muito os professores universitários que iam por esse caminho, e depois ele foi ser professor na PUC. Mas a referência dele teórica era principalmente o Jákobson. E ele sempre foi um admirador do Barthes, sobre o qual escreveu. O percurso universitário dele tem até algumas semelhanças com o percurso do Barthes, no sentido de que ele também se cansou do estruturalismo (que, segundo ele, se transformou em “terapia ocupacional” de professores pouco inspirados), e até mesmo da semiótica. O curso da PUC aqui de São Paulo foi criado pela Lucrécia Ferrara e por mim, como teoria literária; depois que eu saí de lá, se transformou em semiótica, por influência do Décio Pignatari. O Haroldo continuou fazendo as coisas dele lá na PUC. Chegou num ponto que ele disse: “Eu sou professor de literatura, não sou professor de semiótica”. Então, cordialmente ele também se afastou desse tipo de ensino puramente semiótico.

O que você pensa da idéia de ficção crítica ou ficção teórica, marcante no trabalho de diversos críticos e escritores atuais?

Me interessa muito, mas de quem você está falando, em particular?

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Eu poderia citar o próprio Piglia, e também o Silviano Santiago. Eu acho que depende de cada realização, mas... que o gênero é

muito rico, eu acho que é.

Por falar em Silviano Santiago, quanto à noção de entre-lugar, como você a entende? Ela segue surtindo efeitos, ela é produtiva, a seu ver?

Eu acho que sim. Eu não tenho presente na memória esse texto do Silviano, mas eu acho que a idéia continua sendo muito fértil.

Essa questão me interessa porque a idéia do entre-lugar é o que eu imagino que eu esteja trabalhando – essa idéia de pertencermos a ambas culturas, de misturar barbárie com civilização...

O Lautréamont, nesse sentido, é um representante do entre-lugar, não é?

E Borges também: em que medida, para você, Borges poderia ser o modelo do escritor do século XXI, assim como Mallarmé seria o modelo de poeta desse século?

Não sei. Mas a minha visão pessoal é de que o Borges não pode ser modelo de nada. É muito diferente do Mallarmé, porque o Mallarmé se transformou em modelo da modernidade por toda uma postura diante da literatura, aquela coisa do sacerdócio do poeta, a despersonalização e toda a dispersão sintática, etc., que abriu caminhos para a poesia moderna – caminhos que não são a repetição de Mallarmé, mas que são caminhos férteis, não é? E o Borges eu vejo um pouco como aquilo que eu dizia do Barthes – eu acho que o “borgismo” só pode dar em epigonismo. Ele é muito único, não é? É muito grande, e muito único. Eu não sei se se podem tirar muitas lições de escrita do Borges.

Mas para os próprios telquelistas ele foi um modelo, no sentido da valorização do leitor, por exemplo, e para os franceses nos anos 60 também, não?

Acho que houve mais uma coincidência de colocações de Borges com coisas que os teóricos da época diziam. O fato do Foucault ter começado As palavras e as coisas com aquela citação, por exemplo. Mas, na verdade, se você vai ver bem a teoria do Borges, ela não é nem moderna. O Borges é um idealista assumido, não é? O Borges é um clássico com ousadias temáticas e, sobretudo, com uma dicção única. Então a gente pode ver ecos do Borges nos escritores atuais, mas eu acho que lições mesmo não, porque... não vejo como. O Pierre Menard, por exemplo, é uma coincidência explicável pelas leituras européias dele também, leituras inglesas e francesas. Só que ele chegou mais depressa e transformou aquilo em ficção. E aquilo

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tem um valor teórico também, sobre a leitura. Mas é curioso, porque eu veria o Borges muito mais perto do Barthes do que do Mallarmé, porque como teórico e como crítico ele afirma sempre o prazer acima de tudo, a individualidade. O paideuma dele contém as coisas mais disparatadas, não é? As coisas da infância, as coisas da Argentina, escritores menores ingleses que ele adorava... Ele é assumidamente individualista nas suas escolhas.

Você, tradutora de Roland Barthes, segue com a tarefa da tradução, conforme a saída de Haroldo de Campos, apontada no final de Altas literaturas?

Não. A última tradução que eu fiz foi a Aula do Barthes, e já faz tempo, já faz vinte anos. Depois, não. Fiz uma pequena aventura de tradução, um texto do Beckett que saiu na Folha, não sei se você viu. Uma peça curta do Beckett que é “O improviso de Ohio”, uma peça maravilhosa. Saiu há uns dois anos atrás. Mas aí foi um lance de paixão por esse texto, eu tenho paixão pelo Beckett em geral. Mas aquele texto me pareceu particularmente apaixonante pelo fato de existir uma versão inglesa e uma versão francesa do próprio, o que nem sempre é o caso. Em geral, o que ele escreveu em francês foi traduzido em inglês por outra pessoa, e vice-versa. Mas nesse caso, ele escreveu pessoalmente as duas versões. E fazer uma tradução-crítica para o português que levasse em conta as duas versões, em inglês e em francês, era um desafio. Mas eu não tenho a tradução em geral como projeto. Acho que o tradutor tem de ter um talento de escritor que eu não pretendo ter – eu nunca pretendi fazer obra de ficção ou de poesia.

Embora as traduções de Barthes sejam supercuidadas. Claro, com alguma sensibilidade pela linguagem, pela escrita

poética, e com o bom conhecimento de uma língua, você pode fazer coisas respeitáveis, digamos. Mas eu nunca teria o projeto... Quer dizer, “nunca teria” a gente nunca deve dizer, porque de repente fico mais velha e resolvo ser tradutora de coisas incríveis [risos], “operação tradutória”, como diz o Haroldo, não é? Mas, assim, esse tipo de coisas que o Haroldo continua traduzindo, como a Ilíada, não. Acho que o meu caminho é teórico-crítico. Eu gosto de escrever teoria, gosto de pegar um grande texto literário e escrever um ensaio sobre ele – essa é que é a minha.

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Silviano SantiagoRio, 18 de maio de 2000

Gostaria de ouvi-lo, para começo de conversa, sobre seus anos de formação. Que caminhos o conduzem à literatura? O crítico e o ficcionista vão se fazendo simultaneamente?

Durante as minhas leituras de Gide, eu encontrei um crítico chamado Charles du Bos, hoje não tão conhecido, que fazia uma distinção muito bonita a seu respeito: a diferença entre complexo e complicado. Ele diz que Gide é complicado, porque a etimologia de complicado vem do verbo dobrar, quer dizer, são pessoas cheias de dobras. Então eu nunca diria que tive uma formação complexa, eu tive uma formação cheia de dobras. E se vou até a cidade interiorana onde nasci, e talvez seja importante passar rápido sobre isso, Formiga era uma cidade de 30 mil habitantes, mais ou menos, em Minas Gerais. Na época, de Formiga até Belo Horizonte, a capital, eram dez horas de carro – as estradas eram muito ruins. Mas já em Formiga eu me interessei muito por cinema e por revista em quadrinho. Então, apesar de estar numa cidade perdida no mundo, eu tive sem querer uma formação cosmopolita. Eu estava a par de tudo o que estava acontecendo no mundo – é claro, numa determinada visão ideológica, mas estava a par. Quer dizer, o cinema da época tratava muito da questão da guerra, da questão das grandes divisões ideológicas do mundo. E também o gibi, com os personagens Tocha Humana, Super-Homem, essas coisas todas. Então isso é um dado que acho muito importante na minha formação: apesar de estar lá naquele interior brabo, eu tinha já uma cabeça meio viajante. E o segundo dado é que quando vou para Belo Horizonte com dez anos de idade – e sofro bastante nessa mudança –, aos 16 eu já me misturo a um grupo bastante eclético que girava em torno do Clube de Cinema e que portanto congregava todo tipo de gente. Os meus melhores amigos eram ou críticos de arte ou críticos de cinema, é claro. Críticos de arte, escritores, pintores, homens de teatro, atores, etcétera. Quer dizer, eu convivi com isso de uma maneira muito natural, sem ser uma “forçação de barra” teórica. Era uma vida bastante boêmia, eu diria. E o terceiro ponto, se sigo mais ou menos uma cronologia, é quando eu decido realmente abandonar, ponhamos, o visual, o cinema em particular, e me adentrar pela literatura, que é quando eu faço uma opção pela literatura francesa. E essa opção foi muito pragmática porque era o meu desejo de sair do Brasil.

Você começa a publicar sobre cinema, não é? Meus primeiros trabalhos foram sobre cinema. Fiz parte da Revista

de Cinema, e fiz um ensaio, juntamente com Maurício Gomes Leite, que na época causou grande escândalo – era a época do neo-realismo italiano e

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nós fizemos um ensaio enorme sobre o filme musical... [risos]. Então todo o mundo começa a te chamar de alienado, essas coisas assim. Mas foi engraçado, esse período meu cinematográfico foi muito engraçado. E esse seria o terceiro período, quer dizer, de novo, você vê, são dobras – nunca é uma coisa complexa, porque eu não seria capaz de definir aquilo como um ambiente, é muito mais uma questão de dobras. É quando eu venho para o Rio com uma bolsa de estudos da Capes, para me aperfeiçoar em literatura francesa – e aí acho que é um momento bastante definitivo. É quando eu encontro o Alexandre Eulálio: ele me passa um manuscrito inédito de Gide, que vai ser, futuramente, parte da minha tese. E depois eu tenho um professor excelente de francês, Georges Rayard, que é crítico de arte, professor de literatura, autor de um livro sobre Miró, também publicado no Brasil. Rayard foi sensacional porque ele tinha uma bibliografia superatual – nos passou Barthes, nouveau roman e tudo isso. Então eu estava já em 1961 bastante a par do que havia de mais interessante na cena parisiense na época. E, ao mesmo tempo, em virtude de ter feito Letras de uma maneira regular, eu tinha uma boa visão da tradição propriamente dita francesa. Isso foi importantíssimo, tanto que quando eu chego a Paris – sem querer ser esnobe –, devo dizer que não levei susto nenhum, quer dizer, eu passava pelas bibliotecas, livrarias, etc., e estava tudo mais ou menos conhecido. O que realmente foi o grande impacto parisiense, para dizer a verdade, foram os museus, uma coisa que não havia no Brasil. Eu tinha uma visão totalmente literária de pintura, escultura, de arte, em suma. E, de repente, o impacto do Louvre e do Jeu de Paume e de outros museus e de catedrais – isso foi um impacto terrível. Mas, no ponto de vista de livro, não houve. Assim como, mais tarde, quando fui para os Estados Unidos, eu também não senti muito impacto na minha chegada, a não ser pela alta qualidade das bibliotecas, que foi o que me fascinou. Não estou querendo ser de maneira nenhuma esnobe, mas é que eu, por sorte, por mexer com cinema, ser amigo de pessoas que fazem artes plásticas, teatro, etc., eu estava bastante a par do que estava sendo feito lá fora. E então Paris foi um retorno do visual, vi muito filme, e continuei fazendo minha tese. Agora, o terceiro momento, ou o quarto, ou o quinto, que vai ser extremamente importante – depois de ter ido para os Estados Unidos e ter trabalhado como professor de literatura brasileira, portuguesa, e dado e preparado mil cursos –, eu termino minha tese de doutorado em 1968 e passo a ser candidato a um posto em literatura francesa, e sou contratado pela State University of New York at Buffalo. E aí então minha vida mudou demais de novo, porque, em lugar de estar lendo Foucault, Kristeva ou Derrida, ou o que seja, eu convivi com essas pessoas. É claro, foram dias, não meses ou anos, mas dias e às vezes semanas. Eu convivia e discutia com essas pessoas. Então foi um período muito rico.

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E paro por aqui: acho que é isso que eu chamaria minha formação, iria até o momento de New York at Buffalo, que vai de 1969 até fim de 73.

Gostaria de tocar na questão de sua ligação com a chamada Nova Esquerda. Você teve uma ligação intensa com grupos radicais?

Sim, mas na medida em que eu era estrangeiro, não é? E na medida em que estava dentro do establishment universitário, e havia demandas muito fortes dos grupos minoritários. Essas demandas vinham sobretudo do lado dos Black Panthers e do lado dos Young Lords, que eram os portorriquenhos. Eram dois grupos ativistas muito violentos, e eles desejavam que a universidade fosse aberta não só ao negro como às questões negras e à visão em suma cultural, à visão de mundo do negro e, no caso, do latino. Nesse sentido, eu servi muito de elemento de liaison entre o establishment e esses grupos, na medida em que o establishment norte-americano não estava preparado para dialogar com essas pessoas. Dou um exemplo muito concreto: o responsável por Arts and Letters de Buffalo era John P. Sullivan, um inglês especialista em Pound e os gregos que tinha se tornado meu amigo e que começa a receber em seu escritório os pretos e os portorriquenhos, querendo que se abrisse o que seria mais tarde o Black Studies Center e o Puerto Rican Studies Center. E ele ficava meio atordoado porque era um britânico nos Estados Unidos que não sabia absolutamente nada da história norte-americana, e de repente encarava esse confronto violento. Em Buffalo, por exemplo, várias vezes a polícia entrou no campus e soltou bombas – inclusive houve uma parte que foi dinamitada pelos terroristas. Quer dizer, era um campus muito quente. E, nesse sentido, ele ficava perdido e me pediu ajuda, para explicar o que estava acontecendo. Mas participar mesmo dos movimentos, eu não participei. Mas dentro dessas negociações, por exemplo, uma das coisas boas que fiz lá foi exatamente um contrato com Abdias do Nascimento, que foi trabalhar no Puerto Rican Studies Center. Esse contrato nunca teria havido se, por acaso, eu não soubesse que o Abdias estava em Nova York, desempregado, e eu achei uma maneira de encaixá-lo numa função que ele desempenhou maravilhosamente bem, porque ele é um homem extraordinário. Ele fez maravilhosamente bem o trabalho dele – e eu fui apenas o fosforozinho que acendeu a chama. Também levamos a Buffalo o “Arena canta Zumbi”, aí juntamente com outro brasileiro que também estava lá, o Ubiratan d’Ambrosio, um professor de matemática. E eu consegui uma exposição do Hélio Oiticica na Allbright Knox Gallery. E assim por diante. O Glauber Rocha também foi levado para lá, mostrou todos os filmes, falou com todo mundo, foi um sucesso. Tudo nesse campus graças a eu ter extrapolado um pouco a condição em primeiro lugar de brasileiro, em segundo lugar de professor de literatura brasileira, em terceiro lugar até mesmo de professor de literatura

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francesa. Quer dizer, eu virei o que posteriormente se chamou, talvez, um animador cultural do Terceiro Mundo.

Nesse período, até 1974, você costumava vir ao Brasil? Porque continuam saindo publicações suas por aqui.

Eu vinha, mas não tanto, eu fico muito silencioso, não é? Eu fico silencioso no Brasil depois de 1961 a 69, 70, que é quando eu publico nas revistas norte-americanas. Aquele ensaio sobre Camões e Drummond, o ensaio sobre Iracema, o ensaio sobre O Ateneu. E publico muito coisa que eu nunca guardei, resenhas e coisas assim. Também estava escrevendo um livro de contos, O banquete, e um livro de poemas, Salto, que foram publicados em 1969, 70. E tinha um livro antigo, bem nouveau roman, O olhar, que eu tinha escrito em 62 e que eu revi em 73 – mas é um livro de 62, já muito influenciado por esse professor Georges Rayard e essa visão de nouveau roman, Robbe-Grillet e Marguerite Duras. E Nathalie Sarraute, de quem eu gostava muito também. Quer dizer, já muito influenciado.

Em relação à Nova Esquerda, como era seu engajamento político na época, e como se dá em sua volta ao Brasil?

Olha, eu não direi que eu tenho uma personalidade política forte, no sentido estreito de política. Eu tendo muito a viver de uma maneira mais solitária. E tendo também a acreditar que o meu melhor não está, em primeiro lugar, na fala. Quando eu digo fala, é a fala aberta em público, eu não sei falar em público, eu tenho muita dificuldade. Não está na fala aberta e nem tampouco está na coragem, entende? Eu sou corajoso, talvez, mas de outra forma. Eu acho que eu sou corajoso escrevendo um livro como Stella Manhattan, em 85. Depois, eu não seria tão corajoso, eu acho. E sobretudo na época fazendo parte já de outro establishment, que é o establishment universitário brasileiro. Então eu acho que as minhas formas de atuação política são mais escritas do que propriamente comportamentais. E, salvo esse período, que foi um período de muita turbulência e em que eu me senti muito bem, porque a minha tendência é mais para o anarquismo do que para o partidarismo. Então eu me senti bem naquela construção de uma nova universidade, de uma nova maneira de pensar, de receber grupos que eram hostilizados, grupos que eram marginalizados. Quer dizer, depois isso tudo virou quase clichê, mas naquela época não eram. E isso é que me seduziu naquela época. Agora, entrar para um partido, ter vida partidária, isso realmente eu não aguento, eu não suporto. Vai muito contra idiossincrasias minhas até, a minha condição homossexual, etc., que são questões muito complicadas para serem resolvidas assim, quando você tem ou pretende começar a ter uma vida partidária. Em particular, quando eu comecei, nos anos 50, 60, havia muita hostilidade por parte do Partidão em relação ao

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que nós chamaríamos hoje grupos minoritários, não é? E talvez tenha sido um pouco isso, tenham ficado gravadas um pouco essas coisas, e aí eu tenho optado mais por uma vida solitária e de grandes amizades. Eu tive grandes amizades e as amizades eram muitas vezes com pessoas que eu invejava um pouco por serem tão boas políticas, entende? Até mesmo na minha família, eu tenho muita inveja do irmão mais novo meu, que, esse sim, foi um ativista, não é? E, às vezes, até em muitos de meus personagens há mais dele do que de mim mesmo [risos]. Uns reflexos assim meio estranhos.

O que me ocorre a respeito desta questão das minorias na época é o exemplo de Cuba.

Para nós era capital.

Mas, ao mesmo tempo, extremamente discriminatório. Ao mesmo tempo discriminatório na questão homossexual, não é?

Eu me lembro que as primeiras reações a Cuba vieram de homossexuais, em particular de um filme que criou um grande escândalo – eu acho que não vou me lembrar o nome dele agora. Era um filme de um fotógrafo, um grande fotógrafo cubano que tinha sucesso nos Estados Unidos e na Europa, e que fez esse documentário mostrando os – entre aspas – campos de Cuba. E foi um filme que teve muito sucesso e que, obviamente, também começou a colocar minhocas na cabeça das pessoas que estavam mais e mais se engajando na questão das minorias.

Campos de repressão. É, campos de repressão. O próprio Ginsberg – não sei se lembra

– foi expulso de Cuba. Quer dizer, esses casos todos mostravam uma certa intolerância do governo cubano, que obviamente feriam um pouco a sensibilidade artística. Eu acho que a sensibilidade política não, mas a sensibilidade artística sempre se sente um pouco ameaçada, um pouco hostilizada nessas circunstâncias. E, em particular, no caso Ginsberg, por quem eu tinha grande admiração na época. Ginsberg, eu vi várias vezes ele ler poemas, e o Gregory Corso também, que era outra figura admirável. Eram figuras que estavam já tentando esses movimentos. A distinção que eu faço daquela época é que seriam atitudes menos políticas e mais comportamentais, o que aparece no Literatura nos trópicos. Quando eu chego no Brasil é que eu começo a ver certas mudanças muito grandes, que se passavam muito mais no campo comportamental do que propriamente no campo político. E isso me fascinou muito nessa época. O meu ativismo, se houve algum, foi mais nessa direção. Foi menos na direção, de novo, partidária, político-partidária, e mais na direção comportamental.

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Eu tenho uma curiosidade particular em relação a sua trajetória enquanto leitor: quem chega primeiro, Cortázar ou Borges, já que ambos aparecem no ensaio inaugural de Uma literatura nos trópicos?

Quem chega primeiro, mas sem eu compreender direito, é Borges. Porque Borges ainda chega aqui na Senhor, que traduz um conto de Borges, o que deve ter sido em 1958, 59, não mais tarde. Então eu li Borges, não entendi direito, entende? Li, gostei, mas não me fascinou. Borges vai começar a me fascinar quando eu me transfiro da Universidade de Novo México para a Universidade de Rutgers, em Nova Jersey. E, na Universidade de Rutgers, eu me torno muito amigo de um argentino que vivia exilado no México e que passou a trabalhar nos Estados Unidos, que é Luis Mario Schneider. E o Luis Mario Schneider, então, é que me passa os livros do Borges e do Cortázar. Aí, de repente, eu leio os dois ao mesmo tempo, eu não poderia lembrar. Agora, o que é importante é que eu leio Cortázar e Borges depois de ter lido o mais interessante do romance mexicano. E o romance mexicano não me pega. Porque durante 62-64 eu trabalhei em Albuquerque, Novo México, e eu fui muitas vezes ao México. Então aí eu comprava todos aqueles livros e li todos aqueles autores – eu li todas aquelas coisas da Revolução Mexicana, Los de abajo, o Pedro Páramo do Rulfo, e aqueles livros meio arqueológicos, Juan Pedro Jolote, não sei se você ouviu falar, que é a vida de um índio, essa coisa que depois virou testimonio. Mas só que era forma de testimonio nos anos 50 ainda. E vi todo o início dos grandes, dos futuros grandes, o Octavio Paz, o Carlos Fuentes, e até mesmo um que desapareceu, não sei o que é feito dele, Yáñez. Então eu li tudo isso – agora isso, eu tenho de ser sincero, não sei se porque a presença da França ainda estava tão forte em mim (quer dizer, eu deixei a França em 62), essa coisa não me tocou, mas não me tocou mesmo. Eu fui reativar essa coisa muitos anos mais tarde quando eu fui escrever Viagem ao México. E aí foi relativamente fácil para mim escrever Viagem ao México, porque eu tinha lido todos aqueles autores, e estava a par mais ou menos daqueles autores. Agora, quando eu leio Borges e Cortázar, por volta de 65, eu diria, aí foi realmente um choque, um deslumbramento, e não havia nada em literatura brasileira comparável, para mim naquela época, entende? E eu fiquei realmente fascinado. Fiquei fascinado e comecei a fazer, obviamente, elucubrações teóricas a partir deles. Eu tinha dito que eles inclusive me serviram de material teórico, o que eu acho que foi muito importante para mim. Porque eu estava lendo os teóricos franceses, já estava bastante a par das novas teorias francesas, nunca me senti muito bem com o chamado primeiro estruturalismo e não conhecia ainda, é claro, Jacques Derrida, nessa época, e ao mesmo tempo o new criticism me parecia por demais ascético. Então eu comecei a trabalhar, a ver neles possibilidades de teorização, o que para mim eu acho que foi a grande contribuição. Eu não poderia fazer um livro sobre Borges, ou sobre

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Cortázar, ou coisas assim, entende? Eu sou um leitor de algumas peças deles. Eu não sou um leitor de obras completas deles, como eu fui, por exemplo, de André Gide e Drummond, e de outros autores. Mas o fascínio, é gozado, o fascínio acaba sendo até maior.

A respeito da gênese do conceito de entre-lugar, em que medida ele seria tributário dos franceses? Ou seria antes dos argentinos? [risos]

Olha, para falar a verdade, eu não sei. Eu estou sendo muito sincero. A gênese, assim para valer, eu não sei. Eu acho que, possivelmente, a gênese advém da minha própria situação, que eu acabei me tornando um professor de francês, um brasileiro professor de francês numa universidade norte-americana. Que foi uma das razões pelas quais eu voltei ao Brasil, porque minha esquizofrenia tinha chegado a um ponto que não agüentava mais. Quer dizer, eu falava francês nas aulas e no departamento, falava inglês nas reuniões políticas – eu cheguei a ser chefe de departamento –, inglês nas reuniões políticas e falava espanhol em particular com esse grupo portorriquenho, Paco Pabón em particular, que era muito amigo meu, e que era um pouco onde eu fazia minha vida social. Era com esse grupo que eu fazia minha vida social. Então eu não falava mais português, não é? Quer dizer, o português deixou de ser uma língua, para mim, de utilidade. E eu tenho impressão que deve ter surgido desse caos, entende? Por outro lado, eu não tinha uma leitura forte de Derrida, eu tinha conhecido Derrida, mas não tinha lido assim de maneira bastante forte. Eu acho que eu teria alguma dívida para com Derrrida se eu o tivesse lido bem. Agora, o conceito surge, é gozado que ele surge em francês, porque é um texto que o Eugenio Donato me encomendou.

Em 1969, não é? Não, ele me encomenda em 71. Em 71 que ele me encomenda.

Há alguns dados meio perdidos aí, porque em algum lugar você fala que escreveu em 69 [Em “Apesar de dependente, universal”. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 18].

Não, não. Em 69 eu escrevo “Eça, autor de Madame Bovary”, que vai ser lido em 70, que está muito próximo. Não, em 71. Nessa edição agora – não sei se você viu –, agora está correto.

Você falou em março de 71 e, portanto, deve tê-lo escrito um pouco antes.

Exatamente, um pouco antes, de janeiro a março, mais ou menos. E escrevi em francês mesmo, não é? E já com o título “L’entre-lieu du discours latino-américain”, porque foi um conjunto de conferências que o Eugenio

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Donato organizou – ele que tinha se tornado grande amigo meu em Buffalo. E Donato – não sei se você sabe –, juntamente com o outro indivíduo, John Hopkins, foram os introdutores do estruturalismo nos Estados Unidos. O Eugenio então era muito amigo meu, e ele foi como visitante para Montreal. Ele era de Buffalo. E ele me convida – e realmente foi um luxo para mim na época, porque foi [René] Girard, Foucault e eu [risos]. Quer dizer, aí então eu tive que caprichar. Eu aí dei o máximo do que eu tinha, e tentei entrar quase que numa loucura, para poder fazer frente a esses monstros na época, entende? E ele não entendeu o título. Você vê que não é tão francês – o Donato não entendeu o título. Ele disse, “olha, não sei o que você está querendo dizer, ninguém vai saber o que é que você está querendo dizer”. E aí ele mudou para um título enlouquecedor, “L’antropophagie”, sei lá, “Le sauvage” – “isso aqui o pessoal vai entender”. Então, você vê: o Eugenio era atualíssimo, era a pessoa mais atual que eu já conheci na minha vida. Saiu uma coisa e ele já estava a par. Lia com uma facilidade enorme e absorvia também. Então, eu acho difícil – se eu tento traçar agora, talvez tenha vindo misturada com... – eu vou dar as misturas que eu acho que havia na época e que foram fortes, porque eu dei cursos, etc. – misturada com Lévi-Strauss, Tristes tropiques. Eu dei um curso-conferência antes sobre Lévi-Strauss e Tristes tropiques. E misturada com o poeta que eu estava ensinando nos cursos de pós-graduação, que era Robert Desnos. Eu acho que é uma mistura dessas coisas, sabe? Robert Desnos, quem mais? Cortázar, é claro, também. Mas Borges mais forte que Cortázar. Mas também. E depois, eu acho que era um pouco o enfrentamento da minha própria condição, entende?, de não ter um lugar – eu não tinha literalmente um lugar. Agora, a partir do momento que eu cunhei a expressão, é claro, aí já são outros quinhentos. Mas a sua pergunta era sobre a gênese. Então, a gênese, para mim, é muito difícil.

Em relação à expressão em si, me chamou a atenção o fato de que ela não aparece, absolutamente, no texto, apenas no título. Isso é deliberado?

Olha, não sei. É uma boa pergunta, viu? Não sei se é porque o Eugenio não gostou do título e eu já não podia usá-lo. Eu acho que é isso, eu não podia usá-lo no texto! Porque o Eugenio não gostou do título. “Ninguém entende o que você está falando. O que é isso de entre-lieu? Ninguém entende isso!”. A questão da diferença estava no ar, mas daquela maneira extremamente sofisticada de Jacques Derrida, entende? A escritura e a diferença. Não essa diferença meio politizada, meio ideológica, isso não estava no ar. Então as pessoas não entenderiam. Talvez seja essa a razão: como eu não poderia usar, o próprio trabalho não teria aquele título, entende? E eu não poderia usar o conceito dentro, porque se eu usasse o conceito dentro, haveria de novo “o que está acontecendo?”. Mas eu me lembro de um professor que

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gostou demais do trabalho, e teve muita discussão, para falar a verdade. Os canadenses entenderam, porque havia muitas alusões ali ao Canadá, muitas alusões ao Canadá. A questão do bilingüismo, etc., era tudo porque eu estava falando no Canadá. E eles entenderam, e houve muita discussão – muito mais do que eu acho que o Eugenio esperava. E um professor que discutiu muito o trabalho, depois se tornou até um bom teórico de autobiografia, que é o Jim Vance, não sei se você ouviu falar. Depois ele escreve muito na Poétique, e essas coisas. Mas ele foi uma pessoa que estava lá na platéia, e que ficou colocando perguntas. E os canadenses, porque a questão do entre-lugar para os canadenses era até mais forte, porque De Gaulle tinha passado por lá e dito: Vive le Québec libre! Então, a questão do bilingüismo, de você não ser uma coisa nem outra, e de querer ter uma identidade, e você não pode ter essa identidade porque o próprio país não tem uma identidade única, etc. E algumas frases ali, se você prestar atenção, elas são dirigidas à platéia. E eu as conservei, é claro, não tinha sentido retirá-las. Uma, inclusive, que está solta, praticamente solta, que é um parágrafo, está praticamente solta – aquela foi escrita para o meu público, entende? E obviamente ficaram todos regozijantes, porque era a Université de Montreal, que era a universidade que se opunha à universidade inglesa, que era a McGill. E a McGill era britânica, inglesa, e a Montreal, que não tinha nenhuma importância, ela passa a ter importância a partir desse movimento de Québec libre.

Eu gostaria de me reportar à reedição, à retomada deste livro. Eu não mexi nada, você reparou? A não ser uma ou outra questão

sintática, talvez, uma ou outra coisa. E traduzi todas as citações, essa que é a diferença.

Em uma entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo (24 de abril de 2000), feita por José Castello, você falava de um “choque”, de uma certa “crueldade” e de um certo “destempero”, ao rever os textos de Uma literatura nos trópicos.

Foi, é verdade.

E, no entanto, eles continuam a ser lidos como exemplares até hoje. A que se poderia atribuir a seu ver essa atualidade?

Em primeiro lugar, aí tem um problema: é um velho relendo a sua juventude crítica, não é? Então, para mim, eu me achei muito cruel. Eu falei, “meu deus, eu não sabia que era tão cruel”. Em segundo lugar, eu acho que a atualidade do livro pode advir do fato de nós estarmos voltando a uma politização da cultura. Eu acho, a grosso modo, que o período Guimarães Rosa/Clarice Lispector – que a meu ver foram dominantes nos anos 80, 90 –, ele está passando um pouco, e há um retorno à politização. E eu acho que

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o livro, de certa forma, é extremamente politizado. Então ele, de repente, retorna num momento bom. Eu acho que se ele tivesse retornado no momento quente do que eu chamo “Clarice” – e você pode estar imaginando a que autores eu estou me referindo, não é?, estou me referindo a vários filhos de Clarice –, eu acho que não teria tido tanta repercussão. E, por outro lado, o livro não foi entendido, a segunda parte do livro não foi muito entendida na época porque era muito comportamental, e as pessoas ainda estavam muito literárias. E eu estava mais interessado em ler as revistas chamadas marginais – e também os jornais e revistas do establishment, mas mais como eles enfocavam os artistas do que propriamente ler as obras. E eu acho que isso foi uma coisa que se tornou muito forte a partir dos anos 90. Tanto que você vê que revistas como Veja passam a ter uma seção que chama Comportamento, e não havia isso antes. E eu acho que, de repente, eu saí um pouco na frente nessa leitura de comportamento. Agora, eu devo tudo isso a uma única pessoa, que é o Hélio Oiticica. Quer dizer, o meu encontro com o Hélio Oiticica por volta de 1969, 70 – eu não saberia precisar agora – foi definitivo, de-fi-ni-ti-vo. Foi uma pessoa que me iluminou muito, me esclareceu muito sobre o que é vida e arte, e onde essas distinções entre obra e comportamento, essas distinções são muito ilusórias. A gente pode construí-las, mas elas são totalmente ilusórias. Quer dizer, a hora que eu vejo uma figura como Caetano em 73, eu fico totalmente fascinado. E essa curiosidade minha de saber quem é Caetano. Nunca conversei com ele, não conversava com ele nem nada – mas de querer saber através do mito entre aspas que ele estava criando, através dessa expressão, que se não me engano é dele próprio, que era o superastro. Essas coisas me fascinam demais, e eu me jogo nisso no momento em que todas as pessoas estão com medo de se jogar nisso. E então talvez eu seja uma espécie de avô das pessoas que hoje se tornaram tão comportamentais, quer dizer, tão interessadas pelo comportamento. Não sei...

Voltando à questão do entre-lugar, o fato de o conceito ter se tornado “uma moeda bastante comum na crítica literária brasileira” (como diz José Castello), isso teria a ver com aquela “estranha sensação” que você manifesta na nota prévia da reedição do livro, ou simplesmente te alegra?

Olha, eu tenho de confessar uma coisa para você, que é muito profunda em mim: eu detesto me repetir, e detesto que me repitam. É uma coisa assim muito louca. Você vê que nenhum livro meu é semelhante ao outro. É claro que numa leitura muito cuidadosa deve haver semelhanças. Mas assim aparentemente são livros muito diferentes, cada um caminhando numa direção, etc. Eu tenho muita raiva da repetição sem diferença, entende? Então quando é alguém que cita o conceito de entre-lugar em diferença, seja fazendo crítica, seja abrindo novas possibilidades, etc. isso

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me deixa alegre, me envaidece. Agora, se é uma coisa assim meio repetitiva no sentido estreito, aí me incomoda. Eu vou te dar apenas um dado muito concreto. Eu devo ter orientado quase 50 teses. Eu acho que em nenhuma dessas teses o conceito de entre-lugar está trabalhado. Tenho quase certeza. Quer dizer, eu não fui um professor que fez discípulos, eu fiz cúmplices, eu acho. As pessoas que fizeram mestrado, doutorado comigo, eu acho que são muito mais cúmplices do que propriamente discípulos. Eu acho um dado importante dizer isso. Embora... vale o que vale [risos].

Ainda a respeito do livro, você excluiu alguns artigos do período, a exemplo daquele sobre Milton Nascimento.

Sobre Iracema, e o do Milton Nascimento, que chamava “Las botas y el anillo de Zapata”, numa alusão a uma canção dele na época.

Qual foi o motivo? Exigência do editor? Não! É porque eu não estava satisfeito. De maneira nenhuma –

esse livro eu entreguei dessa maneira à editora. O que eu lamento mais é o ensaio sobre Iracema, que é o “Alegoria e palavra”, um ensaio de que gosto muito até hoje. Nunca tinha relido, eu fui relê-lo outro dia e fiquei assim meio assustado com o ensaio escrito em 1963, 64. E o que é realmente uma lástima ter excluído é o “Camões e Drummond”, que eu acho que significou uma ruptura nos estudos do modernismo, porque pela primeira vez alguém estava saindo make it new, não é? Eu estava mostrando que possivelmente o maior poema moderno brasileiro, certamente o melhor poema de Drummond, ele era um poema eliotiano, que trabalhava a tradição portuguesa, que era a questão da máquina do mundo camoniana. Então eu acho que foi uma lástima, porque ele teria talvez exercido maior influência na leitura dos poetas modernistas, quando se começa a comemorar 50 anos, 60 anos de modernismo, eu acho que teria talvez impactado. Eu sei que Drummond me mandou um poema na época, “Cammond & Drummões”, gozando muita da história e tudo. Quer dizer que ele ficou sensível – era um poema muito elaborado, extremamente elaborado –, ele ficou sensível àquela situação que eu estava lançando, e que ao mesmo tempo o retirava da condição de autor de “Uma pedra no meio do caminho”. Porque Drummond naquela época era o autor de “Uma pedra no meio do caminho”. Você pega os Campos, é o autor de “Uma pedra no meio do caminho”, o autor daquele “O fácil e o fóssil”, daquele outro de jogo de palavras, etc. De repente, lá tem uma pessoa provando que “A máquina do mundo” não é tão gratuita, é toda uma elaboração do Canto X dos Lusíadas, etc. E até mesmo o terceto, e por aí vai, quer dizer, a forma que ele utiliza, etc. Lamento apenas não ter tido a coragem – aliás, não foi uma questão de coragem: é que a revista norte-americana que aceitou publicá-lo tinha número de páginas,

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e eu terminava esse artigo de Drummond com uma leitura do “Aleph” – “A máquina do mundo” e “O Aleph”. Talvez seja por isso, porque me parecia talvez um artigo meio mutilado. Eu sei que não quis colocá-lo. Nunca está, quer dizer, não está nas minhas obras esse artigo. Depois foi publicado no “Suplemento Literário de Minas Gerais”, mas eu nem sei se saiu bem ou não. Foi muito mais tarde. Nos Estados Unidos ele foi publicado, se não me engano, em 1966, por aí, embora ele tenha sido escrito em 63. Mas houve uma reação violenta do Houaiss contra o artigo. Foram umas coisas meio curiosas, sabe? ... parte do poema de Drummond, etc. E, sem querer, eu acho que eu já estava fazendo literatura comparada, que é uma das coisas também importantes no entre-lugar. Eu já estava tentando estabelecer, consciente ou inconscientemente, uma matriz teórica para poder se discutir literatura no Brasil. Porque aquela introdução do Candido, que é “a literatura brasileira é um ramo”..., logo no início de Formação da literatura brasileira: “a literatura brasileira é um ramo de um galho menor que é a literatura portuguesa e não se pode lê-la sem conhecer as outras” etc. etc. Então aquilo era muito importante na minha cabeça, muito importante. Eu procurava uma matriz teórica para entender aquilo – em virtude talvez até mesmo daquele cosmopolitismo a que eu me referia, desde criança. Não me contentava apenas a manifestação brasileira. Eu queria ampliar – o que está no livro de poesia Crescendo durante a guerra..., basicamente. Crescendo durante a guerra numa província ultramarina é um retrato muito fiel dessa minha situação numa cidade do interior.

Sobre outro texto de Uma literatura nos trópicos – “O caminho circular da ficção” –, José Castello o considera injusto com Sérgio Sant’Anna. Relendo-o, eu me perguntava, e gostaria de perguntar a você, se não seria antes uma questão de atitudes e posicionamentos diferentes diante da literatura.

Mas claro! Usando termos muito francos, é um livro do Partidão, é um livro insuportavelmente Partidão, entende? E daí o título “O caminho circular da ficção”, não é? Não será outra verdade? Quer dizer, eu tento mostrar como é um livro que trabalha com todos os clichês da época a respeito de repressão, censura, etc. E eu já estava muito mais interessado em figuras como o próprio Caetano, como é que ele estava trabalhando isso. Ou os jovens poetas, os poetas que depois serão chamados do mimeógrafo. E o Hélio Oiticica, sobretudo a figura do Hélio Oiticica em Nova York, que era uma referência muito precisa para mim. E, de repente, eu vejo um jovem que começa com clichês, muito difícil... E quando você vira chefe, perde todas as características que você tinha antes. Você entra numa determinada sala, se não me engano, e todos os retratos são iguais porque são todos chefes, entende? E eu já tinha lido isso em La nausée, e La nausée inclusive já era

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mais inteligente, já tinha a figura do autodidata, já tinha a figura do salaud, já era um livro bem mais complexo politicamente. E ali eu acho que foi uma reação política, não foi nem uma reação literária, para falar a verdade. Eu bem mais velho do que ele – quer dizer, eram os novos de Minas Gerais, do Suplemento, com quem eu mantinha uma relação simpática –, e de repente lá estou eu diante de uma pessoa que eu julgo velha, que eu julgo com um texto velho. Então eu reagi, e reagi dentro da minha linha naquela época que era um pouco cruel [risos], era meio perverso. Então talvez eu poderia ter feito um texto menos perverso, talvez até mais didático, mas naquela época eu não fazia texto muito didático, porque eu estava vindo dessa crítica francesa meio retórica, e que trabalha muito com a alusão e pouco com o vocabulário concreto, não é? Então aquilo é cheio de alusões ali. E depois, também, todos meus textos trabalham muito com a alusão, todos meus textos críticos. Claro, não sei se as pessoas sabem ou não sabem, mas na hora que eu estou escrevendo ou trabalhando tem uns jogos de alusões que são muito importantes. Às vezes até entre textos e tudo, alusões ao que vem antes, o que vem depois, etc. É um sistema que eu diria que não é tão simples assim quanto um sistema da crítica tradicional brasileira anterior à minha geração, não é?

O que deve ter a ver com a diferença que você mencionou entre o complicado e o complexo.

É, são essas dobras, é tudo muito cheio de dobras. Você tem que ir desdobrando as coisas, para irem se revelando. Acho que você tem razão.

Há, em Uma literatura nos trópicos, algo como uma oscilação, talvez não uma oscilação, mas uma separação nítida entre a Biblioteca (Borges, Haroldo, etc.) e a rua...

O corpo, não é?

Sim, e o corpo, a rua, os mass media (Chacal, etc.). A que você acha que se deve essa separação?

É aquela questão do comportamento, não é? Os textos mais políticos vão para comportamento.

Mas, ao mesmo tempo, o texto sobre o entre-lugar é um texto político e envolve essa biblioteca. Então, de certa maneira, você traz ela à rua.

Para falar a verdade, como eu estava te dizendo, eu comecei pelo cinema e a história em quadrinho. O que me encantou em Paris foi o Louvre, foi o Jeu de Paume – eu sou muito visual, sabe? Talvez a diferença seja até entre a palavra e a imagem, para falar a verdade. Acho que é a palavra e a imagem, a diferença. Os primeiros textos são sobre a palavra, e os textos

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finais são sobre a imagem. Eu acho que seria mais isso, agora que você me fez a pergunta.

Olhando do nosso presente, o que restaria para você daquele período da poesia dita marginal, daqueles seus livros precários? Eles ainda são legíveis?

Muito pouco. Agora, de novo, eu acho que alguém precisava falar daquilo. Eu sou muito a favor disso, de dar força a uma coisa que surge como nova – ainda que o futuro desse novo seja uma incógnita. E eu achava importante dar um basta no projeto concreto naquele momento. É uma coisa que está ali muito clara: dar um basta no projeto concreto, em primeiro lugar. Não porque o projeto concreto não fosse excepcional, mas é porque já tinha esgotado, já tinha se esgotado o que ele podia fazer. E, por outro lado, me fascinava o retorno do coloquialismo, porque pelo coloquialismo não haveria distinção entre a política comportamental e a obra de arte. Quer dizer, aí havia uma linguagem codificada que exprimia um comportamento que na época eu via como revolucionário. Essa ligação entre atitude revolucionária e uma linguagem codificada, e, ao mesmo tempo, que circulava sem as barreiras da repressão, isso me pareceu muito forte na poesia daquela época e me chamou a atenção. Agora, depois, essas coisas caem um pouco na vala comum, não é? Ainda mais porque surge o movimento posterior, acho que talvez encabeçado por Ana Cristina César, em que realmente há um trabalho admirável do verso. Quer dizer, eu acho que a partir dos anos 80, a dicção poética no Brasil nunca esteve tão variada, tão rica e tão extraordinariamente bem trabalhada. E isso graças ao fato de que a maioria dos poetas jovens se tornaram tradutores. E, ao traduzirem, eles incorporaram novas dicções. Então o verso pós-concretista, o melhor verso pós-concretista, não é dos próprios concretos escrevendo seus poemas já mais discursivos, mas está nas traduções dos próprios concretos. E vai estar nas traduções dos bons poetas posteriores. E essa dicção, então, brasileira, ela me surpreende até hoje demais. Como é rica a dicção poética brasileira em comparação com a francesa, com a inglesa! A variedade, as possibilidades de organização do poema tornaram-se infinitas. Eu gosto muito da poesia pós-mimeógrafo, eu acho que essa ainda está muito viva. Agora, entre o pessoal do chamado mimeógrafo, eu acho que o Chacal é um bom poeta, continua um bom poeta, de certa forma o Chico Alvim é um bom poeta também. Alguns deles permanecem, mas – eu vou dizer uma coisa meio sem graça – não sei se Chacal chega, por exemplo, aos pés da Ana Cristina, sem trocadilho [risos].

Os concretistas poderiam ser considerados tradicionais em seu desejo de sistematização, ainda que fosse do make it new, diante dos marginais?

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Eles se tornam conservadores, e não só conservadores: o que eu acho pior no grupo – quer dizer, de novo, repito, eu quero deixar bem claro que acho que eles têm qualidades excepcionais –, mas o que eu acho pior no grupo é o caráter totalitário. A palavra é forte mas eu acho que é isso: o caráter totalitário. E numa época em que havia censura por todos os lados, eles exerceram demais o direito à censura. Eles deveriam ser mais tolerantes naquele período, fazer a própria obra e pronto. Ou, então, se quisessem ser espécies de Mário de Andrades – querer desenvolver um projeto por todo o Brasil e pelo mundo inteiro –, tinham que ser mais tolerantes. Quer dizer, não dá! Esse é um problema que realmente me afastou muito dos Campos. Você sabe que eu tenho poemas publicados em Invenção, mas me afastou muito deles essa intolerância. Eu estava exatamente num outro mundo. E os poetas marginais eram exatamente isso: era um grupo com um jogo de corpo fascinante, não é? O jogo de corpo deles era fascinante naquela época. Para mim, sobretudo, que vinha dos Estados Unidos, e que estava vendo o Brasil, quer dizer, um país esclerosado, com comportamentos ultraconservadores, esse jogo de corpo deles me fascinou.

A que se deveria a passagem tão rápida da “contestação” à “curtição” no Brasil, entre 1968 e 1972, na sua opinião?

Eu acho que o Brasil sai na frente: ele abandona o que eu chamo a cultura do luto e adota a cultura da alegria. Daí Caetano ser tão importante nos meus trabalhos, porque Caetano é o primeiro que faz essa transição. E ela é importante para mim filosoficamente, porque você sai de teorias nitidamente literárias (new criticism, estruturalismo, etc.) e adota uma postura nitidamente nietzscheana, não é? Os meus escritos dessa época são muito influenciados por Nietzsche, em particular pela Genealogia da moral e a questão do ressentimento, que vai nitidamente até Em liberdade. Em liberdade é um livro contra o ressentimento. Ao lado da Genealogia da moral eu colocaria também O anticristo, quer dizer, o mártir, o sofredor, etc. E então é isso o que eu teria a dizer. São coisas que eu não tenho habilidade para desenvolver, que é um discurso filosófico – eu leio, mas eu não tenho formação, eu não tenho preparo. Mas o fundamento filosófico das minhas atitudes, antes de ser Derrida, ou qualquer coisa, era Nietzsche. E Freud, obviamente, era Nietzsche e Freud, e muito forte. O Eugenio me passou muito livro de psicanálise, muita coisa assim que me fascinou na época, que, de novo, é um outro discurso que eu não consigo manter em virtude de não ter formação, que transparece no ensaio sobre A Bagaceira de maneira muito nítida, mas eu não conseguiria manter esse discurso teórico com certo élan. Porque me falta. Agora, existe a leitura por detrás, que eu acho importante estar te dizendo quais são as leituras por detrás.

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Você concorda que a Tropicália e o posterior “desbunde” teriam se institucionalizado? Penso, claro, nos casos de Caetano e Gil, para quem a noção de transgressão parece ter perdido o sentido. Aliás, a seu ver, ainda podemos falar em transgressão?

Sobre a primeira parte, eu acho que você tem toda razão. O que me fascinou na época, com o tempo, se perdeu. Agora, isso não quer dizer que Caetano ou Gil e outros mais não continuem grandes cantores, grandes compositores. Mas já não tinham nenhuma originalidade para mim. É tanto que você vai perceber que eu abandono completamente a música popular. Eu não escrevo mais sobre música popular – só volto a escrever sobre música popular sobre Cazuza. Mas abandonei completamente. Você não vê, se não me engano, em Vale quanto pesa. Pode ter uma ou outra alusão, mas não tem uma questão. E nas Malhas da letra muito menos, não tem. Porque o objeto não me interessava mais, o objeto se tornou um objeto comum, um objeto vulgar, sem sentido pejorativo da palavra. Então, você tem razão. Agora, a outra pergunta, o outro lado, que é a transgressão. Esse é o dado importante que me fez caminhar da teoria literária para estudos culturais. Porque dentro da teoria literária havia certos interstícios que me fascinavam muito, que era a música, que era o teatro, essas coisas. Agora, com a vulgarização desses interstícios, nós ficamos de novo com uma teoria literária por demais pura. E o meu desejo naquele momento foi de buscar novos objetos, que seriam mais próximos da literatura, mas que ao mesmo tempo eram rechaçados pela literatura canônica. Então eu vou começar a fazer um trabalho bastante desenvolvido sobre textos não canônicos. E nesses textos não canônicos haverá sempre uma dose muito grande de transgressão, ainda que seja uma transgressão à história da literatura. Mas haverá sempre uma forma de transgressão que vai me fascinar. Então eu diria que é uma passagem discreta da teoria literária para estudos culturais, que teria de ser analisada. E a transgressão passa a estar nos estudos culturais, aonde você tem a questão do feminino, você tem a questão da homossexualidade, você vai ter a questão das etnias, e assim por diante. Que são, a meu ver, as novas formas de transgressão. É claro que em todas elas você vai ter também cooptações, mas nas formas mais autênticas vão estar aí, e vão me fascinando demais. Um livro, por exemplo, como Uma história de família, que no fundo já é uma reflexão sobre Aids, é um livro em que eu vejo transgressão e morte, quer dizer, os temas básicos de Bataille – aliás, como estão também em Stella Manhattan, os temas básicos de Bataille estão em Stella Manhattan. Então eu começo a buscar essas outras formas de transgressão, e onde elas estão? Já não estão mais na música popular. Quer dizer, pelo menos na música popular brasileira.

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Em relação aos estudos culturais, não seria importante enfatizar a diferença em relação aos cultural studies, ao seu viés norte-americano, politicamente correto?

É, mas tem muito a ver, viu? Eu tenho de confessar que tem muito a ver, e tem também muito a ver sobretudo com estudos culturais na Inglaterra. Eu acho que a fonte talvez mais forte sejam os estudos culturais na Inglaterra. Mas são movimentos universais, quer dizer, são investidas políticas que se passam em vários planos. E o problema a meu ver sempre – e daí o entre-lugar ser um conceito importante nas coisas que eu faço – de estabelecer um determinado lugar polêmico de discussão. Porque o entre-lugar, ele não é pacífico, não é? O entre-lugar é polemos, é o lugar da polêmica, é o lugar da briga, é o lugar do confronto, é um lugar – se não fosse forçar demais –, eu diria até um lugar dialético, em que as grandes batalhas teóricas estão se dando. E nesse sentido, então, existe um entre-lugar de estudos culturais a ser definido tal como ele se apresenta no Brasil. Com características, obviamente, que não podem ser semelhantes às norte-americanas. Eu acho que a gente teria de discutir muito a questão religiosa, para poder ver como ancorar estudos culturais no Brasil sem passar pelo politicamente correto. Eu acho que a questão protestante nos Estados Unidos informa muito os estudos culturais. Enquanto no Brasil seria todo um campo de trabalho a ser estabelecido, e é a questão católica. Não mais a teologia da libertação, é claro, mas uma discussão muito forte das raízes católicas do nosso comportamento. E isso nos falta, nós não temos pessoas que estejam discutindo isso. Eu tentei fazer um pequeno artigo, que vai sair naquela revista Brazil Brasil, que se chama exatamente “O homossexual astucioso”, que seria a diferença entre o homossexual assumido. O homossexual assumido seria tipicamente norte-americano. E nós teríamos uma forma aqui, que seria o homossexual astucioso, que condiz muito mais com a nossa formação católica, e com o fato de no Brasil a lei ser menos forte e a norma ser mais determinante do comportamento. Então eu acho que teriam coisas aí de ser discutidas, e que são muito complexas, a meu ver, ainda, para se estabelecer um paradigma teórico.

Eu gostaria de voltar um pouco aos franceses e, especificamente, aos telquelianos, e gostaria de saber como você enxerga hoje essa noção tão presente na época de “escritura”, de “texto”, essa espécie de “não-gênero” que substituiria a própria idéia de literatura.

[Silêncio]

Você acreditava nisso? Acreditava nisso, e houve uma revolução – a palavra revolução é

forte –, houve uma transformação muito grande, a gente ainda está vivendo

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essa transformação, que é a questão do computador. Eu acho que a questão do computador está nos obrigando a recolocar essas questões que a gente tinha como aceitas e como válidas. Então, o computador, de certa maneira, vai trazer novas formas de apresentação de texto, que a gente tem que estar sensível a isso. Já começam a existir textos que são escritos para a internet. Vai trazer problemas complicados de redefinição de leitor. Essa redefinição de leitor que, a meu ver, é um problema sempre delicado em termos de ficção, mais – menos em termos de poesia. Vai trazer também novas possibilidades de trabalhar os jogos de alusão. Eu acho que a página do livro é uma tela muito fraca para que você possa trabalhar os jogos de alusão, os jogos de citação, os jogos de intertextualidade. Eu não sei como é que a gente vai resolver isso, mas o computador possibilita isso. Então eu diria, de maneira precária, que essa transformação que está se dando no Brasil nos anos 90, a gente ainda nem pode imaginar o que sairá disso.

E teria um começo naquelas noções? É muito difícil você trabalhar a partir de zero, eu não consigo

trabalhar a partir de zero. Quando eu falei, por exemplo, de cultura da alegria, eu estava partindo de uma cultura do luto, que tinha de terminar, porque senão ficava um país insuportável. Você introjetava toda raiva, você introjetava todo ódio, você introjetava tudo o que havia de pior, para estragar sua vida. Tinha de haver um movimento que visse nessas formas de degradação humana a possibilidade de uma recuperação pela alegria. Então para mim é muito difícil trabalhar assim no ar, sem pontos de apoio. E os pontos de apoio para mim seriam... vamos chamar pós-estruturalismo, ou pós-modernismo. Já está um pouco claro em algum trabalho que eu fiz sobre o Lyotard, por exemplo, a questão da exteriorização do saber, que é uma questão, a meu ver, que ele lança e não trabalha muito, mas que a gente devia trabalhar cada vez mais: que o saber, a noção de Bildung, de formação, típica da nossa cultura, originária do século XIX, esse conceito vai se estilhaçando com as novas formas de empacotamento do saber, com as novas formas de arquivo do saber. E com a própria maneira como a ciência trabalha esse arquivo e trabalha esse empacotamento. Então a gente teria que ter – e é o que Lyotard sugere – uma maneira mais lúdica de trabalhar as novas formas, entende? E o lúdico ao que a gente se referia nas décadas de 70 e 80 é muito precário em relação às possibilidades do lúdico a partir do computador, a partir do software, para ficar mais claro. Quer dizer, são coisas que eu antevejo, mas realmente não posso ir além do que eu estou dizendo.

Em sua entrevista ao Estadão percebe-se um certo cansaço de estar up to date, o que você mesmo disse verificar, em relação ao que aconteceu nos

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anos 60 e 70. Você estava lendo, estudando, trabalhando os estruturalistas e pós-estruturalistas, e houve um afastamento, uma espécie de fastio teórico.

Eu tinha muita energia [risos]. Tem um título do Cesare Pavese, que eu sempre gostei muito, que é Lavorare stanca, trabalhar cansa. E eu acho que é um pouco isso. Você corre, corre, corre enquanto você tem energia, enquanto você tem uma força muito grande. E a partir de certo momento, eu fui sentindo o peso da idade e eu fui sensível a isso. Eu tenho um livrinho de poemas, que é meio rastaquera mas é importante assim como documento, que chama Cheiro forte, e que é sobre envelhecimento e sobre isso a que você está se referindo. Hoje, por exemplo, eu estou vindo de Nova York, e me dá a impressão de que eu nem devo voltar a Nova York. Ou bem é um déjà vu, e aí é a questão da repetição que me é insuportável, ou bem é um lugar com um potencial tão extraordinário, mas que está muito além das minhas forças atuais. Eu teria de ser o mastodonte [risos] que eu fui nos anos 60, 70 pra poder enfrentar essa nova Nova York, que é uma cidade sempre fascinante, muito fascinante realmente. Mas você tem que ter muita força para enfrentar aquilo, e para circular por aqueles caminhos e não cair nos lugares comuns, quer dizer, ir de novo ao Moma, ir de novo ao Metropolitan, ir de novo a não sei aonde. Isso tudo bem, isso, é claro, a gente faz. Mas agora esses novos caminhos de, em suma, sexo ritualizado, ou formas de desterritorialização dos bares, dos lugares de encontro, que são coisas que eu percebi meio de longe, mas você precisa de estar correndo ainda, e não dá muito para correr nisso, não é?

Você também estaria num momento bastante voltado à literatura, à ficção, mais do que à crítica, segundo aquela matéria de jornal.

Não, eu acabei de escrever um trabalho longuíssimo agora sobre a viagem, o conceito de viagem em Lévi-Strauss. Não acho verdade. Eu sou muito esquizofrênico para poder te dizer que eu estou interessado em uma coisa só. Eu estou fazendo um trabalho de 50 laudas, acho que é o maior ensaio que eu já escrevi na minha vida, sobre o conceito de viagem em Lévi-Strauss nos Tristes trópicos. Mas só o conceito de viagem, quer dizer, eu não entro nas questões propriamente ditas etnográficas. E é ao mesmo tempo uma leitura crítica de um célebre estudo de Derrida, “La leçon d’écriture”. Então eu acho que não confere. Agora, eu estou muito interessado em escrever um romance também sobre um crime passional que houve em Belo Horizonte – porque eu nunca fiz nenhum livro sobre Belo Horizonte, então eu quero fazer um livro sobre Belo Horizonte [risos]. Acabei de passar dois anos dedicado a isso [aponta à coleção Intérpretes do Brasil, em três volumes, que organizou para a editora Nova Aguilar], que foi uma loucura total. Quer dizer, não sei, eu sou muito dividido para fazer uma afirmação assim. Agora, pode ser que na hora fui sendo encaminhado para isso. Mas

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não, eu não diria. É até difícil, porque o tipo de literatura que eu faço é um tipo de literatura autorreflexiva – quer dizer, dentro dos padrões, não é? Eu não posso também escrever esse livro sobre crime, sem já ter trazido agora uma pequena biblioteca [risos] de questões sobre literatura e crime, cinema e crime, etc. Eu trouxe uma pequena biblioteca sobre crime. Então é difícil para mim de repente dizer que eu vou apenas trabalhar romance. Porque eu vou ter que ler esses livros paralelos. Acabei de ver duas ou três vezes o filme Genealogias do crime, do [Raúl] Ruiz. É um filme lindo, lindo. Quer dizer, então eu estou me alimentando criticamente. Ao mesmo tempo eu estarei me alimentando ficcionalmente, porque eu tenho que escrever uma história, eu tenho que inventar uma história. E então eu acho que as duas coisas são separadas por razões pragmáticas, porque de repente eu tenho que escrever um ensaio, e de repente eu tenho que escrever ou eu quero escrever romance, ou poema, sei lá. Então as divisões são mais pragmáticas do que mentais.

Aí surge um problema interessante em relação a essa separação: o que você pensa sobre a idéia de ficção crítica ou ficção teórica?

A minha idéia básica é de que você, infelizmente, a gente tem de aceitar gêneros, em particular no Brasil, onde o objeto livro é uma mercadoria de difícil circulação, então a gente é obrigado a aceitar a questão de gênero. E aceitando a questão de gênero, eu sempre procurei trabalhar com a noção de limite. Em liberdade, por exemplo, é um romance e não é, é uma biografia e não é, é um ensaio e não é. Porque, analisando de perto Em liberdade, é um romance, é uma proposta de romance a partir do pastiche, é pós-moderno, etc. etc. De outra perspectiva, é uma biografia, porque tudo aquilo aconteceu mais ou menos, quer dizer, eu tive um trabalho enorme de levantamento de dados, etc. E poderia ser uma biografia, eu poderia ter escrito uma biografia de Graciliano Ramos naquele período. Mas não é, porque obviamente eu inventei diálogos, eu inventei situações, apesar de partir de casos, de dados concretos. E, finalmente, eu acho que é uma boa leitura da geração de 30 o livro, quer dizer, eu acho que é um bom ensaio sobre a geração de 30. Então eu acho que é a noção de limite, que é o que tem me salvado: eu estou sempre no limite dos gêneros. A não ser no último livro meu, De cócoras, onde eu não trabalhei os limites, eu tentei fazer um livrinho bem comportado. Mas aí o bem comportado dentro do mau comportamento acaba sendo o limite às avessas. Mas eu sempre estou trabalhando com a noção de limite dentro de gênero. É por aí, talvez, que eu tocaria na questão da écriture, que eu tocaria nessas questões mais ligadas ao grupo de Tel Quel. A possibilidade de você assumir, num país tão periférico e tão pobre quanto o Brasil culturalmente, a possibilidade de você poder assumir certas atitudes radicais.

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Eu lembro, a propósito dessa questão dos limites, de um texto recente, “A ameaça do lobisomem”, que é um texto enigmático embora tenha esse caráter ensaístico, numa revista ensaística (Revista Brasileira de Literatura Comparada 4. Florianópolis, 1998). Mas sempre deixa o leitor, digamos, com a pulga atrás da orelha.

É a ameaça do lobisomem [risos]. Às vezes alguns dos meus ensaios, como eu te disse, têm muitas alusões, têm muitos jogos. E a pessoa não destrinchando um pouco os jogos, as alusões, provavelmente parte do barato se perde. No caso ali é um artigo sobre Borges e a homossexualidade, basicamente é isso. Agora, não vou escrever um artigo tout court sobre Borges e a homossexualidade [risos]. Aí vem aquela questão que vem sendo elaborada através de figuras. Então acaba tocando José Lins do Rego, acaba tocando Guimarães Rosa, acaba tocando Stevenson. E vai por aí tocando todas as figuras que são dadas mais ou menos como figuras que têm experiências, embora sobre Borges eu não tenha certeza nenhuma. Mas aquele universo que ele constrói, tem tanto medo do lobisomem que acaba você acreditando que existe alguma coisa ali.

Em que medida essa sua identidade mutante, sua falta de estilo, significaria uma forma de defesa diante da voracidade da cultura de massas e do mercado? Ou não se trata disso?

Não, acho que não. Quer dizer, talvez alguém possa elaborar isso, eu não posso elaborar, porque a minha forma mutante eu acho que está até na razão pela qual eu escrevi... literatura francesa. Por exemplo, lembra quando eu te dei aquele detalhe? Eu queria sair, eu queria sair do Brasil, eu queria sair de Minas, queria viajar. Agora o trabalho que eu estou escrevendo, no momento em que eu viajo menos, é sobre a viagem em Lévi-Strauss. Eu acho que a questão da viagem é um tema importantíssimo. Que é o lugar entre – é um tema importantíssimo. Está num trabalho recente também que eu fiz sobre as políticas universalistas e as políticas nacionalistas, Joaquim Nabuco e Mário de Andrade. Tem uma passagem muito bonita de Joaquim Nabuco sobre a dupla saudade, quer dizer, é aquele interstício. No Brasil você sente saudade da Europa, na Europa você sente saudade do Brasil – essa coisa intersticial que a gente detecta no Nabuco e que é a viagem. E que hoje está muito transformada, porque as formas de viagem foram minimizadas em virtude da internet. Eu agora, juntamente com a Heloísa Buarque de Hollanda, a gente está tentando ver se cria um pós-doutorado à distância, em que você já não precisa mais viajar. Você viajar, é claro, mas só que pela internet, virtualmente. Então, eu acho que mutante seria muito mais isso, eu acho que tem muito pouco a ver com a cultura de massas. É a impressão que eu tenho.

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Borges disse alguma vez que se sentia um europeu no exílio. Seriam os latino-americanos europeus no exílio?

Não, de jeito nenhum. Aliás, de novo, esse artigo que eu estou escrevendo sobre a viagem é muito sobre isso. Eu acho que há uma violência do Ocidente, uma violência do mal que foi jogada nessas terras e que nos impossibilita uma identificação com o Ocidente (e não a Europa). Essa identificação sempre será muito muito precária. Ela é o sedimento – não dá para ser Policarpo Quaresma e voltar a falar tupi-guarani, não é isso. Mas ela é sedimento. Eu diria que ela é muito mais sedimento do que propriamente lugar de exílio. Na medida em que sedimento, você tem de construir, não é? Que eu acho que é o grande problema nosso, e você vai ver as diversas propostas de construção, são fascinantes no Brasil. Você tem a proposta cosmopolita, a que eu me referi com Joaquim Nabuco, você tem a proposta andradina, que é uma proposta de caráter mais do chamado nacionalismo pragmático, você vai ter uma proposta de construção no próprio movimento concreto. Então são essas propostas de construção que são muito fascinantes. E eu acho também que não há um trabalho sobre isso, quer dizer, o que você faz com esse sedimento. Não é lamentar a ausência da Europa. Mas, dado isso, como é que você pode fazer alguma coisa. Até que seja tão interessante quanto a própria o foi para a cultura ocidental. Eu gosto muito de tomar ao pé da letra a palavra novo, novo mundo. Eu acho que a gente devia tentar ser otimista – devia tentar porque eu não sou –, a gente devia tentar ser otimista e achar que existe um velho mundo e um novo mundo. E esse novo mundo, voltando às questões dos anos 70, foi, num certo momento, Cuba, por exemplo. Isso nos faz falta, eu acho. Hoje há um país que está me fascinando muito, que é a Venezuela, onde existe uma proposta também de invenção de um novo mundo. E o Brasil perdeu completamente a idéia de que se pode construir um novo mundo. Nesse sentido, eu, por exemplo, acho bonito Juscelino Kubitschek. Obviamente não é um grande presidente, mas é bonito. Quer dizer, é um momento em que você tem essa idéia de que o novo é uma categoria que pode ser concretizada.

COMPLEMENTOS1. Respostas enviadas no dia 9 de setembro de 2001:Como a nova esquerda brasileira dos 70 se posicionava em relação à

China maoísta? E quem era Mao pra você? A China maoísta nunca esteve presente de maneira destacada na

minha formação intelectual, ou mesmo nas minhas elocubrações políticas. Li as coisas que se liam naquela época, em particular nas revistas francesas (Tel Quel e Cahiers du cinéma), mas o pouco marxismo de que disponho

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vem muito mais dos teóricos europeus. Sempre tive receio de mexer com culturas por demais distantes. Talvez por ter me interessado desde cedo pela antropologia e, ainda por ter sido alertado pela leitura de Primitive rebels, de Hobsbawm. Cometemos muitos equívocos com a melhor das intenções. Repare que quase nunca falo da África muçulmana ou marroquina, apesar de ter uma boa experiência de França e ter lido, por exemplo, a Présence africaine, Fanon, Césaire, desde a minha primeira viagem à França (1961). Da mesma forma não quis (ou não consegui, ou impedi a mim de) aclimatar as teorias políticas chinesas ao meu vocabulário crítico.

2. Respostas enviadas no dia 10 de outubro de 2001:O que você publicou em Invenção – ensaios, poemas, ensaios-poemas? Muito pouca coisa. Apenas dois poemas, se bem me lembro. São

dois poemas de Alguns floreios, que posteriormente incluí no livro Salto. Antes, saiu no Suplemento do Minas Gerais. Na época escrevi e publiquei nos Estados Unidos, revista Hispania, “Camões e Drummond: A máquina do mundo”. Como os poemas eram concretistas e bem irônicos em relação aos três ases (CDA, Bandeira e Cabral), logo depois da edição do Minas Gerais, recebi de Drummond um poema bem igualmente gozativo e muito bom: “Cammond & Drummões”, em “A/grade/cimento”. É certamente o melhor poema concreto radical de Drummond. Você o conhece? Esteve na primeira edição da Poesia completa e na nova edição, a do Centenário, está de volta.

Onde você publicava no Brasil dos 60/70, além da revista concreta e dos suplementos literários mineiro e paulista, e com quem dialogava nesses periódicos culturais?

Nessa época, meu principal diálogo era transcultural (com gente de teatro, de artes plásticas, de cinema, etc.). Publiquei pouquíssimo naquela década no Brasil. Praticamente, nada. Só no finalzinho é que reuni os contos da década em O Banquete e os poemas em Salto. Tentei publicar o texto sobre “O Ateneu” em Cadernos Brasileiros, não deu certo, ou foi rejeitado. O meu diálogo literário mais forte era com os Campos, em particular com o Haroldo. Várias vezes fui recebido por ele em casa. Mandei-lhe também, dos Estados Unidos, todas as novidades que podiam lhe interessar (sem que solicitasse). Se não me engano, o primeiro McLuhan fui eu quem enviou. Lembro-me também de ter-lhe enviado, da França em 67/68, Klebnikov. O desentendimento surgiu no momento em que publiquei na Luso-Brazilian Review uma resenha de “A arte no horizonte do provável”. Me enviou carta me chamando de Zhdanov. Cheguei também a assinar contrato com a Secretária de Cultura de SP (leia-se: Domingos Carvalho da Silva), para a publicação de um livro de ensaios pré-Uma literatura nos trópicos numa coleção bem famosa que tinham. Chamava-se “Tradição e ruptura”. O livro

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nunca chegou a ser publicado. O diálogo estritamente literário mais intenso era com o Affonso Ávila, a Laís e o Rui Mourão. Escrevi resenha de livro de poemas do Affonso e de romance do Rui.

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Ernesto LaclauNova York, 2 de dezembro de 2000

Você dirigiu um periódico chamado Lucha Obrera nos anos 60 na Argentina. Como foi esta experiência e quem atuava ali?

Esse era um periódico de um grupo político que se chamava Partido Socialista da Esquerda Nacional ao qual eu pertencia, e tinham um semanário do qual eu era editor. Mas não havia intelectuais independentes ali, eram pessoas do partido simplesmente. Tinha intelectuais que eram parte do movimento, mas só esses.

Qual era sua relação com o grupo da revista Los Libros? Era uma relação cordial e uma vez contribuí também com a revista.

É por isso que lhe pergunto: há dois artigos seus nos primeiros números.

Era uma relação distante. Não era um grupo político, mas sim uma revista de bibliografia, de literatura...

No início sim, mas depois vai se politizando... Sobre suas colaborações na revista...

Já não me lembro [risos]. Foi um par de artigos que eu publiquei lá...[182]

Sua primeira colaboração, em julho de 1969, tinha como tema o nacionalismo argentino.

Ah sim, um livro de Marysa Navarro Gerassi.

Exatamente. E sua contribuição reivindicava uma revolução nacional e popular.

Sim.

E o segundo e último... Scalabrini Ortiz!

Que foi publicado em maio de 1970. Foi em um momento que eu estava deixando o país, estava indo

para a Inglaterra.

Queria saber em que medida a posição do nacionalismo revolucionário condensava a sua própria posição.

182  Cf. Bibliografia.

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Eu estava no Partido Socialista da Esquerda Nacional, o secretário geral do partido era Jorge Abelardo Ramos, e a esquerda nacional tinha nesse momento na Argentina uma posição muito específica. Por exemplo, se você quer ter uma versão um pouquinho maior, pode encontrá-la no meu livro New Reflections on the revolution of our time. Há umas entrevistas no final, uma feita pela New Left Review, na qual me perguntam sobre questões políticas da Argentina destes anos, ali há uma série de referências; a segunda entrevista, que também está no livro, foi feita por Peter Dews.

Como era lido o conceito de hegemonia na Argentina daqueles anos? Ainda não era muito utilizado. E, na medida em que se utilizava,

remetia-se ao conceito gramsciano. Foi bastante tempo depois, com os trabalhos de [Juan Carlos] Portantiero [1934-2007], com os meus trabalhos, que o conceito de hegemonia passou a ser parte do vocabulário político cotidiano da esquerda, não? Mas não era o caso ainda nos anos 60.

Neste contexto político-cultural argentino, você chegou a participar de outras publicações periódicas?

Bem, por algum tempo também fui diretor da revista Izquierda Nacional que era a revista teórica do partido, que era publicada a cada três meses aproximadamente.

Para voltar a Los Libros, Ricardo Piglia disse que a revista era excessivamente eclética em seus começos. Você concorda com ele neste ponto?

Não me lembro muito da revista, realmente tive uma relação muito distante com ela. Mas sim, não teria por que não ser eclética, porque não era a revista de nenhum grupo político definido. Era antes uma revista da intelectualidade de esquerda geral, da qual pessoas de distintas correntes participavam, assim que, suponho, Ricardo tem razão.

De modo que você não acompanhou a evolução da revista. Não, de qualquer modo, não era tampouco uma revista tão

importante. Era uma das muitas que se começava a publicar neste momento de radicalização política.

O que chama a atenção é que muitas pessoas que estavam lá evoluíram e apareceram muito fortemente na cena intelectual, e não só latino-americana.

Por exemplo?

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Por exemplo, Beatriz Sarlo, Carlos Altamirano, Ricardo Piglia, muita gente... Ernesto Laclau também, digamos [risos].

Sim...

E depois a revista evolui no sentido político... Eu não recordo como terminou. Quando deixou de aparecer?

Radicalizou-se o vanguardismo político e é encerrada violentamente em 1976.

Com o governo militar. Conseguiu aparecer até 1976 ainda!

Até o nº 44. O nº 45 Sarlo disse que estava pronto e que o levaram, queimaram e não se soube de nada mais.

Claro.

Bem, Sarlo justamente disse que em seu caso pessoal faz um movimento atípico para a época, passando do peronismo ao maoísmo.

Ela, sim.

Sim, ela, quando muitos são peronistas neste momento, como foi o caso do primeiro diretor da Los Libros, Héctor Schmucler.

Sim, sim, claro.

Qual era sua posição a respeito do maoísmo? Bem, definitivamente eu não era maoísta, mas o maoísmo foi um

grupo político muito definido na Argentina, formado por Elias Seman, Ruben Kriskautski, Roberto Cristina. Todos foram mortos na repressão depois. E era um dos tantos desprendimentos do Partido Comunista, com algumas pessoas do Partido Socialista de Vanguarda. Neste momento havia muitos movimentos políticos, mas com eles eu não tinha nenhum tipo de relação. Houve um primeiro momento em que se dividiu o movimento comunista a nível mundial até meados dos anos 60. As pessoas de esquerda na Argentina tinham, globalmente falando, mais simpatia pela posição chinesa do que pela posição soviética, porque a posição chinesa tinha um caráter terceiro-mundista que a soviética não tinha, e além disso a crítica à burocracia soviética estava bastante avançada. E o que ocorreu foi que depois a posição chinesa começou a enlouquecer, apoiando Pinochet e coisas do estilo.

O que sucede na Los Libros é que ela se transforma em maoísta com Piglia, Sarlo e Altamirano, descartando Schmucler.

Mas havia muitos grupos maoístas que estavam dentro do

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peronismo, não? Não era incompatível, o que acontece é que o maoísmo era, na melhor das hipóteses, um estado de opinião. Houve um movimento especificamente maoísta, que era este partido do qual falava. Não sei se estiveram ali Sarlo e Altamirano – eles podem te dizer. Porque, além disso, tinha gente que se considerava globalmente maoísta, mas não estava em nenhum movimento.

Na sua opinião, como se dava a presença do estruturalismo e da teoria crítica francesa entre estes intelectuais na Argentina?

Bem, na revista não sei realmente. Mas neste momento, no começo dos anos 60 a influência mais importante era Sartre, sobretudo na intelectualidade de esquerda, ao redor da Faculdade de Filosofia e Letras. Em 1961 se publicou a Crítica da razão dialética, e aquele texto durante um tempo foi a influência mais dominante. Mas, por pouco tempo, porque depois veio a invasão de Lévi-Strauss, e depois veio o althusserismo, e todo esse tipo de coisas conformaram como a segunda onda da intelectualidade francesa, e aí foi que a questão teve importância.

Você está de acordo com Piglia quando ele diz que a teoria literária substituiu a teoria social durante os anos 70?

Na Argentina?

Em um plano geral. Não sei exatamente o que isto quer dizer, mas...

No sentido de que, digamos na Argentina, os teóricos que trabalham mais com a literatura passam a um primeiro nível nas ciências humanas.

Eu não vejo isto.

Não te parece? Não, não me parece. Tomara fosse verdade [risos], mas não creio que

seja o caso. A teoria e as ciências sociais estão enormemente desenvolvidas na Argentina, e eu não vejo que estejam, de nenhuma maneira, em declínio, e por outra parte, não vejo que a teoria literária esteja muito desenvolvida no país. Agora se isso se refere a certas correntes pós-estruturalistas como, por exemplo, Derrida, Foucault ou Lacan, então sim, mas isso não é teoria literária, isso é um enfoque teórico de caráter mais global, não? E o que sim, é certo, é que os setores mais avançados estão mais influenciados por esse tipo de pensamento que pelas ciências sociais ou a teoria social mais convencional.

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Sobre a questão do marxismo, Piglia disse que se mantém marxista ainda hoje, e Sarlo pensa que esta é uma posição cômoda de quem não quer se questionar. Qual seria sua opinião sobre esta discussão?

Bem, não conheço a discussão, mas posso te dizer minha opinião sobre o tema. Minha posição a respeito foi definida em Hegemonia e estratégia socialista, onde esta se define como pós-marxista, pondo ênfase tanto no “pós” quanto no “marxista”. Quer dizer, eu tratei de desenvolver um pós-marxismo no sentido de uma teoria da hegemonia. Existem certas ferramentas conceituais que vêm do arsenal marxista das quais eu não estaria disposto a renunciar, mas já não me consideraria como um marxista em um sentido absolutamente global. De modo que creio que nesta alternativa que você me coloca, estaria mais de acordo com Beatriz Sarlo.

Ok. Eu tenho uma última pergunta um pouco mais presente. Perfeito. Sim, sim.

Não lhe parece que a democracia, na medida em que é por definição ambígua e determinada, tende sempre para o lado das relações de poder de tipo liberal, ainda que haja um forte sentido democrático nas massas? E, a propósito, como você pensa os atuais processos de democratização na América Latina?

Bem, no primeiro ponto a resposta seria não, eu não creio que a democracia tenha uma necessidade de orientar-se a uma direção liberal. E, além disso, é preciso distinguir entre liberalismo político e liberalismo econômico. O liberalismo econômico é perfeitamente compatível com formas totalmente não liberais de política: a economia mais liberal da América Latina foi o Chile de Pinochet, que requereu uma ditadura para poder se impor. Ou seja, parece-me que é preciso fazer uma estrita separação entre liberalismo político e liberalismo econômico. Mas, em segundo lugar, a democracia não teve historicamente uma necessária orientação em direção ao liberalismo. Por exemplo, no princípio do século XIX, o liberalismo era uma ideologia política perfeitamente aceitável ao que caracterizava o regime britânico desde 1688 e ao regime francês desde a monarquia censitária, enquanto que a democracia era um termo pejorativo porque significava o governo da turba, quer dizer era identificado com os jacobinos e demais. E a Europa necessitou de todo um longo processo, praticamente um século, para chegar ao ponto em que o liberal e o democrático começaram a se articular tão intimamente que praticamente se confundem. Mas, em outras áreas do mundo, nunca se ligaram desta maneira. Por exemplo, os regimes oligárquicos da América Latina eram absolutamente liberais, mas eram eleições forjadas por pequenas elites oligárquicas, isso não representava nenhuma forma política democrática.

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De modo tal que quando as reivindicações democráticas das massas têm de se expressar, começam muitas vezes através de movimentos provavelmente não liberais, como as ditaduras comunistas latino-americanas. O que ocorreu nos últimos anos é que, com as ditaduras dos anos 60 e 70, o que foram as tradições nacionais democráticas não liberais e o que foi a democracia liberal acabaram igualmente derrotadas. Então, hoje, a democratização no sentido de instituições liberais é praticamente aceita por todo o mundo.

Um único apêndice... Sim, claro.

Este partido em que você militava nos anos 60, como se posicionava em relação ao nacionalismo peronista?

De uma forma muito positiva. Este era um partido de raiz trotskista, mas o trotskismo na Argentina é diferente do que ocorre em outras partes do mundo, porque o trotskismo argentino era muito nacionalista e denunciava o internacionalismo abstrato dos comunistas, que eram, ao contrário, absolutamente liberais. Então o que o partido colocava era que a revolução nacional tinha começado na Argentina com bandeiras burguesas no peronismo, e as limitações que isso havia criado tinha levado à derrota de 1955, à queda de Perón, e que agora era uma aplicação da revolução permanente, que começou com bandeiras nacionais burguesas, mas somente podia consolidar-se com um regime socialista. De modo tal que tinha, em relação ao peronismo, uma atitude globalmente positiva.

E agora, o que acontece com o peronismo? Não sei [risos], é tão confusa hoje em dia e caótica a situação que

não sei. Faz muitos meses que não vou para a Argentina, mas vou voltar agora em abril, para ter uma visão mais de perto.

Depois que você deixa o país, suas relações com ele se mantiveram próximas?

Sim, fui em 1971, depois não fui durante toda a ditadura, e comecei a ir de novo um mês por ano mais ou menos a partir de 1984, quando se retomou a democracia. Em um certo momento era, inclusive, muito perigoso ir.

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Agradecimentos

Renovo os agradecimentos aos colaboradores deste livro coletivo, especialmente a Raul Antelo, que o tornou imaginável e possível. A primeira edição apareceu na Argentina em 2009 pela Editora Grumo, graças ao estímulo de seu diretor, Mario Cámara, a quem devo todos os agradecimentos, assim como aos seus primeiríssimos leitores, Florencia Garramuño, Ana Cecilia Olmos, Maria Lucia de Barros Camargo e Wladimir Garcia.

Agradeço igualmente a Silvia Cárcamo de Arcuri e a Beatriz Sarlo, pelo acesso à coleção da revista Los Libros, e aos colegas e amigos que contribuíram para a realização deste trabalho de diferentes maneiras e em diferentes momentos: Jean Franco, Luz Rodríguez, Pedro de Souza, Gayatri Spivak, Andreas Huyssen, Hilary Palmer, Kevin Lueck, Antonio Carlos Santos, Oscar Reymundo, Renata Telles, Fernando Scheibe, Sandra Almeida, Marcelo Bessa, Adrian Cangi, Maria Consuelo Cunha Campos, Luiz Carlos Lacerda, José Geraldo Couto, Isabel Carballo, Adriana Rodríguez Persico, Renata Rocco-Cuzzi, Daniel Link, Claudia Gilman e Gonzalo Aguilar. Agradeço, finalmente, a Flávia Cera, pela tradução das entrevistas em castelhano.

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Coleção Marginalia

É possível que Barthes, ao sugerir um processo de "escrever a leitura" como um devir da crítica, tivesse em mente essas anotações que fazemos à margem dos textos que lemos. Instrumento de memória, de estudo, de inscrição da leitura no livro, a marginalia é muitas vezes o depósito inicial dos nossos passos como leitores. A Coleção Marginalia busca evocar em seu nome as produções críticas e ensaísticas contemporâneas que, acreditamos, guardam uma relação de proximidade com esse momento mais privado e aventureiro da leitura, trampolim da produção crítica mais radical, risco que o sujeito realiza na página.

Títulos publicados

A senha dos solitários. Diários de escritoresAlberto Giordano

Telquelismos Latino-americanos. A teoria crítica francesa no entre-lugar dos trópicosJorge H. Wolff

Próximo lançamento

Ensaios de/sobre crítica patéticaKate Briggs

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