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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPECENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS
LITERATURA E MELANCOLIA:DOIS CAMINHOS QUE SE ENCONTRAM
AMAEL OLIVEIRA
PROF° ORIENTADOR:ANTÔNIO COSTA BRASILEIRO
ARACAJU
2004
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPECENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS
LITERATURA E MELANCOLIA:DOIS CAMINHOS QUE SE ENCONTRAM
Monografia apresentada à disciplina Produção de Texto III, para obtenção da unidade parcial de avaliação.
AMAEL OLIVEIRA
ORIENTADOR: PROF° ANTÔNIO COSTA BRASILEIRO.
ARACAJU2004
2
DEDICATÓRIA
À minha mãe, Maria Cecília Oliveira.A meus amigos e irmãos.
3
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela força que me deu durante a realização desse trabalho.
À ajuda da amabilíssima Profa Dra Stefânia Buonomassa por ter me mostrado a
tristeza do olhar de Hesíodo.
À filósofa Márcia Tilburi que na palestra ministrada na TV Cultura sobre a
melancolia e Filosofia fez surgir em mim a descoberta da tristeza melancólica do ser humano.
À minha mãe, Maria Cecília Oliveira, que soube suportar a distância do olhar e minha
ausência de longos meses de reclusão para confeccionar este trabalho.
4
EPÍGRAFE
“Tento lhes falar de um abismo de tristeza, dor incomunicável que às vezes nos absorve, em geral de forma duradoura, até nos fazer perder o gosto por qualquer palavra, qualquer ato, o próprio gosto pela vida.”
Julia Kristeva
Sol Negro: Depressão e Melancolia
5
RESUMO
O presente trabalho pretende abordar o sentido que a melancolia imprime a Literatura.
Para tanto se verá seus fundamentos e sua influência como elemento fundador do objeto artístico.
Parte-se do pressuposto de que sem melancolia não há Literatura. Verá, também, sua relação com
a obra de Clarice Lispector onde se pensa ter a proposta da melancolia no homem
contemporâneo.
Palavras-chaves: Literatura, melancolia, sujeito-poético.
6
ABSTRACT
The present work intends to approach the direction that the melancholy prints
Literature. For in such a way one will see its beddings and its influence as founding element of
the artistic object. It has been broken of the estimated one of that without melancholy it does not
have Literature. It will see, also, its relation with the workmanship of Clarice Lispector where if
it thinks to have the proposal of the melancholy in the man contemporary.
Word-keys: Literature, Melancholy, citizen-poetical.
7
SUMÁRIO
1 - Introdução ........................................................................................................... 9
2 - A Melancolia .................................................................................................... 11
2.1 - A melancolia e a tristeza ................................................................................ 11
2.2 - A melancolia e a depressão ............................................................................ 11
2.3 - O conceito de melancolia ............................................................................... 12
2.4 - Julia Kristeva e a melancolia ......................................................................... 14
3 - A melancolia e o sujeito-poético ....................................................................... 15
3.1 - A Felicidade .................................................................................................. 17
3.2 - O Niilismo .................................................................................................... 19
3.3 - A morte ......................................................................................................... 22
3.4 - Um itinerário amoroso .................................................................................. 26
4 - A hora da estrela: a melancolia do eu ............................................................... 29
4.1 - O vazio fundamental ..................................................................................... 30
4.2 - Quem sou eu? ................................................................................................ 31
4.3 - Desconforto no existir ................................................................................... 32
5 - Considerações Finais ........................................................................................ 34
6 - Referências ....................................................................................................... 36
7 - Anexos ............................................................................................................. 38
8
1- INTRODUÇÃO
Este trabalho surgiu do questionamento que vê ligação entre Melancolia e Literatura
como relação de causa-efeito. Em que a melancolia seria a causa espiritual para o efeito que é a
criação artístico-literária. Para observar esse entrelaçamento de identidades buscou-se auxílio,
principalmente, na Psicanálise e Filosofia.
Da Psicanálise, foram colhidos aspectos dos diversos conceitos estabelecidos para a
Melancolia e a instrumentalização para a construção de um possível modelo de análise crítica da
obra literária. A Melancolia será vista pela ótica de Sigmund Freud (FREUD,op.cit.) e Julia
Kristeva (KRISTEVA, op. cit.) basicamente.
Da Filosofia, foram colhidos aspectos dos conceitos existenciais como o conceito de
Felicidade, Morte e Niilismo. Esse apoio teórico ajudará na arquitetação de uma outra
perspectiva de visão sobre o objeto literário.
Este ponto de vista pretende mostrar que toda obra literária é resultado de um
complexo eixo de relações que surgem da melancolia existencial de um sujeito de sensibilidade
aguçada.
Foram vistos, na bibliografia levantada, os itens que mais interrogam sobre o tema
proposto, como o conceito psicanalítico da melancolia e a inter-relação estabelecida entre o
literário e o mundo moderno como perspectiva que cria o objeto artístico.
Contudo, cabe colocar aqui uma ressalva quanto à inexperiência desse texto frente aos
seus elementos interrogadores e da necessidade de inclusão de outros elementos para se ter uma
representação mais eficaz do fenômeno estudado, como é o caso da reflexão sobre o conceito de
sublimação e a figura do leitor com componente do processo de co-criação da obra estética. Por
isso, não se deve considerar este texto como parâmetro conclusivo, que em sua totalidade
9
responda a todas as questões estabelecidas como problemas em aberto. Mas é apenas uma faísca
lançada sobre um mar de escuridão cuja descoberta já é um primeiro passo dado.
Foi analisado, também, em forma muito sintética, o livro “A hora da Estrela” de
Clarice Lispector (LISPECTOR,1998) onde se acredita ter a representação trabalhada da figura
do homem moderno em sua melancolia profunda.
Pensa-se que o surgimento deste sentimento dá-se na Grécia Antiga com o poeta
didático Hesíodo (HESÍODO, 2002) em sua primeira parte do tratado “Os trabalhos e os dias”.
Nele, Hesíodo demonstra uma aguda frustração frente a seu irmão (Perses) que o traiu em
questão de herança paterna. Essa frustração causará um sentimento de aversão à humanidade
Sentimento este que chega ao ápice com os românticos, escola literária que elevou os
sentimentos à condição de elementos fundadores e estruturadores da criação literária;
representado, aqui no Brasil, com a figura do poeta Álvares de Azevedo (AZEVEDO, op.cit.) e
seu tédio em relação à vida com forte inclinação ao suicídio.
Esse mesmo sentimento será depois chamado de sentimento do trágico. E hoje,
propõe-se uma nova nomenclatura, sentimento melancólico ou simplesmente, melancolia.
Introduzidos, ver-se-á agora o que se entende por melancolia.
10
2 – A MELANCOLIA
2.1 Melancolia e tristeza
De inicio é preciso um processo de diferenciação entre estas duas entidades. Tristeza não
é melancolia, embora toda melancolia seja, em certo sentido, a expressão de uma profunda
tristeza.
A diferença reside no fato de que a tristeza é um estado passageiro. Enquanto a
melancolia é um estado contínuo e até cíclico de um sentimento de tristeza profunda e patológica.
O indivíduo está triste, ou seja, algo causou nele um sentimento de desapontamento frente ao
mundo e/ou a si mesmo, mas este sentimento mostra-se passageiro. Por exemplo, o indivíduo está
triste, pois esperava que o seu time ganhasse o campeonato, mas essa tristeza não será
permanente, afinal próximo ano haverá um outro campeonato e sua esperança ressurgirá e com
ela a alegria de torcer.
Já o melancólico é triste. O que significa dizer que a perda de um objeto amado gerou
nele um mecanismo de degradação do próprio ego. Ele, como se verá melhor adiante, sente uma
tristeza profundamente opressiva que é manifestada por uma aversão ao mundo, pela
incapacidade de amar e outras características, notadamente proposta por Freud1.
2.2 Depressão e melancolia
Neste trabalho, pelas características que este traz consigo, não se buscará uma distinção
precisa entre melancolia e depressão. Afinal há, no meio da teoria psicanalítica, divergência sobre
os limites entre ambas. Para alguns uma é sinônimo da outra; para outras há diferença no que diz
respeito ao limite patológico demonstrado nos casos analisados.
1 FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia in: Edições Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
11
Não faremos aqui esta distinção por questões práticas. Mesmo porque nem o próprio
Freud fazia esta diferenciação, como nos mostra a professora Ana Gleide de Guedes Moreira,2
psicanalista da Universidade Federal de Pará:
Freud indica que também a psiquiatria não alcançou uma única definição de melancolia. Ele mesmo utiliza, ao longo de sua obra, melancolia, depressão, depressão melancólica, o mais das vezes como sinônimos, sem jamais estabelecer uma distinção clara entre os termos. De fato, ele tinha ambos os vocábulos disponíveis no alemão corrente, sendo que depressão chega ao alemão vindo do francês a partir do latim e, melancolia, é um velhíssimo termo de origem grega.(MOREIRA, 2005)
2.3 O conceito de melancolia
Ao longo da história da humanidade, muitos foram os conceitos de melancolia.
Entretanto, como ficou delimitado na introdução, será abordado aqui, apenas o conceito
desenvolvido pelo campo psicanalítico, mais precisamente os trabalhos de Freud3 e Julia
Kristeva4.
Em seu texto antológico, Luto e Melancolia, o pai da psicanálise compara o estado
melancólico ao trabalho de luto, chegando a verificar que ambos decorre de uma perda, mas, nota
também, que são processos mentais distintos, como nos mostra no trecho em que define os
limites da melancolia:
Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. (FREUD, 1917, p. 276)
Freud prossegue seu artigo afirmando que a melancolia é uma reação à perda do
objeto amado, que pode não ter morrido, como no caso do luto, mas que foi perdido enquanto
objeto de amor. Ele ainda afirma que essa perda pode ser não material __ como no luto em que o
objeto amado morre. Essa perda pode ser ideal, mesmo que o paciente saiba quem perdeu, ele
2 MOREIRA, Ana Cleide Guedes. A melancolia na obra de Freud: um narciso sem desculpa. Disponível em: < http// www. Herreros.com.ar/melanco/guedes.htm> Acesso em: 21 ago. 2005.3 FREUD, Sigmund. Idem.4 KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. 2a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
12
não sabe o que perdeu nesse alguém. Daí , deduziu, o mestre alemão, que a melancolia está de
alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência.
Mas a característica mais marcante que contrapõe a melancolia ao luto é o fato de que
o melancólico exibe uma diminuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de
seu ego. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego.”
(FREUD, op. cit, p. 278)
O melancólico sente-se inferior frente ao mundo, frente ao abjeto de amor. E ele,
manifesta toda essa descarga psicológica mediante a linguagem. Seus diálogos, monólogos
repetitivos, são o desmascaramento de si mesmo.
Uma análise mais acurada do conceito freudiano nos leva a ver a incapacidade deste
de se enquadrar no estudo dos textos literários, já que muitas das características propostas se
ausentam nessas produções artísticas. Um exemplo claro é a incapacidade de amar. Não podemos
localizar esta característica na melancolia dos poetas do romantismo como Álvares de Azevedo5.
O ponto bastante questionável diz respeito à “inibição de toda e qualquer atividade”.
Na Literatura, pensar este ponto é minar a visão, muito bem assentada pelos teóricos, de que a
obra artística é resultado de um processo de construção do estético sob a realidade humana. A
Literatura é atividade, logo o conceito freudiano não pode responder satisfatoriamente a esta
afirmação.
Embora admitisse que a condição patológica do melancólico fosse muito múltipla e
por isso difícil de formar um quadro clínico regular, suas constatações não se enquadram na
proposta desse trabalho. Ele deixa claro esse fato na advertência que faz no início de seu artigo,
Luto e Melancolia:
Dessa vez, porém, devemos começar por fazer uma confissão, como advertência contra qualquer superestimação de valor de nossas conclusões. A melancolia , cuja definição varia inclusive na psiquiatria descritiva, assume várias formas clínicas, cujo agrupamento numa única unidade não parece ter sido estabelecido com certeza (...) (FREUD, op.cit., p. 275)
5 AZEVEDO, Álvares. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: FDT, 1994
13
Apesar da advertência, a dificuldade em enquadrar este conceito no contexto literário
leva a uma busca em torno de uma resposta mais positiva em relação ao objeto artístico. Essa
resposta, ao que tudo indica, foi encontrada no conceito desenvolvido por Julia Kristeva6.
2.4 Julia Kristeva e a melancolia
Para ela (KRISTEVA,1989, p. 18), a melancolia poderia ser concebida com “sinal de
um ego primitivo , ferido, incompleto, vazio”.
Kristeva ainda ressalta que:
Um indivíduo assim não se considera lesado, mas sim atingido por um defeito fundamental, por uma carência congênita (...)Na realidade, para esse tipo de deprimido narcísico a tristeza é o único objeto: mais exatamente, ela é um sucedâneo do objeto ao qual ele se prende, que ele domestica e acaricia, na falta de um outro. (KRISTEVA, op. cit.)
Este conceito, ao contrário de Freud,7 que ver este fenômeno unicamente como uma
resposta à perda de um objeto de desejo, pensa a melancolia como descoberta de uma tristeza
primordial que oprime o indivíduo e gera nele um potencial artístico.
Vista dessa maneira, a melancolia se mostra não como um elemento que produz
inércia, mas, por exigir do melancólico a necessidade de comunicar-se, gera um elemento que
provoca uma atividade: a expressão artística.
Ainda tratando de Julia Kristeva, passar-se-á para a tese fundamental desse trabalho
que é a melancolia como fundadora do sujeito poético.
6 JULIA, Kristeva. Idem.7 FREUD, Sigmund. Idem.
14
3 - A MELANCOLIA E O SUJEITO-POÉTICO
O que se pretende aqui é a discussão do substrato melancólico como elemento que faz
surgir o sujeito-poético. Para tanto, faz-se necessário expor o que se entende por este conceito.
Entende-se aqui por sujeito-poético a entidade artística e essencialmente humana, no
sentido de possuir uma visão espiritual de humanidade, que constrói a obra literária. É importante
portanto diferenciá-lo do sujeito humano que está por trás da obra, o autor, que por sua vez se
manifesta como ser unificado e preso a esfera carnal, a condição humana de existência. O sujeito-
poético é um ser espiritual criado pelo autor, e por isso ter certa distância deste, que se expressa
sobre sua obra produzida.
Quer ele se manifeste através de uma visão pessoal, o eu lírico da poesia, quer por
uma entidade global, o Demiurgo da prosa, ou ainda, pela voz de personagens como no texto de
dramaturgia, ele será um ser que emergiu de um processo melancólico de descoberta de si mesmo
e do mundo a sua volta.
Para tal afirmação parte-se da constatação que Julia Kristeva (KRISTEVA, op. cit.
p.13) modela em seu livro: “se não existe escrita que não seja, amorosa, não existe imaginação
que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.”
Vê-se, então, a arte, de uma forma geral, como expressão dessa tristeza profunda. Na
Literatura, o fato ganha a amplitude de criação de uma entidade que comunica sentimentos e
dores que refletem, direta ou indiretamente, a melancolia.
Uma explicação possível diz que o autor, sujeito que necessariamente possui uma
intensa sensibilidade, oprimido pelo peso da angústia melancólica, sublima suas dores através da
escrita. Mas ao escrever não fala simplesmente de si, porém de um alguém que levará suas dores:
o sujeito-poético.
15
A partir do momento em que ele escreve, uma nova identidade surge que se
encarregará de expressar suas dores e a angústia de ter o seu objeto de amor perdido. Esse ser não
é o autor, tampouco está separado deste; tem vida própria.
Essa necessidade de contar-se já tinha sido percebida pelo mestre da psicanálise que a
anuncia em seu texto, Luto e Melancolia:
Sentimentos de vergonha diante de outras pessoas, que, mais do que qualquer outra coisa, caracterizam essa última condição (luto), faltam ao melancólico, (...) Poder-se ia ressaltar a presença nele de um traço quase oposto, de uma insistente comunicabilidade, que encontra satisfação no desmascaramento de si mesmo. (FREUD, op. cit., 279)
Contudo, é importante deixar claro que o que se pretende aqui não é aquela visão
desenvolvida nos primórdios da Análise psicanalítica de textos literários para os quais os motivos
da criação literária centravam-se na figura do autor e nos seus estímulos inconscientes. O defeito
deste enfoque é tentar enquadrar um personagem fictício como um ser humano real que em si é
multifacetado e irredutível a um ponto de vista particular. A obra literária não é documento para
se fazer uma análise psicanalítica como se tratasse de um paciente num divã.
A crítica psicanalítica aqui delineada é um método particular de decifração do código
lingüístico para verificar a possibilidade de construção de sentido a partir da teoria psicanalítica,
mas sem incorrer no erro de acreditar encontrar no texto um sujeito que se assemelha à
complexidade de um sujeito humano real.
Por isso é necessário esse afastamento do sujeito humano, no caso o autor, envolvido
na elaboração da obra artística, pois, senão o estudo se resumiria a uma análise da biografia do
poeta. Vale aqui a observação de Octave Mannoni8:
O que destacaremos é que o trabalho literário concretiza-se inevitavelmente num objeto (de natureza, é verdade, muito particular) que se desprende do autor, que se excreta para alguém, para outrem. (MANNONI, 1992, p. 31)
8 MANNONI, Octave. Um espanto tão intenso: a vergonha, o riso, a morte.Trad. Álvaro Cabral. Rio de janeiro: Campus, 1992.
16
Essa visão usaria o sujeito-poético, entidade humana, pois criada por um humano,
como o referencial de estudo para análise do objeto de questionamento que é a obra literária. Ele
é entidade sem biografia e por isso toda análise não irá além do próprio texto. Todas as
observações devem ser coletadas dentro do próprio texto sem para isso recorrer a uma explicação
historicida ou puramente estética.
Para construção de uma análise elucidativa seria necessário verificar o
posicionamento que este sujeito toma frente aos seguintes temas: a felicidade, a morte e o mal-
estar moderno ou niilismo.
3.1 - A FELICIDADE
De início parte do princípio que o sujeito-poético não se considera feliz, pois se o
fosse não haveria nada a dizer. Basta lembrar que o tema fundamental da arte literária, como
questão apresentada neste trabalho, é a melancolia. Se tudo está bem, não há o que contar. Se o
sujeito está satisfeito com a vida e o mundo, ele não terá elementos que conteste esta ordem
estabelecida, em outras palavras, ele não teria o tema de sua motivação artística.
Mas o que é a felicidade para esta entidade?
Inicialmente, ela deve ser compreendida como o período de satisfação em que ele se
encontra com o objeto perdido. O contato com o objeto de amor produz um sentimento positivo
de construção de relações com o mundo (a melancolia é a destruição de relações com o mundo
exterior par estreitar-se na esfera interior).
Assim teríamos a felicidade em um momento inicial de contato com o objeto de
desejo, o que não gera criação artística, pois há satisfação dos desejos ocultos; a não ser que o
sujeito se martirize pela possibilidade de sua perda a qualquer momento, o que significa dizer que
ele tenha conhecimento da finitude do objeto amado.
17
Mas essa relação, então, acaba. O objeto é perdido. Daí deduzir que toda narrativa é o
itinerário da perda e busca de reencontro de um objeto amado. Essa perda, como ficou exposto
anteriormente, provocará a melancolia. A insatisfação pela incompletude causada pela ausência
objetal o impulsionará para o que Frued9 chama de o “desmascaramento de si”. É a própria
construção literária.
A partir desse momento acredita-se em uma Felicidade que virá depois com o retorno
do objeto perdido. Mas, essa perda normalmente é irreversível, o que o aprisionará a esperança de
uma Felicidade sempre lançada para um futuro não muito distante.
Mesmo que esse objeto fosse possível de se reencontrar, a Felicidade continuaria
sendo um ideal abstrato e impossível. Afinal, a Felicidade é desejo e o desejo é falta. Quando o
objeto de amor for reencontrado, a falta será preenchida e o desejo cessará, acabando,
conseqüentemente, com a Felicidade. O sujeito buscará outro substituto. Isso é o que apontou o
filósofo André Comte-Sponville10 em seu livro A Felicidade desesperadamente:
Temos um desejo de felicidade, e esse desejo é frustrado, decepcionado, ferido. (...) Ser feliz é __ pelo menos numa primeira aproximação __ ter o que desejamos. (SPONVILLE, 2002, p. 24;25)
A impressão que o melancólico tem do mundo é que tudo é sofrimento. Esse
sofrimento é expresso pela falta do conceito de completude que a falta do objeto de amor traz.
Uma vida sem Felicidade, pois ele sente-se condenado a carregar o fardo dessa incompletude
para sempre. Sentimento que se exacerbará num vazio e descrença profundos: o niilismo.
9 FREUD, Sigmund. Idem.10 SPONVILLE, André Comte. A felicidade desesperadamente. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins, 2001.
18
3.2 - O NIILISMO
Num primeiro momento, entender-se-á o niilismo como impulso que dirige o viver
humano para o nada, a própria negação de sua existência.
Pode-se, contudo subdividir o Niilismo em dois tipos: o Niilismo passivo e o Niilismo
ativo.
Esta divisão é estabelecida por André Joffily Abath11, segundo o qual o Niilismo pode
ser compreendido como a marca do mundo moderno. Para ele (ABATH, 2005), este impulso é
força que dirige ao nada.
Neste primeiro conceito se verifica uma tendência a abordá-lo como vontade de poder
de efeito negativo. Mas este é apenas o conceito de niilismo Passivo.
Este tipo de Niilismo é caracterizado pelo auge do pensamento cristão e socrático.
Para Abath, o homem que se resigna a uma vida, onde há uma centralização na figura de uma
entidade superior que o julga e o condena, é deixar de viver para apostar em uma vida melhor no
além morte.
De certa forma, este indivíduo, que ligado a seu Deus, nega a vida presente,
suprimindo e acorrentando-a, ou seja, reduzindo o viver a um esperar para a morte, pois só com a
morte se chegaria ao verdadeiro. Essa forma de vida também pode ser considerada niilista,
porque, na vida real, o homem vive o nada.
Este pensamento surge pelo medo da finitude humana, afinal o homem busca livrar-se
do tempo e penetrar no infinito. Nega-se, então, o real para se lançar na busca do eterno. A vida
desse crente será a negação de si própria porque verá a existência como vã e, por isso, não
necessária.
11 ABATH, André Joffily. O niilismo. Disponível em: <http// www.consciencia.org/contemporanea/nietabath.shtml > Acesso em: 19 de ago. 2005.
19
Esta forma de niilismo ainda se faz presente no pensamento socrático e que, de certo
forma, permeia todo o ideal da Filosofia. O homem, que abandona a existência real para
perseguir o ideal de encontrar-se com a verdade é um niilista. Ele falsifica a realidade para se
concentrar na descoberta da verdade. Segundo Abath (ABATH, 2005), “viver para a verdade é
viver para o nada”.
No segundo tipo de niilismo tem-se um potencial de força aplicado para destruição da
moral. Ao contrário do niilista passivo, o ativo perde a fé em tudo que o cerca e passa a dirigir
sua vida para a destruição da moral. É esse homem que mata seu próprio Deus. Este indivíduo
negará os valores superiores e com eles a ilusão da eternidade.
Este tipo de niilismo é considerado ativo, pois gera uma ação que é a destruição da
moral cristalizada e, para Abath, a negação da moral indica uma elevação do homem.
Porém este é apenas o primeiro momento desse processo. O que, em início, era
movimento de destruição enfraquece e decai, porque:
No homem, o resultado deste processo é a decadência, o nojo pela vida. Do assassino de Deus surge o último dos homens. É o homem fraco, entediado, postado diante do absurdo e à espera da morte. Não crê, mas também não cria. Torna-se suicida, ultilitarista, socialista. Livre de Deus, mas saudoso de sua verdade. Para o niilista ateu, o mundo assume a forma de absurdo; já não há mais sentido, não há mais preservação da vida. (ABATH, op. cit.)
Qual a importância deste estudo para o desenvolvimento da proposta deste trabalho?
Todo melancólico é niilista, pois abandona a vida comum para mergulhar no escuro
labirinto de sua personalidade perturbada pelo terrível corte na ligação com seu objeto de desejo.
Sendo assim, o sujeito-poético aqui proposto, também possui esse sentimento de nada, vazio ou
falta.
Mas convêm algumas observações sobre o conceito exposto por Abath.
20
Na Literatura, o niilismo não produz a ausência de potencial criador como pode ter
ficado expresso quando ele diz que o niilista “não crê, mas também não cria”. Problema
semelhante já foi discutido quando da abordagem do conceito de Melancolia de Freud. Literatura
é criação.
Embora, possa parecer que não há correspondência entre os modelos de Niilismo
apresentados e a Literatura, é importante observar que ele está impregnado na cultura literária de
maneira a passar desapercebido ao enfoque do que já se tem de Teoria Literária.
Na corrente dita apolínea (estética da norma), que segue modelos e padrões de criação
estética, há o Niilismo passivo que recolhe as condições de existência já impostas. Já na corrente
dionisíaca (estética da liberdade), há o niilismo ativo, pois questiona e destrói os modelos
cristalizados e arcaizantes da Literatura. Este último modelo seria as correntes literárias, como o
Romantismo, que produzem um movimento contra a ordem para introduzirem uma desordem que
recriará o objeto estético.
Como se verá logo mais, a figura do niilista moderno na Literatura é este último
(niilista ativo). Suas características apontam para um sujeito-poético que se impregnou por uma
descrença em Deus e por um sentimento de nulidade que ressoa no âmago vazio. É o que se
tentará mostrar no capítulo 3 deste estudo.
Este vazio é extremamente sufocante para o homem. Essa negação total da existência
desembocará na descoberta de nossa tragicidade. O Niilismo aumentará a carga negativa sobre o
melancólico que não verá outra maneira de viver senão a própria não-existência. O melancólico
será tomado pelo impulso da morte. Com ela, o itinerário do sujeito-poético se completaria.
Cabe, contudo, entender a maneira como essa entidade literária concebe a morte. Ela
seria o reflexo, simplesmente, da fuga do viver impregnado de tristeza?
21
3.3 - A MORTE
O sentido que a morte será abordado é, necessariamente, fundamental para a
compreensão da constituição psíquica do sujeito melancólico. A visão que este imprime a morte,
é, inteiramente, particular. O que se questiona é exatamente a compreensão dessa visão que tende
ao suicídio e que constrói, com componentes da realidade, um mundo ficcional.
Mas o que se pode teorizar sobre a morte? De início, nada. Afinal, ela é uma
experiência e para ser compreendida é preciso o contato com sua existência, ou seja, para
compreendê-la se faz necessário morrer. Toda essa escuridão teórica dificulta a formulação de
teses que se aproximam de sua essência. Contudo, pode-se pensá-la a partir da própria vida.
Como numa língua tudo é oposição, a morte seria, em sentido amplo, a negação de
algo. Ela é o oposto da vida, a própria negação desta. Para além de concepções religiosas, ela
pode ser entendida como não-ser; o que se opõe ao ser que é a vida ou o próprio existir.
Morrer é, principalmente, negar a vida e transmudar-se em não-ser.
Porém, o que interessa a este trabalho é a morte como ato suicida, pois é mediante o
suicídio que muitos poetas negaram suas existências. Cabe frisar a relação que o sujeito-poético
constrói entre o suicídio e o fazer poético.
A palavra suicídio significa, etimologicamente, morte de si mesmo. Mas esta
definição não é suficiente para explicar a complexa rede de relações que este ato implica. Para
uma definição mais arguta recorre-se a Antônio Ozaí da Silva12: “O suicídio é um ato racional e
humano. Suas motivações se manifestam individualmente _ seja pelas declarações dos indivíduos
suicidas, seja pelas interpretações que surgem em cada caso específico”. (SILVA, op. cit.)
12 SILVA, Antônio Ozaí da. Suicídio, Literatura e Sociologia. Disponível em: <http:// www.espacoacademico.com.br/a44/44eozai.htm > Acesso em: 17 ago. 2005.
22
Este conceito parece confortável por apresentar o suicídio como um ato que é
inteiramente humano, o que significa dizer que não é um ato anormal ou não-humano. Fala,
também, como ato que surge de uma reflexão, ou seja, o suicídio não é um ato irrefletido, mas
um ato pensado e por isso racional.
É fato evidente que o suicídio sempre foi um ato criticado pela sociedade e pelo
aparato ideológico que a rodeia, como por exemplo a religião. Mas o que pensa um suicida sobre
a morte?
Como nosso elemento de análise é o objeto literário, cabe recorrer a ele para procurar
as possíveis respostas a este questionamento. Falar-se-á de Álvares de Azevedo13 que aqui no
Brasil foi o representante máximo do mal-do-século. A análise de um de seus poemas pode lançar
luz sobre o tema.
LEMBRANÇA DE MORRER
1- Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima Em pálpebra demente.
5 - E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento.
9 - Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto, o poento caminheiro,
– Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
13 - Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia.
17 - Só levo uma saudade – é dessas sombras
13 AZEVEDO, Álvares. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: FDT, 1994
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Que eu sentia velar nas noites minhas… De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas!
21 - De meu pai… de meus únicos amigos, Pouco - bem poucos – e que não zombavam Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
25 - Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei… que nunca Aos lábios me encostou a face linda!
29 - Só tu à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores…
Se viveu, foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores.
33 - Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo… Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu, eu vou amar contigo!
37 - Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela: Foi poeta - sonhou - e amou na vida.
41 - Sombras do vale, noites da montanha Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-lhe canto!
45- Mas quando preludia ave d’aurora E quando à meia-noite o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri os ramos…
Deixai a lua pratear-me a lousa!
(Álvares de Azevedo14)
Uma observação atenta dos versos do poema no conduz a alguns pontos de debate. O
primeiro é a visão da vida. A vida para este sujeito-poético é um tédio, algo que o cansa. Há uma 14 AZEVEDO, Álvares. Idem.
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passividade em relação à morte. Morre porque não há prazer na vida, ou melhor, não há o objeto
de amor do poeta que, no caso, é amada, a filha do céu. (verso 16).
Pode-se afirmar que o poema transpira uma existência sem sentido causada pelo
desencontro entre ele e o seu objeto de desejo. Como não pode concretizar, na realidade, o
encontro com o objeto idealizado, o poeta procura a morte.
A morte neste poema tem um duplo sentido. É, ao mesmo tempo, fuga da vida
entediante sem sua amada (verso 9), como também, é a esperança do encontro com ela numa
outra existência, uma vida após a morte (versos 35 e36). No poema, esta outra existência aparece
como o modelo cristão de vida no além-morte que é representado por um céu e a possibilidade de
reencontro com pessoas amadas.
Embora não se possa afirmar que há no poema a perda de um objeto, há nele a busca
de um ideal de amor que não está ao alcance do sujeito. A amada é o objeto perdido, posto que
nunca tido e sempre esperado.
Coloca-se aqui a visão de Roosevelt M. S. Cassorla15 que pensa que:
O suicida não procura a morte (porque não sabe o que seja), mas sim está em busca de outra vida, fantasiada em sua mente. Essas fantasias comumente se encontram em nível inconsciente e, portanto, só podemos descobri-las por meios indiretos. (CASSORLA, 1984.p.29)
É claro que o fato não se resume a isso. Há um complexo emaranhado de relações que
interrogam a questão. Para Julia Kristeva (KRISTEVA, op. cit.), o suicídio não deve ser
entendido como um ato de falta de coragem frente ao mundo, mas deve ser compreendido como
decisão de aproximação com seu objeto de amor que agora é a própria tristeza que a perda
acarreta. A morte seria a união última com o amor impossível , já que a vida o promete como
algo sempre lançado para o futuro ou como algo impossível, só o suicídio levá-lo-ia para este
núcleo fundamental da existência melancólica que é a tristeza.
15 CASSORLA, Roosevelt M. S. O que é suicídio? . São Paulo: Brasiliense, 1984.
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Ela, ainda, abrange a problemática para toda humanidade a partir do momento em que
diz que todo homem tem uma pulsão para a morte ou Tanatos, com ela prefere chamar. Segundo
Kristeva (KRISTEVA,1989, p. 24), “a melancolia narcísica manifestaria esta pulsão no seu
estado de desunião com a vida: o superego do melancólico aparece para Freud como uma ‘cultura
da pulsão de morte’”.
Esta pulsão de morte briga com outra força que é a pulsão de vida. Em nível
individual, Tanatos sempre vencerá, pois todos os homens morrerão, mas, em nível coletivo,
prevalece o Eros (nome dado à pulsão de vida), porque a sociedade como um todo sempre
sobreviverá à aniquilação total. Este conflito está em debate confuso na mente do melancólico
que passará a ser a “testemunha da precariedade do ser vivo”.
Após a análise deste último ponto, pode-se passar para o quadro geral da melancolia e
do sujeito-poético.
3.4 - UM ITINERÁRIO AMOROSO
Dos pontos levantados, problematiza-se a possibilidade da construção de um efeito
cíclico de criação poética. Pensa-se que a Literatura pode ser observada neste esquema:
O suicídio
Tédio Tédio
Busca da Felicidade Niilismo (perda do objeto de amor)
(Fase Maníaca: alegria da descoberta do objeto de amor)
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A fase maníaca é a fase da alegria. É uma fase que, vez ou outra, entra no ciclo do
melancólico provocando um prazer passageiro. Na Literatura, esta seria a representação de um
texto que evoca sentimentos positivos, embora o substrato continua a ser a melancolia. Em sua
estrutura profunda, o texto tem o mesmo sentimento: a Melancolia, apenas sua estrutura
superficial variar. É o que nos diz o narrador de A hora da Estrela (LISPECTOR,op.cit. p.35):
“(...) minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria
falhada”.
Afirma-se que toda obra literária estaria ou poderia ser incluída neste modelo. Não em
sentido histórico: o texto não segue, necessariamente, essa estrutura, como se fosse uma linha que
todo texto passaria linearmente. Ele pode estar em algum trecho do percurso ou ser a expressão
de uma fase para outra. Neste sentido, não há uma Literatura da Felicidade, mas de sua busca. O
texto literário é a história da busca da Felicidade. A obra literária que se enquadraria na fase
maníaca é a narração da descoberta do encontro com o objeto de amor. Alegria que refletiria o
medo original da perda deste; fica-se alegre, porque há o medo de um dia vir a perdê-lo.
Apenas como ilustração, serão classificadas algumas obras aqui analisadas
Os trabalhos e os dias16 __ Hesíodo: Obra da fase de Niilismo. Após a frustração
com a traição do irmão Perses, a perda do objeto (a confiança), o poema é construído como
elemento de tristeza que foi causada pela decepção.
A lira dos vinte anos17 __ Álvares de Azevedo: A obra se enquadraria na Literatura
suicida que é o ápice do sentimento da melancolia. Esta obra seria exemplo de constituição
máxima de louvor à morte.
A hora da estrela18 __ Clarice Lispector: A obra, também Niilista, é a narração da
passagem da fase Niilista para a fase suicida. Macabéa é um ser de um vazio primordial que
caminhará para sua morte.
16 HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Ed. 4a .São Paulo: Iluminuras, 2002.17 AZEVEDO, Álvares. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: FDT, 199418 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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Cabe colocar aqui uma observação quanto ao modelo. Ele não implica uma ordem
cronológica das fases. Poderia afirmar que é, antes, um círculo que se interpenetra. O exemplo de
Lispector leva a crer que uma obra pode pertencer a mais de uma fase, ou ser a narrativa do
processo de construção dessas fases. Além do movimento para frente, passando da busca da
Felicidade para o Niilismo para depois chegar à fase suicida, há também o mecanismo inverso de
criação literária, ou seja, do impulso suicida para o Niilismo e deste para a busca da Felicidade.
Outro ponto importante é o fato de este modelo não ser prescritivo, é, muito
anteriormente, uma descrição de um processo que acredita ser fundamental para a criação
literária. É a expressão, mediante símbolos, de sentimentos que refletem a complexidade do
sujeito humano, como apontou Julia Kristeva19:
A criação literária é esta aventura do corpo e dos signos, que dá testemunho do afeto; da tristeza, como marca da separação e como início da dimensão do simbólico; da alegria, como marca do triunfo que me instala no universo do artifício e do símbolo, que tento fazer corresponder ao máximo às minhas experiências da realidade. Mas esse testemunho, a criação literária o produz num material bem diferente do humor. Ela transpõe o afeto nos ritmos, nos signos, nas formas. (KRISTEVA,1989, p.28)
A definição que se estabelece aí é a de Literatura como resultado de transposição para
o mundo dos símbolos, signos, do sentimento do homem no estar-no-mundo. Como escreveu em
outro trecho, dir-se-ia que o sujeito-poético é “testemunho da precariedade do ser vivo” em sua
complexa vivência no mundo.
19 KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. 2a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
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4 – A HORA DA ESTRELA: A MELANCOLIA DO EU
Na contemporaneidade a figura de Clarice Lispector20 ganha notoriedade no que se
refere ao tema que trata esse trabalho. Figura máxima do sentimento moderno, Lispector, em sua
obra síntese, elevou a Melancolia ao fundamento de uma vida sem perspectivas. Em “A hora da
estrela”, a melancolia é algo imanente e inteiramente presente no decorrer de seu enredo.
Neste texto, não se trata em especial de um sujeito particular que provoca a
introspecção do ego sobre si mesmo; em “A hora da estrela”, Lispector mostra um mundo sem
oportunidades de vida. Macabéa e Rodrigo S.M. formam a figura da Melancolia, é a
personificação da própria dor existencial sob a forma artística.
Assim como Albrecht Dürer* em seu quadro antológico neste estudo, Melencholia
de 1514, personifica a figura do melancólico, Lispector, com a “A hora da estrela”, personificou
o sentimento melancólico moderno.
Uma análise mais profunda dos personagens em questão nos mostra esse fato.
Macabéa, a própria negação do ser enquanto ação, é uma mulher nordestina que vem
para o Rio de janeiro e nesta cidade é agredida por uma sociedade machista e opressora. Mas,
retirando do texto toda relação estabelecida entre o sujeito e o meio social, procura-se o sujeito
em sua introspecção.
20 LISPECTOR, Clarice. Idem.* Albrecht Dürer (21 de maio de 1471 - 6 de abril de 1528) foi um gravador e pintor alemão, nascido e crescido em Nuremberg, tendo morado duas vezes na Itália quando adulto. Morreu aos 56 anos, em sua cidade natal.Grande teórico da cidade do Renascimento, o primeiro fora de Itália, publicou em 1527, em Nuremberga, o "Tratado sobre fortificação de cidades, vilas e castelos", onde apresenta um esquema de uma cidade ideal quadrada, opondo-se ao ponto de vista de maior parte dos tratadistas italianos, como Barbaro, Filarete, e até Vitruvio, cujo texto da Antiguidade é referido como obra-prima para estes arquitetos e urbanistas. ("Clássico Anticlássico", ARGAN) A figura está anexada no fim deste trabalho.
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Pretende-se mostrar na figura de Macabéa e Rodrigo S. M. o estereotipo do
melancólico moderno. Para tanto retornemos ao conceito de Melancolia estabelecido por
Kristeva:
(...) a tristeza seria o sinal de um ego primitivo ferido, incompleto, vazio. Um indivíduo assim não se considera lesado, mas sim atingido por um defeito fundamental, por uma carência congênita. (KRISTEVA, op. cit. p.18)
Com base nesse conceito serão analisadas as características que A hora da estrela nos
aponta quanto à caracterização do melancólico moderno. Essas características são: um vazio
fundamental, o questionamento ontológico da identidade do sujeito e o desconforto no existir.
4.1 – O vazio fundamental
Macabéa é vazia. Quando se usa esta palavra pretende-se dizer que ela era um nada
em sentido de ser desprovidas de conceitos. Ela possuía um vazio interior, um sentimento de falta
de um objeto de amor, um oco fundamental que provinha de toda sua existência. É o que nos
confirma o trecho: “Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não
tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha.” (LISPECTOR, 1998, p. 25)
O homem moderno é fruto desse mal-estar contemporâneo. Um nascer para a morte. E
o peso dessa condição sugaria toda possibilidade de ação. Macabéa era vazia e, assim como o
homem moderno que se sente o mesmo vazio primordial, esse vazio torna-se extremamente
opressivo; já não há um elemento de sustentação ideológica que possa salvá-la dessa profunda
nulidade. Ela descobre que o ser é nada.
Como nos mostra neste trecho (LISPECTOR, op. cit.35): “O pior momento de sua
vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em meditação inquieta, o vazio do seco domingo”.
30
Esse não ter nada, desemboca na sensação de incompetência: “Ela era incompetente.
Incompetente para a vida.” (LISPECTOR, op. cit. p. 24)
Essa descoberta de que o homem é um poço sem fundo, levá-os a um questionamento
que será o centro da segunda característica da melancolia do moderno.
4.2 - Quem sou eu?
A descoberta da nulidade existencial provoca o questionamento de si mesmo enquanto
uma identidade; surge, então, a pergunta que é o cerne do problema existencial do homem
moderno: Quem sou eu?
O homem moderno precisa encontrar-se com sua identidade. Essa busca é árdua e
cansativa, há em todos o medo de se encontrar com um monstro (LISPECTOR,1998, p.15): “sou
um monstro ou isso é ser uma pessoa?”. O homem moderno é fragmentado e essa fragmentação
perpassa toda uma visão de mundo. Como existir sem ter conhecimento de quem sou eu?
A grande questão está na pergunta. A resposta é o elemento que tira o homem de seu
lugar confortável na ideologia para a dúvida do existir.
Lispector deixa isso bem claro através da voz de Rodrigo S. M.:
Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez fez uma trágica pergunta: quem sou? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. (Lispector, op. cit. p. 32)
Ou ainda em outro trecho:
Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um “não” na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não visse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse, ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? (LISPECTOR, op. cit. p. 26)
31
Nesse sentido, a negação do existir emerge como necessidade vital para a
sobrevivência no mundo moderno. A mentira é a máscara que esconde a medusa de cada ser
moderno: “de um modo geral mentia: tinha vergonha da verdade. A mentira era tão mais decente.
Achava que boa educação é saber mentir”. (LISPECTOR, op.cit. p.69)
A vida nesse mundo de máscaras, onde a pergunta é de difícil resposta, gera no
sujeito-poético a necessidade de volta-se para si para que em sua introspecção possa descobrir-se.
Um mundo cercado de dúvidas e incertezas cria no indivíduo um desconforto no existir, um
incômodo em ser o ser que pergunta e não tem respostas, um desconforto de estar-no-mundo.
4.3 - Desconforto no existir
O mal-estar gerado pela pergunta sem resposta provocará um desconforto cruel entre
o sujeito e o mundo, afinal (LISPECTOR, op.cit. 15) “quem indaga é incompleto”. O artista é o
sujeito que se sente deslocado da existência material como se não houvesse importância em estar
vivo, como se não pertencesse a condição humana, tamanha a estranheza em relação ao existir.
Esse estranhamento reflete-se sobre si como decepção com a realidade que o cerca. É, então,
tomado por uma tristeza profunda, uma aversão ao humano e uma extrema necessidade de não
existir, morrer, suicidar.
O melancólico então busca na escrita a própria busca por si mesmo. Um questionar o
mundo para encontrar em si a complexa relação sujeito-identidade. Com o ego destroçado, ele já
não se sente humano e por isso percebe já não ter seu lugar no mundo. Um ser deslocado, perdido
e confuso em meio às interrogações do viver na contemporaneidade, quem-sou-eu é apenas a
pergunta primordial, depois vem um questionar o tudo.
Como conseqüência desse processo, o sujeito poético perde a ligação com o divino.
Para ele, Deus é um ser abstrato e sem identidade pessoal, podendo, por não sentir a condição
humana, ser algo que emerge do imaginário coletivo dos indivíduos. Ele já não tem fé, Deus já
não existe.
32
Ela nunca mais fora à igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas, (...) Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia. (LISPECTOR, op. cit. p. 29 e 34)
Retomando o conceito de Kristeva onde se fala de “uma carência congênita”, vê-se
em Macabéa a descoberta da carência, a falta de um objeto de amor. Como preencher esse vazio?
A resposta de si mesmo como nos mostra Márcia Lígia Guidin:
Roubando-lhe o namorado, a narrativa concede-lhe (...) o conhecimento da carência e do desejo. Este conhecer corrói, aos poucos, o que antes era ignorância serena, próxima da dos animais. Amando, Macabéa transforma-se em ser que deseja. (GUIDIN, 1998, p. 76)
Mais adiante relaciona essa carência a condição de feminilidade: “(...) a mulher é o
ser da carência. Sua ‘hora da estrela’ é o momento de iluminação dessa consciência, que para
Macabéa é também o momento último da morte.”( GUIDIN, op. cit. )
Saindo desse âmbito, busca-se a condição de sofrimento existencial do sujeito-
poético. O melancólico precisa comunicar-se, mostrar-se ao mundo e o ato da escrita é “porque
nada tem a fazer no mundo enquanto espera a morte”:
Escrevo por não ter mais nada a fazer no mundo; sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída dos fundos. (LISPECTOR, op. cit. p. 21)
Macabéa e Rodrigo formam o quadro que delineia a Melancolia moderna. Todas as
características levantadas apontam para um caminho mais adentro da introspecção do sujeito. O
homem moderno não sabe quem é e, por isso, é que será preciso mergulhar em si mesmo para
descobrir-se. Lispector mostra as condições modernas de existência e levanta o fato de a escrita
ser um dos passos para essa descoberta do eu.
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5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que procurou este estudo foi olhar a obra literária sob outro ponto de vista que
difere, pelo enfoque dado, de outros trabalhos já existentes.
Não se pretende, contudo, conclusivo. Sabe-se da capacidade de renovação do
conhecimento humano e da exigência de ampliação dos elementos aqui questionados. Por seu
caráter, este estudo serve muito mais como introdução a uma reflexão sobre a Literatura que
como item fundador de bases para uma teoria de análise psicanalítica mais ampla.
Porém, estes fatores não tiram o mérito desta reflexão que, possivelmente, servirá para
uma perspectiva mais humana da análise literária. Esta que nos últimos anos tem tendido para
estudos mais formais que humanos propriamente dito. A leitura como descoberta desse
sentimento do humano foi, exatamente, o marco orientador dessa visão que aqui se tentou
delinear.
A Melancolia surge como esse ponto fundamental de onde emerge toda superfície
textual da obra literária. Consciente ou inconscientemente, o leitor toma conhecimento deste fato
quando se identifica mais ou menos com determinado tipo de texto.
O que foi feito aqui foi a passagem de algo que já era há muito inconsciente para o
lado consciente. O homem deve tomar consciência de que há outros homens que sofrem com esta
angústia profunda que os consomem. Neste sentido, a Literatura seria um grito desesperado de
desabafo, mesmo que um grito que se disfarça, às vezes, de sorriso.
Lispector (LISPECTOR, op.cit.p.81) pela voz de Rodrigo S.M. faz a pergunta que
norteou esta reflexão: “Pergunto: toda história que já se escreveu no mundo é história de
aflições?”
34
A esta a pergunta, procurou-se uma resposta. E o caminho percorrido para encontrá-
la, mesmo que inexperiente, foi o caminho do adentramento no humano. O ser humano sofre e
esta constatação guiou os primeiros passos dados. Sempre correndo o risco de não encontrar a
resposta, pois nunca haverá um dado imutável no estudo do ser humano; sempre em mudança, o
homem se manifesta multifacetado.
Mas, após logo percurso em contato com o sujeito-poético que aqui foi delineado,
chegou-se a uma possível resposta: Sim.
Este Sim não é, em sentido extremo, uma resposta vaga e confusa; é, antes, como
ficou aqui exposto, a possibilidade de reconhecimento da situação que aflige o homem moderno
e a visão da Literatura como busca da Felicidade. É, então, este homem que diz: “Então eu canto
alto agudo uma melodia sincopada e estridente __ é a minha própria dor, eu que carrego o mundo
e há falta de felicidade”. (LISPECTOR, op. cit. P. 11)
E como ela dize em outro trecho: “Tudo no mundo começou com um sim.”
(LISPECTOR, idem), a resposta que introduz este pensamento, também, será um Sim. Tudo
começa com um Sim, então, foi dito aqui: Sim.
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6 - REFERÊNCIA
1 - AZEVEDO, Álvares. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: FDT, 1994
2 - ABATH, André Joffily. O niilismo. Disponível em: <http// www.consciencia.org/contemporanea/nietabath.shtml > Acesso em: 19 de ago. 2005.
3 - CASSORLA, Roosevelt M. S. O que é suicídio? . São Paulo: Brasiliense, 1984.
4 – FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia in: Edições Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
6 - GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de Leitura: A hora da estrela de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1998.
7 - HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Ed. 4a .São Paulo: Iluminuras, 2002.
8 – KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. 2a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
9 – LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
10 – MANNONI, Octave. Um espanto tão intenso: a vergonha, o riso, a morte.Trad. Álvaro Cabral. Rio de janeiro: Campus, 1992.
11 - MOREIRA, Ana Cleide Guedes. A melancolia na obra de Freud: um narciso sem desculpa. Disponível em: <http//www. Herreros.com.ar/melanco/guedes.htm> Acesso em: 21 ago. 2005.
36
12– SILVA, Antônio Ozaí da. Suicídio, Literatura e Sociologia. Disponível em: <http:// www.espacoacademico.com.br/a44/44eozai.htm > Acesso em: 17 ago. 2005.
13 – SPONVILLE, André Comte. A felicidade desesperadamente. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins, 2001.
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7 – ANEXO
Figura I
38
Albrecht Dürer, Melencholia, 1514, Bulino, mm 240 186
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