Colonização centro-africana e seus desdobramentos: o genocídio de Ruanda
Andreia Terzariol Couto1
Resumo
A história da região dos Grandes Lagos é indissociável da historiografia europeia
que surgiu com a colonização, desde a coleta de depoimentos dos habitantes da região,
que recuperaram a fala de seus ancestrais, aos escritos estrangeiros. No entanto, deve-se
ter cuidado para evitar certas armadilhas provenientes de explicações simplistas. A
cultura política da região fascinou a todos os observadores que por ali passaram no final
do século XIX e encontraram sistemas monárquicos organizados, sobretudo em um lugar
cujas populações não dispunham nem de escrita, nem de sistema monetário. Tudo
funcionava pelas mensagens verbais, ligações pessoais, redistribuição do gado, através de
uma história baseada na memória preservada em mitos e lendas que remontam ao antigo
reino dos Banyaruandas. A história seguia seu curso até que, no final do século XIX
chegam os colonizadores, estruturando seu domínio a partir de escolhas entre Tutsis e
Hutus, os primeiros, privilegiados, aceitaram de bom grado a situação que lhes era
apresentada. Durante décadas, os Tutsis viveram confortavelmente essa colocação, até
que o próprio quadro interno da sociedade não pudesse mais se sustentar sobre os pilares
dos privilégios étnicos. Esse foi um dos geradores dos violentos conflitos que Ruanda iria
testemunhar.
Palavras-chave: História da África; África dos Grandes Lagos; Ruanda; Genocídio
As origens ancestrais
Os primeiros testemunhos sobre o país das mil colinas vieram de caravanas
suahilis2 que se embrenhavam no coração de África para comercializar seus produtos e
de lá voltavam falando de uma região de lagos e reinos. Estes primeiros contatos foram
1 Jornalista (UNIP), Bacharel em Letras (UFOP); Mestre em Jornalismo (UMESP) e Doutora em
Planejamento e Desenvolvimento Sustentável (UNICAMP). Professora do curso de Jornalismo da
Universidade Paulista, pesquisadora sobre África Central, autora do livro O país das mil colinas: relato do
último genocídio do século XX, obra na qual o presente artigo se baseia. [email protected] 2 Essas caravanas foram também as responsáveis pela disseminação da língua kiswahili pelo interior da
África, hoje uma espécie de língua franca falada por quase todo o continente, e uma das línguas oficiais
de vários países da África Central e do Leste. Macek, J. Introdução ao estudo do Kiswahili. São Paulo,
2006 (mimeo).
2
substituídos pelas expedições europeias, notadamente anglo-saxônicas que, utilizando as
rotas das antigas caravanas, vão então revelar aos ocidentais a existência desses reinos.3
No entanto, enquanto os exploradores descrevem Burundi e Uganda, Ruanda é vagamente
mencionada por Henry M. Stanley, durante a conferência de Berlim, em 1885, e somente
em 1894 o país será visitado por um alemão. Na sequência, vem o período de ocupação
colonial nos países vizinhos, como Quênia, Uganda, Burundi e Congo (este último
transformado em Congo Belga em 1908).
Os reinos ali encontrados no século XIX foram assim denominados porque
possuíam os atributos habituais desse tipo de regime: o poder supremo de um soberano,
as regras de transmissão dinástica, as referências mítico-religiosas, o controle do território
segundo regras militares e fiscais e uma jurisprudência à qual estavam sujeitos todos os
súditos.4 Mas essa instituição não nasceu em uma data precisa. Ela é fruto de uma
maturação, e também de rupturas a partir de linhagens de clãs muito antigas, cuja origem,
à falta de fontes documentais escritas, é muito difícil de precisar. No ocidente, pode-se
lançar mão de documentos e da reconstituição histórica através de referências bíblicas,
por exemplo. No caso da África, nada disso foi possível. Era preciso, então, decifrar o
imaginário social regional capaz de explicar a adesão e a identificação das populações às
suas respectivas linhagens (Chrétien, 2001).
A explicação para o surgimento dos reinos e seus reis na região dos Grandes Lagos
tem sua origem na memória de seu povo a partir da interpretação de histórias fantásticas
de uma dominação lendária. Uma delas trata da lenda dos Bacwezi, conhecida
principalmente no oeste ugandês, mas difundida além da região e reproduzida na
historiografia contemporânea.5 Mesmo sendo a estrutura monárquica muito diferente em
Ruanda com relação aos outros antigos reinos da região, a simbologia das narrativas de
origem também mostra uma configuração que implica na existência de grandes clãs.6
3 Chrétien, 1999, p. 16. 4 A. T. Couto e J. A. de Souza. O tambor e a toga. Os tribunais gaccaca de Ruanda. In: Curso de Direito.
Leituras essenciais. Campinas: Alínea, 2015. 5 O “Império dos Bacwezi” é explicado, primeiro, a partir de linhagens de clãs e de toda uma série de
dinastias reinando a partir dos séculos 16 e 17. A influência de um certo número delas se apoia no controle
de lugares sagrados ou na presença de um de seus ancestrais nas lendas. 6 Chrétien, ‘Mythes et strategies autour des origines du Rwanda – XIX e XX siècles: Kigwa e Gihanga,
entre le ciel, les collines et l’Ethiopie’, in: Id. et Triaud (Jean-Louis) éds, 1999, p. 281-320.
3
A combinação de uma “ingenuidade etnográfica”, por parte dos primeiros
europeus a interpretarem essas histórias, somada ao interesse político dos povos
tradicionalistas locais, no contexto da ideologia racial propagada pelos colonizadores,
acabou reforçando a ideia da existência de elementos sobrenaturais a uma situação
específica da história da região. Nela, os Tutsis surgem como povos superiores,
descendentes dos Bacwezi. Manuais e atlas ocidentais reforçaram, durante muito tempo,
sem que tivessem quem os contestasse, a existência do “Império dos Bacwezi”. Ainda
hoje, numerosos são os observadores da região que parecem ter necessidade de acreditar
na existência desse império e utilizam essa lenda para explicar a emergência dos reinos
dos Grandes Lagos.7
Outra vertente legendária parte diretamente em direção às origens de um reino,
por volta do final do século XV, identificado sob o nome de Bunyoro, da dinastia dos
Babito, vinda depois dos Bacwezi. O reino de Bunyoro é mencionado como um império
multissecular que teria dado origem a outros reinos. Essa narrativa se encontra, entre
outras, nas tradições da zona meridional dos países dos Grandes Lagos oferecendo uma
verdadeira genealogia dos reinos ramificados dos Bacwezi. 8
A chegada dos europeus na segunda metade do século XIX coincidiu com o
declínio desse reino e com a difusão da teoria hamita, segundo a qual os Tutsis eram
descendentes dos povos hamitas. A lenda dos Bacwezi, que os descreve como grandes
guerreiros e até mesmo o papel representado pelos chefes das tribos que se pintavam com
kaolin9 branco em certos ritos observados pelos europeus, vai ser interpretada de uma
maneira racial, reforçando a tese de um antigo povo “caucasiano” na região.10
7 Não havendo documentação que registrasse a existência desse império, as especulações em torno dos
Bacwezi apóia-se nas histórias orais, lendas e mitos da região. Segundo levantou Chrétien (op. cit., p. 82),
“Emin Pacha em 1881 descreve os “cantores mágicos ambulantes” chamados de “Wichwezi”; Roscoe,
1923, diz que “ninguém pode dizer se eles representam realmente as famílias reais ou se são personagens
puramente míticas; Cory e Hartnoll, 1945, sobre o país haya afirma: ‘Aqui os Bachwezi não são conhecidos
como seres humanos que de fato existiram, mas são considerados como seres puramente sobrenaturais’. O
fato é que há um vasto espaço cultural percorrido por crenças aparentadas” (Chrétien, 2001., p.78-79). 8 Chrétien, 1999, p. 84. 9 Koalin: minério branco utilizado em diferentes culturas africanas para pintar o corpo durante certos rituais. 10 Chrétien, op. cit., p. 85. O explorador John H. Speke (Journey of the Discovery of the source of the
Nile, Edimbourg, 1863, apud Chrétien, p. 86), lançou a hipótese de uma antiga invasão de Galla (os Galla
são mais precisamente os Oromo da Etiópia, sendo o termo galla não mais que um sobrenome), ancestrais
de grupos pastoris Hima, que explicavam a existência dos reinos dessa região por uma influência vinda da
4
Toda essa estrutura montada pelos europeus para explicar a origem tanto dos
Tutsis como dos Hutus, fez com que essas teorias racistas tivessem sucesso junto aos
notáveis dos países envolvidos (Ruanda, Burundi e Quênia), que se viam em posição de
destaque nessas histórias interpretadas pelos europeus. Foi assim que o antigo chefe
Nyakatura via na evocação do ‘império’ Banyoro uma ferramenta de promoção de sua
pequena pátria, ligada à tese da ‘raça dos homens brancos conhecidos como Abachwezi’.11
O reino dos Banyaruandas
Os primeiros exploradores viram-se admirados com o que se depararam na região
onde hoje se encontra Ruanda: um país verde, ondulado e arredondado por colinas sem
fim, de clima fresco, altitude elevada, em meio às florestas, campos cultivados de
bananeiras, cereais e criações de gado. O reino estava organizado em complexo sistema
monárquico, existindo ao lado de uma forte tradição oral apoiada em uma língua refinada,
nutrida de referências míticas.12 O que mais impressionou os primeiros viajantes foi a
complexidade das sociedades e das capitais reais.13 No entanto, para os colonizadores, a
história do lugar só começou a ser contada com a sua chegada e o passado que foram
desvendando foi enquadrado de acordo com seus interesses.
Até a chegada do europeu, o reino dos Banyarwanda, resguardado pelas muralhas
naturais da sua cadeia montanhosa, pôde proteger-se de invasões, de tráfico e sua língua
única preservou-se, mesmo ao lado do francês do colonizador. Também devido a essa
proteção natural, manteve-se afastado de contatos com outros povos, conservando suas
tradições de forma regular sem interferências externas. E como não tinham ambições de
conquistas territoriais, mantiveram-se em suas colinas por tempos e tempos, enquanto que
a presença de estrangeiros era também evitada. O comércio com os vizinhos era bastante
Etiópia. Através de uma incrível “bricolage etimológica”, Speke imaginava o papel de uma ‘raça admirável
de origem semi-hamita’. As coletas de tradições nesse contexto deixavam o caminho livre para todas as
especulações: o segundo nome de Rukidi (Branco e Preto) fazia dele um mestiço; como os nobres Banyoro
tinham dito a Speke que seus ancestrais vinham do Norte, ele concluiu que ‘estes últimos ligam-se, em
tempos remotos, a uma origem européia’. No início do século XIX, em 1902, outro autor, Harry Johnston
(A survey of He ethnography of Africa. Journal of the Royal anthropological institut, 1913, p. 43, apud
Chrétien, p. 86), dá autoridade à equação galla-hima-cwezi. Segundo ele, as lendas dos Bacwezi ilustravam,
com o ‘império de Kitwara’, criado por um ‘estoque quase caucasiano’, o ‘apogeu da civilização hamita’
nessa parte da África. O declínio teria vindo com a ‘negrificação’ dos governantes (Chrétien, 2001, p. 86). 11 Chrétien, op. cit., p. 87. 12 Chrétien, 2001, p. 12. 13 Chrétien, 2001, p. 69.
5
limitado e Ruanda não possuía sistema monetário. Kinyarwanda, a língua oficial e dos
ancestrais do reino de Ruanda, é formada pelo único povo chamado Banyarwanda, este
dividido em etnias que, por suas atividades, são assim designadas: os Hutus, ou
agricultores, constituem 85% da população; os Tutsis, ou criadores de gado, 14% da
população e a menor delas, os Tuás, os caçadores e fabricantes de cerâmica, 1%. Essa
configuração, constituída há tempos ancestrais, não guarda registros escritos de sua
formação, o que começou a ser feito somente com a chegada do elemento europeu.14 O
que se sabe é que o rei, denominado mwami,15 era da etnia Tutsi, e o local real era a cidade
de Nyanza, ainda hoje preservada. O poder do mwami cobria todo o território de Ruanda
e seu reinado esteve estabelecido durante séculos.
A partir da chegada dos europeus, surge a primeira geração de africanos
escolarizados que darão, eles mesmos, sua interpretação sobre a história de seu país. No
entanto, vale lembrar que essas pessoas estavam sob a influência do elemento colonizador
e, por isso, procuravam dar uma versão, a mais “civilizada” possível, da história de seu
país, no intuito de agradar ou responder às solicitações e aos julgamentos do dominador.
Este, por sua vez, deu aos africanos da região uma versão amplamente marcada por teses
racistas, opondo uma etnia a outra, reforçada pelos missionários religiosos, que ligavam
as populações da região a linhagens que fantasiosamente remontavam às histórias
bíblicas.
O final do século XIX marca a afirmação de incipientes estudos sociológicos que
se amparam no chamado “darwinismo social”, uma transposição superficial de alguns
pressupostos retirados da teoria do biólogo Charles Darwin sobre a origem das espécies.
Em determinado momento de suas fundamentações teóricas, Darwin discorre que, na
natureza, as espécies caminham de um estado primitivo para outro mais evoluído,
sobrevivendo somente as mais fortes e capazes de se adaptar ao meio. O darwinismo
14 No início do período colonial, a estratificação social de Ruanda foi amplamente divulgada da seguinte
forma: “(...) o peso demográfico dos Hutus (85% ou 90%), dos Tutsis (9% ou 14%) e dos Twas (1%) é um
elemento particular de referência. De fato, esse percentual não chega a ser um problema propriamente dito,
mesmo porque não foram coletados tendo por base métodos adequados. Esses dados são antes uma
repetição da representação do ponto de vista da sociedade colonial belga” (Anastase Shyaka, The Origin
of Rwandan Conflict, 2005). 15 O personagem que intitulamos ‘rei’ na nossa língua europeia é denominado, em Ruanda, de mwami, que
sugere, segundo a etimologia, a fecundidade e a frutificação. O corpo do rei está impregnado de uma tripla
vocação de força natural, de capacidade cultural e de poder (Chrétien, 2001, p. 111).
6
social parte dessa premissa para explicar a presença europeia na África: seriam os
europeus os elementos capazes de fazer com que as culturas “primitivas” encontradas por
eles nesse continente pudessem atingir um estado “evoluído” e “civilizado”. A tese de
que o grupo Tutsi seria descendente de povos “mais evoluídos”, serviu, na época, aos
propósitos dos dominadores. Ao elegerem uma etnia “superior”, esta os apoiaria em seu
projeto colonialista e legitimaria sua presença na região.
O isolamento dos Banyaruandas manteve-se até a segunda metade do século XIX,
quando são registradas as primeiras presenças de europeus em solo ruandês, inicialmente
através da pessoa do conde alemão Gustav Adolf Von Götzen, em 1894, que entrou em
Ruanda pelas cachoeiras do rio Rusumo, a sudeste, e cruzou o país até alcançar o lago
Kivu, passando no caminho por Nyanza, a cidade real, onde encontrou o mwami
Rwabugiri. Nessa época, a África já vinha sendo oficialmente fatiada entre as potências
europeias e à Alemanha coube a parte ruandesa, sem que seu povo suspeitasse da partilha.
A divisão havia ocorrido durante a Conferência de Berlim, em 1885. Após o fim da
Primeira Guerra Mundial, os alemães perdem o direito à colônia para os belgas, que têm
então interesse em tomar posse de sua fatia, quando o povo de Ruanda toma ciência de
que seu território pertencia à Bélgica. Assim como o vizinho Burundi, considerado como
país irmão, Ruanda não teve seu território demarcado artificialmente pelos colonizadores,
como outros países africanos, podendo seu povo manter sua língua e o país seus contornos
territoriais como na época dos antigos mwami.
O fato de estar situada distante da costa, de o acesso ao território ser difícil e não
haver aparentemente nenhuma riqueza que fizesse brilhar os olhos do colonizador, como
minérios e pedras preciosas, fez com que os belgas também demorassem algum tempo
para se interessar pelo pequeno reino.
Cultivadores e pastores
Nessa região da África, um traço decisivo deve ser observado com relação à
dependência de um grupo em relação a outro: a posse de grandes rebanhos bovinos. À
parte das funções materiais (leite, carne, pele, defumados etc.), o gado tem um lugar
eminente no imaginário social e na simbologia das relações humanas (o dote, o presente
de reconciliação, a ligação de dependência ou de uma multa). Assim, o grupo criador e
7
detentor de rebanho, como os Tutsis, historicamente, sempre teve um lugar de destaque
em detrimento ao outro grupo, os agricultores Hutus.
O historiador Edward Steinhart, que trabalhou sobre os Nkore, citado pelo
pesquisador francês Chrétien, sugere ver nas ‘crises ecológicas’ do século XVIII o
momento decisivo de estabelecer uma relação de dependência dos agricultores com
referência aos grandes criadores de gado. Em caso de seca e de fome, as tropas podem
sair em busca de pasto e comida, enquanto que os campos não se deslocam: os
cultivadores, em troca de víveres e de proteção, se encontravam em posição frágil propícia
à negociação de relações sociais favoráveis aos detentores dessa riqueza móvel que era o
gado.16
Durante muito tempo, perdurou a tese defendida por muitos autores de que a
sociedade do reino de Ruanda era conformada de modo semelhante ao feudalismo
europeu. O território pertencia ao rei e próximo a ele estava uma camada da população
formada pelos Tutsis, os aristocratas, em menor número, que eram os donos do gado e
para eles trabalhavam os Hutus, despojados de qualquer bem. Essa configuração foi
amplamente divulgada nos estudos sobre Ruanda desde seus tempos mais remotos.
Embora a sociedade estivesse dividida entre criadores de gado e cultivadores de terra, há
autores que discordam dessa transposição de um “feudalismo” para os campos
ruandeses.17 A tese, muito discutida, de um “feudalismo africano” é aberta em 1967 pelo
sociólogo Frances Georges Balandier, do Centro de Estudos Africanos da École des
16 Steinhart, E., in: Crummey, D. et Stewart, C., 1981, p. 115-155. ‘Food production in pre-colonial
Ankole’, contribution au Congrès international d’anthropologie d’Amesterdam, 1981, apud Chrétien,
2001, p. 123. 17 Não é verdadeiro que todos os Tutsis pertencessem à nobreza em muitas regiões; famílias Hutus
aristocráticas foram colocadas no poder pela hereditariedade. Por essas razões, as categorias Tutsi, Hutu, e
Twa não eram classes sociais no sentido europeu do termo. Os próprios Tutsis viveram em diferentes
condições sociais. Economicamente, politicamente e até socialmente eles estavam organizados em
hierarquias em comparação uns com os outros e a mesma situação estendia-se com relação aos Hutus (J.
Semujanga, op. cit., p. 88, apud Shyaka, 2005). Além disso, "Tutsiness" and "Hutuness" não significam
uma espécie de pertencimento que era invariavelmente imutável. Os mecanismos de promoção social para
"Tutsificação" para os Hutus e também para os Twas eram caracterizados pelo ganho de um importante rebanho de gado, que poderia ser resultado de três atos fundamentais: por uma decisão do rei; pelo
casamento com um (a) Tutsi importante; ou pela adoção de um (a) Tutsi. O fenômeno reverso, a
"Hutuficação", uma espécie de rebaixamento social, era também possível para os Tutsis que se
encontrassem privados de seus rebanhos. Estes fatos mostram claramente que, naquele período, "Tutsiness"
e "Hutuness" não estava concebida na mente das pessoas (Shyaka, 2005, p. 13).
8
Hautes Études em Paris e permanece até hoje não só por estudiosos como pelo senso
comum.
De acordo com Chrétien,18 é somente a partir das décadas de 1970 e 1980 que se
forma uma primeira geração de antropólogos determinados a emancipar a historiografia
do peso do senso comum, dos compiladores coloniais, dos missionários e notáveis
letrados interessados em reafirmar as teses racistas que opunham “senhores” Tutsis aos
“servos” Hutus. Essas pesquisas deram frutos em forma de inúmeras obras, tendo uma
implicação positiva na coleta paralela de tradições orais e estudos linguísticos.
As relações entre Tutsis e Hutus foram definidas pelo colonizador belga em
termos de dominação e submissão, opondo os Hutus, submissos e destituídos da posse do
gado, aos Tutsis, proprietários de rebanhos e opressores.19 Essa concepção foi adotada
pelos europeus,20 transpondo uma situação do velho continente para explicar uma
situação encontrada na África.21
Junto com os colonizadores surgem as teorias para explicar a presenças de três
fenótipos distintos: Tutsis, Hutus e Twas passam, assim, a ser identificados como
descendentes de distintos povos, de acordo com o que foi teorizado na época. Segundo a
teoria Hamita, a organização política, social e econômica de Ruanda foi concebida
(construída) pela invasão Tutsi, cujos distantes ancestrais teriam sido de origem
eurasiana.22
O país da eterna primavera
Ruanda, um pequeno país de apenas 26.338 km,23 é visualizado às vezes como um
ponto na imensa vastidão do mapa africano. Politicamente, encontra-se dividido em onze
18 2001, p. 15-16. 19 F. Rutembesa, in Cahier du CCM nº 5, Ruptures socioculturelles, ed. de I'UNR, 2001. 20 F. Rutembesa, in Rwanda. Identité et citoyenneté, Butare, Ed. de l'UNR, 2003. 21 Shyaka, 2005, p. 14. 22 A questão da concorrência da criação de gado é sem dúvida um dos elementos das crises sociais
contemporâneas, no contexto de transição demográfica e do forte crescimento da população rural. Mas essa
história social de longa duração foi ocultada por um discurso racial” (Chrétien, 2001, p. 55). 23 Ruanda está situada na região da África Central, a aproximadamente 100 quilômetros ao sul do Equador
e não tem acesso ao mar, cujo porto mais próximo é o de Dar-es-Salan, na Tanzânia, distante cerca de 1550
quilômetros. Faz divisa com Uganda ao norte, Tanzânia ao leste, República Democrática do Congo a oeste
e Burundi ao sul. Seu território minúsculo faz com que tenha a maior densidade demográfica da África (340
hab./km²) e a terceira do mundo, com uma concentração de nove milhões de habitantes. Uma de suas
principais características é a altitude – mais de 1000 metros – e as colinas que cobrem praticamente todo o
9
prefeituras: Kigalingali, Gitarama, Butare, Gikongoro, Cyangugu, Kibuye, Gisenyi,
Ruhengeri, Byumba, Kibungo e Umutara. Com uma população estimada em
12.337.138 habitantes (2014)24, é designado como “o país das mil colinas”, pois, viajar
através de seu território, é ondular-se em montanhas sem fim, algumas alcançando até
três mil metros de altitude. Por essa característica, foi também chamado de Tibete
Africano e, por seu clima ameno e temperado, de Suíça Africana ou o “país da eterna
primavera”.
O país está coberto por algumas áreas que hoje são de preservação natural, como
a floresta de Nyungwe (com uma importante população de chimpanzés), transformada
em reserva florestal; o Parque Nacional Virunga ou Parque dos Vulcões, onde se encontra
a famosa Montanha dos Gorilas. Na fronteira com a Tanzânia está o Parque de Akagera,
também transformado em uma reserva natural onde ainda podem ser encontrados
antílopes, zebras, girafas, búfalo, hipopótamo, leão, leopardo e hiena, com uma vegetação
que caracteriza uma espécie de savana. Cada uma dessas áreas representa um tipo especial
de ecossistema.
Ruanda é um país cuja economia sempre esteve alicerçada na agricultura e seu
território, dividido entre pastagens e cultivos, apesar do relevo irregular, é utilizado em
todas as suas possibilidades. A configuração geográfica montanhosa forçou seus
habitantes a desenvolver um tipo de plantação chamado de escadarias, aproveitando o
máximo possível as encostas das colinas. Nas escadarias são produzidas até hoje
principalmente banana e mandioca.
Com os belgas, no início do século XX, chegam também os missionários
religiosos, na sua maioria católicos, seguidos pelos protestantes, estabelecendo escolas,
seu território. A montanha mais alta é a Kalisimbi, com 4507 m. Mais de 50% de seu território é composto
por terras cultivadas, normalmente nas encostas das montanhas em forma de terraços. Os recursos naturais
são escassos, a não ser gás natural, principalmente no lago Kivu. As maiores exportações estão entre café
e chá (Briggs, 2001). A capital da república, Kigali, é o centro administrativo e econômico do país,
governado atualmente pelo regime presidencial, cujo primeiro presidente eleito após o genocídio ocorreu
nas eleições presidenciais em junho de 2003. Paul Kagame venceu as eleições com larga maioria dos votos.
A expectativa de vida é 50,1 anos para mulheres e 48,1 anos para os homens. A maioria da população é
católica (90%), convivendo com luteranos, com um crescente número de muçulmanos. A língua é
kinyarwanda, sendo a segunda língua o francês. Menos de 50% da população é analfabeta (Briggs and
Booth, 2001). 24 http://www.indexmundi.com/pt/ruanda/populacao_perfil.html. Acesso em 06/06/2016.
10
centros médicos e catequizando os Banyaruandas, numa tentativa de livrá-los do seu
paganismo. Os missionários católicos representam uma parte importante na história da
dominação franco-belga da África central. Foram fundamentais para apaziguar as
populações com relação ao elemento estranho que ali estava para subjugar, manipular,
orientar os rumos da população local. Também foram os responsáveis por apoiar as
teorias racistas, em voga na época, bem como aplicar o sistema educacional que tinha
como base o ensino religioso, a serviço da metrópole. Desde a época em que chegaram
os europeus e forçaram a adesão dos locais ao catolicismo,25 a religião tem um espaço
importante na vida das pessoas26.
Assim como o Estado, a Igreja apoiava a preferência étnica pela educação. No
início da colonização, os beneficiários da educação eram majoritariamente os Tutsis,
únicos autorizados ao acesso à educação formal; aos Hutus era permitido fazer somente
os estudos primários. Logo, foram os Tutsis os escolhidos para ocuparem os principais
cargos administrativos do país e as tarefas mais nobres, relegando os Hutus a cidadãos de
segunda categoria. A Escola para os Filhos dos Chefes, criada em Nyanza, a cidade real,
em 1907, aceitava somente Tutsis. Em 1955, havia cerca de 2 400 escolas de vários tipos
e níveis em Ruanda, a maioria de estudos primários, com um total de 215 mil alunos.
Percebendo a estrutura social existente em Ruanda, os belgas reforçaram as
diferenças, então de forma artificial, jogando uns contra os outros, no intuito claro de
tirarem proveito dessa situação. A posição confortável para os Tutsis fez com que
aceitassem de bom grado a escolha belga. Para a outra etnia, no entanto, as divergências
só fizeram fomentar o ódio e a consciência de inferioridade diante da outra etnia. Esse
jogo, levado a cabo pelos europeus, lhes serviu de instrumento facilitador para governar
o país, e foi útil até que os Tutsis, mais poderosos e instruídos que os Hutus, quisessem,
eles próprios, a independência de Ruanda. E diante dessa situação, Bruxelas, percebendo
que deveria mudar a tática de seu jogo, passa a apoiar a etnia de maior número, os Hutus,
25 Desde 1870, missionários da Church Missionary Society ou católicos das Missões da África (os chamados
péres blancs, os padres brancos) se instalaram na região (Chrétien, 2001, p. 21). 26 A religião católica é hoje a mais extensa, compreendendo cerca de 65%, seguida por 9% de protestantes.
Seitas evangélicas têm ganhado terreno, e 1% da população é muçulmana, deixando para 25% da população
crenças tradicionais.
11
e para isso, incita-os contra os Tutsis. Era esse o cenário em Ruanda na década de 1950,
quando em outros lugares da África ecoavam os gritos pela descolonização.
Por volta da metade do século XX, essa estrutura começa a dar sinais de que algo
estranho está para acontecer. Um conflito pela posse da terra tem então início,
principalmente motivada pelos que plantam, de um lado, e pelos que criam gado, de outro.
Em um país pequeno, de densidade demográfica enorme, a pressão pela terra é muito
grande, ainda mais em um território composto essencialmente por montanhas e áreas de
difícil acesso ao cultivo, além do solo pobre e desgastado. O minúsculo território não dá
chances para que se estendam cada um para seu lado e com o aumento das manadas, as
áreas para pastagem são mais e mais requisitadas e acaba ocorrendo o inevitável: os
rebanhos terminam por invadir as áreas de cultivo, expulsando consequentemente os
Hutus, cuja população cresce rapidamente. Acuados, despojados cada vez mais de suas
terras, os Hutus ficam sem saída.27
O resultado não é outro senão uma revolução social, que explode em 1959. Foi o
prenúncio da matança – e da forma usada, os facões – que viria a ocorrer décadas mais
tarde. Dessa vez, há a deposição do rei, a luta contra os criadores de gado, incêndios,
tomadas de território e das criações de gado. A carnificina foi geral: o primeiro massacre
étnico dentro do território de Ruanda. Nessa ocasião, os que conseguiram escapar da fúria
dos facões e lanças tentaram a fuga em direção aos países vizinhos, como Uganda,
Tanzânia (chamada de Tanganica, na época), Burundi e Zaire, deixando para trás o poder
nas mãos dos Hutus. E em suas mãos permaneceu até 1962, com a independência de
Ruanda, quando assume o poder o jornalista Gregoire Kayibanda, também Hutu.
Se por um lado os Hutus derrubaram a etnia Tutsi e assumiram o poder, por outro
tinham a consciência de que mais cedo ou mais tarde eles voltariam para reclamar a
vingança. Dos milhares de Tutsis que abandonaram Ruanda, a maior parte vivia em
acampamentos pelas bordas dos países vizinhos. E é justamente em um desses
acampamentos, situado na fronteira de Uganda com Ruanda, que vai germinar a semente
do que futuramente seria designada de Frente Patriótica Ruandesa, e que, nos momentos
27 R. Kapuscinski. Uma palestra sobre Ruanda, in: Ébano. Minha vida na África. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
12
cruciais do genocídio de 1994, ocuparia Ruanda e tomaria definitivamente o poder dos
Hutus.
Ruanda torna-se independente da Bélgica
Após a independência colonial, no início da década de 1960, ocorre uma sucessão
de acontecimentos que serão fundamentais para a eclosão do genocídio, em 1994. É um
período crítico para o desdobramento de ressentimentos fomentados ao longo de toda a
dominação europeia.
Seria incorreto analisar a eclosão do genocídio somente a partir das relações de
opressão/submissão seculares entre as duas etnias. Enquanto existentes localmente, sem
a interferência externa do elemento europeu, essas ligações eram reguladas por
mecanismos internos da própria sociedade. Uma vez chegados os colonizadores, essa
engrenagem é propositadamente desestabilizada para os fins políticos coloniais. As
origens dos conflitos entre Tutsis e Hutus são remotas, mas a colonização vê nesse
estranhamento entre as duas etnias o ponto nevrálgico para sua dominação. Durante as
décadas de dominação, os belgas, já cientes da estrutura que contrapunha social e
economicamente Tutsis e Hutus, fomentaram, por meio de uma política de privilégios, a
rivalidade entre as duas etnias. Jogaram com a fragilidade das relações entre eles,
reforçando o ódio e a desconfiança, espalhando e estimulando o mal-entendido.
Até meados do século XX, Ruanda era governada por uma monarquia Tutsi
apoiada pelos belgas e pela igreja Católica e os Tutsis ocupavam os principais cargos
políticos e administrativos. A situação muda quando a política de privilégio belga passa
a apoiar os Hutus, às vésperas da independência, na chamada “revolução ruandesa”,
iniciada em 1959, dando início a uma política de perseguição étnica. Nesse período ocorre
um grande massacre de Tutsis, provocando sua fuga em direção ao Burundi e Uganda.
O presidente Gregoire Kayibanda assume a presidência em 1962 após o país ter
declarado sua independência e, desde então, o clima de tensão entre as duas etnias passa
a aumentar, chegando ao extremo por ocasião do Golpe de Estado perpetrado pelo então
Hutu Juvenal Habyarimana, em 1973.28
28 Pertencente também à etnia Hutu, o ditador que depõe Kayibanda em 1973, criou o sistema de partido
único, em 1975, o MRND (Movimento Revolucionário Nacional para o Desenvolvimento), ao qual todo
13
Em 1964 é organizada em Ruanda uma operação de caça aos Tutsis, já
identificados pela coletividade, através de uma crescente propaganda governamental,
como os inimigos do povo. A perseguição é apoiada pelos homens do poder e pelos Hutus
enfurecidos e a população, em nome da “autodefesa popular”, organiza massacres que
fazem mais de 10 mil vítimas. As personalidades Tutsis que haviam ficado em Ruanda
são executadas e o chamado Parmehutu (Partido do Movimento da Emancipação Hutu)
torna-se o partido único em 1966. As matanças são minimizadas pelo poder sob a benção
da igreja Católica. Já nessa época, Gregoire Kayibanda vociferava a quem quisesse ouvir
que, caso os refugiados atacassem Kigali, criaria um caos tamanho que significaria “o fim
total e precipitado da raça Tutsi”.29
Nessa época, a história do país estava reduzida ao ódio racial, momento também
de censura às manifestações culturais - tudo o que precedia 1959 foi rejeitado e jogado
no lixo do antigo regime. A nova Ruanda decretou os Tutsis seu passado nacional.30 Do
período que vai de 1964 até o final dos anos 1980, os refugiados Tutsis são em número
de cerca de 700 mil, repartidos entre Burundi, Uganda, Zaire e Tanzânia, representando,
segundo Chrétien, a primeira grande diáspora de refugiados da África Negra. Os Tutsis
tinham se tornado os bodes expiatórios da memória nacional e de todas as lembranças
ruins do passado, inclusive da opressão colonial e naquele momento eram rememorados
de forma vingativa. Por gerações, diante da complacência e mesmo incentivo das
autoridades locais, essa situação será tratada como uma manifestação compreensível e
espontânea do “ressentimento popular” e durante o genocídio nenhum assassinato foi
reprimido.31
Em 1974, tem lugar uma nova perseguição: nessa ocasião, o movimento parte das
escolas secundárias, da universidade e de alguns setores eclesiásticos, que organizam
comitês para denunciar os excedentes Tutsis nas escolas e setores da administração,
estabelecendo listas de pessoas a serem expulsas, desde hospitais até empresas públicas.32
ruandês deveria necessariamente pertencer. Esse sistema estaria baseado nos pilares de “ajuda e
assistência estrangeiras, igreja Católica e o sectarismo étnico cotidiano”. 29 Chrétien, 2001, p. 268. 30 Chrétien, 2001, p. 270-271. 31 Chrétien, 2001, p. 268. 32 Idem, p. 268.
14
Mais tarde, durante o genocídio, os esquemas de denúncia tornam-se um dos principais
meios de se localizar os Tutsis entre a população, denúncias essas que partem de todos os
setores da sociedade: médicos, enfermeiras, padres, freiras, professores secundários e
universitários, estudantes universitários, vizinhos, parentes, etc. Os Hutus suspeitos de
ligações estreitas com Tutsis recebem igual tratamento dado a estes últimos. A crise faz
centenas de vítimas no centro do país, instaurando um clima de insegurança e
desconfiança entre a população. Duas facções regionalistas acirram os ânimos entre a
população: de um lado o grupo de Gitarama, a prefeitura do presidente; de outro, o grupo
do Norte, Ruhengeri e Gisenyi.
Enquanto duram os anos de ditadura de Habyarimana, exilados Tutsis refugiados
em Uganda, muitos deles chegados ao país ainda bebês amarrados às costas de suas mães,
organizam sua volta.
Durante os anos de 1980, o exército ugandês abriga parte dos refugiados ruandeses
em seus quadros, pois esse contingente faria a diferença numérica e estratégica em sua
luta contra o então governo de Milton Obote. É o período em que Uganda, sob sua
ditadura, encontra-se também diante de um caos político e social e a oposição organiza
uma tomada do poder chefiada por Yoweri Museveni. Este arregimenta em torno de si a
massa de jovens Tutsis exilados, que recebem treinamento militar com a promessa de
que, chegando ao poder, Museveni os reintegraria em seus quadros. É nesse contexto que,
desde esse período, milhares de Tutsis provenientes de Ruanda são treinados no exército
ugandês de Museveni, destacando-se nele um soldado chamado Paul Kagame.33
Mas assim que Obote é destituído e Museveni chega ao poder em 1986, tornando-
se o presidente de Uganda, a promessa feita de incorporação dos soldados Tutsis ao
exército de Uganda não é cumprida. Começa o questionamento, primeiro por parte de um
setor da população e segundo por parte das forças políticas, sobre o perigo de enquadrar
um contingente de soldados que, embora vivessem há anos no país e tivessem lutado pela
33 “Paul Kagame cresceu em um campo de refugiados em Uganda, membro de uma minoria tolerada, mas
jamais aceita como igual. Ajudou Uganda a se livrar do ditador Milton Obote se juntando ao contingente
da ANR, treinando na Tanzânia e combatendo em Uganda sob o presidente Yoveri Museveni. Embora
tendo sido um oficial bem considerado, jamais pôde mostrar todo o seu potencial na ANR, pois ninguém
podia esquecer que ele era ruandês” (Dallaire, 2003, p. 209).
15
tomada do poder ao lado de Museveni, eram considerados estrangeiros. Esses soldados,
treinados militarmente, organizados e preparados, se veem então alijados de uma possível
integração à sociedade de Uganda, ao mesmo tempo em que não podem voltar ao seu país
de origem, Ruanda, pois não seriam aceitos pelo governo comandado pelo ditador Hutu
Habyarimana, que alegava, inclusive, não haver espaço físico para eles.34 Ficam então
encravados em uma região entre o sul de Uganda e o norte de Ruanda. São o gérmen da
Frente Patriótica Ruandesa que tomaria Ruanda anos depois. Este movimento, saído da
clandestinidade em Kampala em 1987, visava a reconstrução do Estado ruandês sobre
uma base nacional e o retorno, por todos os meios, dos refugiados Tutsis ao seu país de
origem.
Fazem parte dos quadros da FPR os exilados Tutsis, de formação militar, que
começam a organizar sua volta para casa e a retomada do país. É um contingente enorme,
formado por um exército muito bem treinado e disciplinado que, uma vez decidido a
entrar em Ruanda, não mede esforços para conquistar seus objetivos.35 Bloqueados na
fronteira entre Uganda e Ruanda, de lá começam a organizar-se em torno de uma milícia,
que reclama a volta a Ruanda contra o governo ditatorial de Habyarimana. Esse grupo,
chamado de rebeldes e de milícia pelo governo ditatorial ruandês, é comandado por Paul
Kagame e Fred Rwigema, que fundam, em Uganda, em 1988, a Frente Patriótica
Ruandesa, com o apoio de Museveni, mesmo ano da reeleição de Habyarimana. Paul
Kagame e Fred Rwigema, que receberam treinamento militar nos Estados Unidos,
fizeram parte do grupo de guerrilha ao redor de Museveni, enquanto Fred foi chefe das
operações de combate do Exército da Resistência Nacional, criado em 1981 para dar cabo
da ditadura de Milton Obote.
34 Fazer voltar os exilados é também fazer retornar uma enorme massa da população disposta a recuperar
as terras deixadas no período do exílio, em um país de 26.338 km², de enorme densidade demográfica. É
imensa a pressão demográfica e de difícil solução a questão da repartição e sucessão territorial, baseada em
mecanismos ancestrais de herança. “A população rural vive em pequenas parcelas ou shampas e praticam
a agricultura em terraços. A cada ano, 23.000 famílias suplementares precisam de novos campos para seus
jardins de legumes e seus rebanhos” (Fossey, 1983). 35 Toda a organização militar formada pela FPR, sob a orientação do General Kagame, conhecido como o
Napoleão Africano por sua capacidade estratégica e pela disciplina e treinamento que comandou suas
tropas, é minuciosamente descrita por Dallaire, 2003.
16
Em outubro de 1990,36 outra massa de refugiados Tutsis, que haviam tomado rumo
em direção ao exílio para outros países da região quando eclodiu a guerra civil, em 1959,
se juntam aos jovens Tutsis exilados de Uganda, no Sul desse país, engrossando as fileiras
da Frente Patriótica Ruandesa.37 Nesse ano, 1990, a FPR havia se instalado ao norte de
Ruanda, na região de Byumba.
No dia 1° de outubro de 1990, milhares de soldados do NRA (Exército da
Resistência Nacional) ugandês atacam Ruanda a nordeste. Estes soldados são aliados da
Frente Patriótica Ruandesa, que reúne também numerosos jovens exilados do Burundi e
Zaire.38 A Frente Patriótica Ruandesa se beneficiava, por outro lado, com a filiação de
certo número de líderes Hutus, desgostosos com a corrupção e o nepotismo do regime de
Habyarimana, como o coronel Aléxis Kanyarengue e Pasteur Bizimungu39.
Um ano depois, eram criadas as milícias Hutus “Interahamwe” (aqueles que
marcham ou combatem juntos), por parte do MRND (Movimento Revolucionário
Nacional para o Desenvolvimento), partido do governo e, em uma de suas primeiras
aparições, deixam como rastro o massacre de Bugesera, em 1992.40 De início, essas
milícias foram criadas para fazer frente aos combatentes da FPR, mas acabaram por
participar periodicamente de incursões em territórios onde habitavam populações Tutsis
e promoviam matanças; durante o genocídio, estiveram fortemente engajados na
preparação e execução de Tutsis.
O fim do regime do ditador Habyarimana parecia próximo. No entanto, a ofensiva
de outubro pela FPR é rapidamente bloqueada pelas Forças Armadas Ruandesas (FAR),
o braço armado do genocídio, apoiadas pelas forças francesas, belgas e do Zaire. Nessa
36 Nesse período chegam a Ruanda tropas do exército francês. 37 Chrétien, 2001, p. 280. 38 Chrétien, op. cit., p. 281. 39 Este último assume a presidência de Ruanda em 1994, após o genocídio. 40 Em março de 1992, a Rádio Ruanda foi usada pela primeira vez para promover diretamente a matança
de Tutsis em um lugar chamado Bugesera, ao sul da capital. No dia três de março, a rádio transmitiu
repetidamente um comunicado supostamente enviado por um membro de uma organização para os Direitos
Humanos baseado em Nairóbi, Quênia, alertando que os Hutus em Bugesera seriam atacados pelos Tutsis.
Os oficiais locais utilizaram a rádio para convencer os Hutus que eles precisavam proteger-se atacando
primeiro. Chamando soldados de uma base militar próxima, civis Hutus, membros do Interahamwe, a
milícia armada do partido MRND, atacaram e mataram centenas de Tutsis (International Commission,
1993: 13–14; cf. http://www.hrw.org/reports/1999/rwanda).
17
ocasião, o chefe dos Inkotanyi (“bravos” ou “lutadores”), assim denominados os
combatentes da FPR, Fred Rwigyema,41 é morto. A resistência de Kigali surpreende.
Habyarimana soube conseguir apoio externo rapidamente, não hesitando em recorrer à
propaganda “etnista” contra os “feudais Tutsis”. Em quatro de outubro prende cerca de
oito mil suspeitos, colocando-os em prisões e estádios de Kigali.
Um novo chefe assume no lugar de Fred Rwigyema. É Paul Kagame, que desloca
o front em direção à região dos vulcões, na fronteira norte entre Uganda e Ruanda e
desenvolve uma guerrilha nessa região fronteiriça com a cumplicidade discreta de
Uganda. Em janeiro de 1991, a FPR efetua uma incursão rápida em Ruhengeri, cidade
localizada ao norte de Ruanda e liberta todos os prisioneiros políticos.
De 1991 a 1993 Habyarimana faz o jogo político duplo: de um lado negociava
interna e externamente a democratização do país; de outro, conduzia uma estratégia de
guerra e mobilização contra os Tutsis,42 sempre com o apoio militar do governo francês
sob o comando de François Miterrand. Para a França, o ditador Habyarimana se mostrava
como um representante legítimo do “povo majoritário”.43
Durante os trinta anos que está no poder, a etnia Hutu, através do governo,
primeiro de Kayibanda, depois de Habyarimana, incita o ódio racial de todas as formas,
mas é esse último que se aproveita de uma nova possibilidade de propaganda racista,
servindo-se da mídia, principalmente da Rádio Mil Colinas. Citada como uma das
responsáveis pelo desencadeamento do furor e loucura coletivos que tomaram conta do
país antes e durante os três meses em que se desenvolveu o genocídio, a rádio punha no
ar músicas que estimulavam o ódio contra os Tutsis, além de discursos e todo o tipo de
propaganda com essa finalidade. Com o jornal oficial não foi diferente: artigos,
41 Major General Fred Rwigyema, primeiro comandante da Frente Patriótica Nacional e primeiro Ministro
de Defesa, do Estado, em 1990. 42 Tática semelhante pôde ser observada na África do Sul, nos primeiros anos da década de 1990, pelo
governo do aparthaid, com a finalidade de desestabilizar os movimentos populares contra o governo racista
(Reytjen, 1999). 43 Chrétien, 2001, p. 282.
18
comentários, editoriais, charges, eram diariamente publicados com a finalidade de
mostrar à população os “perigos de uma dominação” Tutsi.44
Uma das principais observações feitas por estudiosos acerca da eclosão do
genocídio encontra-se na análise do papel da RTLM – La Radio Télévision Libre des
Mille Collines – a Rádio Mil Colinas – que durante os três meses que durou o massacre
teve o papel de instigar a população a pegar nas armas, perseguir, delatar, torturar e matar
vizinhos, amigos, parentes da etnia Tutsi, chamados pelos Hutus radicais de “Inyenzi” –
baratas, os traidores da pátria e do povo que queriam tomar o poder. Cabia aos
“Interahamwe”, “aqueles que combatem juntos”, os radicais Hutus, barrar os espiões e
dar cabo daqueles que pertenciam à etnia inimiga. A rádio Mil Colinas, no ar 24 horas
por dia, divulgava discursos, comentários e músicas racistas, difundindo a tese pró-Hutu
dos extremistas partidários do presidente Habyarimana, tendo uma parte ativa no estímulo
às matanças a golpes de facões, distribuídos à população durante o período que antecedeu
o genocídio.
Mas não foi somente a RTLM a responsável pela propaganda racista. Desde o
início de 1991, a revista Kangura – inaugurada por um Tutsi que criticava o governo
totalitário de Habyarimana, foi relançada com o mesmo nome, mesmo formato, e
reassumida por um redator chefe Hutu do grupo do presidente. A revista dá início a uma
difusão que insufla a violência e a intolerância contra os Tutsis, nos anos que se seguem.
É dela que saem os primeiros incitamentos, através de “convites à repressão, de denúncias
de cúmplices dos “imbyitso” (rebeldes), listas de suspeitos comunicadas por certas
autoridades, convites à delação”. A seguir, o mesmo tom assume a rádio Kigali.45
O prenúncio de uma tragédia e a chegada da Minuar
Em julho de 1991 tem início o pluripartidarismo, como consequência das
negociações de paz mediadas por governos da África e da Europa. Exatamente um ano
44 O papel do rádio em incitar a matança demonstrou a importância do controle da mídia em Ruanda pelo
governo (Chrétien et al., Rwanda, les médias, 1995, p. 61). Sobre a implicação da mídia no desenrolar do
genocídio, conferir Andréia T. Couto. Mídia e propaganda racista. Como os mass media constroem a
imagem da realidade social – uma leitura do genocídio Ruanda. Rev. Extraprensa. Desafios das
Identidades sociais. USP/ECA, vol. 3, n. 2 (2010). 45 Presse libre et propagande raciste au Rwanda. Kangura et des 10 commandements du Hutu - Chrétien,
1992.
19
depois começam os entendimentos para um cessar fogo entre o governo de Habyarimana
e a Frente Patriótica Ruandesa, mas somente no começo de 1993 é que são abertas em
Arusha, Tanzânia, os tratados entre as duas partes, após dois anos de guerra.
A força rebelde, como era conhecida a FPR, estava refugiada ao norte, na divisa
com Uganda e o presidente ugandês Museveni pediu o envio de um pequeno contingente
de capacetes azuis, a Força de Paz da ONU, para guardar a fronteira entre Uganda e
Ruanda. O General Dallaire,46 no comando da operação denominada Minuar (Missão das
Nações Unidas para Assistência a Ruanda) chega a Ruanda em agosto de 1993 para
analisar a viabilidade de se estabelecer uma força de paz no país.
Na sequência, no dia 15 de setembro de 1993, vai a Nova Iorque uma delegação
ruandesa para pressionar a ONU a enviar uma força de paz a seu país. À frente da FPR
estava Patrick Mazimbaka, enquanto que o governo interino foi representado por
Anastace Gasana.47 Esse encontro fez com que Kofi Annan, então Subsecretário-Geral
para as Operações de Manutenção da Paz (de março de 1992 a fevereiro de 1993, e depois
de Secretário-Geral Adjunto para as Operações de Manutenção da Paz - Março de 1993
– Dezembro de 1996, antes de ser nomeado Secretário Geral) da ONU, passasse
imediatamente à ação, dando início à organização das tropas – cerca de 2.300 soldados
belgas – os capacetes azuis48 - que fariam parte da Minuar.
No final de 1993, conflitos localizados, como os do norte de Ruanda, em direção
à fronteira com Uganda, deixam várias vítimas do MRND (Movimento Revolucionário
Nacional para o Desenvolvimento), entre homens, mulheres e crianças, cujos crimes são
imputados, também pela mídia local, à Frente Patriótica Ruandesa. Em setembro desse
ano, dois partidos ruandeses se fundem, o MDR (Movimento Democrático Republicano)
e o PL (Partido Liberal), até então partidos moderados, em duas frentes, uma moderada,
46 General Romeo Dallaire: comandou as Forças de Paz da ONU em Ruanda, denominada MINUAR -
Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda. Chefiando os capacetes azuis, meses antes de
eclodir o genocídio, alerta as autoridades norte-americanas e européias sobre a iminência de uma explosão
de violência no país, mas não foi ouvido. Em seu livro J´ai serré la main du diable (2003), relata em
detalhes todo o episódio do genocídio ruandês, desde os meses que o antecedem até suas conseqüências.
Suas memórias fazem parte de uma importante documentação sobre o ocorrido, uma vez que ele conta
passo a passo os acontecimentos e descreve detalhes de personalidades importantes envolvidas. 47 Dallaire, 2003. 48 Capacetes-azuis – designação dos soldados da força de paz da ONU, devido à cor azul de seus
capacetes. Em francês no original, casque bleu.
20
o Poder Hutu e outra extremista, a CDR (Coalizão para a Defesa da República), o partido
radical Hutu.
Em janeiro de 1994, Cyprien Ntaryamira, Hutu, é eleito pela assembleia
presidente da República do Burundi. Ntaryamira morre junto com Habyarimana no
atentado de 6 de abril desse mesmo ano. Sua presença nesse avião foi improvisada no
último momento, como atestam Chretien49 e Dallaire.50
Em 1994, antes do genocídio, a Frente Patriótica Ruandesa já ocupava as colinas
de Ruanda próximas a Kigali. Os meses que se seguiram, entre abril e julho, marcaram
Ruanda por um banho de sangue, que o mundo ocidental fingiu não ver. Há fotos que
chocam por suas imagens cruas, relatos que chocam ainda mais pela riqueza de detalhes
que contam como os crimes eram cometidos.51
A violência eclodiu em meio a uma situação que prenunciava que alguma coisa
do gênero estaria prestes a explodir, uma vez que a região dos Grandes Lagos era
observada há décadas como uma das regiões política, econômica e socialmente mais
instáveis do planeta.
A complacência ocidental diante do massacre
A iminência de um acontecimento sério às vésperas de abril de 1994 era evidente,
mas nada foi feito para mudar o rumo dos acontecimentos.
O clima denunciava um estado de preparação para a guerra, uma guerra que
praticamente já estava sendo declarada pela rádio, diariamente. A incitação ao ódio dos
Hutus aos Tutsis vinha através de letras de músicas racistas e provocativas; a referência
a eles, Tutsis, como baratas, era uma constante.
Enquanto os jovens Interahamwe treinavam o manejo de armas de fogo e facões
a céu aberto, créditos estrangeiros, principalmente através do banco francês Crédit
Lyonnais concedidos a Ruanda, eram desviados para a compra de armas. Carregamentos
de equipamentos e munições entravam livremente no país, alimentado pelo intenso tráfico
49 Ibiden, 2001 nota nº 121. 50 Dallaire, 2003, p. 320. 51 Cf. Jean Hatzfeld, Uma temporada de facões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
21
de armas que supria as guerrilhas que brotavam por vários lugares, desde o Zaire,
passando por Uganda, Ruanda, Burundi. Embora já tivesse sido dado o alerta sobre a
situação, tanto os países europeus mais diretamente envolvidos com aquela parte da
África, como França, Bélgica e Inglaterra, assim como os Estados Unidos, não só nada
fizeram para impedir a explosão da violência, como tardiamente se interpuseram entre os
genocidários e a população civil acuada.
Nessa época, todos os Tutsis tinham sido registrados pelo governo, trazendo sua
identidade étnica na carteira, um primeiro passo para serem mais facilmente localizados
durante a chacina premeditada.
Em certo dia de janeiro de 1994, o general Dallaire recebe a informação sobre um
depósito clandestino de armas em Kigali e junto com alguns capacetes azuis, confirma o
esconderijo de munições no subsolo de um prédio pertencente ao partido presidencial. O
general envia um telegrama codificado a Nova York pedindo autorização para
desmantelar o depósito, mas não obtém a resposta esperada: o departamento de operações
para manutenção de paz lhe interdita qualquer ação. As informações sobre o episódio
acabam vazando, chegando aos ouvidos do presidente Habyarimana, que apressa a
distribuição das armas às comunas e prefeituras.
O abandono se dava passo a passo. Apesar dos alertas e apelos por feitos por
Dallaire, a comunidade internacional nada fez durante os meses que antecederam o
genocídio para frear a violência e evitar a matança. Não somente ninguém veio em
socorro aos perseguidos, como tardiamente surgiram, em uma aparição hollywoodiana,
para retirar os europeus da capital Kigali.
Segundo Bernard Kouchner,52 o governo francês decidiu agir tardiamente em
dirigir para Ruanda as forças de coalizão francesas e franco-africanas para fazer cessar o
52 Médico francês fundador da organização humanitária Médicos sem Fronteiras (1971) e posteriormente
da organização Médecins Du Monde (1980). Trabalhou para a Cruz Vermelha em Biafra, Nigéria, durante
a guerra civil em 1968, e trabalhou como voluntário durante a guerra civil no Líbano. Foi professor
universitário e como político, foi ministro da Saúde e de Ações Humanitárias e da Integração Social do
governo francês em diversas ocasiões, além de fazer parte do Parlamento Europeu. É autor de vários livros.
Em 2008 esteve em Ruanda, a convite do Presidente Kagame, no restabelecimento de relações diplomáticas
entre França e Ruanda, rompidas em novembro de 2006, quando o juiz francês Jean-Louis Bruguière emitiu
mandados de prisão contra nove pessoas próximas ao presidente Kagame, ainda sobre as investigações a
respeito do atentado de 6 de abril de 2004 que matou o então presidente ruandês, Juvénal Habyarimana
22
genocídio e fornecer a ajuda humanitária. Segundo Dallaire, “essas forças viriam
apoiadas em um mandato previsto no capítulo VII das Nações Unidas e estabeleceriam
uma zona de segurança no oeste do país, a chamada Zona Turquesa, onde as pessoas,
fugindo do conflito, poderiam encontrar refúgio”,53 mas para ele essa era uma atitude
hipócrita e tardia, uma vez que a França era aliada dos responsáveis pelo genocídio. De
fato, quando foi instalado o corredor humanitário, já era tarde demais.
As matanças perpetradas pelos partidários do presidente Habyarimana, morto no
dia 06 de abril em um acidente aéreo quando o avião se preparava para pousar no
aeroporto Internacional de Kigali, os Interahamwe, já seguiam um rumo descontrolado
quando, no dia 15 de abril de 1994, o Departamento de Operações de Manutenção da Paz
da ONU, através da Minuar, começou a agir com uma força de 2000 homens, número
esse que se reduziria em seguida a 250 sem que nenhum cessar fogo se concretizasse ao
fim de três semanas. Os ingleses adotaram uma posição similar à dos franceses, enquanto
os Estados Unidos, além de terem combatido veementemente a Minuar, queriam, através
de seu conselho de segurança, a sua retirada metódica e imediata, dada a impossibilidade
de um cessar fogo instantâneo, testemunha Dallaire.54 Nessa ocasião, a situação já estava
totalmente descontrolada e as matanças atingiam um nível inimaginável. Além de ondas
gigantescas de refugiados que buscavam abrigo nas fronteiras de Ruanda, os ataques
deixavam para trás um rastro sinistro: no final de abril,
Os rios da região estavam repletos de cadáveres boiando em direção a Uganda
e ao Lago Vitória. Até aquele momento, cerca de 40 mil corpos haviam sido
retirados do lago. Em alguns dias, cerca de 500 mil refugiados haviam
atravessado a única ponte entre Ruanda e a Tanzânia, provocando um dos
maiores êxodos de população observados pela ACNUR (Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados), que cria um dos maiores campos de
refugiados do mundo (Dallaire, 2003, p. 425).
O reagrupamento sistemático de refugiados, primeiro de Tutsis, depois de Hutus,
após a tomada do poder pela Frente Patriótica Ruandesa, vai desencadear grandes e
(Jornal Jeune Afrique. França, 23 de janeiro de 2008: “Bernard Kouchner se rend au Rwanda, un pas vers
la réconciliation”. http://www.jeuneafrique.com). 53 Dallaire, op. cit., p. 525. 54 Op. cit. p. 380.
23
profundos problemas na região, principalmente entre Zaire e Ruanda, até o final da década
de 1990.
No dia 22 de junho, o Conselho de Segurança da ONU aprova a resolução 929,
dando à França um mandato previsto no Capítulo VII, que lhe permitia constituir uma
coalizão de intervenção em Ruanda. A Organização da Unidade Africana começa por se
opor à intervenção, mas sob a pressão dos estados franco-africanos, muda de ideia.55
Como os franceses penetrariam em Ruanda? O Burundi havia lhes recusado
autorização para passar, assim como Uganda; a Tanzânia não tinha infraestrutura a oeste;
restava o Zaire,56 e é por ali que, a 22 de junho, “antes mesmo que o Conselho de
Segurança tivesse tomado sua decisão final, os franceses aterrissam em Goma, no norte
do Kivu e no dia 24 estão em Gisenyi e Cyangugu”. É instituída a ‘Zona de Proteção
Humanitária (ZPH)’ – expressão inventada pela Minuar para designar a zona de Ruanda
protegida no âmbito da Operação Turquesa.57
É por esses corredores que no dia 17 de julho cerca de um milhão de refugiados
atravessam a fronteira do Zaire, data em que teoricamente a cidade de Gisenyi é tomada
pela Frente Patriótica Ruandesa.58 Em 19 de julho é instituído o “governo de união
nacional”, sendo Pasteur Bizimungu proclamado presidente de Ruanda para o período de
1994 a 2000 e Paul Kagame, ministro da defesa (mais tarde eleito presidente, gestão abril
de 2000-2006), aparece como o “homem forte do regime”, na posição de chefe da APR
(Exército Patriótico Ruandês), encarnação da Frente Patriótica Ruandesa.59 Faustin
Twagiramungu, vindo do MRN, é nomeado primeiro ministro, e Aléxis Kanyarengwe
vice-primeiro-ministro.60 A maioria dos ministros é Hutu.
Assim, depois do verão de 1994, os Tutsis da diáspora (mais de 600 mil) voltam
em massa ao país. Seu passado recente de guerrilha, a vigilância necessária face ao
55 Op. cit, p. 543. 56 Idem, p. 545. 57 Operação Turquesa: de acordo com Dallaire (ibidem, p. 561), “operação controvertida, sancionada pela
ONU e levada a cabo em Ruanda pelos franceses no quadro de uma intervenção do tipo Capítulo VII da
ONU. Desenvolveu-se de junho a agosto de 1994. A ZPH – Zona de Proteção Humanitária de Ruanda,
zona de segurança que se seguiu à Operação Turquesa, ficou também conhecida como ‘setor 4’”. 58 Dallaire, ibidem, p. 581. 59 Chrétien, 2001, p. 294. 60 Dallaire, 2003, p. 587.
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inimigo e a inversão da situação fomentam uma obsessão policial que tende
frequentemente a transformar todo Hutu em um suspeito em potencial. O final do
genocídio não significou, necessariamente, a paz.
Após o genocídio de 1994, em Ruanda, centenas de milhares de pessoas se
dirigiram para as fronteiras, principalmente em direção ao Zaire, que hoje é a República
Democrática do Congo, sendo abrigadas em vários campos de refugiados ao longo da
divisa zairo-ruandesa. Os refugiados eram basicamente Hutus, fugindo da represália Tutsi
após a tomada do poder pela Frente Patriótica Ruandesa. Esse contingente de exilados ali
permanece em situação precária, sendo seu retorno a Ruanda praticamente inviável, ao
mesmo tempo em que sua presença na RDC não é bem vista pelo governo e pela
população. Silenciosamente, começam a se formar no interior dos acampamentos, grupos
descontentes que tentam organizar sua volta a Ruanda. A chegada de armas a esses
ajuntamentos torna-se uma realidade.
Os conflitos pós-genocídio
O genocídio ruandês ocorrido entre os meses de abril e julho de 1994 teve uma
série de desdobramentos sociais e políticos na região dos Grandes Lagos, e é analisado
como um dos pontos principais de desestabilização social, política e econômica na região
que atinge principalmente a República Democrática do Congo. Isso se deve ao enorme
contingente de refugiados ruandeses que partiu em direção ao Congo durante e após o
genocídio. Sem dúvida nenhuma, o país mais atingido pelas consequências do genocídio
ruandês, depois de Ruanda, foi a RDC.
As diásporas na África não são novidade no mundo contemporâneo. Desde que as
jovens nações africanas começaram a se configurar, livres do sistema colonial, o
oportunismo de muitos generais levou países recém-formados a mergulharem em guerras
civis que conduziram milhões de pessoas ao exílio.
Na África Central não foi diferente. O deslocamento de milhões de pessoas do seu
local de origem vinha acontecendo na região dos Grandes Lagos nas três décadas que
antecederam o genocídio. No entanto, nos meses entre abril e julho de 1994, o contingente
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populacional que seguiu desesperado em direção às fronteiras de Ruanda, principalmente
na divisa com a RDC, foi algo praticamente inusitado, uma das maiores dispersões
populacionais da história da humanidade.
Esse imenso deslocamento de pessoas que se viam expatriadas, desenraizadas,
despidas de todos os seus bens, seus familiares, não poderia ter outro desdobramento que
o que se viu nos anos a seguir. Amontoados em imensos campos de refugiados, famintos
e expostos à devastação do cólera, diarreia e subnutrição, foram alvos fáceis para todo o
tipo de interesses mercenários e facilmente engajados em grupos e milícias que
continuavam a proliferar em vários setores, principalmente próximo à fronteira da RDC,
então denominado Zaire.
Mas não foi só isso. Com a tomada do poder pela Frente Patriótica Ruandesa, a
diáspora, após o genocídio, foi de elementos Hutus, muitos deles participantes do
genocídio. Instalados nas bordas da fronteira do Zaire com Ruanda, muitos se internaram
na floresta e se engajaram em milícias armadas.
Uma grande quantidade desses refugiados Hutus foi abrigada em campos
próximos às zonas fronteiriças – embora uma das orientações da ACNUR (Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) seja a de evitar a instalação de campos
de refugiados em regiões de fronteira, para salvaguardar sua integridade. Foram
exatamente nessas regiões que se instalaram os campos, principalmente próximos a
Goma, no norte do Kivu, e próximos a Bukavu, no sul do Kivu. A supostas ações da
Frente Patriótica Ruandesa, que faria incursões à RDC em direção aos campos para
exterminar os Hutus eram negligenciadas, uma vez que essa população não era bem-vinda
no Zaire.
De acordo com Reytjens,61 tornou-se difícil contabilizar o número de vítimas
Hutus sacrificadas nos campos de refugiados, uma vez que os crimes cometidos são
localizados em “zonas militares”, áreas de acesso não permitido, os corpos das vítimas
transportados para outros locais ou ainda para certas regiões (notadamente o parque de
Akagera, no leste de Ruanda), e são interditos de acesso. Segundo um consultor da
61 1999, p. 28-29.
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ACNUR, Robert Gersony, cerca de 30 mil vítimas pereceram no período de meados de
julho a meados de setembro de 1996.
Uma das razões para a cumplicidade do silêncio é o “crédito genocídio” que
beneficiou o poder de Kigali: legitima e explora habilmente esse tema para escapar à
crítica, segundo Reytjens. Assiste-se, portanto, ainda silenciosamente, a outro genocídio.
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