Machadopara jovensleitores
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Reitor
Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-reitora
Maria Christina Paixão Maioli
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidente do Brasil
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Cultura
Juca Ferreira
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
Presidente
Muniz Sodré de Araújo Cabral
Diretora Executiva
Célia Portella
Coordenador-Geral de Pesquisa e Editoração
Oscar Manoel da Costa Gonçalves
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Rio de Janeiro2008
Machadopara jovensleitores
Organização
Ana Cristina Chiara
Antonio Carlos Secchin
Denise Brasil
Ivo Barbieri
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Copyright © 2008, Organizadores Ana Cristina Chiara, Antonio Carlos Secchin, Denise Brasil e Ivo Barbieri.Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É proibida a duplicaçãoou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, sob quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.
EdUERJEditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRORua São Francisco Xavier, 524 – MaracanãCEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJTel./Fax.: (21) 2587-7788 / 2587-7789www2.uerj.br/[email protected]
Editor Executivo Ítalo MoriconiAssessoria Gerencial Carmen da MattaCoordenador de Publicações Renato CasimiroCoordenadora de Produção Rosania RolinsCoordenador de Revisao Fábio FloraRevisão Andréa Ribeiro e Milena Martins MouraProjeto, Capa e Diagramação Heloisa FortesIlustrações dos contos José Carlos BragaApoio Administrativo Maria Fátima de Mattos
Conselho Editorial
Evanildo BecharaItalo Moriconi (Presidente)Luiz Antonio de Castro SantosNelson MassiniPedro Colmar Gonçalves da Silva Vellasco
CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
A848 Machado para jovens leitores / Organização, Ana CristinaChiara [et al.]. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.184p.
ISBN 978-85-7511-132-1
1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Literatura para jovens. I. Chiara, Ana Cristina.
CDU 869.0(81) (08)
As imagens de Machado de Assis utilizadas neste livro foram cedidas pela ABL.
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Sumário
Nota editorial 9
Caro(a) leitor(a), 11
Amor e desamor 13
Flores e livros 15
Quando ela fala 16
O primeiro beijo 17
O penteado 19
A cartomante 21
Do diário de Aires 29
À Carolina 31
Gosto da liberdade 33
13 de maio de 1888 35
Conto de escola 36
Pancrácio 43
Um gatuno 45
Artes e artistas 47
A vida é uma ópera 49
Um homem célebre 52
Cantiga de esponsais 60
Instinto de nacionalidade 64
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Loucos 69
O alienista 71
Os navios do Pireu 72
Torrente de loucos 73
Ó gira! Ó gira! 76
Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa 79
Fuga do hospício da Praia Vermelha 82
Tipos inesquecíveis 85
José Dias 87
O sineiro da Glória 88
Dona Plácida 90
O administrador interino 92
Esse Aires 94
Paula Brito 96
Na arca de Noé 97
Bichos de estimação 99
Conversa de burros 100
Quincas Borba 104
Idéias de canário 106
A borboleta preta 110
Contradições humanas 113
Círculo vicioso 115
O vergalho 116
O verdadeiro Cotrim 117
Era uma vez uma choupana 119
História da carochinha 120
Volúpia do dinheiro 123
A carteira 125
O embrulho misterioso 129
O empréstimo 131
A esmola da felicidade 138
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Sátira política 141
Lobo Neves 143
Tabuleta nova 144
A Sereníssima República 148
(conferência do cônego Vargas)
O dicionário 155
Arquivo 159
Textos de Machado de Assis 161
Machado na ABL 162
Carta a Joaquim Nabuco 165
Textos sobre Machado de Assis 167
A última visita (Euclides da Cunha) 168
Páginas de saudade (Mário de Alencar) 170
Memórias póstumas de Brás Cubas 172
(Capistrano de Abreu)
Posfácio 177
A um bruxo, com amor 178
(Carlos Drummond de Andrade)
Nota biográfica 181
Cronologia da obra 183
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9
Nota editorial
O conteúdo deste livro está organizado por seções temáticas, definidas a
partir dos assuntos mais característicos da obra machadiana. Cada seção agrupa
textos de gêneros diversos e épocas diversas da vida do escritor, mantendo
porém a ênfase na prosa de ficção, pois é essa que confere a Machado o status
de mestre maior da literatura brasileira e universal.
O foco da presente seleção é o texto em si, buscando propiciar uma
experiência de contato direto com a obra. Cada item da antologia é apresentado
como peça narrativa individual. Os contos selecionados estão publicados na
íntegra, ao passo que os trechos recortados de romances são apresentados como
histórias autônomas. Em alguns casos, demos um título fantasia para uso apenas
da presente edição, como em “José Dias” (trecho extraído do capítulo “Um dever
amaríssimo”, de Dom Casmurro) ou “13 de maio de 1888” (que na versão original
é “14 de maio de 1888”). Ao final de cada conto ou trecho de romance, é dada a
referência do livro de que foi extraído, como indicação para possíveis explorações
futuras da obra de Machado por parte do leitor. A mesma regra é seguida nos
poemas. No caso das crônicas e outras peças jornalísticas, indica-se a data de sua
publicação original. No final do volume, o leitor encontrará uma breve nota
biográfica sobre o autor e uma cronologia da obra, contendo as datas das
primeiras edições de cada livro de Machado.
Acentuando seu caráter de mosaico de textos, e a proposta de contato
direto do leitor iniciante com a obra, o volume começa de maneira lúdica com
uma colagem de frases e parágrafos retirados de diferentes obras de Machado,
no lugar do que seria usualmente a apresentação ou o prólogo. São frases e
textos em que Machado comenta o fazer literário.
Na última seção temática, intitulada “Arquivo”, leva-se ao leitor um mosaico
de documentos de e sobre Machado. Desse “arquivo” constam trechos de discursos
de Machado na Academia Brasileira de Letras – instituição por ele criada e que nele
teve seu primeiro presidente –, assim como trechos de carta ao amigo Joaquim
Nabuco. O volume se encerra com textos sobre Machado escritos por contemporâneos
e, finalmente, no lugar do posfácio, um poema em sua homenagem, escrito no ano do
centenário de seu nascimento pelo poeta Carlos Drummond de Andrade.
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Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),
[...] vários escritos de ordem diversa [...] não vieram para aquicomo passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria.São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fezsentar à mesma mesa (Papéis avulsos). Supõe um fio de anedotasou uma história comprida, [...] porque há estados da alma emque a matéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de aouvir é que é tudo (Esaú e Jacó). [...] fazer de conta que estásno teatro, entre um ato e outro, conversando. [...] não te esqueçasde contar anedotas [...] e virtudes [...]. As virtudes devem sergrandes e as anedotas engraçadas. Também as há banais, mas amesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara epreciosa (Esaú e Jacó).
Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil.O livro está nas mãos do leitor (Papéis avulsos). O que importaunicamente é dizer a origem destas páginas. Umas são contos enovelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples idéias que medeu na cabeça reduzir a linguagem (Páginas recolhidas). Direisomente, que se há aqui páginas que parecem meros contos, eoutras que o não são, [...] defendo-me com São João e Diderot.O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica,acrescentava (XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria”.[...] Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escreviacontos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo
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que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quandose faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vidaacaba, sem a gente dar por isso (Papéis avulsos).
[...] o maior defeito deste livro és tu, leitor. [...] tu amas a narração direitae nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como osébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... (Memórias póstumas deBrás Cubas). [Francamente eu não gosto de gente que deseja] chegar já aocapítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros.[A senhora, amiga minha, se quer compor o livro,] tenha confiança noredator destas aventuras (Esaú e Jacó).
Note que aqui lhe poupei o trabalho[, leitor]; não o obriguei a achar porsi o que, de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramenteruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassaros atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estarescondida (Esaú e Jacó). Aqui é que eu quisera ter dado a este livro ométodo de tantos outros – velhos todos –, em que a matéria do capítuloera posta no sumário: “De como aconteceu isto assim, e mais assim”. [...] Éclaro, é simples, não engana a ninguém; [...] quem não quer ler não lê, equem quer lê, para os últimos é que o autor conclui obsequiosamente(Quincas Borba).
O melhor prólogo é o que contém menos coisas [...]. Conseguintemente,evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição [...].Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimentoda obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me datarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote [...] (Memórias póstumasde Brás Cubas). Supondo, porém, que o meu fim é definir estas páginascomo tratando, em substância, de coisas que não são especialmente do dia,ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que lhepode acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisade explicação (História sem data).
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Am
or e
de
sa
mo
r
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14
Não há como a paixão do amor parafazer original o que é comum, e novo oque morre de velho.
Cada qual sabe amar a seu modo; omodo pouco importa; o essencial é quesaiba amar.
Este mundo é dos namorados.
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15
Flores e livrosFlores e livrosFlores e livrosFlores e livrosFlores e livros
Teus olhos são meus livros.Que livro há aí melhor,Em que melhor se leiaA página do amor?
Flores me são teus lábios.Onde há mais bela flor,Em que melhor se bebaO bálsamo do amor?
Falenas
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16
Quando ela falaQuando ela falaQuando ela falaQuando ela falaQuando ela fala
She speaks!O speaks again, bright angel!(Shakespeare)
Quando ela fala, pareceQue a voz da brisa se cala;Talvez um anjo emudeceQuando ela fala.
Meu coração doloridoAs suas mágoas exala.E volta ao gozo perdidoQuando ela fala.
Pudesse eu eternamente,Ao lado dela, escutá-la,Ouvir sua alma inocenteQuando ela fala.
Minh’alma, já semimorta,Conseguira ao céu alçá-la,Porque o céu abre uma portaQuando ela fala.
Falenas
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17
O primeiro beijo
Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por
trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente
máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma
criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era
um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote
na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o
corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para
dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que
foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e
vermes, e, por compaixão, o transportou para seus livros.
Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina
que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou
para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma...
uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é
castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma
dama espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do
tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias, disse-
mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de
um letrado de Madri, vítima da invasão francesa, ferido, encarcerado,
espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos. Cosas de España. Quem quer
que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía
a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça,
lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não
permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa,
impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por
um certo Xavier, sujeito abastado e tísico – uma pérola.
Vi-a, pela primeira vez, no Rossio Grande, na noite das luminárias, logo
que constou a declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer
da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com
todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e
vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara
nas mulheres puras. – Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, tão pajem como
o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio
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das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe “linda Marcela”, lembrou-
me que ouvira tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.
Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma
ceia de moças, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos
os seus tubérculos, presidia ao banquete noturno, em que eu pouco ou nada comi,
porque só tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola!
Havia mais uma meia dúzia de mulheres – todas de partido – e bonitas, cheias
de graça, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso,
estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa única; à saída, à porta da rua,
disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
– Esqueceu alguma coisa? – perguntou Marcela de pé, no patamar.
– O lenço.
Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos,
puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma coisa, se gritou,
se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como
um tufão, e incerto como um ébrio.
Memórias póstumas de Brás Cubas
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O penteado
Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos
cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas
pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela
era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe
que se sentasse.
– Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. “Vamos ver o grande cabeleireiro”,
disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com
muito cuidado, e dividi-os em duas porções
iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz
logo, nem assim depressa, como podem supor
os cabeleireiros de ofício, mas devagar,
devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios
grossos, que eram parte dela. O trabalho era
atrapalhado, às vezes por desazo, outras de
propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os
dedos roçavam na nuca da pequena ou nas
espáduas vestidas de chita, e a sensação era
um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam
acabando, por mais que eu os quisesse
intermináveis. Não pedi ao céu que
eles fossem tão longos como os da
Aurora, porque não conhecia ainda
esta divindade que os velhos poetas
me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos,
tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável
de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes
uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma
ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus
olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos
somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e
pagãs. Enfim, acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas?
Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das
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tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra alargando aqui, achatando ali, até
que exclamei:
– Pronto!
– Estará bom?
– Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais
que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que
me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo.
Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha
da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar
o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
– Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro,
até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até a
parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me
clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda
que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto
que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e
mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des
Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.
Dom Casmurro
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A cartomante
Hamlet observa a Horácio que há mais coisas
no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.
Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao
moço Camilo, numa sexta-feira de novembro
de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
véspera consultar uma cartomante; a diferença
é que o fazia por outras palavras.
– Ria, ria. Os homens são assim; não
acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela
adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo
que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou
a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta
de uma pessoa...”. Confessei que sim, e então
ela continuou a botar as cartas, combinou-
as, e no fim declarou-me que eu tinha medo
de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
– Errou! – interrompeu Camilo, rindo.
– Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe
queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo caso, quando
tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a;
disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
– Qual saber! Tinha muita cautela, ao entrar na casa.
– Onde é a casa?
– Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
– Tu crês deveras nessas coisas? – perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que
havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova
é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
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Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.
Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro
de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia
em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião,
ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma
dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada.
Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar
tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade;
diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser
amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr
às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se
lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma
comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de
Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem
para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a
carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai,
que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até
que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela
da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a
magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os
lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
– É o senhor? – exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como
meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,
Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas
do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e
interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte
e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais
velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática.
Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no
berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu
a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos
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dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou
especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que
gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma
irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele
aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos
livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez
e jogavam às noites; – ela mal – ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até
aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam
muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias,
as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala
de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e
foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos
do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,
assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente,
foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e
pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,
remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória
delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí
foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de
ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando
estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser
as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo,
e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este
notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola
de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas
cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-
próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos
dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante
para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos
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que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter
feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou
três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse
ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era
possível.
– Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das
cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao
outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa
deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum
negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar
a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas
semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade,
e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de
Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Era mais de meio-dia.
Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório;
por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão,
afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.
– Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora – repetia ele com
os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que
ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois
sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De
caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe
explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem
descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia
anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela
conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
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Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras
estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então – o que era ainda pior –
eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa
casa; preciso falar-te sem demora”. Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom
de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A
comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que
chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado,
considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo
depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção
do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir
a trote largo.
– Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo
voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda
Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que
caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco
minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da
cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na
lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam
abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente
Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era
grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns
fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro
propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que
não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo:
era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com
vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro;
mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros
concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
– Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos,
pensava em outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as
palavras da carta: “Vem, já, já...”. E ele via as contorções do drama e tremia. A casa
olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de
um longo véu opaco... Pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz
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da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do
príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do
que sonha a filosofia...”. Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e
rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos
dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu.
Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três
pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela
fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e
mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava
para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza,
que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto,
com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio
no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas
e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre
a mesa, e disse-lhe:
– Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande
susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
– E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
– A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra
vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a
estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
– As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-
lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele,
o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam
invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo
estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na
gaveta.
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– A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por
cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
– Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu,
como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi
à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas,
começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que
desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particu-
lar. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
– Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
– Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era dois mil réis.
– Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito
do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele,
falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada
que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava
livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o
céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou
pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e
familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram
urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave
e gravíssimo.
– Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa;
parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à
antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras
da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se
ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz
iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às
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vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as
palavras secas e afirmativas, a exortação: “Vá, vá, ragazzo innamorato”; e no fim,
ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos
recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas
felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou
para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço
infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro
do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal
teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
– Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e
foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de
terror: ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-
o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
Várias histórias
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Do diário de Aires
1888 – 16 de janeiro
Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente dele,
que para lá ia. Cumprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me notícias de
Rita, e falamos durante alguns minutos sobre coisas gerais.
Isso foi ontem. Hoje pela manhã recebi um bilhete de Aguiar, convidando-
me, em nome da mulher e dele, a ir lá jantar no dia 24. São as bodas de prata.
“Jantar simples e de poucos amigos”, escreveu ele. Soube depois que é festa
recolhida. Rita vai também. Resolvi aceitar, e vou.
25 de janeiro
Lá fui ontem às bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as
minhas impressões da noite.
Não podiam ser melhores. A primeira delas foi a união do casal. Sei que
não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas
pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memória dos tempos passados, e a
afeição dos outros como que ajuda a duplicar a própria. Mas não é isso. Há neles
alguma coisa superior à oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os anos
tinham ali reforçado e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma
só e única. Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite.
Aguiar veio receber-me à porta da sala – eu diria que com uma intenção
de abraço, se pudesse havê-la entre nós e em tal lugar; mas a mão fez esse ofício,
apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta anos feitos (ela tem
cinqüenta), o corpo antes cheio que magro, ágil, ameno e risonho. Levou-me à
mulher, a um lado da sala, onde ela conversava com duas amigas. Não era nova
para mim a graça da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu
cumprimento davam-lhe à expressão do rosto algo que tolera bem a qualificação
de radiante. Estendeu-me a mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de relance
para o marido.
[...]
A dona da casa, afável, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz
naquela data; não menos o marido. Talvez ele fosse ainda mais feliz que ela, mas
não saberia mostrá-lo tanto. D. Carmo possui o dom de falar e viver por todas
as feições, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres,
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30
ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto, dão à velhice um
relevo particular, e fazem casar nela todas as idades. Não sei se me explico bem,
nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de
solitário.
De quando em quando, ela e o marido trocavam as suas impressões com
os olhos, e pode ser que também com a fala. Uma só vez a impressão visual foi
melancólica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas – sempre
há indiscretos – no brinde que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo “que Deus
lhos negara para que eles se amassem melhor entre si”. [...] Ouvindo aquela
referência, os dois fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita
me disse depois que essa era a única ferida do casal. Creio que Fidélia percebeu
também a expressão de tristeza dos dois, porque eu a vi inclinar-se para ela com
um gesto do cálice e brindar a D. Carmo cheia de graça e ternura:
– À sua felicidade.
A esposa Aguiar, comovida, apenas pôde responder logo com o gesto; só
instantes depois de levar o cálice à boca, acrescentou, em voz meio surda, como
se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de agradecimento:
– Obrigada.
Tudo foi assim segredado, quase calado. O marido aceitou a sua parte do
brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia.
1889 – Sem data
Há seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo. Agora à tarde lembrou-
me lá passar antes de vir para casa. Fui a pé; achei aberta a porta do jardim, entrei
e parei logo.
– Lá estão eles, disse comigo.
Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando
um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre
os joelhos. D. Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei entre
ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que
recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude
uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu.
Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si
mesmos.
Memorial de Aires
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31
À CarolinaÀ CarolinaÀ CarolinaÀ CarolinaÀ Carolina
Querida, ao pé do leito derradeiroEm que descansas dessa longa vida,Aqui venho e virei, pobre querida,Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiroQue, a despeito de toda a humana lida,Fez a nossa existência apetecidaE num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores – restos arrancadosDa terra que nos viu passar unidosE ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidosPensamentos de vida formulados,São pensamentos idos e vividos.
Relíquias de casa velha
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“Machado nos ajuda a abrir os olhos para o mundo de
injustiças em que vivemos, uma sociedade que segue até hoje
carregando esse fardo da opressão, da submissão e da
exploração. Machado me fez ver que estou inserida em uma
sociedade de aparências. ‘Por fora, bela viola; por dentro,
pão bolorento’. Machado veio para cortar o pão de nossa
sociedade e nos mostrar todo o bolor que existe nela.”
(Maria Rita da Silva Baltazar Gomes – CAP/UERJ)
“Se pensarmos
que os escritos
de Machado fo
ram feitos em
um momento
decisivo da con
strução da ide
ntidade social
brasileira – que
já caminhava
pelas trilhas da
hipocrisia –,
veremos que aq
ueles valores se
mantiveram at
é hoje e, de
certa forma, at
é se intensifica
ram, o que faz
da leitura de
seus textos algo
muito atual.”
(Luiz Henrique
Nascimento –
CAP/UERJ)
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Go
sto
da
libe
rda
de
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34
A liberdade não é surda-muda, nem
paralítica.
Ela vive, ela fala, ela bate as mãos, ela ri, ela
assobia, ela clama, ela vive da vida.
A liberdade não morre onde restar uma folha
de papel para decretá-la.
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35
13 de maio de 1888
Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou
a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu
o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem
aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam
felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que
me lembra ter visto. Essas memórias atravessavam-me o espírito, enquanto os
pássaros trinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que receberam
ontem nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorificação. No meio de tudo,
porém, uma tristeza indefinível. A ausência do sol coincidia com a do povo? O
espírito público tornaria à sanidade habitual?
14 de maio de 1893
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36
Conto de escola
A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era
de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira, do mês de maio – deixei-me estar
alguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava
entre o morro de S. Diogo e o campo de Sant’Ana, que não era então esse parque
atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito,
alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o
problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a
escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o
pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro.
As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do
arsenal de guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição
comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e
contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham
começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela
manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a
tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar
manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e
desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo
e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a
boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos
pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram
a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.
– Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência
tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas
trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com
o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara
doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se
antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.
– O que é que você quer?
– Logo, respondeu ele com voz trêmula.
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37
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados
da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um
escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra
convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos
de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas
deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza
nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa;
tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do
mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das
quais recordo a interrogativa, a admirativa, a
dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses
nomes, pobre estudante de primeiras letras que
era; mas, instintivamente, dava-lhes essas
expressões. Os outros foram acabando;
não tive remédio senão acabar também,
entregar a escrita, e voltar para o meu
lugar.
Com franqueza, estava
arrependido de ter vindo. Agora que
ficava preso, ardia por andar lá fora, e
recapitulava o campo e o morro, pensava
nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o
Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do
bairro e do gênero humano. Para cúmulo de
desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do
morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda
imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas
unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.
– Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
– Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que
queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de
novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
– Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
– Que é?
– Você...
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38
– Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes,
o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa
circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a
arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma
simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma
coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos,
era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito,
falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava
dele nem de mim. Ou então, de tarde...
– De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
– Então agora...
– Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho,
buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós
também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal
cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as
idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era
grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude
averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá
estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo.
Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não
era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a
ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que
lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou
tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo – dez ou doze minutos – Raimundo meteu a mão
no bolso das calças e olhou para mim.
– Sabe o que tenho aqui?
– Não.
– Uma pratinha que mamãe me deu.
– Hoje?
– Não, no outro dia, quando fiz anos...
– Pratinha de verdade?
– De verdade.
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39
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo
do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembra; mas era uma
moeda, e tão moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu
em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-
lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.
– Mas então você fica sem ela?
– Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou,
numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar
para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto
amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de
serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não
conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta
esfregando a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia
antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em pregar uma ou outra
mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos
termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá,
dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não
o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao
castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo,
como de outras vezes; mas parece que era a lembrança das outras vezes, o medo
de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria – e
pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal –, parece que
tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor – mas queria
assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele
guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos,
à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito
branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um
cobre feio, grosso, azinhavrado...
Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que
continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. “Ande, tome”,
dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora
diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não
podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...
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– Tome, tome...
Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao
Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei;
mas daí a pouco, deitei-lhe outra vez o olho, e – tanto se ilude a vontade! – não
lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.
– Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das
calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha
à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição, e não me demorei em fazê-lo,
nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho
de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia
um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que
ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com
um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez
para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a
remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário,
franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
– Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
– Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso,
lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois,
tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso,
dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em
brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras
vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo,
pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas
pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno
papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele.
Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no
bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-
ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse,
ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição,
com uma grande vontade de espiá-la.
– Oh! Seu Pilar! – bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei
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com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa,
em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
– Venha cá! – bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par
de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém
mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do
mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
– Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? –
disse-me o Policarpo.
– Eu...
– Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! – clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito.
Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão
no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro
lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-
nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de
praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo
íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.
– Perdão, seu mestre... – solucei eu.
– Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a
mão!
– Mas, seu mestre...
– Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns
por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas
e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois,
quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-
vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio, apanharíamos tal
castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões!
Tratantes! Faltos de brio!
Eu por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos
os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios
do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria
igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para
ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão
certo como três e dois serem cinco.
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Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas
desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta;
estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os
joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na
verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?
– Tu me pagas! Tão duro como osso! – dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar
ali mesmo, na rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na rua Larga de S. Joaquim.
Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum
corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a
algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas,
menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite,
mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E
sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com
ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir
depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem
contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo
isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei
o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei
tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as,
fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente,
rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual,
direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu
senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava
lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei
a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: “Rato na
casaca”... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei
a manhã na praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem
pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e
foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da
corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...
Várias histórias
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Pancrácio
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post facto, depois do
gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se
necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista,
tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um
molecote que tinha, pessoa dos seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era
nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que os meus amigos deram o nome de banquete, em falta
de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem
trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua),
levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que, acompanhando as idéias
pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo
Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias
e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os
homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio
a abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho)
pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que
eu acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz
outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços
comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais
nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e
suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida
e tens mais um ordenado, um ordenado que...
– Oh! Meu senhô! Fico.
– ... um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste
mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste
tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
– Artura não qué dizê nada, não, senhô...
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis; mas é de grão em grão que
a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
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– Eu vaio um galo, sim, senhô.
– Justamente. Pois seis mil réis. No fim de um ano, se andares bem, conta
com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte,
por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que
o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido
por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois
estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido
alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe
não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me
perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei
aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa,
na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que
dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar (simples
suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens
puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas
os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os
poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça
na terra, para satisfação do céu.
19 de maio de 1888
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Um gatuno
Chegaram ao Largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ela entrou
pela rua Gonçalves Dias, ele enfiou pela da Carioca. No meio desta, Aires encontrou
um magote de gente parada, logo depois andando em direção ao largo. Aires quis
arrepiar caminho, não de medo, mas de horror. Tinha horror à multidão. Viu que
a gente era pouca, cinqüenta ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a
prisão de um homem. Entrou num corredor, à espera que o magote passasse.
Duas praças de polícia traziam o preso pelo braço. De quando em quando, este
resistia, e então era preciso arrastá-lo ou forçá-lo por outro método. Tratava-se,
ao que parece, do furto de uma carteira.
– Não furtei nada! – bradava o preso detendo o passo. – É falso! Larguem-
me! Sou um cidadão livre! Protesto! Protesto!
– Siga para a estação!
– Não sigo!
– Não siga! – bradava a gente anônima. – Não siga! Não siga!
Uma das praças quis convencer a multidão que era verdade, que o sujeito
furtara uma carteira, e o desassossego pareceu minorar um pouco; mas, indo a
praça a andar com a outra e o preso – cada uma pegando-lhe um dos braços –, a
multidão recomeçou a bradar contra a violência. O preso sentiu-se animado, e
ora lastimoso, ora agressivo, convidava a defesa. Foi então que a outra praça
desembainhou a espada para fazer um claro. A gente voou, não airosamente,
como a andorinha ou a pomba, em busca do ninho ou do alimento, voou de
atropelo, pula aqui, pula ali, pula acolá, para todos os lados. A espada entrou na
bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo os peitos tomaram vingança
das pernas, e um clamor ingente, largo, desafrontado, encheu a rua e a alma do
preso. A multidão fez-se outra vez compacta e caminhou para a estação policial.
Aires seguiu caminho.
A vozeria morreu pouco a pouco, e Aires entrou na Secretaria do Império.
Não achou o ministro, parece, ou a conferência foi curta. Certo é que, saindo à
praça, encontrou partes do magote que tornavam comentando a prisão e o
ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam
há pouco contra a ação das praças, como riam agora das lástimas do preso.
– Ora o sujeito!
Mas então?... perguntarás tu. Aires não perguntou nada. Ao cabo havia
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um fundo de justiça naquela manifestação dupla e contraditória; foi o que ele
pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um
velho instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem, uma vez criado,
desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não
há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá;
que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta,
quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre,
sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão.
Esaú e Jacó
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Arte
s e
artis
tas
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O olho do homem serve de fotografia ao
invisível, como o ouvido serve de eco ao
silêncio.
De todas as coisas humanas, a única que tem
o seu fim em si mesma é a arte.
Respiremos, amigos, a poesia é um ar
eternamente respirável.
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A vida é uma ópera
Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me
faz mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia
ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do céu; o empresário
cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes
dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa
de Babilônia. Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais
idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui
jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a
definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma
ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:
– A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam
pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o
soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos
mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração
é excelente...
– Mas, meu caro Marcolini...
– Quê?...
E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálice, e expôs-me a história
da criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro,
que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não
tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser
também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos
fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que
foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem
mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão,
por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás
levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais
que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu –, compôs a partitura, e
logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
– Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a
partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas,
admiti-me com ela a vossos pés...
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– Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
– Mas, senhor...
– Nada! Nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e
cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu.
Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com
todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
– Ouvi agora alguns ensaios!
– Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto;
estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que
a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares
em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga
que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim
explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão.
Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos
motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa
das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As
partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos
imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão
bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas
com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e
aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra
onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não
dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a
partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares,
e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao
drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência
para imitar as Mulheres patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos
satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o
jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram
nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão
transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o
autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
– Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não
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se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica.
O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais,
que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos
são os chamados, poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
– Tem graça...
– Graça? – bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: – Caro
Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade
pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há
de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos
homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré etc. Este
cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve estribilho. Não se ouve?
Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...
Dom Casmurro
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Um homem célebre
– Ah! O senhor é que é o Pestana? – perguntou Sinhazinha Mota, fazendo
um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe
meu modo, mas... é mesmo o senhor?
Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do
piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o
fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao
todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos
anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a
folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu,
pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e
diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana
que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se
gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez
minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.
– Diga, minha senhora.
– É que nos toque agora aquela sua polca. Não bula comigo, nhonhô.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem
gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos,
derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os
pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada
vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade, em que não fosse conhecida. Ia
chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira
à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo
negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana
compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a
polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado.
Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta
vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que,
alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa,
ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não
aceitou nada, teimou em sair e saiu.
Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só
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afrouxou, depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-
o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de
distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dançava-
se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se
a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa
do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua
do Aterrado, onde morava. Já perto de casa, viu vir dois homens; um deles,
passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente,
com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos
e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.
Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia,
e que veio saber se ele queria cear.
– Não quero nada, bradou Pestana; faça-me café e vá dormir.
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o
preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns
dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o
educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio
pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos
trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido
por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe
transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não
ocupa a minha história, como ides ver.
Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart,
Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros
litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mal postos ali
como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava
aberto: era uma sonata de Beethoven.
Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou
para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si,
desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou
alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez
de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma
alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela
e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando
ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum
machadao3 artes e artistas.pmd 9/10/2008, 16:3153
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pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela.
As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de
alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas
então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou
reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a
essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas.
Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela
ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida
de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das
velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último
caso ao diabo. Por que não faria ele um
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