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FLÁVIA MACHADO SEIDINGER
SIGNIFICADOS PSICOLÓGICOS DO ABANDONO DO TRATAMENTO AMBULATORIAL NOS TRANSTORNOS
ALIMENTARES NA VISÃO DOS PACIENTES: UM ESTUDO CLÍNICO-QUALITATIVO
CAMPINAS - SP 2014
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
FLÁVIA MACHADO SEIDINGER
SIGNIFICADOS PSICOLÓGICOS DO ABANDONO DO TRATAMENTO AMBULATORIAL NOS TRANSTORNOS
ALIMENTARES NA VISÃO DOS PACIENTES: UM ESTUDO CLÍNICO-QUALITATIVO
ORIENTADOR: PROF. DR. EGBERTO RIBEIRO TURATO
Dissertação de Mestrado apresentada à Pós-
Graduação da Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP para
obtenção do Título de Mestra em Ciências Médicas,
área de concentração Ciências Biomédicas.
CAMPINAS - SP 2014
ESTE EXEMPAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA
DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA FLÁVIA MACHADO
SEIDINGER, ORIENTADA PELO PROF. DR. EGBERTO RIBEIRO
TURATO.
____________________________________
Assinatura do Orientador
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Meus sinceros agradecimentos:
Ao Prof. Dr. Egberto Ribeiro Turato,
À Pós-Graduação em Ciências Médicas, e pelos financiamentos concedidos, CAPES e FAPESP.
Ao Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa, sine qua non; aos colegas pesquisadores, sempre parceiros e
minha gratidão pelas novas amizades aí encontradas.
Ao GETA, pacientes e equipe, a Celso Garcia Júnior, por tornarem este trabalho possível.
À Banca Examinadora, Prof. Dr. Manoel Antonio dos Santos e Prof. Dr. Luís Fernando Tófoli,
e aos suplentes pelas contribuições e generosidade, Profa. Dra. Rosângela Higa,
Prof. Dr. Claudinei J. G. Campos, e Prof. Dr. Marcelo Marcos Piva Demarzo.
À Banca de Qualificação, Prof. Dr. Paulo Dalgalarrondo, Profa. Dra. Heloísa R.V. Celeri, Dr. Ronis Magdaleno Jr.
A Daniela Araújo Silva, Carla Maria Vieira, Maria Marta Battistoni, Ana Luísa M. Traballi, Lia K. Silveira
Campos, Fátima Böttcher-Luiz, Mônica Filomena Caron, Vanda de Fátima Oliveira,
à equipe de Moradias do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, Veridiana Marucio, Ruth Cerejo, e a cada amigo,
impossível nomear aqui, cada qual por sua particular participação neste percurso; a Graciela Brodsky e Angelina Harari.
A Dr. Gustavo de Carvalho Duarte e equipes do Instituto do Sangue, TMO Beneficência Portuguesa e CQA.
A Lúcia Cerdeira Leibovitz e, infinitamente, a Rogerio Cerdeira Leibovitz.
Aos meus queridos irmãos, ainda que distante, por serem grandes exemplos e apoios próximos;
A quem me acompanhou de longe até a qualificação e já não estava mais entre nós
na conclusão deste trabalho, meu pai, por seu amor ao saber;
e, à minha mãe, por saber amar.
Flávia Machado Seidinger
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Aos pacientes, pacientes “ensinantes” sobre a clínica,
até quando abandonam, ensinam.
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RESUMO
O abandono do tratamento, questão cara à saúde pública, constitui preocupação nos
transtornos alimentares, pelos altos índices, assim como pelos resultados insatisfatórios
no tratamento e pela gravidade do quadro. O presente estudo teve por objetivo
compreender o fenômeno do abandono do tratamento ambulatorial nos transtornos
alimentares a partir dos significados atribuídos por pacientes que vivenciaram tal
experiência. Utilizando-se do método clínico-qualitativo, entrevistas em profundidade
orientadas por roteiro semiestruturado foram colhidas, gravadas e transcritas na íntegra.
Oito pacientes com ≥18 anos que abandonaram o tratamento especializado em
ambulatório de hospital universitário público compõem amostra fechada por critério de
saturação dos dados. Foi pressuposto que o abandono do tratamento guardasse relação
com aspectos psicológicos próprios a esses transtornos. A fundamentação teórica foi
ancorada no referencial psicodinâmico, e os achados também analisados à luz de revisão
da literatura científica atual. Foram identificadas oito categorias de conteúdo originadas
por enunciação, apresentadas em três grupos. Encontradas como denominadores
comuns a todas as demais categorias, enquanto significados psicológicos do abandono
para os participantes, as seguintes categorias dizem respeito à psicodinâmica ligada ao
abandono, sendo, portanto, categorias centrais: 1.a) “Uma escravidão ao vício,
compulsivamente” – dimensão aditiva da anorexia e bulimia e 1.b) "Me senti abandonada,
então abandonei” – acting out da fantasia de abandono. Por sua vez, as categorias
secundárias relacionam-se diretamente às centrais e revelam mecanismos que participam
do fenômeno do abandono: 2.a) “Não gosto que as coisas saiam do meu controle” –
abandono como alívio, 2.b) “Anorexia é uma coisa para a vida inteira” – apego/adesão ao
sintoma e 2.c) “Eu me dei alta” – melhora suficiente e cura. Por último, por
corresponderem aos significados da faceta “tratamento” implicada no objeto “abandono”,
as categorias consideradas colaterais por serem relativas ao tratamento: 3.a) “No começo
eu não aceitava como doença” – negação inicial e superação, 3.b) “Um tratamento dentro
do tratamento” – lugar dado à palavra e 3.c) Da “aliança ao vício” à aliança terapêutica
como laço. Os resultados confirmam pressuposto do estudo. Os significados revelam
elementos simbólicos que permitem melhor compreensão do fenômeno, apontando
proximidade às adicções e aspectos psicodinâmicos como: dificuldades com o controle e
no campo interpessoal, impulsividade e condutas atuadas; sugerem a importância do laço
a ser construído com a equipe, no manejo clínico, inclusive nas recaídas, frente à
dinâmica aditiva. Com possível impacto na adesão e nos resultados do tratamento, o
estudo aponta ramificações e possibilidades para a terapêutica desta clínica carente de
avanços.
Palavras-chave: anorexia nervosa; bulimia nervosa; pesquisa qualitativa; pacientes
desistentes do tratamento; comportamento aditivo.
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ABSTRACT
Dropout, a relevant issue for public health, in the case of Eating Disorders is concerning
due to the high rates, severity of disorders and poor outcomes. The present study aims at
understanding outpatient treatment dropout in eating disorders from meanings attributed
by patients to their dropout experiences. It was assumed that dropout could be related to
psychological aspects of these disorders. It was conducted a qualitative study adopting the
clinical-qualitative approach. The sample, set according to data saturation criteria included
eight ≥18 years old patients that dropped out of specialized outpatient treatment in a public
university hospital. Eight semi-structured interviews have been collected in-depth recorded
and fully transcribed. The theoretical basis is grounded in psychodynamic references and
the findings are also analysed under the scope of current scientific literature review. Eight
content categories originated by enunciation are analysed, clustered in three groups.
Found as common denominators to other categories, as psychological meanings of drop
out to participants, the following categories refer to the psychodynamic linked to drop out,
thus being central categories: 1.a) “Enslavement to addiction (compulsively)” – addictive
dimension of anorexia and bulimia, and 1.b) “I’ve felt abandoned, so I dropped out” –
acting-out the fantasy of abandonment. Secondary categories are directly related to the
central ones and reveal mechanisms participating in the drop out phenomenon: 2.a) “I
don’t like if things get out of my control” – dropout as relief, 2.b) “Anorexia is for life” –
attachment/adherence to the symptom and 2.c) “I’ve discharged myself” – sufficient
improvement and cure. In a collateral plane, corresponding to meanings related to the
“treatment” facet implicated in the object “dropout”, there are the categories related to
treatment: 3.a) “At first I didn’t accept it as a disease” – initial denial and overcoming, 3.b)
“A treatment inside the treatment” – the place given to the word and 3.c) From “alliance to
addiction” to therapeutic alliance as a bond. The results confirmed the study’s assumption.
The meanings points symbolic elements that allow for a better comprehension of the
phenomenon, revealing the proximity between addictions and psychodynamic aspects
such as: interpersonal difficulties, impulsivity and acting out conduct. These suggest the
importance of the therapeutic bond to be built with the treatment team, in clinical
management, including relapse, in face of the addictive dynamics. The study signals
ramifications and new possibilities to the clinical practice in eating disorders, with possible
impact in compliance.
Key words: anorexia nervosa; bulimia nervosa; qualitative research; patient dropouts;
behaviour, addictive.
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ABREVIATURAS E SIGLAS
AN - Anorexia Nervosa
BN - Bulimia Nervosa
atip - atípica
purg - purgativa
restr - restritiva
CID 10 - Classificação Internacional de Doenças, 10a. revisão
DO - abreviatura corrente na literatura internacional do descritor patient dropout
correspondente a abandono de tratamento por parte do paciente
DM - Diabetes Mellitus
DSM IV-TR - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - 4a. ed. revisada
DSM V - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - 5a. edição
(Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth and Fifth
Edition)
GETA - Grupo Interdisciplinar de Assistência e Estudos em Transtornos
Alimentares - Universidade Estadual de Campinas
HD - Hipótese Diagnóstica
FCM - Faculdade de Ciências Médicas
LPCQ - Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa
TA - Transtornos Alimentares
TAG - Transtorno de Ansiedade Generalizada
TASOE - Transtornos Alimentares sem outras especificações
TP - Transtorno de Personalidade
TPB - Transtorno de Personalidade Borderline
TPH - Transtorno de Personalidade Histriônico
Unicamp - Universidade Estadual de Campinas
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SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................. xi
ABSTRACT ........................................................................................................... xiii
ABREVIATURAS E SIGLAS .................................................................................. xv
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 19
1.1 Transtornos Alimentares ............................................................................ 21
1.1.1 Aspectos históricos e socioculturais ................................................. 25
1.1.2 Aspectos epidemiológicos e clínicos ................................................ 29
1.1.3 Aspectos psicológicos ...................................................................... 30
1.2 Sobre o termo "abandono" e sua etimologia ............................................. 31
2. PRESSUPOSTO E OBJETIVOS ....................................................................... 33
2.1 Pressuposto Geral ..................................................................................... 35
2.2 Objetivo geral ............................................................................................ 35
2.3 Objetivos específicos ................................................................................. 35
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ......................................................................... 37
3.1 Notas sobre a Anorexia em Freud e Lacan ............................................... 39
3.2 Anorexia, Bulimia, adicção, desamparo e abandono ................................. 43
3.3 Desamparo e a questão abandônica ......................................................... 51
4. RECURSOS METODOLÓGICOS ..................................................................... 55
4.1 Sobre o método ......................................................................................... 57
4.2 Descrição da etapa de campo da pesquisa ............................................... 61
4.3 Técnica de tratamento dos dados .............................................................. 66
4.4 Cuidados éticos e manejo de vieses na pesquisa ..................................... 68
4.5 Recursos materiais e fontes de financiamento .......................................... 70
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO ......................................................................... 71
5.1 Categorias principais relativas ao abandono e seus significados .............. 75
5.1.1 "Uma escravidão ao vício, compulsivamente" – dimensão aditiva da anorexia e bulimia ....................................................................... 75
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5.1.2 "Me senti abandonada, então abandonei” – acting out da fantasia de abandono .................................................................................... 76
5.1.3 Categorias secundárias relativas ao abandono ............................... 83
5.1.3.1 "Não gosto que as coisas saiam do meu controle” – abandono como alívio ............................................................ 83
5.1.3.2 “Anorexia é uma coisa para a vida inteira” – apego/adesão ao sintoma ............................................................................. 85
5.1.3.3 “Eu me dei alta” – melhora suficiente e cura ........................ 87
5.2 Categorias relativas ao tratamento ............................................................ 91
5.2.1 “No começo eu não aceitava como doença” – negação inicial e superação ........................................................................................ 91
5.2.2 “Um tratamento dentro do tratamento” – lugar dado à palavra ........ 93
5.3 Da “aliança ao vício” à aliança terapêutica como laço ............................... 99
6. CONSIDERAÇÕES ......................................................................................... 101
6.1 Implicações clínicas .................................................................................. 103
6.2 Limitações do estudo e futuras pesquisas ............................................... 107
6.3 Considerações finais ............................................................................... 109
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 113
ANEXOS ............................................................................................................. 125
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1. INTRODUÇÃO
A valorização do estudo do ser humano, em situação,
não é só indispensável eticamente, como extremamente necessário
num momento de crise da humanização, em que o ser humano
perdeu todos os seus centros de apoio, e precisa apoiar-se em si mesmo.
Para tal terá que conhecer-se, e os métodos qualitativos devem ser
os mais indicados para que esse conhecimento seja produtivo e ético.
Cassorla
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Introdução 21
1.1 Transtornos Alimentares
Transtornos Alimentares (TA) acometem principalmente meninas,
adolescentes e mulheres jovens. No entanto, nos últimos anos tem se destacado o
surgimento e aumento progressivo da Anorexia em homens, ao lado de outras
variantes de transtornos com distorções de imagem corporal, abuso de exercícios
físicos e comer desordenado; porém, em proporção bem menor: 10% da
prevalência em mulheres, segundo Melin & Araújo (2002)(1). É válido mencionar
outro estudo nacional que analisou a experiência corporal de um adolescente(2).
Apesar de ainda escassos estudos sobre o tema, estudo epidemiológico de Valls
et al (2013)(3) destaca a significativa comorbidade com sintomatologia depressiva
em homens e chama a atenção para as formas subliminares e não especificadas,
pois incluindo estas formas encontro 15% de TA em amostra masculina,
estatisticamente significativa, entre jovens adultos franceses, encontrando 18% de
sintomas depressivos graves na mesma amostra, sendo 5% comórbidos.
O grupo diagnóstico atualmente conhecido por Transtornos Alimentares tem
a Anorexia Nervosa (AN) e a Bulimia Nervosa (BN) como principais entidades
mórbidas, compreendendo os subtipos: restritivos, purgativo e não purgativo. O
presente trabalho baseia-se na 4ª edição revisada do Manual Estatístico e
Diagnóstico (DSM IV-TR; APA 2003), utilizado nos critérios de inclusão de nossa
amostragem por ser considerado mais adequado para os TA pelos médicos do
serviço do qual os participantes estudados são egressos, sendo a 4ª edição do
manual, vigente quando da coleta de dados.
Quanto à classificação diagnóstica dos TA, vale citar as palavras de
Claudino e Borges (2002)(4):
Embora classificados separadamente, os dois transtornos acham-se
intimamente relacionados por apresentarem psicopatologia comum:
uma ideia prevalente envolvendo a preocupação excessiva com o
peso e a forma corporal (medo de engordar), que leva as pacientes a
se engajarem em dietas extremamente restritivas ou a utilizarem
métodos inapropriados para alcançarem o corpo idealizado. Tais
pacientes costumam julgar a si mesmas baseando-se quase que
22 Introdução
exclusivamente em sua aparência física, com a qual se mostram
sempre insatisfeitas (2002; p.7).
De todo modo, os manuais diagnósticos guardam algumas diferenças nos
critérios para classificação da AN e BN, conforme se pode ver na Tabela 1:
Tabela 1 - Critérios diagnósticos para Anorexia Nervosa e Bulimia Nervosa pelo DSM-IV e pela CID-10.
CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DO DSM-IV E CID-10 PARA ANOREXIA E BULIRNIA NERVOSA
DSM-IV CID-10
Anorexia Nervosa Perda de peso e recusa em manter o peso dentro da faixa normal (≥85% do esperado)
Perda de peso e manutenção abaixo do normal (IMC ≤17,5 kg/m2)
Medo mórbido de engordar mesmo estando abaixo do peso
Perda de peso auto-induzida pela evitação de alimentos que engordam
Perturbação na forma de vivenciar o baixo peso, influência indevida do peso sobre a auto-avaliação e negação do baixo peso
Medo de engordar e percepção de estar muito gorda(o)
Amenorréia por 3 ciclos consecutivos Distúrbio endócrino envolvendo o eixo hipotálamo-hipofisário-gonadal (amenorréia) e atraso desenvolvimento puberal
Subtipos: 1.restritivo (dieta e exercícios apenas) 2.compulsão periódica/purgativo (presença de episódios de compulsão e/ou purgação além da dieta, exercícios)
*vômitos auto-induzidos, purgação e uso de inibidores do apetite e/ou diuréticos podem estar presentes
Bulimia Nervosa Episódios recorrentes de compulsão alimentar (excesso alimentar + perda de controle)
Episódios recorrentes de hiperfagia (duas vezes/semana por três meses), preocupação persistente com o comer e desejo irresistível de comida.
Métodos compensatórios para prevenção de ganho de peso: indução de vômitos, uso de laxantes, diuréticos, enemas, jejum, exercícios excessivos ou outros.
Uso de métodos compensatórios para neutralizar ingestão calórica: vômitos, abuso de laxantes, jejuns ou uso de drogas (anorexígenos, hormônios tireoidianos ou diuréticos)*
Freqüência dos episódios compulsivos e compensatórios: em média pelo menos duas vezes/semana por três meses Influência indevida do peso/forma corporal sobre a auto-avaliação
Medo de engordar que leva a busca de um peso abaixo do limiar ótimo ou saudável *diabéticas podem negligenciar o tratamento insulínico (evitando a absorção da glicose sanguínea)
Diagnóstico de AN ausente Subtipos: 1. Purgativo – vômitos induzidos, abuso de laxantes, diuréticos ou enemas 2. Não-purgativo –apenas jejum e exercícios para compensar ingestão calórica
Fonte: Claudino AM & Borges. Critérios diagnósticos para os transtornos alimentares: conceitos em evolução. RevBrasPsiquiatr 2002; 24 (Supl III): 7-12.
Os TA são descritos como grupo heterogêneo do ponto de vista dos
diagnósticos e subtipos, porém, correlatos a uma psicopatologia e psicodinâmica
comuns, e a transição de um diagnóstico e/ou subtipo a outro é frequente ao longo
Introdução 23
do tratamento. Dessa forma, faz-se necessária uma abordagem transdiagnóstica,
tal como a empregada por Fairburn et al. (2003)(5), a qual não se refere aos
matizes dos sintomas, objetivos e mensurados, mas sim à dimensão vivenciada,
focalizando seus aspectos simbólicos, visando o que está em jogo no plano
subjetivo, tendo como foco os significados psicológicos atribuídos pelos pacientes.
Formas atípicas ou variantes dos subtipos diagnósticos que compõem os quadros
dos TA são aspectos flutuantes no curso da doença, e podem variar rapidamente
de subtipo ou passar de uma entidade nosológica a outra. Para fins deste estudo,
pequenas variações de critérios diagnósticos não são relevantes uma vez que não
seria possível assegurar sua precisão por se tratar de pessoas que abandonaram
o tratamento; tampouco fez parte do desenho do estudo o uso de quaisquer
escalas para reavaliação diagnóstica de seus participantes.
Os TA podem se manifestar a partir do entrecruzamento de diversos
fatores: aspectos socioculturais(6-10): padrões relacionais familiares,
vulnerabilidades psicológicas e biológicas. Embora ainda polêmico, estudos
investigam, dentro da etiologia multifatorial, encontrariam fatores genéticos
implicados (Bergen et al, 2003)(11); Hinney et (2010)(12); Cui et al 2013)(13). Importa
destacar nosso entendimento de que apenas um dos fatores, isoladamente, não é
suficiente para o desencadeamento de um quadro de TA - por exemplo, a dieta
que muitas vezes precede o início do quadro, ou os fatores culturais, muitas vezes
hipervalorizados pela mídia.
Já os padrões relacionais familiares e vulnerabilidades psicológicas a eles
associados são aspectos mais classicamente conhecidos como ligados aos
transtornos, sendo importante destacar tal visão ligada a teorias que se embasam
em conhecimento proveniente da clínica, como a psicanálise desde Freud (Freud,
1895)(14), as teorias psicodinâmicas, ou mesmo o clássico estudo de Lasègue que
em 1873 relacionou a anorexia à histeria, portanto à dinâmica psíquica do sujeito e
sua família, especialmente à relação às figuras parentais(15). Não seria correto
mencionar poucos estudos científicos recentes frente a tal visão, que vem sendo
vastamente publicada e influenciando estudos e práticas terapêuticas há
24 Introdução
aproximadamente cento e quarenta anos. Assim, é importante mencionar as obras
dos autores e escolas que fundamentam nosso referencial teórico. Neste campo,
contribuem estudos como os de Woodside et al (2002)(16), Dallos & Denford
(2008)(17), Espíndola & Blay (2009)(18) e Sim et al (2009)(19). Vale sublinhar que
estas teorias até hoje estão presentes na visão sobre os transtornos, de forma que
sua terapêutica, a partir das evidências na clínica, inclui a terapia familiar, sendo
referências nesta área os estudos de James Lock (2010)(20), e no cenário nacional,
os de Cobelo et al (2004)(21).
Sobre o objeto de estudo e seu recorte
O presente estudo teve como objeto as interrupções de tratamento*
ambulatorial por parte de pacientes diagnosticados com TA, interrupções que são
conhecidas no campo da saúde por “abandonos”. A pesquisa visa compreender, a
partir das vivências dos pacientes, como estes significam a experiência de
“abandono” do tratamento ambulatorial.
Dentre as complexidades que marcam nosso objeto de estudo,
destaquemos duas: 1) objeto que se caracteriza pela negativa de outro objeto, o
tratamento, fazendo-se necessário, ao longo do trabalho, tratar também desse
outro objeto; 2) características dos transtornos estudados: compreendidos no
grupo atualmente chamado de Transtornos Alimentares, Anorexia Nervosa,
Bulimia Nervosa constituem as principais entidades nosológicas que, junto a
outros transtornos similares compartilham semelhanças e diferenças e possuem
subtipos variantes. Suas descrições minuciosas de quadros psiquiátricos do ponto
de vista de seus fenômenos objetivos, com complicações clínicas associadas,
variam nos manuais estatísticos e diagnósticos. Vale notar que o presente estudo
foi desenhado e conduzido durante a vigência do DSM IV-TR, portanto,
anteriormente às variações da edição recentemente publicada (5ª. edição; DSM
V).
* Ou “término prematuro do tratamento” como também é descrito na literatura científica internacional (PTT =
premature termination of treatment). Atualmente é sugerida a adoção de tal termo e seus parâmetros na pesquisa, no lugar do descritor Dropout (DO) (Campbell, 2009; Sly, 2009).
Introdução 25
A nosso estudo, que visa os significados atribuídos, interessa alcançar o
que é revelado pelos discursos acessados por meio das entrevistas, implicando
seus significados através da memória, do pensamento e da linguagem, da
dimensão imaginária e simbólica trazidos pelas falas dos participantes; ou seja, o
que é acessível do ponto de vista psicológico, isto é, o que é supostamente
partilhado pelos participantes da pesquisa, apesar de particularidades dentro da
evolução do quadro psiquiátrico, por assim dizer, quanto aos critérios utilizados
para o diagnóstico médico.
1.1.1 Aspectos históricos e socioculturais
Etimologicamente, os termos Anorexia e Bulimia derivam do grego e
respectivamente significam: orexis - desejo, inclusive na acepção de "apetite",
acompanhado do prefixo an, que significa ausência, deficiência, ou negação; bous
significa "boi", e limos, "fome", designando, assim, fome muito grande(22). Ao
contrário do que entende o senso comum, o que caracteriza a Bulimia é, então, a
compulsão, e não exatamente a purgação, existindo no DSM, inclusive, a
classificação diagnóstica da Bulimia Nervosa não purgativa.
A Anorexia tem registros históricos desde a Antiguidade; adquiriu estatuto
de entidade mórbida no final do século XIX, com os diagnósticos quase
contemporâneos do psiquiatra inglês Gull, “anorexia nervosa”, e do francês
Lasègue (1998)(15), “anorexia histérica”.
Cumpre registrar que, segundo Cordás & Claudino (2002)(22) Couvreur
(2003)(23) , a prática bulímica também teria histórico antigo em registros bíblicos,
bem como posteriormente, no campo médico, descrevendo sintomas e
comportamentos apresentados em quadros diversos, muito tempo antes de ser
descrita como entidade mórbida. Assim, é no mínimo curioso o entendimento atual
de que a BN como descrição psiquiátrica tenha surgido somente com a descrição
Russell, em 1979, ante ao amplo trabalho de Brusset com a Bulimia, que revela
abundantes referências ao comportamento bulímico e sua descrição em diferentes
26 Introdução
épocas, também apoiado na pesquisa de Couvreur (2003)(23). Segundo diversos
estudos pormenorizados por ela citados, é descrita a evolução do conceito na
medicina desde há mais de um século, o que vale destacar como surpreendente
por sua divergência da visão corrente atual, da descrição da Bulimia como
entidade mórbida somente em 1979. Por exemplo, Ziolko e Schrader (1985)*
teriam encontrado relatos de um quadro patológico conhecido na Antiguidade
grega sob o nome de “cinorexia” (fome canina), caracterizado e descrito por
“hiperfagia impulsiva seguida de vômitos”. O estudo de Stein & Laakso, publicado
em 1988 permite encontrar menções à Bulimia, não em registros bíblicos ou
históricos somente, mas sim nos dicionários médicos, desde o começo do século
XVIII! Segundo os autores, ao contrário do que se pensa, há evidências de
descrições enquanto síndrome e não como variante da anorexia, e referências ao
conceito de bulimia, há aproximadamente trezentos anos†(24). Teria sido Blankaart,
já em 1708, o primeiro autor anglo-saxão a detalhar a referência à Bulimia,
descrevendo um “apetite extraordinário” ligado frequentemente a uma “fraqueza
de espírito”. Couvreur (2003) destaca ainda, a título de exemplo, a publicação do
The Edimburg Medical and Physical Dictionary, em 1807. Foi também descrita
como “hiperorexia”, na Alemanha, no século XIX, e por Janet (1908)‡, que utilizou-
se efetivamente do termo ao descrever “O Caso Nadia” como síndrome da
“anorexia mental-bulimia vômito”(23).
Em diferentes épocas, a descrição dos quadros alimentares varia em
função de fatores ideológicos e relacionados aos diferentes contextos
socioculturais. Para compreender a forma de apresentação atual dos TA,
consideramos úteis as teses que sustentam o pensamento de Zygmunt Bauman
(2008a)(25), destacando o impacto que a chamada “sociedade de consumo” exerce
sobre o ser humano e sua subjetividade, em um tempo em que o consumo tornou-
se prioridade da produção por excelência.
* Ziolko HU (1996). Hyperphagia und anorexia. Der Nävenartz, 37, 9, 400-406. † “While bulimia has recently been viewed as an emergent variant of anorexia nervosa, historical evidence
suggests that earlier conceptualizations of the term describe a symptom as well as a discrete syndrome. Despite the fact that the diagnosis and use of the concept of bulimia has been variable historically, its dramatic fundamental feature has remained consistent”. (Stein & Laakso, 1988 ; p.201) ‡ Janet P (1908) Obsessions et psychasténie. Vols. I e II. Paris: Felix Alcan.
Introdução 27
Segundo Bauman (2008a)(25), a “revolução consumista”(25) teria colocado o
consumo no epicentro da vida social, a tal ponto que estaria em curso uma
transformação no laço social, que se sustentaria sobre o andaime do que o
consumismo promove e promete. Especialmente nos textos “Modernidade
Líquida” (2008b)(26) e “Vida de consumo” (2008a)(25) encontramos que, nas
chamadas relações líquidas, tudo se converte em produto consumível, e disso não
escapa sequer o ser humano; tudo tem data de validade pronta para vencer e ser
prontamente substituído por algo com o rótulo sedutor da novidade, com a ilusão
da maior utilidade. O ritmo frenético da produção e da comunicação a serviço do
consumo rege o circuito do qual participam, nos papéis principais, a imagem e “os
ideais” de peso e imagem corporal sem falhas, que recairão sobre os ombros do
indivíduo. Este, na análise de Bauman, é órfão do Estado, cuja força também foi
privatizada em favor da produção e do consumo, dentre outras figuras paternas
que declinaram nesse processo em suas funções simbólicas, redundando na
“liquidificação” dos laços e das relações, numa lógica que tira do centro o sujeito e
coloca o objeto. Mais do que nunca na história, assistimos ao triunfo do ter sobre o
ser engendrado pela “sociedade de consumo”. Tal lógica social e econômica
produz efeitos no sujeito: o triunfo do ter sobre o ser é justamente contra o que a
posição anoréxica, ao menos em sua vertente histérica, vem protestar, do ponto
de vista do que foi teorizado em determinados momentos por Lacan e outros
psicanalistas que seguem sua orientação*.
A participação dos fatores socioculturais na clínica dos TA torna-se inegável
quando observamos as variações que os quadros mostram em cada época, ou em
* Para Lacan, o que se passa na anorexia mental é que a criança responde com seu sintoma à mãe que lhe
sufoca com “a papinha asfixiante” (a comida, objeto do “ter”) no lugar do “dom do amor” (aquilo que só é possível a quem não tem; o afeto, o amor ao qual a anoréxica reclama em sua greve de fome, corresponde ao que este Outro materno não pôde lhe dar por não permitir que a falta se instaurasse para um psiquismo “normal”, ao tentar preenchê-la com o objeto (comida). O efeito produzido é a não subjetivação dessa falta ao interpretar erroneamente que todo o desconforto do bebê seja fome, empanturrando-o com “aquilo que tem”, ao mesmo tempo não suporta acolhê-lo como confrontado ao desconforto da falta - o que seria dar amor, dar o que não se tem (Lacan, 1995, p. 634). Também a mãe que é assim registrada na realidade psíquica da(o) filha(o) é uma mãe que tem o objeto a dar, não sendo tomada como um ser em falta, que necessita do Pai para fazê-la mulher, o que daria ao sujeito a chave de entrada para o Complexo de Édipo enquanto “normalizante” do psiquismo. A reflexão sobre as relações do sujeito e seus objetos nos TA, à luz de outros autores, será retomada na Fundamentação Teórica.
28 Introdução
cada contexto histórico, como por exemplo, as diferenças entre a anorexia santa,
os artistas da fome, a caquexia psicogênica juvenil, a anorexia histérica, a bulimia
nervosa como componente do CID 10/DSMV, incluída no grupo dos TA, e as
características que os sintomas e os discursos a respeito adquirem em cada
época. Vale referir ao interessante estudo de Weinberg & Cordás (2006)(27) que ao
descrever a Anorexia do ponto de vista histórico, fornece elementos para a
reflexão das equipes especializadas e aprofundamento de pesquisas futuras,
quanto à ligação e participação dos contextos culturais e as manifestações
anoréxicas em épocas e formas distintas.
Outro aspecto relevante é o dado de que os TA aumentam em contextos de
transição, ou rápida mudança cultural, como argumentado nos estudos de Becker
(2004)(28). De acordo com Silva (2011)(10), entende-se que:
(...) ao serem inseridas no mercado de produção mundial, as
diferentes regiões do mundo sofram uma modificação decisiva no
sentido do desenvolvimento de uma cultura de consumo e do
individualismo competitivo, descrita sob as rubricas de
“modernização” ou “ocidentalização”.
Esses termos são constituídos em contraposição a noções como
“cultura tradicional”, “tradições locais” etc. Esses também são os
termos com que a emergência dos transtornos alimentares nessas
regiões “em desenvolvimento” costuma ser explicada. Diante do
confronto entre a cultura local tradicional e a modernização ocidental
globalizada, há dois caminhos possíveis, e ambos são apontados
como causas para o suposto aumento da incidência dos transtornos
alimentares.
Podemos considerar que o aumento de comportamentos purgativos, o
fornecimento de uma identidade social, o lugar do Ideal do Eu na cultura
contemporânea, a autoexigência – conhecida marca da Anorexia desde
sempre –, são hoje, porém, mais fortemente ligadas à questão da imagem
corporal, conforme destacado por Costa-Pereira (1999)(29) na Introdução à sua
tradução do texto clássico de Charles Lasègue.
Introdução 29
Acerca da produção social das concepções, saberes e práticas
relacionadas aos TA pelos discursos biomédicos e terapêuticos, aspecto relevante
na reflexão sobre tratamento e abandono, Silva (2011; p. 260)(10) afirma que:
(...) o padrão de excelência pela literatura científica internacional
tende a reproduzir alguns elementos do contexto cultural que fazem
parte das próprias condições de possibilidade dos transtornos
alimentares: a ênfase no autocuidado e na autodisciplina, a ideia de
que a constituição de uma identidade adulta saudável depende da
constituição de indivíduos autônomos e independentes, o lugar
privilegiado das biociências na determinação dos critérios de saúde e
adequação.
1.1.2 Aspectos epidemiológicos e clínicos
Os TA são transtornos psiquiátricos graves com comprometimento do
quadro mental e físico que vem sendo descritos em praticamente todo o mundo.
Consideradas doenças mentais prioritárias na infância e adolescência pela OMS,
destacadas em documento para educadores(30) devido à preocupante incidência
de suicídio e depressão, estimada em vinte vezes mais alta entre jovens com TA.
Os estudos de prevalência ao longo da vida entre a população geral,
conduzidos com critérios do DSM–IV-TR (APA, 2003)(31), encontram taxas
variando entre 0,3% e 2,2% para AN e 0,1% e 2,9% para BN(32-34). Smink et al.
(2013)(35) afirmam que, segundo os novos critérios, atualizados pelo DSM–V (36), a
prevalência da AN e da BN entre as mulheres gira em torno de 4% e 2%
respectivamente.
A nova classificação(36) tende a reduzir as taxas de prevalência dos
transtornos alimentares sem outra especificação (TASOE) e aumentar a
prevalência da AN e da BN(37-38) em função de que, na nova classificação, os
critérios para AN e BN tornaram-se mais amplos permitindo maior número
de indivíduos classificados como “especificados” (AN ou BN). A afirmação,
recorrente no senso comum, do aumento generalizado dos TA segue controversa
no meio científico. Por outro lado, estudos em contextos específicos, concluem
30 Introdução
estatisticamente pelo aumento da prevalência desses transtornos ao longo das
últimas décadas(9, 39).
Assumpção e Cabral (2002)(40) publicaram extensa relação das
complicações clínicas e síndromes e disfunções comprovadamente secundárias à
AN e BN. Diversas complicações clínicas graves são decorrentes desses
transtornos, em função da perda de peso e dos métodos compensatórios, tais
como: complicações metabólicas e hidroeletrolíticas, neurológicas, oftalmológicas,
gastrointestinais, renais, bucomaxilares e fâneros, pulmonares e hematológicas.
As alterações neurológicas e, principalmente, endocrinológicas são importantes no
quadro e, na AN, guardam relação com os caracteres femininos diminuídos, por
sua vez relacionados a aspectos psicológicos fundamentais, no tocante às
dificuldades desses pacientes com a feminilidade e sua recusa muitas vezes
aparente, conforme discutido pela psicologia e pela psicanálise.
1.1.3 Aspectos psicológicos
Os aspectos psicológicos tal qual investigados na literatura sobre TA, são
apresentados no Artigo 1 (Apêndice), discutidos em sua relação com o abandono
do tratamento em Anorexia Nervosa e Bulimia, a partir de revisão de literatura em
bases de dados de periódicos médicos internacionais. Não obstante, em função
do nosso referencial teórico, aprofundamos antes, no Capítulo 3, as contribuições
de autores franceses à psicodinâmica dos TA.
Elencamos por ora apenas aspectos psicológicos contemplados por
pesquisas no campo da psiquiatria, destacando como principais:
negação da doença
ambivalência
cisão do Eu
dificuldades no campo do relacionamento interpessoal
autoimposição, exigência e rigor extremados
necessidade de deter o controle (de si mesma e do outro)
Introdução 31
impulsividade
questões com a autoestima
preocupações exageradas com a autoimagem
1.2 Sobre o termo "abandono" e sua etimologia
Uma vez que o objeto de estudo na pesquisa qualitativa implica os
significados, a dimensão simbólica e imaginária que pode estar implicada no
objeto, investigamos a origem etimológica do termo “abandono”.
É interessante resgatar alguns dos sentidos trazidos pelo Dicionário(41);
"abandono" significa: "1. ato ou efeito de deixar, de largar, de sair sem a intenção
de voltar; partida, afastamento; 2. falta de amparo ou de assistência; desarrimo. 3.
Ato ou efeito de renunciar, de desistir. 4. Desleixo, negligência. 5. Modo de quem
vive ou se apresenta como se fosse abandonado". Consta na etimologia que os
vocábulos em português e em inglês teriam origens comuns na língua francesa,
como antepositivo do francês “ban”, inaugurando-se o termo com uma lei do
século XIII na França, com “a bandon” remontando ao latim “ad bannum”: à
vontade de; a critério de, a poder de, à jurisdição; deixar ir para o exílio (século
XI). Segundo Houaiss, ainda a etimologia é comum às de “banal, banalizar e
banir”. Vale notar a origem jurídica do termo, a partir de onde provavelmente foi
importado para sua aplicação ao campo da saúde, em português. É também
sinônimo de “descuramento”, desprezo e desamparo.
No significado da palavra que remete à interrupção prematura do
tratamento em nosso idioma, está implicada sua relação de sentido com
desamparo. Isso é válido de se observar na medida em que, em uma pesquisa
qualitativa, o que nomeia o objeto de estudo também carrega consigo tais
heranças semânticas, sua materialidade simbólica e imaginária, justamente o que
visamos cernir na investigação dos “significados”.
Existe na língua inglesa, designando o mesmo sentido de abandono
enquanto desamparo (p. ex., ser abandonado), o verbo “to abandon” ou, como no
32 Introdução
português, também na voz passiva, “to be abandoned”; “abandonment” é o
substantivo correspondente a “abandono”, com a mesma origem latina “ad
bannun”, deixar de lado, guardando a relação de sentido com “desamparo” e
“deserção”. Porém, na língua inglesa, não se usa esse termo para significar
interrupção de tratamento. O descritor comumente utilizado nas bases de dados
internacionais correspondente a “abandono do tratamento” ou “abandono escolar”
é o termo "Dropout", palavra composta por to drop + out, cujo sentido também vale
comentar: os dropouts são os “desistentes”, aqueles “que caem fora”, “se retiram”.
Essa forma carrega mais especificamente o sentido relacionado àquele que “cai
de alguma coisa”, escapa de uma regulação. É interessante notar como, embora
em inglês o termo para abandono do tratamento não conserve o elemento ligado
ao desamparo, "Dropout", por sua vez comporta outra vertente de sentido que
parece ser relacionada ao ato, qual seja, lançar-se fora de um campo,
aproximando-se das noções psicanalíticas ligadas ao ato, mais especificamente, a
passagem ao ato*.
Foi realizada revisão de literatura sobre o abandono do tratamento em AN e
BN em regime de internação ou ambulatorial, apresentado no Apêndice (Artigo 1).
No mesmo apartado, é apresentado artigo de resultados (Artigo 2) com foco na
primeira das categorias principais. Este recorte dos resultados discute a questão
aditiva† através de levantamento bibliográfico que fornece fundamentação para a
discussão à luz: da teoria psicodinâmica das anorexias e bulimias a partir da
psicanálise, bem como de estudos científicos de periódicos médicos internacionais
suportando a discussão dos transtornos alimentares em relação aos transtornos
aditivos.
* Na concepção lacaniana estaria em jogo um ato desprovido de sujeito – embora com motivações
inconscientes: na passagem ao ato, o sujeito “se precipita e cai para fora da cena” (Lacan, 2007; p.128). Tradução livre.
† Segundo o Dicionário Aurélio, o termo “adicção” seria um neologismo da língua portuguesa e, em sentido contrário do conhecido sentido pejorativo, no mesmo dicionário, adicto é descrito como “afeiçoado, dedicado, apegado, adjunto, adstrito, dependente.” (Novo dicionário da língua portuguesa, São Paulo: Nova Fronteira, 1975; p.37)
- 33 -
2. PRESSUPOSTO E OBJETIVOS
Ciência é busca de causas e fala da ordem invisível. Turato
- 34 -
Pressuposto e Objetivos 35
2.1 Pressuposto Geral
A presente investigação parte do pressuposto geral de que os aspectos
psicológicos dos TA estejam, de certo modo, relacionados às tão frequentes
interrupções de tratamento, em geral entendidas por “abandono do tratamento”.
2.2 Objetivo geral
Compreender o fenômeno do abandono do tratamento ambulatorial nos
Transtornos Alimentares a partir dos significados a ele atribuídos pelos pacientes
que vivenciaram tal experiência em ambulatório especializado de hospital
universitário público.
2.3 Objetivos específicos
1º.) Entender o abandono do tratamento ambulatorial a partir das
experiências de pacientes, visando conhecer suas motivações particulares;
2º.) Analisar os significados psicológicos do abandono nas vivências dos
pacientes visando identificar aspectos que entram em jogo neste complexo
fenômeno;
3º.) Discutir os significados relacionados ao tratamento.
36 Pressuposto e Objetivos
- 37 -
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Freud disse que o sintoma é o que o sujeito ama mais do que a si mesmo, algo a que ele não renuncia com facilidade, algo conflituoso no sentido
de que cria conflito entre as leis do organismo como animal biológico e que a linguagem transforma em algo para além do biológico.
Carrabino & Viganó
- 38 -
Fundamentação Teórica 39
3.1 Notas sobre a Anorexia em Freud e Lacan
Escapa à nossa compreensão racional que alguém deixe de comer,
necessidade tão vital, sem que seja por disfunções de origem orgânica - não
fossem as conhecidas razões que a psicanálise tem ensinado a partir da clínica.
Também desafia a compreensão racional que portadores desses graves
transtornos, apesar do visível padecimento do corpo, que faz supor padecimento
psíquico, não busquem ou frequentemente abandonem o tratamento.
A título de introdução de nosso quadro teórico, focado na psicodinâmica
das anorexias e bulimias, do ponto de vista de sua relação com o objeto, vale citar
interpretações clássicas da psicanálise a respeito do tema. Dentre os
antecedentes históricos e influências teóricas dos autores que nos fundamentam,
escolhemos fazer breve menção a Freud e a Lacan.
São raras as referências à anorexia em Freud e estão concentradas no
início de sua obra. Na primeira delas, ele destaca seu aspecto melancólico, no
"Rascunho G", em 1895(42). No Caso Emmy, publicado no mesmo ano, o sintoma
anoréxico é entendido como falta de apetite ligada ao excesso da presença
materna(43). Freud será referido mais adiante quanto à relação dos quadros
alimentares, aditivos ou “abandônicos” – descritos no Item 3.3 – que ele chamou
de "neuroses atuais". O termo “atual”, em oposição às psiconeuroses, indica que
se tratava de casos em que não era possível localizar a causa do distúrbio na
história, no romance familiar do paciente. Em 1917, distinguia “três formas puras
de neuroses 'atuais': neurastenia, neurose de angústia e hipocondria*” (1991c; p.
* É interessante constatar que não há referência direta às patologias alimentares, porém as descrições
freudianas de neurastenia revelam traços anancásticos e semelhanças com o funcionamento anoréxico e bulímico. Encontramos em Brusset (2003) a Bulimia como um tipo de Neurastenia; e, embora Freud não tenha utilizado o termo "Bulimia", fala de “acessos de fome devoradora” como sintoma da Neurose de Angústia, ambas subptipos das Neuroses Atuais. Na clínica, não é raro encontrar história de hipocondria ou pânico (o que se aproxima da descrição freudiana de Neurose de Angústia) antecedendo ou convivendo com quadros alimentares. Entendemos a relação entre tais quadros à luz do denominador comum aqui descrito como “pré-edípico”, encontrando-se na posição dos sujeitos que negam a perda, a castração através de um objeto, seja comida ou droga, aquilo que Lacan descreve sob o mecanismo do desmentido. Este também encontra conexão com o que Jeammet descreve como “arranjo perverso” (1999x, p.40) nas bulimias, o que, para a psicanálise, não corresponde a um quadro sociopático, mas sim pela forma de negar a castração por meio de
40 Fundamentação Teórica
454) e, então, não remontava a causas simbólicas localizáveis pelo paciente, mas
a uma passagem direta para o campo do somático. Em suas palavras, “processos
somáticos anormais” surgiriam em consequência de uma “insuficiência psíquica”,
conforme descreveu as Neuroses de Angústia, um tipo de Neurose Atual. Nestas,
os sintomas, não constituindo satisfações substitutivas, como nas psiconeuroses,
seriam menos passíveis de interpretação, revelando predomínio do somático
sobre o psíquico e marcada ausência de elementos simbólicos, à semelhança das
anorexias e bulimias. Nessa conferência, Freud (1991c; p. 455)(44) utiliza uma
metáfora para explicar os sintomas das ‘neuroses atuais’: o grão de areia e a
pérola, esta constituindo o sintoma, enquanto satisfação substitutiva, e o grão de
areia, seu núcleo, a angústia. Nelas, o sujeito não dispõe de recursos simbólicos e
imaginários para constituir a pérola, manifestando em seu quadro somático o grão
de areia, ou seja, a angústia em estado bruto e as saídas diretas, “curto-
circuitadas” no corpo.
Em Lacan, encontramos o rechaço à comida como moeda de troca com o
Outro dos cuidados maternais, uma de suas referências fundamentais à anorexia,
no Seminário 4, como o que é utilizado para “inverter a relação de potência com o
Outro”(45), e “a anorexia mental não é um não comer, mas um comer nada” (idem,
p.188).
Para compreender por que alguém não responde ao que seria entendido
como um “instinto natural” em todo ser vivo, isto é, a fome, a comida, vale recordar
a noção de pulsão de morte teorizada por Freud; Lacan, a partir de Freud,
esclarece que todas as necessidades do ser humano seriam perturbadas pela
linguagem, de modo que, em nós, já não é mais o instinto que rege, mas sim a
pulsão; instinto perturbado pela linguagem resulta na pulsão, conceito fundamental
da metapsicologia freudiana. Não podemos então pensar em termos do instinto
animal, “fome”, mas o que passa a reger é: como, no psiquismo de cada sujeito,
vai se realizar a pulsão e sua relação com os objetos.
um objeto (a comida e a droga tomados num lugar similar ao fetiche para a estrutura perversa), e pela forma de completar a mãe, como entende a escola francesa.
Fundamentação Teórica 41
Este preâmbulo se faz necessário para o entendimento dos autores a seguir
referidos mais detalhadamente dentro do quadro teórico escolhido. Ainda que os
hoje chamados Transtornos Alimentares tenham suas especificidades
relacionadas a cada época, e estas sejam resgatadas de um tempo passado,
revelam-se elucidativas do funcionamento psíquico de tais pacientes, seguindo
assim, válidas como norteadores da prática clínica a eles referida. Ademais,
constituem balizadores do pensamento dos autores presentes no referencial
teórico adotado.
Segundo a psicanálise, nas “anorexias e bulimias” estaria em jogo, no plano
do psiquismo, o sujeito que segue tentando constituir-se como tal, buscando ainda
“separar-se”; assim, estas seriam patologias relativas aos processos de alienação
e separação, operações constitutivas do sujeito(46-47) e corresponderiam a um
funcionamento psíquico pré-edípico*, noção que será melhor explicada adiante
(vide pág. 35, 36 e 40).
A partir daí, abre-se outra perspectiva para aquilo que é usualmente
entendido, de modo restrito, no âmbito da complexa relação mãe-filha nos TA,
mas que, corresponde, no sentido mais amplo, à relação com o Outro; esta,
encarnada na figura materna como primordial desde as relações mais antigas do
sujeito, com a alimentação e com o olhar deste Outro que o introduz no mundo da
linguagem. Isso se dá não somente pelo modo como este Outro materno – seja a
mãe biológica, adotiva, ou quem ocupe tal função – lhe apresenta o mundo, mas
principalmente é da ordem de sua escolha, como diria Lacan, em termos da
“insondável decisão do ser”. Lacan afirma que muito precocemente a criança
escolhe como responder à castração. Vale comentar que, ao longo da história,
ocorreram interpretações equívocas desse aspecto colhido na clínica, gerando
uma visada que responsabilizava exageradamente as mães pelos transtornos das
filhas. A contribuição de Lacan, embora com a tônica na questão da separação e
não separação do Outro materno fez tramitar para o lado do sujeito (a criança, o
* O termo é utilizado por Jeammet, e outros psicanalistas franceses pertencentes à Escola inglesa aqui
referidos, e corresponde ao funcionamento de sujeitos que não atingiram a constituição “normalizante” da estrutura psíquica, o que, em nosso entendimento seria outra forma de compreender o que Freud descreveu como Neuroses Atuais.
42 Fundamentação Teórica
filho) a responsabilidade por, precoce e inconscientemente, eleger uma posição. A
resposta anoréxico-bulímica, à semelhança das adicções, conforme encontrado na
literatura e descrito adiante, caracteriza um modo particular de resposta à
castração, de posição subjetiva, podemos dizer.
Em 1938, em “Os complexos familiares”, Lacan (1987; p.23-29)(48) aproxima
“(...) as anorexias ditas mentais, as toxicomanias ‘pela boca’ e as ‘neuroses
gástricas’ enquanto patologias mortíferas relacionadas à ‘ambivalência*
primordial´, ao complexo do desmame e à dificuldade de separação simbólica da
mãe.
Lacan fala em “Imago
materna” e indica a duração às vezes anacrônica do elo da criança com a mãe; se
não é “sublimada para que novos complexos as integrem ao psiquismo (...) a
imago, salutar na origem, torna-se fator de morte. Que a tendência à morte, seja
vivida pelo homem como objeto de um apetite...” (p.28), e refere-se à pulsão de
morte freudiana, novamente fazendo referência à aproximação entre anorexia
mental e toxicomania. Quando os sujeitos não aceitam a fenda que o desmame
produz:
revela-se em suicídios muito especiais que se caracterizam como
"não-violentos", ao mesmo tempo que aí aparece a forma oral do
complexo: greve de fome da anorexia mental, envenenamento lento
de certas toxicomanias pela boca, regime de fome das neuroses
gástricas†. A análise desses casos mostra que, em seu abandono à
morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe (Lacan, 1987;
p.29).
Autores como Blanco (2000, p.8)(49) , a partir da interpretação de Jacques
Allain Miller à obra lacaniana, relacionam a anorexia ao fenômeno descrito por
* Vale notar que a “ambivalência” é consagrada como aspecto psicológico dos TA e encontrada como ligada
aos significados do abandono, em nosso estudo.
† Entendemos que as neuroses gástricas guardam relação com a forma de manifestação da Anorexia no
século XIX e com a descrição de Anorexia Histérica, por Lasègue em 1873 (1998), caracterizada pela dor epigástrica; a “anorexia mental”, por sua vez, relaciona-se de forma mais geral ao funcionamento psíquico que subjaz a todas as formas de patologias alimentares, seja nos Transtornos da Alimentação seja nos Transtornos Alimentares, inclusive a BN e seus subtipos. A anorexia mental seria um constructo que dá conta do funcionamento psíquico.
Fundamentação Teórica 43
Lacan como “declínio da função paterna”, entendendo tais sintomas como
"sintomas mudos", no sentido de que não constituem sintomas como o sintoma
neurótico clássico, resultante do recalque, mas sim curto-circuitam a via do
simbólico. Assim, ao contrário do sintoma das psiconeuroses, que logram formar
“a pérola”, com os elementos da linguagem, mas sim na mesma direção dos
sintomas a esta época descritos como opostos, como nas neurose atuais, os
chamados “sintomas mudos” ficam mais expostos à descarga imediata da
excitação, manifestando-se nas vias somáticas. Porém, à distinção das
somatizações histéricas - estas sim produto do retorno do recalcado, com clara
demanda ao Outro – tais sintomas são justamente chamados “mudos” porque tais
sujeitos querem conservá-los, não se dividem frente ao quadro, não fazem
demanda de tratamento, por si mesmos; ao contrário, esforçam-se por conservá-
los – aspecto que de algum modo se relaciona à questão objeto de nosso estudo.
Os autores nos quais ancoramos a análise desenvolveram seu trabalho
teórico-clínico na França, estão ligados à escola inglesa de psicanálise, não sem a
influência da interpretação francesa. Dado o nosso recorte, com vistas à aplicação
na área médica, optamos por nomear sua contribuição pelo termo “psicodinâmica”,
em seu uso mais corrente nesse campo. Suas contribuições retomarão o termo
“Anorexia Mental”, influenciadas pelos conceitos que nestas notas recordamos.
3.2 Anorexia, Bulimia, adicção, desamparo e abandono
Os autores aqui referidos compreendem os quadros da Anorexia e Bulimia
como “condutas atuadas aditivas”. Tal concepção remonta a autores mais antigos,
como Glover e principalmente Otto Fenichel*, que já teriam descrito a Bulimia
como uma droga “para assinalar o aspecto tóxico dessa dependência
alimentar”(50).
* Glover E. (1923). Sur l`etiologie de la toxicomanie. International Journal of Psychoanalysis. Vol XII;
Fenichel O (1972) De la crainte d`être dévoré. In: Destins du cannibalisme, Nouvelle Revue de Psychanalyse, 6, Gallimard, 149-152. Além desses, Biswanger (1952) Psychiatric aspect of mental anorexia. Kinder Psychiat., 19, 5, 175-180. In Excerpta, 1953, no.3910., também teria influenciado tal visão.
44 Fundamentação Teórica
Segundo Couvreur (2003, p.46)(23), Brusset passou a definir a Anorexia
como “processo automantido que assume sentido e função no contexto de uma
adolescência impossível”, dando maior lugar à Bulimia, seja ela realizada ou como
fantasia, no que vai chamar “toxicomania sem droga”. Isto se deu em uma série de
trabalhos de Brusset, iniciados em 1969 sob a influência dos escritos de Selvini-
Palazzoli e H. Bruch publicados na mesma década, dos quais o trecho seguinte,
citado por Couvreur é representativo:
As condutas bulímicas não têm, na anorexia mental, relações de
contingência, mas de estrutura. (...) A lógica da anorexia tal qual
esclarece a compulsão bulímica supõe que... se estabeleça esse
processo defensivo, que se pode dizer antimetafórico, pelo qual o
desejo, descrevendo um trajeto inverso ao do apoio, "faz-se passar
pela necessidade". Como resultado, tem-se uma maior urgência da
necessidade de descarga efetiva; daí o reforço das tentativas de se
libertar dela na busca do controle, da onipotência, da auto-suficiência,
resultando na busca de um self-objeto ideal. (....) Essa passagem ao
ato consumatório somente tem eficácia defensiva ao preço senão de
uma intensa angústia, de um empobrecimento mental e, por outro
lado, da compulsão à repetição, ao modo de uma "toxicomania sem
droga"* (1977
†; p.56-257).
A noção de “descarga” é central para a visão aditiva da bulimia-anorexia
enquanto curto-circuito no funcionamento psíquico, e será retomada em termos de
descontinuidade do funcionamento psíquico característico dos toxicômanos. Para
McDougall (1974; p.132)‡, é importante assinalar, ela não constitui uma expressão
neurótica, a qual supõe a organização edípica) que tenha o estatuto de sintoma
das psiconeuroses freudianas, nem no sentido psicótico (que prescinde do arranjo
edípico); corresponderia a uma constituição pré-edípica, que a autora nomeia de
“ato-sintoma” no qual “a externalização no agir esconde uma história relacional e
passional cujos fins são petrificados em um ato alienante, mas cuja leitura é
possível” (apud Couvreur, p.56 e 57)(23).
* Brusset se utiliza desta descrição feita por Fenichel em A teoria psicanalítica das neuroses (1945), no qual
dedica um capítulo às perversões e neuroses impulsivas, ao abordar a bulimia, no quadro das adicções, denominando-a de “toxicomania sem drogas”. (Couvreur, 2003; p.43)
† Brusset B (1977). L`assiette et le miroir (l´anorexie mentale de l´enfant e de l´adolescent). 4.ed. Toulouse:
Privat, 1991. ‡ McDougall J (1974). Le Psyché-soma et la psychanalyse. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 10, 131-149.
Fundamentação Teórica 45
Tal visão do curto-circuito de simbolização tem suas raízes no ponto de
vista psicodinâmico do modelo freudiano de Neurose Atual, já mencionado, o que,
nas palavras de McDougall (2003)(50), corresponde a atos de “descarga aditiva”
(p.188). A autora entende as adicções, como a bulimia, como tentativas de
sobreviver psiquicamente, de salvaguardar a integridade do eu; localiza a
“economia aditiva” no campo da oralidade, remontando à relação entre a mãe e o
lactente, que implica a posição em relação à castração que a mãe transmite com
referência ao pai, inclusive: quando a angústia do objeto perdido não é
transformada pela integração deste como objeto interno, resulta, no sujeito do
filho, lactente em formação, “uma busca incansável e ilusória no mundo externo,
para encontrar esse objeto ausente” (p.190). Esse objeto aditivo, seja a droga para
o adicto, seja o alimento para a bulimia, representa a tentativa de fusão, tratando-
se da “incorporação no lugar da identificação com o objeto”, passando ao terreno
“somatopsíquico” – como entendem a autora, e são entendidos os TA em outros
contextos diversos do nosso.
Assim, no que se refere à problemática das adicções, McDougall entende
que são buscadas “soluções psicossomáticas” para uma angústia – grão de areia,
em termos da metáfora freudiana – que não é qualquer uma, mas sim a “angústia
de desamparo”. De forma semelhante, Brusset (2003a)(51) entende a Bulimia como
“bulimia aditiva” e localiza em seu avesso a Anorexia, descrevendo-as como
“patologias das condutas” marcadas pelo predomínio do “agir” – no sentido do
agieren de Freud* – sobre o fracasso da representação e da elaboração psíquica.
* A noção de agieren foi desenvolvida por Freud em diferentes momentos desde 1914 em "Recordar, repetir e
elaborar", a partir da ideia primaria de que o sujeito do inconsciente se faz representar na palavra em
situação de tratamento, conhecido por talking cure. O termo, trazido para a psicanálise e traduzido para o
inglês por acting-out, ganhou sentido mais genérico com a psicodinâmica, tendo seu sentido ampliado para
a aplicação de tais conceitos no campo da saúde, e é sob esta forma que o entendemos aqui. “Isso que
fala” e determina o sujeito do inconsciente sob o funcionamento da transferência convoca à repetição das
questões infantis e conflitos não elaborados. No acting-out o sujeito “atua”; uma história em ato se dirige
(ao terapeuta, ou a quem o ato se endereçar) e conta-se por meio da cena. Como no sentido teatral, a
palavra “ato” refere-se ao que se endereça ao olhar, “apresenta-se” neste “cenário”, não pela via elaborada
do recurso simbólico, mediado pelo pensamento e pela palavra, e sim, dando a ver algo que é movido por
conflitos inconscientes. O que se manifesta neste plano de “conduta atuada” faz curto-circuito desta
mediação; dinâmica favorecida pelo lugar que ocupa a droga e a comida para estes sujeitos.
46 Fundamentação Teórica
Segundo a concepção de Brusset, o funcionamento da bulimia, entendida
como na base de todos os TA, exatamente como se passa nas adicções,
determina a liberação direta de carga pulsional desligada das representações,
caracterizando-se pela “escravidão, dependência, sujeição, repetição, enquanto a
repetição das crises tende a empobrecer a vida relacional, afetiva e imaginária
(...)” (2003; p.140). A ideia da escravidão aparece nas descrições de Jeammet
(1999a)(52), Brusset (2003a; p.140) e McDougall (1999a e 2003)(50) e M`Ulzan
(1984)*; este fala em “escravos da quantidade” (apud Couvreur, p.55), destacando
o “profundo desamparo” como traço comum às personalidades dos sujeitos
atravessados por tal “escravidão”, sendo comum na perspectiva psicodinâmica de
tais autores a visão de que o objeto droga (seja ele comida ou não) é colocado no
lugar desta profunda carência, determinante da escravidão e da compulsão.
McDougall (2003)(50) prefere o termo “adicção”, de raiz anglo-saxônica, ao
equivalente francês “toxicomania” em função de que este último, por sua
etimologia sugerir um objetivo de envenenamento, com sentido de causar mal a si
mesmo; a autora argumenta que essa não é a meta daquele que é
(...) escravo de seu objeto (seja sua adicção tabagística,
medicamentosa, alcoolista... ou bulímica). Pelo contrário, o objeto de
adicção é investido de qualidades benéficas (...) para atenuar estados
afetivos intoleráveis e, como tal, é vivido, pelo menos em um primeiro
tempo, como um objeto "bom” (p.185).
Ainda sobre a função da conduta atuada, seja alimentar ou aditiva, é
interessante agregar o ponto de vista de Jeammet (1999a; p.34)(52), que se utiliza
do termo “apetência objetal”, relatando sua observação desde a clínica, de o
quanto esses sujeitos necessitam dessa defesa, e estados que podem ser ligados
à questão por nós estudada, no sentido de que o abandono do tratamento poderia
ser a solução necessária, caso o tratamento concorra com esta função que o
quadro alimentar cumpre na economia psíquica, antes que ela seja substituída, ou
superada, esvaziada de sua necessidade de suplência psíquica, mediante o
tratamento:
* M´Ulzan M. (1984). Les esclaves de la quantité. Nouvelle Rev. De Psychan., 30. Paris: Gallimard.
Fundamentação Teórica 47
Esta apetência volta no momento do abandono da conduta anoréxica,
mergulhando as pacientes em uma fase depressiva, até mesmo de
desorganização temporária (...) emergência de desejos recalcados
que se faz maciçamente, pouco diferenciada e pouco elaborada.
Estes sujeitos percebem ainda mais seu sentimento de vazio interno,
de desamparo (grifo nosso) e seu corolário: a necessidade de um
suporte externo. (...) A ambivalência dos sentimentos, em sua forma
maciça, assim como seu caráter indeterminado fazem com que estes
sejam percebidos como ameaça à coesão do Eu, para a manutenção
da identidade, gerando um sentimento de violência (Jeammet, 1999a,
p.34).
Nas palavras de Jeammet (1999a e 1999b)(52-53) entendemos que o circuito
acima descrito termina por ser endereçado a quem esteja suportando tal lugar de
“apoio, suporte externo” ao paciente. Neste ponto pode ser interessante refletir
sobre o lugar que ocupa a equipe, e/ou o terapeuta que encarna esta função de
apoio; faz-se menção a um mecanismo usualmente descrito na questão do
controle, conhecida na psicodinâmica dos TA e encontrada como central no
estudo qualitativo sobre abandono na AN, de Eivors et al., (2003)(54).
Para Jeammet, a ameaça vivida na fantasia confere poder ao objeto
(comida) passando a se confundirem, para o sujeito, desejo, Eu e objeto; isso
resulta no problema na formação do Eu descrito como “má formação do eu”, como
um acidente pré-edípico, caracterizado pelo acima descrito: pobreza simbólica e
pela lógica predominante, comum nas adicções, seja à comida, seja à droga: o
desejo fazendo se passar por necessidade, sob a forma do apetite voraz.
Consideramos como hipótese de compreender o fenômeno da alexitimia*(55) nos
TA guardando relação com o que podemos chamar “acidente pré-edípico”
característico destes sujeitos. Isto é, a capacidade de dialetização, de produzir
insight, articular funções de pensamento e linguagem, o uso de recursos
* Segundo a revisão de Carneiro & Yoshida (2009), “alexitimia é um termo empregado no diagnóstico clínico
de pessoas com acentuada dificuldade ou incapacidade para expressar emoções e significa ‘sem palavras para as emoções’. (...) O termo foi sugerido trípor Sifneos para se referir àqueles pacientes com uma vida emocional pobre em sonhos e fantasias e que demonstravam não ter palavras para nomear ou expressar as emoções (Sifneos, 1972/1977, 1991; apud Carneiro e Yoshida (p. 2009; p.103)”. O termo deriva do grego e, por ser o fenômeno frequentemente encontrado na clínica dos TA. É interessante notar ainda que as autoras destacam estudos, como os de Corcos & Jeammet, 2000; Maciel & Yoshida, 2006 e Taieb & cols., 2002 (apud Carneiro e Yoshida (p. 2009; p.104) associando altos níveis de alexitimia a quadros de dependência de substâncias psicoativas e de alcoolismo, nos quais a alexitimia é entendida como um fator de risco.
48 Fundamentação Teórica
simbólicos, por sua vez, dependem de passar pelo Complexo de Édipo, passando
a localizar-se na estrutura simbólica que ele promove, do ponto de vista da teoria
psicanalítica. Ou seja, o fenômeno da alexithimia pode testemunhar a tese dos
sujeitos marcados pelo acidente pré-edípico, no caso da anorexia e bulimia.
Tais autores também foram influenciados pelo pensamento de Lacan, que,
desde seu primeiro escrito, aproximou a Anorexia e a Toxicomania enquanto duas
patologias mortíferas relacionadas com a dificuldade de separação da mãe,
resultando assim no confronto, sem mediação, com o Supereu materno. Em
outras palavras, pode-se sintetizar a explicação proveniente deste quadro teórico
que entende que, quando o sujeito não alcança a triangulação edípica, não se dá
ao pai, possibilidade do exercício de sua função de detentor da Lei, simbólica. Tal
visão sobre a constituição do psiquismo, por sua vez fundamenta a compreensão
de tais patologias das condutas atuadas, que inclui, segundo a visão
psicodinâmica, todo tipo de adicção, seja por drogas, seja pela comida investida
desse caráter, nas Anorexias e Bulimias. Remontam então a uma constituição
psíquica particular, distinta da categoria das neuroses justamente por não serem
estes sujeitos estruturados segundo a organização simbólica dada pelo Complexo
de Édipo, tal como na neurose; isto é, na visão de Freud, sobretudo sob a
interpretação lacaniana, o Complexo de Édipo constitui um ordenador da
constituição psíquica “normalizante” no sentido da neurose - embora neurótico, o
sujeito que responde à castração pelo mecanismo do recalque é entendido como
inscrito dentro da norma, e tal ordenador simbólico que vem a produzir a
constituição do Eu, como unidade. Por sua vez, em se tratando da subjetividade
em jogo nas “condutas atuadas” há um padecimento da “falha” de constituição do
Eu. Tal visão entende a relação com o objeto droga (inclusive comida) como
tentativa de supri-la, caracterizando assim a relação de “apego” à droga, o que
estaria embutido no termo “adicção”.
A ideia da Bulimia como primária difundida ao longo da obra de Brusset
também por seus colaboradores(52), em uma relação não de contingência com a
Fundamentação Teórica 49
Anorexia, mas sim de estrutura, segue a hipótese de Selvini-Palazzoli* (apud
Jeammet, 1999a)(52), segundo a qual a anorexia seria a resultante de uma luta
contra o impulso bulímico, para quem a Bulimia se encontra na base de ambos os
quadros.
Na mesma linha de pensamento, a concepção de Jeammet (1999)(52)
entende AN e BN como “dupla antagonista”, enquanto modalidades relacionais
espelhadas, que têm em comum o fato de que uma é a transformação no contrário
da outra, com resultados aparentemente opostos quanto à relação estabelecida,
mas proveniente do mesmo tipo de relação de objeto, caracterizada pela “forma
maciça do engajamento narcísico e a má diferenciação sujeito-objeto†” (p.31-32;
grifos nossos).
Desse modo, o autor compreende que tal modalidade de investimento se
reagrupa em dois tipos: uma relação de tipo passional (polo bulímico) ou uma
atitude de evitação e retirada dos investimentos (polo anoréxico). O autor, de
acordo com Brusset e Selvini-Palazzoli‡, também entende a Bulimia como
primária: “o fantasma bulímico está sempre presente por trás de qualquer conduta
anoréxica” (Jeammet, 1999a; p.45)(52) - explicando que se tornaria “restritiva”, isto
é, passando ao polo anoréxico, a fim de esquivar-se da “fome de boi” que a
domina. Esse raciocínio revela a natureza compulsiva e aditiva também da AN,
entendida como forma de negação da compulsão bulímica, partilhando ambos os
transtornos da mesma natureza aditiva.
Segundo Couvreur e Jeammet (1999b; p.132)(53) os autores J. Kestemberg,
E. Kestemberg e S. Decobert (1974)§ teriam descrito o “arranjo perverso” da
relação de dependência, de escravidão, a relação de objeto e a neo-identidade
como comuns às toxicomanias, anorexias e bulimias, com variações nas formas,
* Selvini, M (1965). Interpretation of mental anorexia. In: Symposium of Göttingen. Stuttgart: Georg Theme
Verlag. † A má diferenciação sujeito-objeto pode remeter ao que, nos termos da teoria lacaniana, referimos aqui como
não separação do Outro primordial, materno. ‡ Selvini-Palazzoli (1965). Interpretation of mental anorexia. In: Symposium of Göttingen. Stuttgart: Georg
Theme Verlag. § Kestemberg, J. Kestemberg, E., Decobert, S. La faim et le corps. Paris: PUF, 1974.
50 Fundamentação Teórica
porém sendo neles igualmente importantes os estados de falta e satisfação, e daí
a dificuldade em abandonar tais comportamentos. Jeammet (1999b; p.134-136)(52)
e McDougall(50) também aproximam ambos os transtornos: em lugar da presença
de uma chamada “estrutura psíquica” específica encontram-se a personalidade
vulnerável e o funcionamento mental instável, sendo denominadores comuns as
Bulimias e Anorexias, e enquanto condutas aditivas, chamadas pelos presentes
autores de condutas “atuadas”.
A frase seguinte resume o ponto de vista de Brusset: “a anoréxica sofre no
profundo desamparo que ela se esforça por negar” (1999; p.52), bem como a clara
descrição de Schevach (1999; p.100)(56):
Esse curto-circuito do pulsional, a descarga direta no ato omitindo o
processamento psíquico, apresenta certa semelhança com o ato
psicopático como modo privilegiado de resolver os conflitos, mas
diferentemente desse, a agressividade e a destruição dirigem-se ao
próprio corpo e a si mesmo em lugar de dirigir-se à sociedade. Por
outro lado, a urgência desmedida em obter a satisfação, a intolerância
a todo tipo de limites, a inversão de valores, sugerem um estado
maníaco, estado que, por sua vez, remete à melancolia (2003; p.100).
Nas palavras de Brusset, trata-se da “problemática da perda do objeto, de
sua recuperação, do triunfo sobre o mesmo através do desmentido onipotente da
dependência e da depressão” (2003; p.100).
Encontramos em várias passagens de tais autores, ligada à raiz destas
patologias, a angústia de desamparo; em outras várias passagens, “o abandono”
como aquilo que se esforça por negar, e cujo rechaço em aceitar (a castração, o
desligamento da relação arcaica com a mãe) resulta na ligação aditiva a um objeto
externo, oral, que o tampone. Entendemos que tal desamparo é, portanto,
vivenciado por esses sujeitos como “abandono”, relação que é válida para as
modalidades de relação “aditivas”, seja qual for o objeto revestido de tal caráter:
comida, ou droga.
Fundamentação Teórica 51
3.3 Desamparo e a questão abandônica
O termo “neurose de abandono” foi introduzido por Germaine Guex,
(1984)(57) em obra homônima publicada originalmente em francês, relatando
pesquisa sobre os efeitos do abandono em indivíduos adultos desenvolvida sob a
orientação de Daniel Lagache. O termo, do qual se originou o neologismo
“abandonique” (abandônico) foi utilizado para designar um quadro clínico com
sintomatologia específica até então não descrita na nosografia das neuroses, qual
seja: pacientes que, acreditando terem sido privados dos cuidados maternos,
sujeitos marcados pela fantasia de abandono apresentavam o estado psíquico
dominado pela angústia de abandono e repercussões psíquicas idênticas às
encontradas empiricamente nos sujeitos que efetivamente vivenciaram frustração
na realidade dos cuidados pelos pais, estudados por Spitz e Bowby. Guex
encontrou a constante demanda de amparo e segurança frente ao que denominou
“angústia de abandono” em fenômenos clínicos não caracterizados pelos conflitos
edipianos, como as neuroses clássicas (psiconeuroses), e sim por uma
insegurança afetiva fundamental. A antiga divisão freudiana é útil no entendimento
dos fenômenos denominados conflitos abandônicos; estes, assim como as
Anorexias/Bulimias e adicções podem ser compreendidos mais do lado das
Neuroses Atuais que das psiconeuroses, ressaltando a característica pré-edípica.
Encontramos ressonância a esta ideia em Laplanche e Pontalis (1985;
p.380)(58) ao afirmarem que nesse caso também “trata-se de uma neurose cuja
etiologia seria pré-edipiana”. Ao contrário das consequências psíquicas do
abandono vivido na realidade, descritas por Spitz e Bowlby nos estudos sobre
Depressão anaclítica e Hospitalismo realizados nos anos quarenta, os indivíduos
acometidos de tal problema não necessariamente sofreram abandono. Estes
foram descritos por Guex por “abandônicos” (abandonnique, o termo original em
francês), termo que melhor se aplicaria para distinguir dos indivíduos
“abandonados”, dando relevo à dimensão de realidade psíquica, e não objetiva,
como explica a autora:
52 Fundamentação Teórica
O termo “abandonado” tem o inconveniente de dar ao abandono uma
realidade por demais objetiva. (...) Além disto, todos os seres
realmente abandonados não se transformaram obrigatoriamente em
neuróticos, muito pelo contrário, e felizmente! O termo abandonnique
parece-me, portanto, mais apropriado para designar o neurótico do
qual nos ocupamos, ao despertar a ideia de um estado psíquico
dominado pela angústia do abandono, e não a de um fato familiar e
social que tenha, obrigatoriamente, uma realidade objetiva” (Guex,
1984; p.23).
A autora enxergou nesses indivíduos, tomados por estado de angústia,
agressividade, sentimento de menos-valia e masoquismo, a particularidade de não
apresentarem tais sintomas ligados às neuroses edípicas, mas sim caracterizados
por um estado psíquico, como acima mencionado, pré-edípico, dominado pelo que
chamou de “angústia de abandono”. Constitui ponto importante no que visamos
ressaltar, que a questão com o desamparo e abandono está descrita acima por
outros autores enquanto relacionados aos quadros alimentares e também aditivos
(Capítulo 3).
Guex teria verificado, em sua experiência clínica com adultos,
repercussões psíquicas idênticas, “quer o indivíduo tenha sido frustrado na
realidade, dos cuidados, atenções e amor dos pais, quer tenha acreditado sê-lo”
(p.23).
Reconhecendo dificuldades na sustentação de sua descrição como uma
neurose específica, Guex reformulou algumas ideias iniciais, substituindo então o
termo para “Síndrome do Abandono”. Ainda que a autora tenha sido esquecida, e
seu constructo “neurose” ou “síndrome” pouco utilizado, o termo “abandônico”
seguiu em uso corrente para designar a presença central dessa angústia para
sujeitos marcados pelo “desamparo”.
É curioso observar que, na descrição dos abandônicos, encontramos as
seguintes características: atitude afetiva materna sentida como “recusa de amor”,
à qual os sujeitos descritos por Guex responderiam por meio de um voraz apetite
e expectativa de amor, à semelhança da descrição lacaniana: na anorexia mental
trata-se de um voraz apetite de amor. Consoantes com a descrição de Lacan
Fundamentação Teórica 53
para a anorexia mental, eis as palavras de Laplanche & Pontalis(58) sobre a
síndrome do abandono: "necessidade ilimitada de amor, manifestada de uma
maneira polimorfa que a torna irreconhecível, significaria uma procura da
segurança perdida, cujo protótipo seria uma fusão primitiva da criança com a
mãe”.
De acordo com os autores citados, nas adicções – por drogas ou alimento -,
o substrato da busca de tal objeto corresponde à mesma “fusão primitiva da
criança com a mãe”(48, 50). No mesmo sentido da experiência do vivido como
recusa do amor materno, fazendo alusão à questão do apetite excessivo, dirá
ainda Guex segundo Laplanche & Pontalis (1985)(58): “por fim haveria que invocar
um fator constitucional psico-orgânico (“gula” afetiva, intolerância às frustrações,
desequilíbrio neurovegetativo)” (p.381). O termo “gula” evoca a “fome de boi”, e
“gula afetiva” evoca diretamente a concepção de Bulimia de Brusset, tanto como
as contribuições de seus contemporâneos supracitados. Há outra passagem de
Brusset relacionando gula e abandono: em referência à leitura winnicottiana da
“gula da criança como reação antissocial relacionada à busca do ambiente
primário perdido”, comenta o que se passa nos episódios de compulsão bulímicos,
novamente referindo-se à “frequente dimensão de abandono” (2003; p.138).
De forma muito resumida, vale fazer menção à perspectiva de tratamento,
sob o entendimento de Brusset (2003)(59), McDougall e demais autores
comentados, qual seja:
Em cada caso, a partir dos fenômenos de transferência, as
reconstruções do que puderam ser as inter-relações precoces da
criança e dos pais podem apoiar a análise do que aparece como falha
da constituição e principalmente da elaboração das relações de objeto
e do ego em sua função organizadora da atividade psíquica (p.171).
De acordo com essa perspectiva teórica, que suspende entidades
nosográficas para dar relevo às modalidades de investimento e às relações de
objeto, compreendendo a Anorexia e Bulimia como dupla antagonista e focando
nas questões psíquicas, a análise que esboçamos no presente trabalho é
transdiagnóstica, referindo-se ao que está em jogo no plano subjetivo e à vivência
54 Fundamentação Teórica
dos pacientes, que se revela nos núcleos de sentido encontrados nas categorias
empíricas.
- 55 -
4. RECURSOS
METODOLÓGICOS
Não são as coisas que interessam ao pesquisador qualitativo
mas como elas ganham significação.
Turato
- 56 -
Recursos Metodológicos 57
Ainda que uma súmula dos procedimentos esteja descrita no Artigo 2,
optamos aqui por fazer uma descrição pormenorizada da pesquisa, do campo
estudado e dos meios pelos quais tais resultados foram alcançados, a fim de
permitir o esclarecimento do estudo a partir de seu desenho, bem como sua
replicabilidade.
4.1 Sobre o método
O método clínico-qualitativo e a justificativa de sua utilização neste estudo
são esclarecidos em grande parte pela citação a seguir.
o método que aqui falamos não se situa apenas sob os referenciais
paradigmáticos convencionalmente usados na sociologia
compreensiva e na antropologia cultural, mas a partir deles (...) busca
lançar mão de conceitos emprestados, ou melhor, deliberadamente
buscados na prática clínica histórica e na psicanálise, para marcarem-
se o desenho da pesquisa, a definição dos pressupostos e objetivos,
a construção e aplicação dos instrumentos auxiliares em campo e,
finalmente, a interpretação dos resultados do trabalho clínico-
qualitativo (60).
Quanto aos “referenciais paradigmáticos” oriundos da sociologia
compreensiva e antropologia cultural, e ao que delas o método clínico-qualitativo
conserva se diferencia, descrevemos abaixo:
Observações sobre a pesquisa qualitativa e método adotado
Com Minayo (1999)(61) e Turato (2011)(60), entendemos a pesquisa
qualitativa como o que visa aprofundar, revelar, descrever, analisar, mas sempre
se tratando de compreender, e compreender implica significados atribuídos.
Segundo Minayo & Sanchez (1993)(62), a corrente compreensivista nas Ciências
Sociais é mãe das abordagens qualitativas e ganhou legitimidade na medida em
que métodos e técnicas foram sendo aperfeiçoados, visando particularmente
abordar os problemas humanos e sociais; por exemplo, as concepções sobre
saúde/doença; tratamento, adesão, abandono, vivências. Assim, “envolvem uma
58 Recursos Metodológicos
complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais
da condição humana e de atribuição de significados”(61).
O método adotado se assenta sobre o campo da subjetividade e do
simbólico, tomando os sujeitos como ‘atores sociais’ pensados na cultura em que
se encontram inseridos. Emprestamos a visão de Minayo (1999; p.15)(61) para
clarear a noção de cultura, solo no qual se assentam os significados visados na
pesquisa qualitativa em saúde:
Cultura não é um lugar subjetivo, ela abrange uma objetividade com a
espessura que tem a vida, por onde passa o econômico, o político, o
religioso e o imaginário. Ela é o locus onde se articulam os conflitos e
as concessões, as tradicções e as mudanças e onde tudo ganha
sentido, ou sentidos (...) nunca há apenas um significado.
A pesquisa qualitativa, baseada no entendimento da natureza humana do
seu objeto, assume e valoriza o papel fundamental do método como “meio de”
construir o dado (que é assumido não como dado, a priori, mas como construído).
Esse método revela-se fundamental para a captura daquilo que é mais importante,
coerente ao seu objeto visado enquanto pertinente à cultura – demandando,
portanto, “compreensão”, que, em tese, escaparia ao conjunto de procedimentos
do método experimental, coerente para a explicação dos fenômenos da natureza.
Assim, Denzin & Lincoln (1994; p.191)(63) definem:
A pesquisa qualitativa é multimetodológica quanto ao foco,
envolvendo uma abordagem interpretativa e naturalística para seu
assunto. Isso significa que os pesquisadores qualitativistas estudam
as coisas em seu setting natural, tentando dar sentido ou interpretar
fenômenos das significações que as pessoas trazem para elas.
Nesse tipo de pesquisa, não se pretende a generalização dos resultados,
mas tão-somente o aperfeiçoamento da análise de determinado problema em
condições específicas. Diferentemente do paradigma positivista, que estabelece
generalização a priori, a generalização se dá a posteriori, eventualmente pelos
leitores, que conceitualmente se apropriam do conhecimento que ela produz.
Recursos Metodológicos 59
O método adotado constitui-se em uma variação da pesquisa qualitativa
aplicada ao campo da saúde que passou a ser conhecido como método clínico-
qualitativo e tem como principais características, que aqui resumimos a partir das
concepções de seu expoente Turato (2011)(60): a atitude clínica do pesquisador,
que desde o recorte de seu objeto se debruça sobre questões ligadas aos
processos saúde-doença. O pesquisador, em geral já engajado por trabalhar em
seu campo de pesquisa, movido por sua relação com a clínica e a terapêutica,
adota a escuta qualificada, que inclui a dimensão da subjetividade do indivíduo
estudado. A partir das influências teórico-epistemológicas da Hermenêutica e da
Fenomenologia, no método clínico-qualitativo é valorizada a atitude existencialista
do pesquisador, de forma que sua relação com a clínica funciona como causa e
força motriz da pesquisa. Este, preocupado com as angústias e ansiedades
humanas, inclina seu olhar e escuta sobre os fenômenos estudados com vistas a
buscar “conhecer cientificamente o particular” (64).
Quanto à dimensão do objeto de estudo, no que corresponde aos
“significados”, vale recordar que este constitui seu cerne, no sentido do objeto
conceitual; daí a adoção do método clínico-qualitativo e seu principal instrumento
de coleta, que favorece a apreensão do significado pela interpretação do
pesquisador-instrumento, das experiências relatadas pelos sujeitos/participantes.
A definição de significado de Lalande (1993, p.394)(65), utilizada por Turato (2005,
p.97)(66), contribui para melhor compreensão do recorte do objeto: “o que aparece
à consciência, o que é percebido, tanto na ordem física como psíquica”, o que nos
diz da perspectiva fenomenológica. O método clínico-qualitativo, herdeiro da
tradição compreensivista de pesquisa, por sua vez, agrega, a suas influências
filosóficas e das ciências sociais, elementos provenientes do campo da clínica,
trazendo influências vindas da medicina, da psicanálise e da psicologia médica.
Assim, constitui método que visa “melhor conhecer os sentidos e significados que
as pessoas trazem para os fenômenos relativos às questões da saúde
doença.” (64)
60 Recursos Metodológicos
Sobre o campo e o período de aculturação na pesquisa clínico-
qualitativa
Turato recomenda as visitas de aculturação e ambientação como o primeiro
passo dos procedimentos da etapa de campo que, no caso do método clínico-
qualitativo, corresponde ao “estabelecimento de relações com os habituais do
ambiente (equipe de saúde, burocratas, usuários)” (2011, p.341) e sua função. Em
suas palavras: “(...) pressupõe uma relação contínua entre duas culturas: a do
indivíduo que migrou sofre mudanças variáveis através de um processo de
assimilação em virtude da cultura que o recebe” (2011, p.344). No contexto da
pesquisa clínico-qualitativa, o termo “aculturação” já se distanciou de como foi um
dia compreendido nas Ciências Sociais, como modos de aquisição de uma cultura
ou seus aspectos em detrimento de outra de modo involuntário; correspondendo,
no método que utilizamos de forma técnica e pragmática, a “adaptar-se às
condições espaciais e temporais do lugar (...) à lógica do campo no qual o
pesquisador vai realizar sua tarefa” (60). Porém, mais que isso, entendemos que o
termo visa chamar a atenção para as diferenças e barreiras culturais existentes
em macro ou microcosmos existentes dentro de uma sociedade, e que isso não
diz a priori de seu funcionamento. Isto é, seu modus operandi não é algo natural, e
sim construído ali como “fato social”, cuja noção de Émile Durkheim (1972; p.5)(67)
é útil resgatar:
Existe toda uma gama de nuanças que, sem solução de continuidade,
liga os fatos de estrutura mais característicos a estas livres correntes
da vida social que não estão ainda presas a nenhum molde definido.
O que quer dizer que não existem entre eles senão diferenças no
grau de consolidação que apresentam. Uns e outros não passam de
vida mais ou menos cristalizada (1972; p.5).
A ideia de “fato social” auxilia no entendimento de que nosso objeto de
estudo é também construído na relação entre pesquisador e sujeito pesquisado;
de que os atores que passam a ser pesquisados revelarão aspectos do objeto
pesquisado, com a condição de que o pesquisador “deixe-se aculturar”, isto é,
permita que seus olhos se abram para o novo e deixe-se atravessar-se pela
Recursos Metodológicos 61
cultura do microcosmo pesquisado, para que extraia desse encontro o “dado”
qualitativo, a partir disso que ele “cristaliza” do vivenciado.
A aculturação, então, supõe que o pesquisador, cuja percepção constitui
importante ferramenta de coleta, suspenda seus conhecimentos e julgamentos a
priori. Também importado da Antropologia Cultural, o termo “estranhamento do
familiar” tem sua aplicação ao método e conserva mais do sentido original. No
presente caso, a cada abandono que se apresenta, uma falta se instaura, um
silêncio da ausência pode se reapresentar. Vale dizer, a própria característica do
objeto de estudo favoreceu os constantes exercícios de aculturação e
estranhamento do familiar, mesmo concluída a etapa de campo da pesquisa,
seguindo no “campo”, este sim, infinito de sentido, aberto e instigante, dos dados
colhidos, desacomodando constantemente os significados que pudessem se
antecipar pela inserção prévia da pesquisadora em seu campo de pesquisa.
De acordo com a metodologia adotada, é na etapa de campo que se dá o
essencial, nele acontece o meio de acessar os dados: a interação entre o
pesquisador e os sujeitos pesquisados. Na pesquisa qualitativa, então, entende-se
por campo a abrangência, desde o recorte teórico até o objeto de investigação(61),
tal como será recortado por cada desenho de pesquisa, por cada olhar de
pesquisador. São componentes fundamentais do trabalho de campo no método
adotado: as entrevistas e a observação participante, que são coletadas pelas
ferramentas da percepção do pesquisador “aculturado”, e do Diário de Campo,
conforme serão descritos nos itens a seguir.
4.2 Descrição da etapa de campo da pesquisa
Os itens abaixo correspondem à descrição detalhada dos procedimentos de
coleta e análise dos dados:
62 Recursos Metodológicos
Descrição do campo e objeto estudados
Após aprovação do Projeto no Comitê de Ética em Pesquisa local (vide
Anexo 1), a etapa de campo da pesquisa teve início nos contatos formais com a
coordenação do serviço, apresentando os objetivos da realização do estudo e
dando início ao processo de “aculturação” do pesquisador no campo a ser
estudado.
Uma vez apresentado o projeto à equipe, com sua colaboração foi obtida a
relação de registro dos casos tidos como de abandono, o que supõe os critérios
anteriormente aplicados pela equipe, e não pelo pesquisador, acima
apresentados.
A seguir, foram realizadas entrevistas com três voluntárias para
experimentar e aprimorar o roteiro, material que não foi incluído no corpus da
pesquisa; fazendo parte somente dos objetivos do período de aculturação, embora
indiretamente tenha contribuído para o conhecimento do objeto de estudo,
influenciando a capacidade interpretativa do pesquisador, conforme prevê o
método clínico-qualitativo. Nesse primeiro tempo de aculturação, foi fundamental à
pesquisadora o exercício do “estranhamento do familiar”(68), dada sua inserção
prévia como psicóloga no serviço pesquisado, e inaugurou-se o uso do Diário de
Campo registrando-se observações ao longo de toda a etapa de campo, que teve
a duração de quatro meses; não somente impressões e dados das consultas a
registros de prontuários, mas principalmente do contato com os pacientes, com a
equipe, e também aspectos que saltavam aos olhos, desde os contatos telefônicos
à situação da entrevista; tais como aspectos explicitados pelos participantes, por
exemplo, em alguns casos, para que a entrevista não fosse realizada em casa e
os motivos para isso.
Descrição do serviço
O campo, no sentido estrito, referiu-se ao Ambulatório de TA do
Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências
Médicas da Unicamp, atualmente chamado Grupo Interdisciplinar de Assistência e
Recursos Metodológicos 63
Estudos em Transtornos Alimentares (GETA), funciona às segundas-feiras pela
manhã no segundo andar do Hospital das Clínicas, prestando atendimento
especializado a adolescentes, a partir de 12 anos, e adultos. A equipe
multidisciplinar inclui psiquiatras assistentes, endocrinologista, nutricionistas,
psicólogos e psicanalistas – estes últimos atendem individualmente ou em grupo
aos pacientes e seus familiares –, além dos médicos residentes que passam pelo
serviço em supervisão constante.
A proximidade do serviço, pelo fato de a pesquisadora participar desta
equipe realizando atendimentos individuais aos casos indicados, não constitui
empecilho metodológico, uma vez que na abordagem clínico-qualitativa
pressupõe-se o “pesquisador participante”, sendo permitida e legítima sua imersão
e engajamento prévios em seu campo de pesquisa; o que não deve, porém, ser
feito sem atitude cautelosa e cuidados éticos. Vale relatar o papel importante
cumprido pelo período de “aculturação” e o necessário exercício do
“estranhamento do particular”. A mestranda havia de passar a ter, na medida do
possível, o olhar de pesquisadora sobre um universo familiar, embora o campo
propriamente dito tenha se dado fora desse espaço físico, compondo-se no
sentido mais amplo, no “território” das vivências do abandono e do tratamento.
De acordo com a concepção da metodologia adotada, o campo, no sentido
amplo, abrange desde o recorte teórico do objeto de investigação, até o território
mais amplo das vivências dos participantes de abandono e tratamento em
Transtornos Alimentares. Caracteriza-se assim também pelo “encontro com os
sujeitos/participantes”, desde o rapport telefônico até os momentos que se
seguem às entrevistas. Nesse âmbito, foi aprimorado o instrumento de coleta de
dados e iniciado o período de aculturação ao campo de pesquisa.
Construção da amostra
Foram aplicados os seguintes critérios de inclusão para a composição da
amostra: pacientes com 18 anos ou mais que tenham sido diagnosticados com TA
quando em tratamento no GETA/Ambulatório de TA do Hospital das Clínicas da
64 Recursos Metodológicos
Unicamp, de acordo com os critérios do DSM IV-TR* e que tenham abandonado o
tratamento ambulatorial neste serviço há pelo menos um ano. Aplicados, por sua
vez, os seguintes critérios de exclusão: apresentar diagnóstico inconcluso,
limitações intelectuais que comprometam a validade dos dados e ter sido atendido
pela pesquisadora em psicoterapia.
A amostra, a partir de tais critérios, foi encerrada com nove entrevistas, por
critério de saturação dos dados. Finalmente, como já mencionado, um participante
foi excluído da análise devido a falhas técnicas na gravação, totalizando o
conjunto das entrevistas com oito participantes, o que não interferiu na saturação
das informações e é apresentado no Quadro 1 (vide Anexo V). Contando as três
entrevistas do período de aculturação, duas deste sujeito que foi excluído, os oito
participantes componentes do corpus, o pesquisador escutou doze voluntários, no
total do conjunto. Porém, foram analisadas somente as oito entrevistas – com os
participantes que vieram a efetivamente compor a amostra, realizadas em dez
encontros - uma vez que com dois destes participantes, fez-se necessário dividir a
entrevista em dois encontros†. Com os participantes P2 e P8 se fizeram
necessários dois encontros, seguidos, em intervalo de tempo de uma semana, em
função de suas características e cuidados éticos e manejo das angústias
mobilizadas conforme recomendações e cuidados éticos do método clínico-
qualitativo.
Os participantes escutados são em sua totalidade do sexo feminino, pois no
universo pesquisado, isto é, na relação fornecida pelo serviço, no grupo dos
pacientes que abandonaram não havia homens - o que se pode atribuir não à
ligação do sexo com o abandono, mas sim à conhecida relação entre TA e o sexo
feminino e sua maior prevalência. A descrição da caracterização dos participantes
do estudo, na amostra estudada, pode ser visualizada no Quadro 1 (Anexo V) e
será descrita e comentada no Anexo VI.
* Edição vigente durante a realização do estudo. † Isto se deu em função de necessidades apresentadas por tais participantes de falar
exaustivamente de suas vivências, assim como pelo respeito aos cuidados éticos acima descritos, e previstos no decorrer da pesquisa.
Recursos Metodológicos 65
Coleta e registro de dados
Devido ao fato de nossa amostra intencional ser constituída por voluntários
que abandonaram o serviço, não lhes foi oferecido esse espaço para ambiente
das entrevistas. Estas, em sua maioria, foram realizadas no domicílio dos
participantes, por sugestão e oferta da pesquisadora, a fim de evitar eventuais
vieses relativos ao ambiente do serviço “abandonado” e qualquer
constrangimento aos participantes, bem como visando melhor adesão à
participação na pesquisa. Foi previamente averiguado se havia local privado,
adequado em sua estrutura física, que minimizasse interferências possíveis na
pesquisa, e não causasse qualquer espécie de exposição ou constrangimento.
Mediante consulta prévia durante rapport telefônico, somente em dois casos
os participantes manifestaram preocupação com exposição ao olhar familiar e a
liberdade para falar do tema nesse ambiente, e outro local privativo e silencioso foi
oferecido para as entrevistas. Ao passo que, refletindo a particularidade de cada
sujeito, vale descrever que outro participante, por sua vez explicitou, no início do
encontro, sua escolha pela casa a fim de que a pesquisadora testemunhasse seu
ambiente doméstico de privacidade escassa, verbalizando a interpretação de
possível relação de seu TA com tal falta de privacidade e o sentimento de
exposição ao olhar. Ambos os que se deslocaram não aceitaram ser ressarcidos
do valor relativo ao deslocamento, relatando sua satisfação e gratidão em
contribuir com a pesquisa, bem como seus benefícios pela oportunidade de
reflexão e interlocução promovida pela situação da entrevista. A pesquisadora
deslocou-se a municípios vizinhos e a outro estado para realizar as entrevistas.
A partir da listagem fornecida pelo serviço foram aplicados os critérios de
composição da amostra e realizados os contatos telefônicos. Todos os sujeitos
foram acessados por essa via, pela qual foram agendadas as entrevistas, não sem
várias recusas e manejos que foram sendo apreendidos como necessários, e ao
mesmo tempo, davam a ver aspectos do funcionamento escutado de tais sujeitos,
no sentido do alcance visado pelo método, anotados também em Diário de
Campo.
66 Recursos Metodológicos
As entrevistas semiestruturadas constituem o principal instrumento de
coleta de dados na pesquisa qualitativa, sendo a técnica mais utilizada no trabalho
de campo. São instrumentos interativos complexos, em que o investigador não
deveria – e de fato não pode – controlar variáveis emocionais, cognitivas e
comportamentais. (...) A validade do instrumento de coleta refere-se à sua
capacidade de revelar a verdade, permitindo emergir conteúdos que espelham a
realidade(69). Constituem, por sua vez, um tipo de recurso metodológico que se
presta a ser meio de acesso à subjetividade dos informantes, ao ponto de lograr
captar a atribuição de significados e valores dos participantes em sua experiência.
Seu uso na aplicação clínica da pesquisa qualitativa supõe reconhecer e valorizar
as angústias dos sujeitos, tendo elementos psicodinâmicos como ferramenta.
Assume-se, de acordo com os pressupostos da metodologia, ser um meio de
“construção do dado”. No uso desse instrumento, é facultado ao pesquisador
excluir ou incluir perguntas que julgar pertinentes durante a entrevista. Assim, elas
tiveram duração variável, em média uma hora e meia.
4.3 Técnica de tratamento dos dados
Salientamos que, por tratar-se de pesquisa qualitativa, a priori, as
características sociodemográficas dos participantes não constituíram alvo de
análise, sendo, porém, descritas (Anexo VI) e mencionadas na discussão dos
resultados quando encontrado nexo de sentido entre as entrevistas e tais
aspectos.
Foram realizadas reiteradas escutas do áudio e leituras da transcrição das
entrevistas, atentas aos sentidos recorrentes nos relatos, bem como a significados
latentes, núcleos de sentido estruturantes encontrados no todo do discurso, e,
sobretudo à implicação do sujeito da enunciação. Esta supõe, de acordo com a
visão da escola francesa de análise do discurso, por sua vez, também influenciada
pela psicanálise assim como o método por nós adotado -, considerar a posição
subjetiva do entrevistado. Isto é, não somente seu enunciado, mas por meio de
indícios observados na situação da entrevista e marcadores discursivos, considera
Recursos Metodológicos 67
também a posição do sujeito em relação ao seu enunciado. Vale referir como
fundamentos teóricos da visão de discurso abaixo citada, na qual sentido e
linguagem constituem relações econômicas e sociais(70), nas visões de
Maingueneau (1987)(71) e Orlandi (1994 e 2006)(72-73):
“Ver a língua de um ponto de vista discursivo é, portanto, ir além dos
horizontes dados pela gramática. Nos discursos produzidos pelo
homem está toda a sua história, aquilo que foi dito e foi silenciado
(que, entretanto, podemos recuperar pelas marcas, pistas deixadas),
as relações de interação, de intercâmbio e também as relações de
oposição, polêmicas e antagonismos estabelecidos. Enfim, as
relações de poder, de dominação, de alianças, de silenciamentos.”(70)
(Brandão, 2004).
O trabalho de análise, já a partir do recorte das falas, deu-se em diferentes
etapas buscando levantar categorias escutadas por enunciação. Teve também por
base critérios de repetição e saturação dos núcleos de sentido encontrados
mediante exercício de validação dos resultados e das categorias de conteúdo
encontradas, a seguir descrito. Tais categorias, organizadas sistematicamente,
constituem categorias empíricas, oriundas dos núcleos de sentido emergentes do
trabalho de campo, principalmente nas entrevistas, encontradas como seus eixos
estruturantes, acrescidas das observações do Diário de Campo. Procedeu-se
então à etapa de interpretação dos resultados fundamentada no referencial
psicodinâmico.
A validação na revisão por pares deu-se em distintos níveis, com
discussões acadêmicas, dos planos locais aos mais externos, no Laboratório de
Pesquisa Clínico-Qualitativa, nas Semanas de Pesquisa da Faculdade de Ciências
Médicas (2012), bem como na comunidade científica nacional – XXX e XXXI
Congresso Brasileiro de Psiquiatria (2012 e 2013) e IX Congresso Brasileiro de
Transtornos Alimentares e Obesidade (2013) –, e internacional, no V Congresso
Ibero-Americano de Pesquisa Qualitativa em Saúde (Lisboa, 2012) e no 20th
European Congress of Psychiatry (Praga, 2012), nos quais foram apresentados
resultados preliminares e finais do estudo.
68 Recursos Metodológicos
4.4 Cuidados éticos e manejo de vieses na pesquisa
O presente estudo seguiu as normas preconizadas pela Declaração de
Helsinque e pelas Resoluções 196/96 e 340/2004 do Conselho Nacional de
Saúde, que regulamentam pesquisas em saúde com seres humanos, sob o
registro FR-354302. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e aprovado em 17.08.2010, sob o
número 635/2010//CAAE 0493.0.146.000-10 (vide Anexo I).
Os dados foram coletados nas entrevistas mediante leitura e assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (vide Anexo IV), ao qual, vale
mencionar, foi acrescentado o seguinte parágrafo por indicação do Comitê de
Ética em Pesquisa (FCM): “Fui informado(a) de que fica garantido o meu direito de
retomar o atendimento no Ambulatório de Transtornos Alimentares do Hospital das
Clínicas, em qualquer momento, caso seja de minha vontade.” Colhidas as
características sociodemográficas, as entrevistas foram coletadas e gravadas em
áudio e posteriormente transcritas na íntegra. A etapa de campo encerrou-se finda
a coleta de dados.
O Anexo II, documento aprovado no CEP solicitou mudança de nome do
projeto, uma vez que, em campo, percebeu-se a necessária evolução do desenho
do estudo, anteriormente limitado aos diagnósticos de AN e BN, justificando a
sugestão de alteração do nome – e portanto, do objeto de estudo –, de "Anorexia
Nervosa e Bulimia Nervosa" para "Transtornos Alimentares". Esta alteração
respondeu à preocupação com o rigor científico e a fidedignidade dos resultados,
pois, sendo critério de inclusão ter abandonado o tratamento há mais de um ano,
já não se podia afirmar que as entrevistas seriam provenientes de participantes
com AN ou BN, exatamente, devido ao fato conhecido na área, de que estes
diagnósticos mudam conforme o comportamento alimentar, práticas purgativas,
IMC, dentre outros critérios que sofrem mudanças rapidamente, durante ou depois
do tratamento. No contato com o campo de pesquisa, percebeu-se que o que se
pode afirmar, somente, é que estes um dia foram diagnosticados com um TA,
sendo mais adequado esse nome por tratar-se de um grupo de diagnósticos,
Recursos Metodológicos 69
compreendendo, este sim, sua experiência atual e/ou pregressa,
independentemente do diagnóstico exato que poderiam vir a receber hoje. Tal
percepção obrigou a rever a constituição da amostra, passando a incluir não
somente participantes com AN e BN, mas também outros diagnósticos não
especificados que também compõem o grupo dos TA tal qual descritos na clínica
psiquiátrica.
Quanto ao compromisso ético do pesquisador, foram selecionadas citações
que não permitam identificar os participantes, assinalados por números. Toma
parte deste compromisso a fidelidade aos depoimentos dos entrevistados, quanto
à qualidade da transcrição e com os cuidados no modo de abordá-los. Ressalta-se
que tais cuidados incluíram, no rapport e abordagem nas entrevistas: a
consideração do que se sabe sobre a psicodinâmica de sujeitos assim
diagnosticados e o acolhimento das angústias mobilizadas pela abordagem da
pesquisa, levando-se em conta o fato de terem interrompido o tratamento e a
possibilidade de seguirem adoecidos.
Foram previstas facilidades e dificuldades em sua realização, desde a
permissão dos serviços ao contato com os participantes e a disposição destes em
participar da pesquisa, uma vez que são egressos que interromperam a relação
com o serviço. Aspectos favoráveis: a inserção prévia da pesquisadora nesse
campo de trabalho, facilitando os contatos, a experiência no manejo com esses
pacientes; no mesmo sentido, o interesse da equipe em colaborar na busca de
elementos que ajudem no enfrentamento de dificuldades cotidianamente
encontradas na clínica dos TA. Aspectos desfavoráveis previstos: a presença do
pesquisador investigando fatores relativos ao abandono pode mobilizar afetos
persecutórios na equipe ou nos pacientes, sobretudo por tocar em relação
interrompida. Podem surgir, de ambos os lados, fantasias a respeito de eventuais
críticas. Tal como entende a metodologia clínico-qualitativa, o pesquisador ativo
leva em conta fenômenos clínicos, angústias em jogo, com o objetivo de realizar
um trabalho que possa lançar luzes nos problemas a serem tocados pela
pesquisa, e deve estar atendo a escutar de que maneira tais elementos se
70 Recursos Metodológicos
relacionam a seu objeto de estudo. Fez-se necessário, no manejo de tais vieses,
trabalhar aspectos imaginários com ambas as partes, esclarecendo sobre os
cuidados éticos e deixando clara a posição de não tomar partido.
A metodologia clínico-qualitativa leva em conta fenômenos clínicos,
angústias em jogo de forma que o pesquisador deve estar atento a escutar de que
maneira tais elementos se relacionam a seu objeto de estudo. Considerando as
dificuldades encontradas na fase de aculturação, frente às seguidas recusas de
participação, impôs-se a necessidade de manejo da situação e das angústias
apresentadas, refletindo em variações da aplicação do roteiro e obtenção dos
dados. Assim, o formato, extensão e número de entrevistas podem variar com
cada participante; os conteúdos refletem sua particularidade, e além de tudo são
mais ricas quanto à fidedignidade do dado.
4.5 Recursos materiais e fontes de financiamento
Dos recursos para a execução deste projeto, alguns eram de propriedade
da pesquisadora (como os gravadores, sendo um digital, para registro e cópia das
gravações), outros provenientes de subsídios obtidos junto a instituições de
fomento de pesquisa, abaixo descritos.
A pesquisa foi realizada com bolsa da CAPES (mestrado/curso
33003017023p6) e com auxílio-pesquisa da FAPESP (2011/20.469-8), obtido
especificamente para o estudo, com a finalidade de dar suporte material à coleta e
registro de dados, especialmente para aquisição de material permanente – um
laptop, que passa a ser propriedade desta faculdade – e pagamento de serviços
de transcrição de gravações, traduções e confecções de pôsteres para
Congressos, prestados por terceiros.
- 71 -
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A verdade só ganha seu pleno sentido ao fim de uma polêmica.
Não poderia haver assim verdade primeira.
Não há senão erros primeiros
Canguilhem
- 72 -
Recursos Metodológicos 73
Os significados psicológicos encontrados relacionam-se revelando aspectos
simbólicos do abandono que marcam trajetórias de tratamento vivenciadas e
compostas de modo particular por cada participante, nas quais comparecem com
maior ou menor força os temas apresentados nas categorias, conforme: 1) a
particularidade de sua psicodinâmica 2) cada qual maneja barreiras que se
interpõem ao tratamento 3) mudanças no campo clínico e psicossocial mediante o
tratamento e seus efeitos, com as quais, cada um se relaciona a seu modo, como
p.ex.: arrumar emprego, ganhar peso, começar a namorar, e a própria “melhora
suficiente” dizem da relação possível a cada um com a melhora sintomática.
As entrevistas permitem verificar como os significados encontrados
participam da trajetória dos participantes no tratamento e sua ligação com a
interrupção. Revelam a complexidade do fenômeno estudado e confirmam a
relação com aspectos psicológicos pressupostos, na medida em que as
entrevistas revelam: baixa autoestima, ambivalência, impulsividade, dificuldades
no campo do relacionamento interpessoal, mecanismos de introjeção e projeção
das relações parentais e das questões relativas ao apego/desamparo.
Por sua vez, estes, são encontrados como ligados à psicodinâmica descrita
como “adicção bulímica” segundo a perspectiva de nosso quadro teórico, ligada a
todas as variantes restritivas ou purgativas dos TA: seja no aspecto “vício”
revelando sujeição, dependência, escravidão, recaídas e compulsões, presentes
seja no aspecto “conduta atuada”, seja frente à questão do
desamparo/abandono/apego.
As categorias não são estanques e mostram temas que emergiram
revelados pelos participantes como ligados ao abandono e ilustram a enunciação
que recortam. A primeira parte das categorias é representada por um recorte de
fala literal dos participantes e a segunda, um elemento interpretativo do dado
empírico.
Do ponto de vista do foco psicológico de nosso estudo observou-se que os
diferentes graus de remissão do quadro encontrados revelam-se suportados na
medida em que cada qual avançou em beneficiar-se dos efeitos do tratamento no
74 Resultados e Discussão
sentido de superar o funcionamento “objetal anoréxico/bulímico”(74) “escravidão ao
vício”, pôde-se desembocar em abandonos mais ou menos próximos da
remissão/”cura” (S3).
Nossa amostra não apresenta casos de não-adesão, dado não esperado.
Não há padronização na literatura, mas utilizamos parâmetros encontrados nos
estudos levantados: seriam assim considerados não-adesão quando ocorrem em
média até a terceira consulta (vide Artigo 1). Já os abandonos, efetivamente, são
classificados em: abandonos precoces, médio e tardio, ou precoce e final. A
maioria dos participantes estudados permaneceu em média entre um ano e um
ano e meio (abandono médio), havendo três casos do que é chamado na literatura
especializada de “abandono tardio” tendo em vista o tempo de permanência de
dois anos ou mais, bem como consideradas as melhoras clínicas e a estimada
proximidade com a alta (vide comentários da amostra Anexo VI).
As sete categorias empíricas estão divididas e analisadas em três grupos,
abaixo enumerados, conforme o modo como emergiram no material coletado. As
categorias principais revelam as duas vertentes de sentido encontradas como
centrais enquanto significados psicológicos do abandono para estes participantes,
e dizem respeito à psicodinâmica ligada ao abandono, portanto, denominadores
comuns a todas as demais: (1); as categorias secundárias relacionam-se
diretamente às centrais e revelam mecanismos que participam do abandono (2).
E, finalmente, em um plano colateral por corresponderem aos significados da
faceta “tratamento” implicada no objeto abandono, as categorias relativas ao
tratamento (3); são núcleos de sentido que correspondem à necessidade de falar
do tratamento para falar do abandono.
Recursos Metodológicos 75
5.1 Categorias principais relativas ao abandono e seus significados*
5.1.1 "Uma escravidão ao vício, compulsivamente" – dimensão aditiva da anorexia e bulimia
As sequências discursivas revelam a posição subjetiva de assujeitamento
ao vício, o que se nota também na ligação desta à categoria “Anorexia é uma
coisa para a vida inteira” – apego/adesão ao sintoma. A ligação entre este
núcleo de sentido e o seguinte, também no plano da “conduta atuada” e da
psicodinâmica que ambas implicam, pretende-se clarear ao longo deste capítulo.
Vale comentar que estes se refletem em limites à da interpretação das falas desta
categoria, por sua própria natureza de “conduta atuada”, consequências desse
modo de relação, no qual a comida ocupa o lugar de droga, sendo os conteúdos
contundentes o suficiente para demonstrá-lo:
(...) sair dessa vida, sair dessa escravidão que é a anorexia (...) você
se sente uma aliada da doença, escrava da doença (S7)
A pessoa tem que querer (fazer o tratamento) (...) a pessoa sabe que
tem o problema, e não quer. É que nem se fosse um drogado, um
alcoólatra... tem que ter essa vontade de ser alguém na vida. A
doença, a cada dia ela destrói (...). (S8)
Nota-se que a vivência de transtorno alimentar, por sua semelhança a “um
drogado, um alcoólatra” é caracterizada por autodestruição e não consentimento
com o tratamento, apesar da consciência de sua necessidade, os participantes
nos apresentam a lógica do assujeitamento: enquanto houver esta aliança, aliada
da doença, escrava da droga, dessa escravidão que é a anorexia” - como vício -,
haverão maiores barreiras na relação com o tratamento. Por sua vez, a dita
relação dá a ver a relação entre escravidão e controle:
você vê que aquilo perdeu o controle na sua vida, que aquilo tá te
controlando. Tipo um vício mesmo, que você não pode controlar
sozinha! (S5)
* Os sujeitos, de 1 a 7 são doravante identificados por (S) seguido do número que os identifica cfe.
características descritas no Anexo V – Quadro 1 (p.109)
76 Resultados e Discussão
fica à mercê das próprias condições que a doença estabelece. A
própria doença te faz viver uma escravidão; compulsivamente (...) faz
você viver daquilo: só pensando em comida, em caloria, em exercício
físico, perder peso (...) por isso falo que é uma escravidão. (S7)
se tratar antes de ficar viciada... É como a droga, você começa e não
quer mais parar! Eu encaro isso como um vício. (...) se se acostumar
vai ser muito difícil. (S6)
A consequência da posição de “aliada ao vício” aparece no paradoxo que
mostra sua avaliação consciente, a posteriori:
realmente o tratamento deveria ter se estendido por mais tempo e eu
acabei não me deixando (grifos nossos) terminar o tratamento. (S5)
É interessante destacar o sentido subjacente à sutileza de “acabar não me
deixando”, como alguém que está em luta e “acaba", "termina por...”; “não me
deixar” parece apontar para um não consentir; luta na qual venceu o mestre
projetado na doença e a ilusão de controle que ela oferece.
A categoria principal “Uma escravidão ao vício, compulsivamente” mostra
determinantes psicodinâmicas ligadas ao vício enquanto significado do abandono
e revela um modo de relação à comida como droga, que aponta
particularidades na relação destes sujeitos ao tratamento, quando escravos
da doença, como a uma droga, que devem ser considerados na análise do
fenômeno do abandono. Então, “a escravidão ao vício” constitui um
denominador comum às demais categorias: Anorexia é para a vida inteira,
Melhora suficiente, e Não gosto que as coisas saiam do meu controle,
compreendendo significados psicológicos do abandono encontrados enquanto
barreiras ao tratamento.
5.1.2 "Me senti abandonada, então abandonei” – acting out da fantasia de abandono
A segunda categoria principal apresenta-se claramente ao longo dos
relatos, nas situações descritas e posições percebidas em relação a elas. No
Recursos Metodológicos 77
conjunto das entrevistas, têm a particularidade de aparecerem raramente
condensadas no conteúdo enunciado de uma fala, como pensamento elaborado e
consciente do que se passou. Isso se deve à sua própria natureza de “ato”, no
sentido do agieren de Freud*. Trata-se de sujeitos – aqui, no sentido do sujeito do
inconsciente - mais predispostos ao ato. Tais sujeitos, enquanto adoecidos,
padecem do empobrecimento relacional e afetivo e vivenciam o relatado
“assujeitamento” ao vício. A posição de “aliada”, “escrava da doença, a mercê da
doença”, é utilizada para dizer de tal compulsão à repetição, terreno no qual se
dão a perda de controle e o acting-out do abandono.
Essa categoria em especial mostra seu conteúdo diluído ao longo dos
relatos, perpassando seja o campo da relação interpessoal, fazendo-se presente
em graus distintos para os participantes. A proximidade que as entrevistas
revelam entre os mecanismos do controle e a representação da permanência
desse estado para toda a vida, é pregnante em todas as entrevistas e sugere que
o aspecto aditivo é central na problemática do TA e interfere na relação com o
tratamento.
Os achados são primeiramente interpretados pelos próprios participantes,
ao atribuir tais significações ao abandono. Vale lembrar que as categorias
principais, “aditiva” e “abandônica”, estão conectadas pelo empobrecimento da
mediação do aparelho simbólico comum a ambas. Devido à particularidade desse
funcionamento, tais questões aparecem também nas entrevistas marcadas pela
carência de elaboração. Entendemos que, consoante à lógica do acting-out, tais
questões reclamam por um tratamento no simbólico ao repetirem-se na relação
com o terapeuta. Vale dizer que, no contexto pesquisado, o termo “terapeuta” não
corresponde somente a quem conduz a psicoterapia, mas àquele com quem
existe um laço, no sentido do vínculo.
À exceção de um, nossos participantes relataram histórias reais ligadas ao
abandono de fato e/ou o que aqui nomearemos “questões familiares”, pois não
* Cfe. descrito no Cap. 3, Fundamentação Teórica.
78 Resultados e Discussão
necessariamente implicavam em desestrutura familiar, embora em grande parte
dos participantes, mas claramente ligadas a fantasias e conflitos que podemos
entender como abandônicos, à luz da descrição clínica de Guex (57). No caso dos
participantes cujo principal significado do abandono foi tal conflito, é interessante
notar que os abandonos coincidem com uma relação de cuidado interrompida pelo
terapeuta depositário do vínculo mais importante, por razões exteriores ao
tratamento, porém não suportadas pelos sujeitos – aqui destacando a dimensão
subjetiva do participante - marcados pelo desamparo, como revela a fala:
Eu acho que na época eu me senti abandonada (...) Eu me senti
abandonada, então eu abandonei (S8)
E eu também não gostei que (...) mudaram alguns procedimentos (...)
Dra. X não ia mais me atender, ia me encaminhar pra outro (S7).
Devido à característica do acting-out acima apontada, e o empobrecimento
da elaboração a ele ligado, faz-se necessário analisar fragmentos de uma das
entrevistas, isto é, seguir algumas falas de um dos participantes, a fim de
demonstrar o mecanismo e o significado compreendidos.
Outro, que verbalizou a marca de abandono real por parte do pai em sua
história infantil e, ao longo de seu relato, passa a compor tal categoria, não o
relata em um enunciado com a mesma clareza que S7 e S8, por exemplo, mas
fala de tal mecanismo em seu funcionamento, como S6. Tal sujeito se apresenta
nas rupturas das relações, não somente no tratamento, também em outras.
Apercebe-se de tais características em seu relato e nomeia tal mecanismo “uma
neurose”, descrevendo seu sutil mecanismo:
É uma neurose... de que sempre se a coisa tá indo bem,
provavelmente alguma coisa errada... Então, antes que aconteça
alguma coisa, eu já saio fora, eu já sumo. É sempre assim, com tudo:
escola, amigo... Quando eu vejo que tá assim eu já saio fora porque
geralmente acontece alguma coisa errada, eu sei que vai dar
problema. (S2)
Quanto à ligação entre desamparo, questão abandônica e TA, podemos
interpretar em seu primeiro enunciado: “sempre se a coisa tá indo bem...”: quando
Recursos Metodológicos 79
se liga afetivamente, passa a existir uma relação, fazendo surgir então sua
dificuldade interpessoal, corolário do transtorno e da questão abandônica, que a
seguir se revelará no ato de ruptura: “provavelmente alguma coisa errada...”
Podemos interpretar, sob sua lógica, que a “coisa errada” equivale simbolicamente
a, frente a alguma “encrenca” ou briga, ser excluída, não encontrando um lugar
para si, segundo a repetição da marca abandônica. Indica na série sua repetição:
“É sempre assim com tudo: escola, amigo...”, e também com a Dra. X, com quem
tinha importante aliança terapêutica:
Como eu conversava bastante com a Dra. X, eu me sentia mais leve
por não precisar ficar só... só dentro, só comigo. Mas aí eu não sei...
acho que eu deixei de acreditar que não era possível alguém ficar me
escutando sem alguma coisa errada por trás. (S2)
Relata literalmente uma desconfiança, que aparece descrita por elementos
imaginários e persecutórios na relação com o terapeuta detentor do vínculo. Veja-
se fragmento rico em revelar o mecanismo da repetição na relação transferencial,
na qual reaparece isso que a faz desconfiar de seu não-lugar, momento que
antecede ao ato: A coisa errada por trás....(S2).
O que a impede de ligar-se, interferindo nessa relação de cuidado, é a
fantasia de abandono mesma, clara em sua fala, também quando acrescenta que,
caso fique falando muito de seus problemas,
(...) vai ficar enchendo o saco dos outros. (S2)
mostrando que esta fantasia se compõe da suposição de não ser acolhida nessa
relação, na qual parece antever-se descartada, mediante a reação da Dra. X que,
“de saco cheio”, não poderia suportá-la, no sentido da noção de apoio/holding,
fundamental para o referencial clínico que fundamenta o tratamento dos sujeitos
marcados pelo apego/desamparo. O que se passou na sequência do surgimento
desta fantasia, determinando finalmente sua interrupção, foi o encaminhamento a
internação, necessária em outro serviço, na ocasião, interrompendo tal relação de
cuidado à qual não retornou. Como quem não se vê merecedora desse “amor”,
80 Resultados e Discussão
amparo emocional, tenta resolver tal conflito na solução de compromisso que
encontra: sua exclusão pela adoção de outrem:
Como sou mesmo ignorante, e vi que eu não ia melhorar, resolvi sair
pra dar lugar pra outra pessoa. (S2)
Revela-se o mecanismo de esquiva, de evitar a angústia nas relações
interpessoais descrito na literatura dos TA, bem como quando deixa seu lugar
para outra. Podemos escutar em seu discurso que esse sujeito age como quem
não encontra um lugar simbólico para sua existência, como quem foi abandonada
e sempre se faz reencontrar com isso nas relações interpessoais e o repete
naquilo que dá corpo à relação terapêutica (agieren). Ao mesmo tempo, põe em
ato no abandono sua demanda de amor, como o que é típico dos indivíduos
marcados pelo desamparo, reiterando em outra sequência:
Eu só parei mesmo porque eu achava que eu estava ocupando o
lugar de outra pessoa (...). (S2)
Mostra-se alienada nessa repetição, embora na entrevista talvez se dê
conta de que tem “uma neurose”, não logrando dizer conscientemente do
verdadeiro motivo, revelando um discurso permeado por contradições, saltando
aos olhos sua desorientação frente ao “não-lugar” no mundo. Com o que se passa
enquanto mecanismo de antecipação do abandono, pelo desamparo vivido, revela
uma história traumática em seus motivos – não somente nos vínculos mais
recentes, “escola, amigo...”, como também na abrupta separação dos pais em sua
infância, quando o pai abandonou a família, nunca mais o tendo visto. Entre
importar-se tanto com o outro, a ponto de ceder-lhe seu lugar, ou no extremo, não
importar-se mais consigo ou com os outros, desemboca na frase que, aliada a seu
estado de desconhecimento, como que explica esse agir aparentemente
imotivado, mas totalmente motivada por sua vivência como sujeito do abandono –
no encaminhamento externo, enquanto acting-out: o ato de “abandonar-se a si
mesma” ao abandonar o outro (o serviço, a Dra. X.) que lhe oferecia suporte para,
através da confiança, via tratamento, sair desse lugar de abandonada e sua
repetição. Este, no entanto, falou mais alto:
Recursos Metodológicos 81
Eu realmente deixei de me importar comigo ou com os outros
também, que foi quando eu saí da internação... Na verdade nem sei o
verdadeiro motivo. Quando fala assim parece mais que eu abandonei
eu mesma, né? (S2) (grifos nossos).
A dimensão do não se importar consigo, que aparece no “abandono de si
mesma” também presente na fala de outros participantes, caracteriza certo
aspecto depressivo e guarda relação com o limite do ato do “fazer-se abandonar”
implicado no acting-out, no impulso, onde a questão da relação confusa com o
outro é evocada:
não querer mais ser ajudada, né?(...) acho que nesse momento você
já tá se abandonando! (S5)
Para todos os participantes que apresentaram histórico de abandono real,
ou revelado no funcionamento da síndrome descrita por Guex (1984), há
ressonâncias desse fato nos discursos descritos nesta categoria. Todos os
participantes que falam de um vínculo construído e da importância que esse
profissional nomeado adquiriu são justamente estes cuja questão com o abandono
participou de modo relevante em sua interrupção. É fundamental destacar que o
abandono se deu, em todos esses casos, ligado à interrupção do cuidado por
parte desse profissional, por razões como mudança na estrutura da assistência,
rotatividade de residentes, não se tratando de alta administrativa, mas sim de
transferência de cuidados. Os relatos de suas vivências indicam não ter sido
suportado por tais sujeitos que, segundo o entendimento de Brusset, McDougall,
Jeammet (Brusset, Couvreur & Fine (2003),(75) se não tivessem uma questão
ligada ao desamparo e ao abandono, não padeceriam de um transtorno alimentar.
A fala de S8 dá voz a este grupo: sentiram-se abandonados, então abandonaram.
A vulnerabilidade psíquica revelada, bem como suportada pelo referencial teórico
aqui descrito apontam como fundamental considerar, nestas situações, possíveis
nos serviços, cuidado especial e manejo clínico específico de tais questões
quando de necessárias transferências ou interrupções de cuidados.
Ainda relativo a esta categoria, encontramos achados convergentes aos
nossos no estudo qualitativo de Leavey et al. (2011; p.431)(76). Os autores
82 Resultados e Discussão
verificaram em estudo sobre não-adesão nos TA com amostra de 13 pacientes,
sendo: 7 ingleses brancos e 6 estrangeiros provenientes de etnias e culturas
bastante distintas vivendo em Londres. Os autores descrevem como “ciclo vicioso
do abandono"*, tratando-se de sujeitos que durante a infância se sentiam
rejeitados, não amados e, ao evitar contato com outras pessoas, antecipam/evitam
futuras rejeições. Descrevem em seus achados os TA, para tais sujeitos, como
mecanismo de evitação de sentimentos desagradáveis.
É interessante ressaltar que o termo anglo-saxão “addiction” também pode
significar “adesão” no sentido de “apego”, o que ajudaria a compreender o que
existe como denominador comum em nossas categorias empíricas, bem como o
que McDougall, Brousset e outros teóricos entendem como ligado à função
“aditiva”: suprir um profundo “desamparo”. Leavey descreve-o em termos de um
preenchimento do vazio das relações† (p.12). Assim também o encontramos na
psicodinâmica dos sujeitos que padecem de TA. A fantasia de abandono é
entendida como profundamente ligada ao modo de relação objetal típico das
adicções, inclusive bulímicas, no qual está compreendido o avesso
anoréxico, portanto os quadros de TA. A íntima ligação entre as duas
categorias principais encontradas são esclarecidas à luz da teoria,
permitindo aprofundamento de sua compreensão. As categorias de
conteúdo lidas em seu conjunto revelam ligações entre a psicodinâmica
aditiva encontrada na base do fenômeno do abandono, e o que se encontra
como motivação inconsciente deste ato: a questão do desamparo e seu
correlato, a fantasia de abandono.
Quanto à anorexia e bulimia como quadros correlatos a uma mesma
psicopatologia, vale citar a emblemática fala a seguir, que ilustra a visão de
Brusset da compulsão bulímica, em sua vertente aditiva, como primária e a luta
pelo controle, preponderante em sua psicodinâmica:
* Tradução livre.
† “(…) suggests that she has replaced the vacuum of human relationships with a close intimacy with food—
choosing, buying, and consumption. At some level this connects to a deep ambivalence about overcoming her bingeing, and this suggests she may have been unwilling to pursue treatment to overcome it” (p.431).
Recursos Metodológicos 83
Eu sou extremo: ou faz uma coisa ou não faz nada. E eu não tenho
controle. Então se eu for para comer, eu sei que eu vou comer,
muito. E aí depois vai pesar muito mais eu comer muito do que eu
não comer nada. Na minha cabeça vai pesar bem menos se eu não
comer nada. (...) você não aguenta comer de tudo um pouco. Se você
for compulsivo... ou você come ou você não come mais. (grifos
nossos) (S1)
5.1.3 Categorias secundárias relativas ao abandono
5.1.3.1 "Não gosto que as coisas saiam do meu controle” – abandono como
alívio
(...) antidepressivo... Parece que você não tá mais controlando mais
suas emoções. (...) Eu não gosto que as coisas saiam do meu
controle(...) (S5)
(...) É como se fosse para o abate: nossa, estou aqui de novo (...)
Tortura. Eu vou ficar aqui até quando? (S1)
Eu me sentia meio sufocada também (...) Então pra mim era muita
pressão, foi mais por isso que eu parei também porque eu não gosto
da minha mãe cobrando (...) me ajudava em várias coisas mas
também me oprimia, de certa forma. E eu sei que... isso... faz mal
pra mim, não querer ajuda, ter abandonado... foi bom mas também
me oprimiu um pouco. (S2)
Manifestam pela palavra sufocar, oprimir o alívio encontrado quando no
abandono se libertam da invasão do olhar uma vez que este é vivenciado como
controle do outro que aumenta pelo fato de estarem em tratamento. Por vezes,
resultando no ato do abandono que visa reverter o controle vivenciado como
perdido; este mecanismo revela sutilezas dos conflitos psicológicos conhecidos
nos TA como dificuldades interpessoais. Trata-se de uma resposta reativa, uma
defesa do sujeito à invasão vivida, sentida como perda de controle. Daí o
entendimento do TA como um “cavalo de Tróia” para defender o Eu da vivência
esmagadora da relação com o Outro. Para McDougall (2003)(50), isso se daria em
função de não terem vivenciado uma separação com internalização possível dos
objetos perdidos, à semelhança dos adictos a substâncias:
84 Resultados e Discussão
Se você está em tratamento, então você não tem mais privacidade
para fazer nada, você é vigiada toda hora (...) a equipe fala: sua filha
emagreceu (...) Aí começa a ter mais perseguição. (...) Coisas de
cobrança, crítica... em vez de ajudar, só pioram. (S1)
Eu não queria emagrecer. O que eu não queria era ficar gorda. Eu
achava que as pessoas atrapalhavam querendo... cuidar disso. (S3)
Pra mim é muito importante ter o controle da situação. (S6)
Na medida em que o olhar, a vigilância, a invasão são sentidos como
aumentados e associados ao tratamento, ao olhar da família e da equipe, o ato do
abandono gera alívio como se restituísse o controle, sentido como perdido em
certas vivências do tratamento.
É discutido na literatura* o risco de piora, especialmente nas fases
anoréxicas, em abordagens muito estritas. O tratamento é vivido como ameaça de
retirar-lhes o sintoma sem o qual não podem ver-se; seja na visão psicodinâmica,
seja na análise de Leavey et al. (2011)(76) supracitada, ou na de Eivors et al.
(2003)(54) sobre “o controle”, trata-se de defender-se da relação interpessoal
sempre vivenciada com dificuldades a partir da angústia do desamparo e iminente
abandono (caso S2). O olhar da equipe, colocado na série dos olhares materno e
familiar, é vivenciado como maciçamente invasivo. Assim, o tratamento, também
encarnado em uma relação interpessoal com a equipe – esta colocada no lugar de
outro perseguidor, controlador –, dispara a luta pelo controle, aumentando a
vivência de angústia com o olhar sobre o corpo, os comportamentos e os
alimentos “controlados”.
O olhar excessivo sobre os corpos e comportamentos já é realizado
incessantemente por elas mesmas, no funcionamento autoexigente e na visão
distorcida vivenciada na relação de “escravidão”. Esta tende a ser deslocada para
a relação com a equipe. Eivors et al. (2003)(54) discutem o problema das
abordagens mais estruturadas como tendência a reforçar os sintomas (ex.: foco no
ganho de peso, normalização da dieta e das formas corporais) e que o controle é
* O que se encontra referido e discutido detalhadamente no Artigo 1.
Recursos Metodológicos 85
central no fenômeno do abandono do tratamento em internação na anorexia
restritiva, em função de aumentar a sensação de perda de controle e o sentimento
de passividade e vulnerabilidade, contra o qual lutam tendo o sintoma alimentar
como defesa. Seus achados apontam para a tendência iatrogênica do reforço dos
sintomas. O estudo randomizado recentemente publicado encontrou significativo
aumento da adesão ao comparar terapia cognitivo-comportamental com
abordagem que retira o foco do sintoma alimentar e investe na qualidade de vida e
no suporte emocional(77). O que também é apontado Dale Grave et al. (1993)(78),
Mahon (2000)(79) e Vandereycken & Vansteenkiste (2009)(80).
5.1.3.2 “Anorexia é uma coisa para a vida inteira” – apego/adesão ao
sintoma
Este participante descreve o abandono, significando-o na descrição abaixo:
“Quando você não quer ficar boa(...) Fica procurando um monte de
desculpa (...) Quando você percebe que pode melhorar, e você não
quer, ou tem medo de melhorar. (...) Eu morro de medo! (P6)
Ressurge a dimensão do abandono como alívio, porém revelando sua ligação
ao sintoma:
“Não consigo me ver comer e não vomitar. Parece que vai me
sufocar aquilo, vai me matar se eu comer e não pôr para fora. Sei lá.
Eu acho que por isso que eu abandonei sempre.” (P6)
Observa-se uma ‘naturalização’ dos sintomas alimentares, o que chamam de
“acostumar-se” como algo que passa a compor a identidade; conscientes da
inversão do parâmetro de normalidade se revela a impossibilidade de verem-se
sem tais sintomas.
(...) me acostumei com isso. Eu encaro como um estilo de vida, que
eu vou morrer com isso. (...) não consigo me ver não vomitando. Eu
olho as pessoas que comem normalmente, eu acho que elas que são
diferentes de mim, e que eu sou normal... É muito louco isso, mas é a
sensação que eu tenho! (S6)
86 Resultados e Discussão
No mesmo sentido explicam o abandono apontando que ante a naturalização
e resignação, a ideia de tratamento perde o sentido:
Pra mim, anorexia não tem cura. Isso é uma coisa para a vida inteira.
(S5)
(...) eu não sei se isso tem cura... pra mim isso não tem cura (...) meu
diretor falou: ‘ela pode ser mirradinha, magrinha, mas ela é uma
gigante naquilo que faz!’ (...) eu fiquei pensando, a anorexia ainda tá
presente ali! (S7)
(...) às vezes eu acho que é uma coisa que vai ser pra vida toda, que
nunca vai ter fim... (S4)
Esse núcleo de sentido guarda relação com o abandono como alívio e,
ademais, na característica do consentir com sua permanência, está em
consonância com a posição de “aliada ao vício”. Tal ligação com a manutenção do
sintoma, sem exceção nos discursos, reflete certa resignação quanto à anorexia
ou bulimia serem algo “para a vida inteira”, o que termina por concorrer com o
tratamento, vencendo a luta pelo controle, por isso o alívio em conservá-lo; tal
apego pode apontar para a psicodinâmica como “protetiva” do Eu, o que, segundo
nosso referencial teórico adotado, é válido para todas as relações ao objeto droga,
seja ele alimentar ou não. Estudos exploram o que encontramos nesta categoria
como “relutância para recuperação”(81). Optamos por descrever tal relação com o
sintoma alimentar como “apego”, pois o que aí se passa é da mesma ordem da
relação, “aditiva”, com o objeto comida. Tal interpretação, à luz dos fundamentos
teóricos, apontam para as três categorias secundárias como barreiras ligadas à
“escravidão ao vício” como mecanismo psicodinâmico subjacente, marcado pela
ambivalência da relação com o tratamento e melhora:
(...) às vezes a gente quer, às vezes a gente não quer (...) eu acho
que é uma coisa que vai ser pra vida toda, que nunca vai ter fim...
porque... posso parar hoje e ficar bem... e daqui a um ano, dois, voltar
a pensar assim de novo! (P4)
Leavey (2011, p.431)(76) também encontra nos voluntários de seu estudo
profunda ambivalência na indisposição para prosseguir o tratamento, destacando
Recursos Metodológicos 87
em suas conclusões o TA como “estratégia de enfrentamento”; conforme
apontado, discute a ambivalência no mesmo sentido. A literatura psicodinâmica
explica a função defensiva e protetiva do Eu das condutas alimentares, alertando
para sua importância na vida desses sujeitos, e a reação depressiva, de violência
ou de ruptura que sua retirada pode acarretar. Os achados empíricos de Leavey et
al. (2011)(76) e Nordbø et al. (2012)(81) são convergentes aos nossos, quanto ao
que o último autor chama de “relutância na recuperação”. A revisão de literatura
de Espíndola & Blay (2009)(82) localiza, em diversos estudos, fatores limitantes na
recuperação: medo de mudança, ambivalência e falta de motivação, dentre outros.
A relação com o tratamento aparece sofrendo a interferência do caráter
“permanente” da AN/BN, afastando-a da representação de doença a ser tratada.
No discurso deste sujeito, similar ao que se passa com o alcoolista, ou adicto, se
escravo do vício, o portador de TA, o será para sempre*. Os participantes
descrevem certa descrença que surge quando o tratamento já alcançou alguma
melhora e os conduz aos limites de não mais apresentarem os sintomas. Nossos
participantes revelaram-se frente a impasses neste momento, uma vez que dão
por suficientes as melhoras encontradas e recuam; ao ver-se no limite de
abandonar o “vício”, acabam por abandonar o tratamento.
5.1.3.3 “Eu me dei alta” – melhora suficiente e cura
Eu pensava que fazendo um tratamento eu iria sair de lá curada. E eu
vi que não é bem assim, é um tratamento que é pra vida toda. Não
tem como garantir a cura (S4).
Explica seu abandono com a melhora que lhe pareceu suficiente:
(...) eu tava bem! Porque eu pensei assim: se eu estou conseguindo
me controlar, vou ficar sem remédio, que é melhor né? E no começo
deu certo! (S4)
Abandono e tratamento vão se revelando numa relação de direito e avesso.
Os participantes transmitem viver, a certa altura do tratamento, um impasse: se
* Vale destacar que esta visão traduz representação de um voluntário da pesquisa, e não da pesquisadora.
88 Resultados e Discussão
não se banca “o tratamento para a vida toda” (S4), justifica-se o abandono pela
“Anorexia para a vida inteira”. Numa “luta” como dizem, na qual vence o mestre
AN/BN que as torna escravas desse vício.
Porém, esta categoria revela um lado não esperado por nosso estudo, qual
seja, o abandono não como correlato à psicopatologia, ou ao apego ao sintoma,
mas como melhora. Diferentes graus de melhora são suportados frente a tais
impasses, e considerados “suficientes”:
eu achava que não precisava mais ir, e para mim estava bom. (P1)
(...) porque eu achava que eu já tava bem, que ia dar pra levar (...)
porque eu já tava há um bom tempo sem vomitar, eu já tava sem ter
compulsão... eu tava controladinha assim. (...) Aí achei que tava bem
demais! (P5) (grifos nossos)
Encontramos modo de representar as nuances pelas quais tal significado se
apresenta através de um continuum de graus de melhora, suficientes e distintos
para cada participante do estudo, na medida do quanto ele quer conservar, ou não
pode abrir mão de seus sintomas-estratégia, medida esta em que se interpõe a
“Anorexia para a vida inteira”, por exemplo, os resquícios do que se quer
conservar da relação “ao vício”. Relatam terem se dado conta que recairiam
somente depois, e que a melhora alcançada naquele momento era considerada
satisfatória, revelando consentimento com que algo permaneça, por outro lado
revelando seus limites, quanto até que ponto tratar-se, uma vez que “a anorexia
não tem cura”. No extremo desse continuum, há um participante que significa seu
abandono como cura: “Eu me dei alta... em termos médicos seria isso” (S3) -
relatando nunca ter recaído, seguindo curada. (Vide descrição dos participantes,
Anexo VI).
O significado ligado à melhora ilumina outra faceta: os ganhos psicossociais
como “namorar”, “voltar a estudar”, “começar a trabalhar”, que passam a concorrer
com o tratamento, mas reafirmam, a posteriori, refletindo por ocasião das
entrevistas, tratar-se efetivamente de abandono, uma vez que os fatores externos
seriam conciliáveis; como explicita S5, para ela, funcionaram “como uma
Recursos Metodológicos 89
desculpa”; o desgaste e desmotivação que relatam em certa altura do tratamento,
não sendo trabalhadas motivações próprias a esta etapa, resultaram na
preferência por não dar continuidade:
O primeiro, o serviço, né, que eu era obrigada a folgar durante a
semana, toda 2ª.f pra fazer o acompanhamento... (S7)
O mesmo participante que revelou acima, como primeiro motivo, seu novo
trabalho descreve um curioso mecanismo para sustentar sua melhora já descrita
como importante e suficiente, encontrando no abandono a solução de
compromisso para sustentá-la*, na medida em que revela a permanência da
doença e, ao mesmo tempo, alguma melhora (suficiente) obtida:
Em vez de melhorar, cada vez que eu ia lá, eu queria mostrar pra elas
que eu era melhor que elas... que eu estava mais magra do que elas
(...) Então me perguntava: ‘Qual é a minha? Qual é o meu objetivo de
vir fazer esse tratamento aqui no ambulatório?’ Era melhorar, sair
dessa vida... ficar cada vez melhor. Só que (...) vendo aquela
situação, aquele desfile de magreza, eu me sentia obrigada a não
melhorar pra mostrar pra elas que eu era melhor que elas (...) cheguei
a pensar assim: ‘Não, aqui eu não vou melhorar’... Então acho que
esse foi um dos motivos de eu ter abandonado. (S7)
Os estudos quantitativos de Swan-Kremeier et al. (2005)(83) e Van Strien et
al. (1992)(84) negam relação de fatores externos com o abandono do tratamento
ambulatorial nos TA, como a distância viajada, exceto ser estudante ou arrumar
emprego. Por outro lado, Leavey et al. (2011)(76) ressaltam que, no início, os
participantes explicam sua ruptura devido a problemas de ordem prática, razões
do abandono. Neste estudo, os autores apontam que os motivos externos
inicialmente revelados dão lugar a profundos problemas psicossociais e à
ambivalência em perder uma relação com a comida que "é tão debilitada quando
confortante†”. Encontramos nos casos do abandono como “melhora suficiente”,
ilustrado pela fala:
* Em função disso, sugere que os pacientes que atingiram certas etapas não sejam tratados juntos aos muito
sintomáticos, pelo efeito de contaminação e recaída, adiante mais discutido. † Tradução livre.
90 Resultados e Discussão
Quando eu sentia que eu ia melhorar, ficava com o peso na
consciência e voltava tudo de novo. Acho que foi por isso que eu
abandonei. (S6)
O significado do abandono como “melhora” aponta para a diferença entre
as expectativas do paciente e da equipe. Estudos questionam o caráter
exclusivamente negativo atribuído ao abandono, encontrando, por exemplo,
melhores escores em escalas de autoestima, depressão, autoconfiança, como
discutido por nossa revisão de literatura(85-86). Schnicker et al. (2013; p.812)(87)
encontram maior aproveitamento dos efeitos da terapia cognitiva comportamental
entre pacientes anoréxicas que abandonaram do que entre as que completaram o
tratamento.
Também aleatoriamente, verificou-se certa homogeneidade entre os
diagnósticos e seus subtipos no grupo de TA, sendo interessante observar a
presença dos quadros atípicos/sem outra especificação (três participantes), bem
como os Transtornos de Personalidade (três participantes; coincidindo ambas as
comorbidades em um deles*). Podemos dizer que tais características eram
esperadas, pois ambos os grupos, segundo a literatura, constituem preocupação
quanto aos resultados do tratamento, são mais propensos ao abandono e
indicados como alvo de novas pesquisas: seja os quadros atípicos(88) seja os
TP(89-91).
Ressalvando a não generalização, e possíveis vieses da amostra
intencional e reduzida, porém, com possível valor clínico e heurístico, vale notar
que os participantes que interromperam mais precocemente, isto é, antes de
maiores resultados do tratamento, quando comparados aos demais, revelam
menor distanciamento do funcionamento mental e discursivo anoréxico-bulímico,
por assim dizer, sendo nossa hipótese que isto se dá na medida em que se
encontram mais capturados pela lógica das condutas do ato. Curiosamente
observou-se coincidir com aqueles que apresentam quadros atípicos de TA e/ou
* A fim de preservar o sigilo e cuidados éticos com os sujeitos, optamos por não designar os sujeitos e
respectivos diagnósticos, excluindo tal informação da versão para publicação.
Recursos Metodológicos 91
TP, claro, porém com variações entre si, dado que reitera a necessidade de mais
pesquisas a respeito. Santonastaso (2009)(88) conclui que quadros atípicos, ao
contrário do que se pensa, não são formas mais brandas e sim mais graves de
TA, e, como também ocorre com os TP, apontam grande lacuna de conhecimento
para abordagem de tratamento correspondente, o que é verificado também em
nossa amostra, quando se compara à condição de rearranjo psicossocial de
outros participantes após suas interrupções frente à dos participantes com tais
características clínicas.
A literatura aponta serem mais propensos ao abandono pacientes com as
seguintes características: filhos de pais separados; família desestruturada;
transtorno de personalidade ou subtipo purgativo (ver Artigo 1); a caracterização
de nossa amostra mostrou-se compatível com tais descrições, embora os
significados do abandono encontrados extrapolem tais relações.
5.2 Categorias relativas ao tratamento
As duas categorias encontradas colateralmente, relativas aos significados
do tratamento apontam reflexões úteis enquanto implicações clínicas, face ao que
refletem sobre o abandono:
5.2.1 “No começo eu não aceitava como doença” – negação inicial e superação
A negação da doença é velha conhecida nos TA. Porém, no presente
estudo, são categorias construídas como significados do tratamento, e não
categorias do abandono em si, na medida em que esses participantes, sendo
casos de abandonos médios ou tardios, não tiveram suas interrupções
determinadas por essa barreira. No caso de nossa amostra, podemos considerar
que inicialmente algo se deu como êxito, se a barreira inicial da negação não
desembocou no abandono/não adesão:
92 Resultados e Discussão
O diagnóstico da equipe é importante, mas só que o diagnóstico que
eu digo é quando a gente entende que tá doente. (S3)
Tendo passado pelo tratamento, cada um à sua maneira, obtiveram alguma distância
desse estado, podendo atribuir valores a ele, desde outra perspectiva: a de quem
atravessou a “negação inicial”, assim descrita invariavelmente. Reconhecem e
afirmam seu sofrimento e dão a ver o outro lado da moeda na demanda, a qual é
assumida como negada e superada. Assim, pode ser escutada como um
“tratamento” a ser dado, não direta e inicialmente à relação com a comida e o peso,
mas ao que se encontra, segundo seus relatos, em sua origem, naquilo que esse
sintoma, ao passar para o terreno somático e do ato, desloca:
Tem um problema: pra gente, a gente nunca é doente(...) sempre
acha que o outro é que está precisando(...) eu não era doente. (S1)
(...) quando eu comecei a fazer o tratamento, pra mim, eu não tava
doente. Pra mim era normal não comer, não sentir fome (...) a parte
mais difícil é o começo, porque ninguém nunca admite. (S2)
(...) eu não quis aceitar. Como toda pessoa que tem no começo não
aceita. Acha que só tá fazendo regime, só quer emagrecer, que aquilo
vai ser melhor pra ela; ela vai ser tipo uma modelo... Ela fica à mercê
da própria imagem... (S7)
As falas seguintes apontam a particularidade da negação da doença
apoiada na imagem funcionando como mestre, como o que rege; ao mesmo
tempo, utilizada para distorcer a realidade, a todo custo, a serviço do que não se
“queria aceitar”:
a bulimia era considerada uma doença, mas eu não estava doente
(...) eu não precisava de ajuda. (...) depois com a anorexia eu senti
isso no meu corpo, aí me caiu a ficha! (S3)
A gente tem que primeiro aceitar que tem a doença pra depois
mostrar pros outros (...). Eu sei que eu tenho (bulimia) mas eu posso
fingir pra todo mundo que eu não tenho, ninguém vai desconfiar (...)
Eu não queria aceitar que eu tinha, embora soubesse de tudo(...)
(S4).
Recursos Metodológicos 93
5.2.2 “Um tratamento dentro do tratamento” – lugar dado à palavra
Nomeado por um participante “um tratamento dentro do tratamento”, esse
enunciado condensa o sentido destacado por todas as sugestões: a importância
dos espaços de fala e escuta para além das questões de dieta e peso; dar um
“tratamento ao tratamento” é construí-lo a partir de cada caso, e reclamam por
participarem, seja em suas negociações, interrogados pelo sentido de suas faltas,
seja na construção do laço com a equipe. Falam de um tratamento que os acolha,
dê lugar a sua avaliação do tratamento, individualizado e preservado da dinâmica
familiar, incluindo escuta incondicional que suspenda todo tipo de julgamento:
Que fosse mais individualizado(...) Conversar, poder expor... (S5)
Trabalhar um pouco mais isso de ouvir sugestões (...) saber por que a
pessoa não tá querendo ficar (...) por que eu parava (faltava), o que
eu tava achando do tratamento... trabalhar o tratamento dentro do
tratamento (grifos nossos). (...) teria que ser individual essa parte
(S3).
Os trechos abaixo recortam o que, de suas vivências, aponta para a
importância de tomar cada caso em sua particularidade:
Prestar mais atenção na individualidade de cada um. Se aquele
tratamento é o mais indicado mesmo para aquela pessoa... Não é só
a anorexia e a bulimia, é uma história de vida (...) são pessoas
extremamente diferentes... o que dá certo pra maioria, talvez não dê
certo pra outras (S3)
Tratar cada um de forma individual, eu acho que seria o mais
adequado. (S6)
Temem o efeito de identificação no grupo, que pode empurrar para a
recaída, efeito também conhecido nas internações para álcool e drogas, para
evitar a “contaminação”, a recaída e o abandono* entre quem já se separou um
pouco do “vício”:
* Impasse relatado por S7 como um dos motivos de seu abandono.
94 Resultados e Discussão
Atender em horário diferenciado... deixar as pessoas que já estão
bem, separadas (...) (S7)
Destacam-se, nesse sentido: a importância da fala e do suporte emocional
e a relevância de priorizar os aspectos psíquicos no tratamento:
Quem tem dificuldade (de falar), tem mais vontade (de falar) do que
qualquer outra pessoa (S1)
Em grupo, você não fala tudo, assim, abertamente (...) só com a
psiquiatra, aí já esclarece, tá tudo limpo, eu acho que é a parte mais
importante. (S2)
Conversar assim me ajudou bastante(...) A medicação, ela
complementa só... (S4)
Eu gostava de conversar, tirar minhas dúvidas e saber que eu não
estava sozinha na minha luta. Isso foi bom! (S7)
O significado atribuído por S7 trajetória no tratamento, “luta”, aponta para a
importância do apoio emocional, como quem sai da reivindicação narcísica dos
“caprichos” – das jovens descritas por Lasègue (1999) – e, atravessada a barreira
inicial da negação, demanda a parceria do outro, sinal do rechaço desfeito – para
não atravessar a luta solitariamente. Destacam a importância de encontrar na
equipe, à diferença da difícil relação familiar, a escuta incondicional, sem
julgamentos, e o amparo emocional:
Porque em casa (...) eu não tinha coragem de chegar neles e falar. E
com profissional, você sabe que é diferente, pode chegar e falar, que
ele vai te ouvir independente! (S5)
Eu falei o que eu quis falar e ela não ficou me enchendo de
perguntas, nem me falou um monte de coisa que eu tinha fazer ou
pensar. Ela me ouviu! (...) E eu me senti segura pelo fato de não me
sentir criticada por ela (...) (S6)
falar de outras coisas não relacionadas à alimentação. (...) isso mexe
muito, deixa a gente muito frustrada, deixa a gente muito brava. (...)
Falar de outras coisas, você fala numa boa, sem vergonha, sem nada
Recursos Metodológicos 95
(...) podem te fazer bem se você estiver triste, porque aí você escuta
uma outra opinião, você escuta alguém te levantar. (S1)
conversava bastante com a Dra. X, eu me sentia mais leve (grifos
nossos) por não precisar ficar só dentro, só comigo (...) (S2).
Vale destacar o termo “leve”, utilizado pelo participante para descrever
como efeito de sentir-se amparada e poder dividir o peso subjetivo que é
vivenciado distorcidamente como excessivo no corpo. Consoante com o estudo
de Eivors et al. (2003)(54), a expectativa dos pacientes é muito mais “insight e
compreensão”, criticando o foco no sintoma e no controle (diário alimentar,
aconselhamento nutricional e restauração do peso) por elas bem conhecidos.
Compreendidos à luz dos significados do abandono, podemos entender a partir
de nosso estudo que: os sujeitos não consentem em eliminá-los enquanto
resultarem em solução de compromisso de conflitos mais profundos, perdendo
sentido o tratamento, mostrando-se resignadas à anorexia sem cura, para a vida
inteira, “abandonando para não parar de vomitar”.
Achados corroboram a literatura quanto ao risco de iatrogenia ao reforçar a
distorção patológica que hipervaloriza dieta, peso e imagem corporal. As
entrevistas em profundidade revelam necessidade de encontrar apoio para fazer o
caminho contrário: “desinvestir” tais objetos excessivamente investidos pelo
deslocamento.
Apoiados na psicanálise e nos autores nos quais se ancora a presente
discussão, a direção do tratamento possível implica que a dimensão do simbólico
que é suprimida para tais sujeitos seja aberta e, principalmente, restauradas as
condições para fazê-lo mediante o “laço”, no sentido do lugar e do suporte que a
aliança terapêutica provê: sob a condição de não se verem “sozinhas” em suas
“lutas” (S7). Quando assim se veem, “saem fora”, no sentido que o termo dropout
comporta: “saio fora”, diz S2, pois, sem o laço que lhes dá lugar, veem-se
literalmente “desamparadas”, sem amparo, sem guarida. Não sendo possível aos
sujeitos do desamparo a condição de solidão, resta-lhes “aliar-se” ao vício, relação
96 Resultados e Discussão
na qual não estão sozinhos, dando à anorexia o estatuto de uma presença: “a
anorexia ainda tá presente ali” (S7).
(...) não é uma questão só de peso (...) o mais importante é tratar a
cabeça mesmo, a mente. vômito é só uma consequência (...) a maior
doença da gente é a cabeça(...) a mental é a pior que tem. Destrói a
gente e quem está perto*. Isso é o mais pesado no TA (S6)
Atrás de algum regime sempre tem alguma coisa a mais, que faz a
pessoa entrar em depressão, ou num regime (...) uma fuga: anorexia
é tipo uma válvula de escape, você acaba vivendo em função daquilo
pra tentar fugir dos seus problemas. (S7)
Quando a gente vai lá a gente é triste, ou a gente é insegura ou a
gente tem medo.” (S2)
Seria mais fácil (tratar) se acontecesse assim: falar, não daquilo que
deixa a gente brava, frustrada, mas falar daquilo que a gente queria
falar (...) a gente está triste? Eu queria falar por que é que eu estou
triste (S1)
Enquanto (...) não tirar da cabeça isso, não adianta tomar
medicamento (...) você vai ficar calma, ficar zen, mas não vai resolver
o problema! O problema ali é outro. (S4)
Com distintas distâncias obtidas do estado inicial relatado e, claramente,
desde as melhoras conquistadas, mantidas ou não, acreditam que a raiz do
problema alimentar é de outra ordem. Apesar do alívio manifesto por alguns com a
interrupção, todos avaliam positivamente o tratamento, ainda que o tenham
deixado, reconhecendo melhoras:
Reconhecer quando estou ansiosa e desconto na comida... Tipo
saber diferenciar essas coisas que antes eu não tinha o controle (...)
Só agia. Não pensava muito. Agora... já... pensa... foi essencial pra
eu conseguir sair da doença, foi muito importante. (...) O tratamento
me fez me enxergar diferente do que eu me via, e isso foi importante.
(S5)
* Fala consoante a discurso comum entre alcoolistas e adictos em relação a seus familiares.
Recursos Metodológicos 97
Tal fala mostra que o tratamento pode produzir mudanças subjetivas
importantes que interferem no mecanismo antes imediato do ato: “só agia. Não
pensava muito”, passando a fazer mais uso de recursos simbólicos, na reflexão –
dialetizar é um movimento que implica a alteridade, a dimensão do outro
introjetada; diferença que que se nota no discurso deste sujeito: “agora já pensa” –
o que passa a ter efeitos de algum intervalo que se coloca entre a angústia
(ansiedade) e o ato (“desconto na comida”, “compulsão”), destacando a
transformação paralela na autoimagem. Abaixo, segue rica passagem
demonstrando o deslocamento à comida como um objeto que era acompanhado
do rechaço ao outro, do retraimento do sujeito na relação interpessoal, e o
reconhecimento desse mecanismo que se desfez, em seu processo de tratamento
e “cura”, segundo o participante:
Quem não come, é um sinal de que a vida não vai muito bem, que
não tá a fim de viver muito. E eu retomei essa vontade de viver. (...)
primeiro eu retomei a vontade de viver, e depois eu comecei a comer
(...) Voltar a comer como uma consequência! (...) eu comecei a
retomar esse prazer na comida em todos os sentidos: não só de
colocar a comida na boca e sentir o gosto, mas também no convívio
social. (S3)
“Primeiro retomar a vontade de viver” diz da condição de a libido se desligar
daquele objeto onde foi investida como droga, vício, para que, passando a ter
outra função, o sujeito a retome não pela via da orientação nutricional – que
aparece como não suportada por elas enquanto o alimento tiver este caráter –
mas sim pela via do prazer, que implica outro circuito por onde passa essa libido,
ao que tudo indica, no caso de S3, não mais “escrava do vício”.
Mais além do fato de que todo paciente constitui sempre um “abandono” em
potencial, os achados sugerem sua particularidade no caso dos TA devido aos
sempre presentes conflitos psicológicos no campo interpessoal. De acordo com os
achados de Leavey et al. (2011; p.438)(76), consoantes com Young, Klosko e
Weishaar (2003)(92) experiências precoces de abuso, receio e não confiança,
abandono e privação afetam as pessoas em todos os aspectos de suas vidas,
98 Resultados e Discussão
inclusive o modo como se relacionam com os outros.* O que encontramos em
nossas entrevistas referenda tal ideia, assim como os estudos sobre apego e
aliança terapêutica nos TA de Ringer & Crittenden (2007)(93) e Tereno et al.
(2008)(94), que trazem para o plano da discussão científica atual, inclusive por
métodos quantitativos, a confirmação daquilo que a revisão da literatura aponta,
qual seja, o impacto das relações familiares precoces para pacientes com TA,
através do conceito de “apego” e os correlativos sentimentos de “desamparo e
abandono”†. Em nossa população verifica-se(90, 95-97): a relação entre “desestrutura
familiar” e abandono do tratamento, reiterando, não somente o conhecido dado da
clínica, referente à relação importante entre quadros alimentares e questões
familiares. Também certa estabilidade atribuída aos que vivenciam conflitos
relativos à estrutura familiar é relacionada às interrupções precoces de tratamento.
Observa-se que o participante que constitui exceção quanto à questão com
estrutura familiar (S5), exceção na amostra também pela maior estabilidade em
conjugal e ocupacional.
Por fim, as entrevistas revelam que há um sofrimento envolvido, para além
da egossintonia. Isso é o que nos autoriza a propor tratamento; por outro lado,
pondera-se que essa oferta, ou manejo, para ajudar alguém que negue o
sofrimento a chegar a um tratamento tampouco deva ultrapassar a barreira do
respeito aos limites do outro. Recordem-se as evidências de que os tratamentos
mais coercitivos pioram os sintomas na AN(54); por esta razão entendemos que o
tratamento não deve ser standard, padrão para todos os sujeitos. De acordo com
* No original: “Early experiences of mistrust, abuse, abandonment, and emotional deprivation affect people in
every aspect of their lives including the way they relate to others (Young, Klosko, & Weishaar, 2003). This also highlights the need for training, supervision, and support to help staff identify complex needs of vulnerable individuals quite early on and respond accordingly.” (Leavey, 2011; p.438).
† “Their strategies to cope with stressful situations may interfere with the cognitive processing of
distress signals and, in some cases, when the attachment system generates feelings of despair, abandonment or loss of control, may lead to symptomatic disordered behaviour” (George, West, & Pettem, 1999).
Recursos Metodológicos 99
Ringer & Crittenden (2007)(93), Tereno et al (2007)* e o recente estudo de Touyz et
al. (2013)(77), recomenda-se que ele não tenha por foco as questões alimentares,
mas sim a qualidade de vida (74) construção de laços (90) através dos quais
vivências emocionais suportadas possam levar à construção de novas
significações e identidades. Com as quais, a nosso ver, podem talvez até vir a
abandonar o tratamento também, mas com maiores chances de abandonar
paralelamente a estratégia de enfrentamento da angústia da qual se reveste o
objeto “alimento”. Vemos em nossa amostra a diversidade de significados
possíveis do abandono e as saídas dos sujeitos que comporta: da a “escravidão
ao vício, compulsivamente” e “acting-out da fantasia de abandono” – polos do
abandono enquanto sintomático, negativo, até “da melhora suficiente à cura”, polo
do abandono como ligado a resultados do tratamento, que guarda uma face
positiva.
5.3 Da “aliança ao vício” à aliança terapêutica como laço
(...) a psicóloga pra pessoa poder esclarecer, poder se abrir...
psiquiatra pra poder orientar, medicar, intervir... e a nutricionista
também pra pessoa interagir e pra saber orientar a alimentação...
acho que tem que ter esses três sim, juntos, aliados... (grifo nosso)
(S7)
O mesmo participante que utiliza o termo “aliado” para dizer da relação ao
vício, o utiliza em sua descrição do que seja um tratamento interdisciplinar bem
vindo, ou um tratamento possível para tais participantes. Ilustra o que
pretendemos apontar: uma “passagem ao tratamento” que os dados indicam como
necessária, bem como o papel da equipe em sustentá-la, como desenvolvido a
seguir.
* “The patients, as their family members, should be supported to engage in a new and corrective
emotional relationship, which may allow them to explore distinct interpersonal sceneries and to build new meanings and secure bonds.” (Soares, 2000 apud Tereno et al, 2007).
100 Resultados e Discussão
A importância da construção do laço que caracteriza a relação terapêutica
se dá, mais ainda no caso dos transtornos, por assim dizer, alimentares-aditivos,
em função de que o deslocamento no objeto comida cumpre essa função de
“apoio”; portanto, a dimensão de escravidão ao vício remete a tal necessidade,
literalmente incorporada – que passa para o corpo – de um objeto vital ao corpo,
porém transformado em sua função: o alimento, cuja transformação converte em
escravos os sujeitos a ele “aliados”.
Se o tratamento não auxiliar os pacientes a construir sua condição
psicológica de abandonar a função que isso cumpre, e ajudá-los a passar da
condição psicológica de “aliado ao vício” à possibilidade de contar com a “aliança”
terapêutica, abandonando a “adesão ao sintoma” em favor de outra, o que termina
por ser abandonado, é o tratamento: “abandonei para não parar de vomitar”.
Assim, revela-se como condição sine qua non que se construa esse apoio
na relação com o tratamento, através do qual o sujeito poderá ser amparado (em
seu desamparo fundamental) e, quem sabe, escolher perceber tal laço como seu
“aliado”, no sentido de uma parceria que o ajude a sustentar-se e poder fazer a
escolha de abandonar o “apoio” do vício, a “válvula de escape da anorexia” (S7),
caso encontre um tratamento no vínculo oferecido como apoio (holding). Faz-se
necessário conquistar, na construção da relação transferencial, a equipe como
aliada ao laço construído com as pacientes para que encontrem no apoio
condições para abandonar, talvez, o apoio que sintomaticamente encontram no
TA, com vistas a saídas menos mortíferas.
- 101 -
6. CONSIDERAÇÕES
Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata
entre a aparência e a essência das coisas.
Karl Marx
- 102 -
Considerações 103
6.1 Implicações clínicas
Os achados revelam relação entre aspectos psicológicos próprios aos TA,
do ponto de vista de sua psicodinâmica, e o abandono do tratamento. Destaca-se
a importância da dimensão aditiva e sua relação encontrada com o controle, o
aspecto compulsivo e a naturalização da permanência do sintoma alimentar ao
longo da vida, conclusão que deve ser investigada e aprofundada em estudos
futuros, por diferentes métodos. Visando os significados revelados, dentro de suas
limitações, o estudo conserva a expectativa de contribuir com o desenvolvimento
de estratégias clínicas para melhorar adesão e permanência, elencadas abaixo e
a seguir comentadas:
1. Entrevista psicológica na triagem;
2. Tratamento estruturado por fases;
3. Construção do laço que caracteriza a aliança terapêutica como meta
(discreta) do tratamento na primeira fase;
4. Flexibilidade e disponibilidade da equipe para manejo clínico;
5. Inclusão de estratégias de tratamento que considerem a dinâmica
aditiva.
Dentre os vários núcleos de sentido emergentes do rico material coletado,
apresentamos os que encontraram maior consistência dentro do alcance do
método. Reflexões levadas a termo ao longo da pesquisa, teórica e de campo,
apontam ser válido considerar:
1. Nenhuma adesão deve ser esperada pela equipe - Todo paciente
constitui um abandono em potencial. Nunca estão garantidas as condições de sua
adesão e permanência. Por mais que seus motivos para o tratamento constituam
sofrimento, ou preocupação de ordem familiar, social ou de saúde pública, em
última instância está o direito e liberdade como indivíduo, que implicam sua
decisão e escolha por tratar-se ou não. Alguém considerado paciente com adesão,
104 Considerações
no instante seguinte, pode ser tornar-se um abandono, a depender de uma série
de fatores. Um deles, para o que nosso estudo também aponta, é a tendência
primária, no caso dos TA, a não permanecer em tratamento, o que também é
concluído por Leavey et al. (2011)(76). O autor recomenda que as equipes estejam
advertidas dessa tendência. Sugerimos, como estratégia nesse sentido, prontidão
da equipe para desenvolver ferramentas auxiliares na identificação das
vulnerabilidades dos pacientes, como as seguintes:
a) inclusão de entrevista psicológica no processo de triagem –
localizar a conjuntura sócio-familiar e psicodinâmica do paciente e da
família quando do desencadeamento do quadro, a fim de iluminar o
cálculo do tratamento a ser proposto e levantar vulnerabilidades;
b) elaborar redação na triagem – convidar o paciente a escrever sobre
expectativas e motivos, próprios ou alheios, de sua presença. Tal
recurso, barato e prático, facilitaria a expressão dessas pessoas que
revelaram dificuldades em expressar-se verbalmente na situação
interpessoal. Podem fornecer elementos importantes mais facilmente
pela escrita, especialmente adolescentes. Material que sempre poderá
ser consultado e discutido em equipe ou com o paciente, com a riqueza
da própria articulação discursiva feita no momento da chegada, que não
é qualquer. Outra vantagem dessa ferramenta, se bem utilizada, é
favorecer a implicação do paciente no tratamento, reorientando sua
abordagem. Nos estudos qualitativos sobre abandono em TA(98-99),
inclusive no nosso, pacientes reclamam por serem mais escutados em
oportunidades de alinhar suas expectativas às da equipe*, sentem-se
valorizados e diminuem a postura defensiva e de luta pelo controle,
quando suas opiniões são consultadas, o que pode ser interessante
manejo frente ao delicado mecanismo de contra-controle encontrado e
reconhecido nos pacientes com TA.
* Especialmente as falas que originaram a categoria “um tratamento (a fala) dentro do tratamento”.
Considerações 105
2. Abster-se do furor curandis* - Sem negligenciá-las, que o tratamento
das questões físicas não se coloque em detrimento do tratamento das dificuldades
psicológicas, interpessoais e emocionais. Além de Freud, é válido recordar a
recomendação de Lasègue, que, quando a Anorexia Histérica ganhou estatuto de
entidade mórbida, recomendava aos médicos: no início, a única conduta racional,
em suas palavras, é “observar e calar-se”, seguindo análise minuciosa dos
elementos participantes da eclosão da doença. O que podemos interpretar como:
seguir a necessária construção do caso, recuando da postura pró-ativa em curar,
obviamente sem negligenciar encaminhamento a cuidados necessários. Porém,
destaca-se a sensibilidade de pessoas, já notada por Lasègue (1999)(100), quanto
a identificar na equipe esta postura, tendendo a recuar, em função da relação com
o controle, e da necessidade de conservar suas estratégias de enfrentamento,
resultando na não aceitação/não adesão ao tratamento.
3. Tratamento estruturado por fases - Estabelecer etapas de tratamento
que contemplem a necessidade revelada quanto à adicção: não ser tratado junto a
pessoas que estão em estágios “anteriores”; trabalhar dificuldades psicológicas
para resolução da ambivalência ligada à egossintonia e outros aspectos dos “TA
como vício”, que se colocam como nova tendência ao abandono a cada remissão
alcançada. Para pacientes com melhoras como ganho de peso é importante que a
equipe invista na atenção psicológica individualizada, pois nova adesão e
consentimento com o tratamento deve que se dar; reapresenta-se a cada passo
alcançado a “não aceitação” inicial. O consentimento com a nova etapa de
tratamento requer que se avance um pouco mais nas questões psíquicas, como
indicaram as entrevistas. Enquanto a identidade anoréxica/bulímica e o
esvaziamento do corpo se fizerem necessários como vício, tende a ser maior o
risco de abandono.
* Freud advertia contra o excessivo afã do analista em curar o paciente de seus sintomas, negligenciando o desejo do paciente. Remitir o quadro eliminando sintomas costuma estar na missão de um serviço médico especializado, porém encontramos, em campo e na literatura, que dificilmente encontra-se, do lado dos pacientes, a intenção de ser curado, ver-se livre dos sintomas alimentares; ao contrário: “abandonei para não parar de vomitar” (S6), “Anorexia é uma coisa para a vida inteira” (S7) ou “essa ficha só caiu quando quase morri” (S3).
106 Considerações
4. Construção do laço que caracteriza a relação terapêutica como meta
na 1ª etapa do tratamento - Tal relação demonstra ter de ser especialmente
investida no caso de sujeitos para os quais o objeto comida está mais fortemente
revestido do caráter droga. Uma vez que a dificuldade interpessoal, os conflitos
abandônicos e a relação com o controle são centrais nos TA, investir na
construção de tal relação e manejá-la é não somente condição sine qua non para
um tratamento, como constitui em si mesmo um tratamento.
5. Utilidade da noção psicanalítica de “transferência” - A clínica
herdeira de Freud entende que os conflitos psíquicos não resolvidos, por uma
razão lógica e estrutural, serão endereçados em forma de repetição na relação
terapêutica com a equipe. Advertir-se do que a transferência põe em jogo constitui
ferramenta importante para dar respostas adequadas às passagens ao ato e
acting-outs do lado do paciente, e a contratransferência do lado da equipe, muitas
vezes provocada pela própria repetição, pela fantasia de abandono – conflito
detalhadamente descrito por Neurose de Abandono(101). Nesse sentido,
reiteramos, com Leavey et al. (2011)(76), a importância das supervisões clínicas e
treinamentos da equipe. Constatamos que não necessariamente será o psicólogo;
na maioria dos casos de nossa amostra, essa transferência tende a se constituir
em torno da figura do médico, que passa a ser potencialmente mais responsável
pela “religação do afeto” perdido no deslocamento realizado ao objeto alimentar e,
assim, destinatário principal das demandas e atos.
6. Flexibilidade e disponibilidade da equipe para manejo clínico -
Frente às dificuldades interpessoais e emocionais que essas pacientes revelaram
vivenciar, tendendo a construir barreiras na relação com o tratamento, mostra-se
necessário manejo pensado a partir de cada caso para tornar o tratamento
possível.
Dentro do referencial teórico que nos fundamenta, o próprio quadro
alimentar, ou de adicção à comida, possui paradoxalmente um sentido de tentativa
de superação da dependência existente nas relações de apego. Em outras
palavras, os conflitos ligados ao desamparo e ao abandono encontram-se na raiz
Considerações 107
do desenvolvimento dos transtornos alimentares. Relações interpessoais
notoriamente conflituosas são rechaçadas pelo hiperinvestimento no objeto-droga-
comida, que parece encontrar um efeito neutralizador do "outro suposto
abandonar" que é fonte de constante angústia. Ante a necessária aliança
terapêutica, os conflitos abandônicos inconscientes são mobilizados.
Encontramos, frente às categorias em conjunto, que o abandono significa
abandonar para não ser abandonado, podendo, a depender das variáveis
discutidas, estar ligado à melhora ou à cura. Isto é, mediante os significados
psicológicos revelados, destacamos: importa mais que tal ato encontre resposta
adequada da equipe, para fins de tratamento do conflito fundamental que nele se
apresenta, quando é o caso, que o desdobramento que pode se seguir quanto a
permanecer ou não em tratamento, por efeitos terapêuticos que podem advir do
manejo clínico do que se apresenta em jogo na situação do abandono.
6.2 Limitações do estudo e futuras pesquisas
Dentro do alcance do método, nossos resultados não são generalizáveis,
dizendo respeito à amostra intencional e ao grupo que abandonou e concordou
em responder ao estudo, no qual se encontram somente abandonos propriamente
ditos – tardios ou não – ausentes casos de não-adesão*, como se costumam
chamar abandonos mais precoces. Futuros estudos qualitativos podem ser
realizados com amostra intencional de “não-adesões”, sendo interessante a
comparação com nossos achados.
As pessoas que não abandonaram devem ter ainda outra valoração de
tratamento e abandono, assim como o grupo dos que se recusaram a participar do
estudo – que pode tanto incluir casos mais graves que não lograram atravessar a
barreira inicial da “negação da doença”, permanecendo em relação difícil com tal
demanda, ou, diferentemente, por não optarem por tratamento especializado
* ‘Failure to engaje’ na literatura internacional.
108 Considerações
podendo ter melhorado ou até se curado sem a ajuda do mesmo. Supõe-se que
ambos os grupos fariam mais críticas ao tratamento trazendo significados do
abandono diversos dos encontrados na amostra dos informantes colaborativos.
Há prováveis vieses relativos ao engajamento da pesquisadora no campo
estudado embutidos na interpretação dos dados, e constituem fruto de sua
percepção consciente ou não. Tal viés está previsto e legitimado na perspectiva
interpretativa dos dados. Considere-se a existência de relações de poder
implícitas à situação, talvez maior em nosso caso, pois a instituição acadêmica em
que se desenvolveu a pesquisa abriga o serviço que atendia os sujeitos alvo do
estudo, atendido que foi interrompido. A amostra excluiu ex-pacientes conhecidos
da pesquisadora como membros do serviço, o que não foi informado no rapport.
No entanto, pela relação com a instituição, inferimos tratar-se de pessoas menos à
vontade para críticas e mais dispostos a sugestões. Não somente por isso, mas
também por se tratar de pessoas que aderiram ao tratamento e dele se
beneficiaram, algum vínculo foi manifestado nos relatos de autocrítica e culpa pelo
abandono, e na intenção de retorno verbalizada por alguns.
A questão “tratamento” é abordada de modo limitado e colateral ao desenho
do estudo. Sugerem-se futuros estudos para aprofundar sua compreensão, sendo
interessante investigar, com os mesmos pressupostos, o que se passou com os
pacientes que levaram o tratamento a termo, bem como abandono em internações
com amostra de Transtornos Alimentares, por métodos qualitativos, não
encontrados na exaustiva revisão. Frente a nossos resultados sugerimos
investimentos em pesquisas futuras sobre TA e adicção, bem como sobre
desamparo e aliança terapêutica nos TA.
6.3 Considerações finais
A partir da interpretação dos achados podemos considerar atingidos os
objetivos do presente estudo. Os significados psicológicos do tratamento e
abandono, encontrados nas vivências de pacientes que abandonaram o
Considerações 109
tratamento ambulatorial, contribuem para o conhecimento do fenômeno do término
prematuro do tratamento* e da compreensão da psicodinâmica dos transtornos
alimentares.
Os achados da vivência dos transtornos como adicções dão suporte ao
debate atual sobre a inclusão dos transtornos alimentares no modelo da comida
como adicção, no espectro de sentido que o termo veio ganhando após a
definição de “comportamento aditivo†” de Goodman (1990, p.1404)(102). Goodman
(1990, p.1404)(102) propôs modificar a entidade nosográfica para: adicção “definida
como um processo em que um comportamento que pode funcionar tanto para
produzir prazer e para proporcionar alívio do desconforto interno é utilizado num
padrão caracterizado por (1) falha recorrente em controlar o comportamento e (2)
continuação do comportamento a despeito de consequências negativas
significativas.” ‡ (1990; p.1404)
Recomenda-se a discussão em equipe sobre a adoção de estratégias de
tratamento voltadas para a psicodinâmica e sintomatologia das adicções, visando
os transtornos que podem ser experimentados como “vícios” por parte dos
pacientes. É válida avaliação psicológica que visa identificar tal aspecto, para
adequação da abordagem, assim como, no mesmo sentido é recomendável uma
proposta de tratamento construída de forma particularizada para cada caso.
Os mecanismos psicológicos revelados nas categorias de conteúdo, à luz
da literatura levam a concluir que o complexo fenômeno do abandono
compreende, dentre outros significados, tentativa de superação de questão
psíquica fundamental nos TA, tal como encontrado em sua dimensão aditiva, e
constitui momento privilegiado do tratamento por nesta dimensão encontrarem-se
implicadas a questão abandônica e a angústia de desamparo. Se encontrados
como conflitos fundamentais nos TA, portanto constituem objeto do tratamento.
Acresce que o endereçamento de tal ato à equipe “pede”, à sua maneira curto-
* Conforme recomendado na literatura atual o uso do termo nas pesquisas a fim de evitar vieses.
(Premature Termination of Treatment). † “Addictive behaviour”. Conforme aprofundado no Artigo 2 (Apêndice), Goodman (1990).
‡ Tradução livre.
110 Considerações
circuitada, um tratamento dessa questão. Assim, desde que exista possibilidade
de ser escutado, tal ato pode encontrar ressignificação encontrando outro destino;
podendo encontrar manejo clínico por parte da equipe abre-se a possibilidade de
ressignificação desta questão para o paciente, que pode vir a obter deste ato,
efeitos terapêuticos.
Para além da dicotomia abandono como negativo ou positivo, frente aos
achados, vale considerar que esse fenômeno deve sempre ser esperado pela
equipe, fazendo-se necessário prontidão para responder a ele, em cada caso.
E, na medida em que se encontra profundamente associado à
psicodinâmica aditiva e abandônica dos transtornos alimentares, em sua ligação
com os mecanismos de controle, podemos interpretar que o abandono traz
consigo uma demanda de tratamento de tais conflitos psíquicos endereçados à
equipe, à maneira como se dão relações perpassadas pela dinâmica da
bulimia/anorexia - seja através do abandono, ou das faltas pelas quais ele
geralmente se anuncia. Deste modo, o sujeito pode vir a encontrar-se com as vias
de sua resolução e por consequência obter melhora do quadro alimentar, a
depender do manejo clínico oferecido e do laço construído com a equipe que o
ajudem na resolução e atravessamento de tal conflito.
Considerando tal lógica em jogo, é interessante pensá-lo sob a perspectiva
dos efeitos de tratamento que podem advir do ato do abandono em diante, no
sentido de se manter ou serem produzidos novos ganhos terapêuticos, não
visando tão somente permanência. Assim compreendido, tal circuito pode resultar
em permanência no tratamento, ou no abandono como melhora ou cura, podendo
gerar efeitos terapêuticos, conforme encontrado em nossa amostra e na literatura,
nos casos de abandonos como positivos. Em nossa amostra verificou-se que os
participantes que seguem necessitando de tratamento e padecendo de tais
questões após o abandono são aqueles que não caminharam na resolução de tais
questões, demonstrando permanecerem identificados à questão abandônica ou
mais assujeitados ao vício, não tendo encontrado modo de atravessar tais
Considerações 111
conflitos psicológicos que refletem na permanência das dificuldades interpessoais
e do quadro alimentar.
Quanto aos significados do tratamento, foi apontada a necessidade de
espaços nos quais possam falar desses conflitos psicológicos desde que
suportados pela aliança terapêutica, uma vez que, sem solucioná-los, dificilmente
conseguirão apresentar-se desprovidos dos transtornos.
Recomenda-se que as questões nutricionais e de peso não sejam
colocadas como metas, e que as equipes possam refletir junto ao paciente sobre
que lugar dar a elas, e em que tempo, dentro da complexidade de cada
tratamento, levando em conta sua psicodinâmica. Dentre os transtornos
psiquiátricos, os transtornos alimentares têm como particularidade tratar inclusive
parte das complicações clínicas dele decorrentes. É interessante advertir para o
risco que tais equipes correm, frente à demanda implicada nas questões físicas,
de reproduzir o deslocamento para o terreno do somático, típico do adoecimento
nestes transtornos, comprometendo sua resposta no campo do tratamento
oferecido, para o qual as categorias relativas ao tratamento, chamam a atenção.
A compreensão do fenômeno amplia-se à luz dos achados, que levam a
atentar para o risco de supervalorização das questões físicas em detrimento das
psíquicas, assim como para a importância da constante discussão a respeito do
tratamento e suas expectativas, dentro da equipe e com o paciente, ambos
corresponsáveis pelo sucesso ou fracasso do tratamento.
112 Considerações
- 113 -
7. REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
- 114 -
Referências Bibliográficas 115
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- 125 -
ANEXOS
- 126 -
Anexos 127
ANEXO I APROVAÇÃO NO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
128 Anexos
Anexos 129
130 Anexos
Anexos 131
ANEXO II -
JUSTIFICATIVA DA MUDANÇA DE NOME JUNTO AO CEP
132 Anexos
ANEXO III - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-DIRIGIDA
1. Conte-me o que representou para você ter um diagnóstico de Transtorno
Alimentar.
2. Como foi sua reação diante da ideia de fazer tratamento?
3. Conte-me sobre sua chegada ao tratamento.
4. Você alguma vez foi internada para tratar o TA? (Se sim... Como foi esta
experiência?)
5. Como foi a experiência(s) de tratamento ambulatorial?
6. Pensando que o tema desta pesquisa é a interrupção do tratamento, o que
você gostaria de contar sobre a sua experiência de interrupção?
7. Em que momento ela ocorreu?
8. O que você entende pela expressão “abandono do tratamento”? (Você
considera que a sua interrupção foi um abandono?)
9. Se você fosse recomendar a outras pessoas que tratassem o TA, o que
lhes diria? (...ou não recomendaria?)
10. Você considera que há alguma dificuldade em fazer um tratamento para
TA?
11. Se tivesse a oportunidade de fazer sugestões a uma equipe sobre o
tratamento em TA, o que diria?
12. O que mais você gostaria de comentar?
Anexos 133
ANEXO IV TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
PARA PARTICIPAÇÃO DE SUJEITOS EM PESQUISA CLÍNICO-PSICOLÓGICA
Instituição: UNICAMP / FCM / DPMP / Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa
Projeto: Significados do abandono do tratamento ambulatorial em anorexia nervosa e
bulimia na visão dos pacientes: um estudo clínico-qualitativo
Pesquisadora: Flávia Machado Seidinger – Aluna da pós-graduação – Pesquisadora do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Médicas – Depto. de Psicologia Médica e
Psiquiatria/ Unicamp
Orientador: Prof. Dr. Egberto Ribeiro Turato
Telefones: (19) 3521-7206 – Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria/ FCM/
Unicamp
(19) 3521-8936 – Comitê de Ética em Pesquisa da FCM/ Unicamp
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
O objetivo desta pesquisa científica é conhecer e discutir os significados das experiências de
pacientes diagnosticados com Anorexia Nervosa ou Bulimia que tenham interrompido tratamento.
Para tanto, serão realizadas entrevistas. Como se tratam de questões abertas não se pode prever
exatamente o tempo de duração. É previsto o tempo aproximado de 01 (uma) hora, podendo ser
tanto mais longa como mais curta e, se necessário, poderá ser feita uma segunda entrevista para
complementação. Você será convidado(a) a falar sobre questões abertas propostas pelo pesquisador
para que os objetivos deste estudo sejam alcançados.
Garantimos que os registros (gravações e anotações) feitos durante a entrevista ficarão sob
sigilo, e, portanto, não serão divulgados nem mesmo aos profissionais de saúde que atendem na
UNICAMP. Porém, trechos dos relatos identificados por pseudônimos serão estudados por
pesquisadores do grupo de pesquisa acima citado, que trabalha construindo conhecimento a respeito
das diversas condições emocionais e sociais de pessoas que enfrentam problemas de saúde. Deste
modo, em nenhum momento será revelada a identidade dos informantes. Esclarecemos que o
relatório final, com citações anônimas ou com nomes fictícios, estará disponível ao público quando
o estudo for concluído, o qual poderá ser apresentado inclusive em congressos ou publicado em
revistas científicas.
Poderá não haver benefícios diretos ou imediatos para você, enquanto entrevistado(a) deste
estudo, além, evidentemente, da oportunidade de poder contar livremente e sob sigilo sobre sua
vida, suas satisfações e preocupações. Por outro lado, futuramente esperamos melhorias na
qualidade dos cuidados prestados aos doentes e à população, quando os profissionais de saúde
tomarem conhecimento das conclusões deste trabalho.
Informamos que este projeto de pesquisa recebeu a aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP), da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, tendo sido homologada na reunião
134 Anexos
do dia / /2010, protocolo número ________. Em caso de qualquer dúvida a respeito das
questões éticas deste trabalho, os entrevistados poderão entrar em contato com o citado Comitê pelo
email [email protected] ou pelo telefone (19) 3521-8936.
Este TERMO, em duas vias, é para certificar que eu, ________________________________
, concordo em participar na qualidade de voluntário do projeto científico acima mencionado, sem
gastos ou ganhos financeiros diretos para nenhuma das partes. Por meio deste documento, dou
permissão para que eu seja entrevistado(a) e para que a entrevista seja registrada em gravador de
voz.
Fui informado(a) de que as gravações ficarão em posse deste pesquisador para
prosseguimento do estudo e também disponíveis a mim se eu quiser ouvi-las. Sei que os resultados
do estudo serão divulgados, considerando o conjunto das informações dadas por várias pessoas
entrevistadas, sem que meu nome ou de nenhum outro participante apareça associado à pesquisa.
Fui informado(a) de que um técnico poderá fazer a transcrição das falas para texto de
computador e que pessoas do Grupo de Pesquisa acima citado poderão conhecer o conteúdo para
realizar discussão científica, mas todas estas pessoas também estarão submetidas às normas do
sigilo profissional.
Fui informado(a) de que não há riscos previstos para minha saúde, resultantes da participação
nesta pesquisa. No entanto, durante a entrevista, sei que poderei ter algumas recordações ou
emoções que estavam “guardadas” dentro de mim.
Fui informado(a) de que sou livre para recusar a dar resposta a alguma questão durante as
entrevistas, bem como para retirar meu consentimento e terminar minha participação, a qualquer
momento, sem que isso represente prejuízo aos atendimentos e tratamentos que recebo.
Fui informado(a) de que fica garantido o meu direito de retomar o atendimento no
Ambulatório de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas, em qualquer momento, caso seja
de minha vontade.
Por fim, fui informado de que terei oportunidade de perguntar sobre qualquer questão que eu
desejar, e que todas elas deverão ser respondidas, ao meu contento, ao final da entrevista.
NOME: ASSINATURA:
Pesquisador: _____________________________________ ________________________
Entrevistado: _____________________________________ ________________________
Entrevista no _______ Local: ________________ Data: ___ / ___ / ___
Anexos 135
ANEXO V -
QUADRO 1: CARACTERÍSTICAS DESCRITIVAS DA AMOSTRA
PARTICIPANTE
IDADE ESCOLARI-
DADE OCUPAÇÃO
(área) SITUAÇÃO CONJUGAL
DIANÓSTICOS (DSMIV + comorbidades)
TEMPO DE TRATAMENTO
(meses)
INTERNAÇÕES PRÉVIAS
1 18 ensino médio
incompleto
saúde solteira TASOE 16 não tem
2 19 ensino médio
incompleto comércio
solteira (entre a casa da mãe e
a do namorado) AN restr + TPH 15 psiquiátricas
3 19 ensino médio comércio solteira BN
+TAG
29
(com uma interrupção e
retorno)
clínica
4 23 ensino superior saúde solteira TASOE + TAG 23 não tem
5 25 ensino superior saúde mora junto AN purg 16 não tem
6 29 ensino médio
técnico comércio casada BN purg 15
psiquiátricas (leito TA)
7 30 ensino superior comércio solteira AN restr +TPH 32 psiquiátricas e
clínicas
8 30 ensino médio afastamento do trabalho
pelo INSS (comércio) solteira TASOE + TPH e DM 1 12
clínicas (inúmeras)
136 Anexos
ANEXO VI -
CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES DO ESTUDO
A descrição abaixo deve ser lida com o auxílio do Anexo V (Quadro 1), no qual se
encontram em detalhes as características descritivas da amostra, permitindo a visualização
do perfil de cada um.
Todos os participantes são do sexo feminino, uma vez que no universo estudado – a
relação, fornecida pelo serviço, dos casos considerados pela equipe como “abandono” –
não existiam pessoas do sexo masculino. Têm entre 18 e 30 anos e, apesar do convite à
participação na pesquisa, aleatório, não tê-lo previsto, o grupo estudado apresenta certa
homogeneidade na distribuição dentro dessa faixa etária. O mesmo se pode dizer quanto
à escolaridade: equitativamente distribuída entre o ensino médio e superior completos, e
os dois mais jovens não completaram o ensino médio.
Quanto à orientação religiosa, dois participantes declaram não ter nenhuma crença
ou prática religiosa, sendo diversificada a relação com a religião dos seis demais, os que
declaram alguma crença: três católicos, um espírita não praticante, um evangélico
praticante, e um se declara crente, embora não membro de nenhuma igreja. Nota-se que
metade da amostra espontaneamente destacou sua religião como divergente da família.
Quanto à ocupação, a grande maioria tem trabalho, o que foi conquistado mediante
as melhoras; exceto um participante, que deixou de trabalhar pela piora no quadro, e
devido à permanência de tal gravidade, inclusive comorbidades clínicas até os dias da
entrevista, é declarado “incapaz pelo INSS” (sic). A maioria é solteira e sem filhos; uma
teve um filho na adolescência, criado pelos pais, como se fosse seu irmão; das três que
possuem companheiros: uma é casada e mãe de dois filhos, outra tem uma relação
estável sem filhos, e a mais jovem delas oscilava entre o “morar junto”, situação recente, e
o voltar para a casa da mãe, com rupturas constantes nesse relacionamento, também sem
filhos, mas suspeitando de gravidez quando da entrevista.
Optou-se por apresentar no Quadro 1 como “Questão com a estrutura familiar” os
aspectos relativos a: separação dos pais, existência de filhos de outros relacionamentos
dos pais ou de um filho sem casar-se, condição de filho adotivo, ou mesmo referência a
questões com a família ou um não pertencimento do ponto de vista subjetivo, condições
que tenham sido descritas de modo relevante em suas histórias de tratamento e abandono,
por vezes ligadas à própria origem dos transtornos.
Os diagnósticos descritos no Quadro 1 (Anexo V), conforme o DSM IV-TR – portanto,
feitos previamente ao abandono – de modo coerente com os objetivos do estudo, não
foram reavaliados no momento da entrevista e correspondem ao período do qual os
participantes falam nas entrevistas; ainda assim, muitas vezes estes possuem
representações sobre seu diagnóstico diversas do registrado pela equipe. Também
Anexos 137
aleatoriamente, verificou-se certa homogeneidade entre os diagnósticos e seus subtipos no
grupo de TA, sendo interessante observar a presença dos quadros atípicos/sem outra
especificação (três participantes), bem como Transtornos de Personalidade (três
participantes; coincidindo ambas as comorbidades em um deles).
Entretanto, de um grupo onde todas abandonaram, podemos ver, um ano ou mais
após o abandono, que são diversas as trajetórias dos sujeitos: optar por não mais tratar-se,
como a maioria, ou seguir em outros serviços não especializados, como é o caso de duas
delas; uma segue em tratamento em outra cidade, com psiquiatra ambulatorial e suporte
clínico em internações recorrentes, segue com o transtorno importante e agravamento
crescente das complicações clínicas, não tendo podido reverter perdas do ponto de vista
psicossocial que teve com a doença; ao contrário, agravando o quadro e encontrando
redução de suas redes, de ajuda, social e ocupacional, posteriormente ao abandono, e
outra, ao contrário, significa sua interrupção como “dar-se alta”, informa manter-se bem,
tendo sustentado a remissão, o que chama de “estar curada”, tendo, porém, seguido um
tratamento para depressão, por demanda própria, meses após a interrupção.
Dos casos em que a questão abandônica se revelou determinante importante do
abandono, três são comórbidos com TPH. Três desses participantes possuem histórico de
abandono (materno ou paterno) e desestrutura familiar.
Quanto ao tempo de tratamento, observa-se que na amostra não há casos de
abandono no início, que poderiam ser considerados não adesão; há três casos do que é
chamado na literatura especializada de “abandono tardio” – tendo em vista não somente o
tempo de tratamento, de dois anos ou mais –, sendo todo o restante entre um ano e
pouco menos de um ano e meio (metade da amostra tinha quinze ou dezesseis meses de
tratamento).* É possível inferir que não haja não adesão na amostra, em função do fato de
que pessoas que não chegaram a constituir nenhum tipo de vínculo com o serviço não se
dispuseram também a refletir e falar sobre o assunto e, portanto, não estão
representados.
Finalmente, quanto a internações prévias, o grupo também descreve uma curva
normal, na medida em que três não passaram por internações anteriores, e cinco
participantes sim, sendo igualmente assim distribuídos os históricos em cada caso: (S2)
internações psiquiátricas; (S6) internações psiquiátricas em leito especializado para TA;
(S3) uma internação clínica; (S8) inúmeras internações clínicas e (S7) internações
psiquiátrica e clínicas.
* Deve-se dizer que essas referências nem sempre são exatas, mas, antes, constituem aproximações. Em
alguns casos, pôde ser confirmado pelos prontuários, em outros não, uma vez que as faltas que em geral antecedem os abandonos tornam as evoluções interrompidas e com grandes lacunas; também sucede que certos sujeitos informam um tempo subjetivamente registrado, que não corresponde ao registrado, porque podem incluir outros atendimentos no HC até que tenham chegado ao ambulatório especializado, porém que são contados como parte do tratamento ambulatorial para TA, sendo válidos como dado numa pesquisa qualitativa que trabalha com experiências subjetivadas. Os casos onde dúvidas permaneceram após consulta a prontuários foram resolvidos submetidos à coordenação do serviço, que informou a partir de seus registros em prontuário.
138 Anexos
É curioso notar que a maioria trabalha ou trabalhou no ramo “alimentar”, seja no
comércio, ou na área de Saúde, e no mesmo sentido, um participante menciona seu
desejo de cursar Faculdade de Gastronomia.
Sobre os casos S1 e S2, vale comentar que ambos interromperam os estudos
durante o período de doença e tratamento. S1, em fase de recuperação de alguns
prejuízos sociais desse período e mais estável e com melhora da autoestima desde que
passou a namorar, pouco antes de abandonar o tratamento, fala da intenção de concluir
o 2º grau, sendo retomado no momento da entrevista com o intuito de cursar
Gastronomia, pretendendo ter um restaurante. Já S2, em função de internação
prolongada, abandonou tanto o tratamento ambulatorial quanto os estudos, declarando
não pretender retomar nenhum deles e nem as práticas religiosas também abandonadas,
explicitando, em sua entrevista, seu ceticismo em relação às instituições: familiares,
hospitalares, religiosas, até os amigos, de quem passou a “desconfiar” o que é digno de
nota. Outro participante, o único que ao significar seu abandono como “dar-se alta” por
estar curada, não reconhecido pela equipe naquele momento, porém que ela própria
entende por abandono definindo-o pela decisão unilateral. Havia concluído há pouco o 2º
grau, mantinha o emprego obtido e revelou a intenção de cursar Faculdade de Psicologia.
Tal remissão se sustenta até os dias atuais (sic) inclusive seguindo tratamento para
depressão, e pareceu factível pelo que seu discurso revela de sua posição subjetiva e
relação com a comida, na entrevista.
Apêndices 139
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