Zila Mamede: panorama potico e cultural na literatura do RNProfessor Marcel Matias
Comparada s grandes, a nossa literatura pobre e fraca. Mas ela, no outra, que nos exprime. Se no for amada, no revelar a sua mensagem; e se no a amarmos ningum o far por ns. Se no lermos as obras que a compe, ningum as tomar do esquecimento, descaso ou incompreenso
Antonio Candido, Formao da literatura brasileira (1959)
Uma primeira pergunta:
Existe uma literatura do RN?
Duas observaesO professor Tarcsio Gurgel tentou responder a essa pergunta na obra Informao da literatura potiguar (2001) utilizando o conceito de sistema literrio.Sistema literrio: autor obra leitor. Segundo Candido, o processo de circulao da obra garante a continuidade literria e a constituio de uma literatura.
... mas o debate continua...
Notcia biogrfica de Zila MamedeNasceu em Nova Palmeira (PB) em 1928 e faleceu em Natal, a 13 de dezembro de 1985.Mudou-se para o RN ainda menina com a famlia.Duas paixes: a literatura e a biblioteconomia.
Uma segunda pergunta:Zila Mamede seria uma representante da literatura potiguar?
" o cho onde nasci, e eu gostaria que ela (Nova Palmeira) fosse no Rio Grande do Norte, porque me sinto to norte-riograndense, que tenho susto quando olho a minha carteira de identidade. Nisso no h nenhum preconceito contra a Paraba. Apenas fui transplantada muito pequena, a tempo de me sentir enraizada no Rio Grande do Norte. Da porque eu digo que gostaria que Nova Palmeira, a vila fundada pelo meu av e pelo meu padrinho de batismo, fosse no Rio Grande do Norte. Era uma fazenda, uma vila, hoje mais um municpio brasileiro, mas no como municpio, e sim, como stio do meu av que permanece na minha geografia sentimental".Zila Mamede
Notcia bibliogrfica de Zila MamedeRosa de pedra (1953); Salinas (1958); O arado (1959); Lus da Cmara Cascudo 50 anos de vida intelectual (1970);Exerccio da palavra (1975); Navegos / Corpo a corpo (1978); A herana (1984); Civil geometria (1987 obra pstuma).
Alguns poemas
ARADO
Arado cultivadeirarompe veios, morde choAi uns olhos afiadosrasgando meu corao.
Arado dentes enxadaslavancando capoeirasMil prometimentos, jurasfaladas, reverdadeiras?
Arado ara picoteirasega relha amanhamento,me desata desse amorternura torturamento.
O poema uma espcie de resumo ou apresentao do livro homnimo, pois alm de ser o primeiro poema que abre a leitura, nele podemos observar a relao amorosa com a terra, com o meio rural e com a prpria elaborao potica. Esta afinidade perpassa os demais poemas que compem o livro, em especial o poema ora analisado. Assim, os elementos da terra, as relaes entre o trabalho braal que o homem do campo realiza com a ao do arado e as contradies de uma relao amorosa permitem pintar uma paisagem saudosista e sentimental como uma espcie de evocao de um passado singular.Janaina Silva Alves,Tradio e modernidade em O arado, de Zila Mamede: A construo da lrica telrica erguida em novos alicerces
O ALTO (A AV)
A adolescer ainda novo tetoganhara, conduzindo nos cabelosabandonados, um tranquilo sol.
Acrescentara ao dote a flauta azul(com que saudara tardes e rebanhos)e seu chinelo feito em flor de l.
Das fibras do algodo, por entre dedos,no fuso aconchegara brancos fiosde que tecera rendas infantis
e varandal de redes. Camarinhascercaram mistrios maternais: espera, medo, alumbramento, amor.
Mas seu cantar desfez-se no caminhoSem chegar mais que aos nascituros filhos- estrela, uma de agosto a viu morrer.
Herdei a deslembrana de seus olhose dessa flauta que tocara noitevertendo paz e sono a meu av.
O Alto: stio do av materno a quem o livro dedicado.Evocao da av por meio da deslembrana. Uso do pretrito mais-que-perfeito que indica um momento antes do pretrito perfeito.
O RIO A Mauro Mota Um rio adormecido em cada infncia, rio seco ou de enchente, intempestivo rio que no cresceu - riacho riba. Mas o que conta em ns mesmo o rio correndo na memria com seu jeito de rio, sua boca ch de rio, a fora de ser rio e ser caminho de rio, noite assombrao de rio, chamado ser em oculto cho de rio, ter os remorsos fluviais de rio que afogou nas areias dois meninos e de seu pranto fez nascer cacimbas.
Em O Arado, apesar de o serto ser mitificado, isso no invalida a possibilidade de seu texto denunciar as carncias vivenciadas pelo sertanejo. O verso rio seco ou de enchente, intempestivo um exemplo da oscilao metereolgica presente no serto referente seca e ao inverno.
Graa Aquino,A memria como evocao: Um estudo crtico da obra O arado, de Zila Mamede
BOIS DORMINDO (I)
A Tom Filgueira
A paz dos bois dormindo era tamanha (mas grave era tristeza do seu sono) e tanto era o silncio da campina que se ouviam nascer as aucenasNo sono os bois seguiam tangerinos que abandonando relhos e chicotes tangiam-nos serenos com as cantigas aboiadeiras e um basto de lrios.Os bois assim dormindo caminhavam destino no de bois mas de meninos libertos que vadiassem cho de feno;e ausentes de limites e porteiras arquitetassem sonhos (sem currais) nessa paz outonal de bois dormindo.
O rio e o primeiro soneto do Os bois dormindo so duas coisas de grande classe, e versos espalhados por todo o livrinho se impem como unidades belssimas. Bem, o que fui anotando a lpis matria para voc pensar, e aceitar ou no, com liberdade absoluta, e como lhe parece razovel.
Carlos Drummond de Andrade
Consideraes finais
Com Zila Mamede a tessitura potica norte-rio-grandense sofre um novo impacto produtivo (os anteriores verificam-se com Jorge Fernandes e Jos Bezerra Gomes). E O Arado, livro de 1959, a marca instigante desse impacto. Aps se libertar do esquematismo fcil da gerao de 45, plasmou a inveno ao nvel da lngua: arado cultivadeira, xexus milipousavam, farinha floripo, verde verdinoaponta, ternura torturamento, denunciando uma leitura de Guimares Rosa.
Moacy Cirne,A poesia e o poema do Rio Grande do Norte (1979)
Zila Mamede reencontra na Terra o encanto informe e concordante com a sua prpria vida interior. Os poemas so frutos da terra e das almas, as almas poticas que vivem em Zila Mamede, alma lrica, alma irnica, alma sonhadora, alma que espera, alma que confia.Cmara Cascudo
Sugesto:
RefernciasALVES, Janaina Silva. Tradio e modernidade em O Arado, de Zila Mamede: a construo da lrica telrica erguida em novos alicerces. Dissertao (Mestrado). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte . Departamento de Letras. Programa de Ps-Graduao em Letras, Pau dos Ferros, RN, 2011.AQUINO, Graa. A memria como evocao: um estudo da obra O arado, de Zila Mamede. Natal: A.S. Editores, 2005.AQUINO, Graa (org.). Cartas de Drummond a Zila Mamede. Natal: sebo Vermelho, 2000.CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. 11. ed., Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2007.CIRNE, Moacy. A poesia e o poema do Rio Grande do Norte. Natal: Fundao Jos Augusto, 1979.GURGEL, Tarcsio. Informao da literatura potiguar. Natal: Argos, 2001.MAMEDE, Zila. O arado. Natal: EDUFRN, 2005.MELO, Paulo de Tarso Correia de. Zila Mamede: itinerrio e exerccio de poesia. In: MAMEDE, Zila. Navegos (poesia reunida 1953-1978). Belo Horizonte: Editora Vega, 1978.
Top Related