Post on 13-Oct-2015
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Rui Canrio, Filomena Matos e Rui Trindade
(Orgs.)
ESCOLA DA PONTE
DEFENDER A ESCOLA PBLICA
Textos de
Joo Barroso
Maria Emlia Brederode Santos
Rui Canrio
Ariana Cosme
Fernando Ildio Ferreira
Isabel Menezes
Antnio Nvoa
Jos Pacheco
Manuel Jacinto Sarmento
Rui Trindade
Teresa Vasconcelos
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NDICE
Nota de Apresentao
R u i C a n r i o , F i l o m e n a M a t o s e R u i T r i n d a d e
Pag.
APRENDER COM A ESCOLA DA PONTE
Escola da Ponte:
defender, debater e promover a escola pblica.
J o o B a r r o s o
Pag.
A escola do futuro
M a r i a E m l i a B r e d e r o d e S a n t o s
Pag.
Uma inovao apesar das reformas
R u i C a n r i o
Pag.
Repensar a escola e o sentido do trabalho escolar
F e r n a n d o I l d i o F e r r e i r a
Pag.
Memrias de um projecto em forma de ponte
I s a b e l M e n e z e s
Pag.
A educao cvica de Antnio Srgio vista a partir da Escola da Ponte
(ou vice-versa)
A n t n i o N v o a
Pag.
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Reinveno do ofcio de aluno
M a n u e l S a r m e n t o
Pag.
A construo de uma escola pblica e democrtica
R u i T r i n d a d e
A r i a n a C o s m e
Pag.
Para que no interrompamos o projecto
T e r e s a V a s c o n c e l o s
Pag.
FAZER A PONTE, CONSTRUIR A MEMRIA
Uma escola sem muros
J o s P a c h e c o
Pag.
Manifesto de apoio Escola da Ponte
Pag.
Tornar mais pblica a Escola Pblica
Pag.
Cronologia recente
Pag.
Nota sobre os autores e organizadores
Pag.
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Nota de Apresentao
O Projecto Educativo que, ao longo dos ltimos 25 anos, vem sendo construdo
por um colectivo de professores na Escola da Ponte, em Vila das Aves, constitui um
sinal de esperana para todos os que acreditam e defendem a possibilidade de construir
uma escola pblica aberta a todos os pblicos, baseada nos valores da democracia, da
cidadania e da justia, que proporciona a todos os alunos uma experincia bem sucedida
de aprendizagem e de construo pessoal. O ataque desencadeado pelo Ministrio da
Educao, pondo em causa a continuidade deste projecto, despoletou sentimentos de
perplexidade e de indignao que se traduziram num amplo movimento de
solidariedade. A publicao deste livro constitui um prolongamento desse movimento
de solidariedade em que, insubstituvel espontaneidade e dimenso afectiva do
primeiro impulso, se pretende acrescentar o testemunho lcido e reflectido, susceptvel
de alimentar um combate de mais largo flego.
A Escola da Ponte representa uma singularidade na qual possvel vislumbrar a
totalidade sistmica dos problemas que se colocam ao nosso sistema escolar, bem como
algumas hipteses slidas de possveis solues que contrariam o nosso proverbial
cepticismo. Referimo-nos aos problemas da organizao escolar e da sua gesto, aos
problemas da incluso e da construo de uma vida escolar democrtica e participada,
ao problema de exercer o rigor nas aprendizagens com base no gosto por aprender, ao
problema de fazer coincidir a formao de professores com a construo autnoma de
uma profissionalidade responsvel. A atitude adoptada pelo Ministrio da Educao,
relativamente a esta escola, ilustra a realidade profunda que marca a sua poltica e a
contradio entre os actos e a retrica. No caso da Escola da Ponte, o mrito
penalizado, o protagonismo das famlias contrariado, a responsabilizao da escola
pelos seus resultados desencorajada, o rigor da avaliao externa ignorado.
Nesta perspectiva, o caso da Escola da Ponte no constituiu mais um dos muitos
fait-divers em que costumam ser frteis os incios de ano lectivo, mas um verdadeiro
analisador da nossa realidade educativa e do sentido da poltica prosseguida pela actual
equipa do Ministrio da Educao. A luta da Escola da Ponte marcou uma fronteira que
separa duas maneiras distintas de diagnosticar e pensar o futuro da escola e o papel a
desempenhar pelo poder pblico. A defesa da Escola da Ponte passou a representar para
muitos educadores e cidados um meio de preservar e promover um servio pblico de
educao que tenha como vocao o sucesso de todos e faa da participao de
professores, alunos e pais um exerccio permanente de cidadania. O exemplo da Escola
da Ponte, pelas finalidades que prossegue, pelas metodologias de organizao e de
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trabalho que constri, pelas alianas em que se fundamenta e pelos resultados que
evidencia um bom ponto de partida para promover o debate sobre o futuro de uma
escola pblica que preciso tornar mais pblica.
Este livro organiza-se em duas partes. Rene-se, na primeira, um conjunto de
testemunhos sobre o projecto que vem sendo desenvolvido na Escola da Ponte que
foram solicitados a um conjunto de especialistas na rea da educao, conhecedores
directos da experincia em causa e solidrios com ela. Numa segunda parte, rene-se
um conjunto de documentos para memria futura que incluem, nomeadamente, um
texto que apresenta a experincia da Escola da Ponte, bem como uma cronologia dos
acontecimentos mais recentes.
Com a publicao deste livro pretendemos, por um lado, documentar a
solidariedade com o projecto Fazer a Ponte e, por outro lado, favorecer a possibilidade
de que todos possamos aprender com a sua experincia. Pretendemos, ainda, marcar um
momento de um debate necessrio a que urge dar sequncia.
Os organizadores
Rui Canrio, Filomena Matos e Rui Trindade
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Aprender com a
Escola da Ponte
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Escola da Ponte:
defender, debater e promover a escola pblica.
J o o B a r r o s o
A Escola da Ponte uma escola pblica onde se tem vindo a construir, desde h
quase trinta anos, um projecto pedaggico slido e inovador, com um forte
envolvimento da sociedade local, em particular dos pais, e com um sentido activo e
responsvel de autonomia institucional. A consistncia do projecto, a capacidade de
dinamizao do seu principal promotor, bem como o comprovado sucesso dos seus
resultados (quer em funo de critrios formais e externos de avaliao das
aprendizagens quer em funo do grau de concretizao dos objectivos propostos)
fizeram da Escola da Ponte um case-study para todos os que se interessam pela
educao, em diferentes domnios: do curricular ao organizativo, do trabalho e
formao dos professores ao trabalho e formao dos alunos, das prticas inovadoras s
teorias da mudana, da cidadania pedagogia.
A visibilidade que o projecto foi tendo, ao longo destes anos, deu Escola da
Ponte, em particular aos seus professores e alunos, uma notoriedade pblica, a nvel
nacional e internacional, alimentada e ampliada pelas inmeras visitas que foram feitas
escola, pelos textos que foram publicados, pelas investigaes realizadas
(normalmente em contexto acadmico) e pelas intervenes produzidas pelos autores /
actores do projecto, em congressos, seminrios, e encontros, ou na simples partilha de
experincias com outras escolas.
Em todos os pases existem casos destes e, mesmo em Portugal, no faltam
outros exemplos de escolas que, isoladamente ou integradas em movimentos mais
amplos (como o Instituto das Comunidades Educativas ou a Escola Moderna), fazem a
diferena, pela maneira inovadora como os seus professores desenvolvem as
aprendizagens dos alunos, estabelecem parcerias com a comunidade e adequam as suas
obrigaes de servio pblico aos valores da justia social, da igualdade de
oportunidades e da construo da cidadania.
Embora, no caso portugus, os vrios governos no estivessem, normalmente,
muito interessados na promoo e alargamento destas experincias pedaggicas (ou por
opes de poltica educativa contrrias a esses movimentos ou por receio de perderem o
controlo da situao), o certo que sempre as toleraram e, por vezes, aqui e ali as
apoiaram atravs de medidas derrogatrias e recursos extraordinrios que lhes
consagravam um estatuto especial. Digamos que, sem pretender pr em causa o enorme
mrito destas iniciativas, o apoio ou tolerncia que recebiam da administrao
resultavam, normalmente, de dois tipos de estratgias: a possibilidade de estas
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iniciativas serem utilizadas como vitrines de uma poltica que se pretendia assumir
como progressista ou modernizadora, preocupada com a qualidade do servio pblico; a
possibilidade de a administrao exercer um melhor acompanhamento e controlo sobre
situaes potencialmente incmodas, fazendo delas objecto de um reconhecimento
oficial e de intervenes e programas especiais.
Parece estar em vias de se romper com o actual governo este aparente
compromisso entre poderes instituintes (as escolas/professores inovadores) e poderes
institudos (os responsveis polticos no Ministrio da Educao e sua administrao)
que permitiu a sobrevivncia (ou mesmo desenvolvimento) de diversos projectos
educativos de inovao da escola pblica, centrados na promoo da igualdade de
oportunidades, no atendimento preferencial a populaes desfavorecidas e em prticas
pedaggicas visando a autonomia dos professores e dos alunos. luz desta situao
que deve ser interpretado o que se passa, hoje, com a Escola da Ponte, com o
encerramento das escolas rurais, com a extino do Instituto de Inovao, com o fim
dos programas de incentivo inovao, com o silncio sobre o programa de reforo da
autonomia das escolas, com a ameaa eleio dos gestores escolares, etc.
Neste sentido e independentemente do carinho, solidariedade e interesse que nos
merecem a Escola da Ponte e todos os que esto associados a este projecto, o que
preciso sublinhar, neste momento, o facto de este caso ser exemplar para mostrar o
modo como o actual governo se posiciona face escola pblica em geral e os
problemas e desafios que se levantam a todos os que, defendendo a escola pblica, no
se limitam a fazer dela um baluarte de conquistas passadas, mas um espao de
interveno para a construo de melhores futuros. Na verdade:
- O caso da Escola da Ponte no um episdio pontual, mas, antes pelo contrrio, constitui um exemplo paradigmtico das posies e aces em confronto no
debate actual sobre a escola pblica: por um lado, os que, na Escola, se esforam
por promover um ensino justo, democrtico, participativo, adaptado
diversidade e caractersticas dos alunos, pedagogicamente eficaz e civicamente
activo; por outro lado, os que, no governo e nos meios de comunicao social,
querem fazer crer que a escola pblica est condenada ao fracasso, que a
competio e o mercado devem ser os seus valores de referncia, mas que, ao
mesmo tempo, tm (ou defendem) polticas centralizadoras, burocrticas e
conservadoras que a impedem de mudar e de se aperfeioar.
- O caso da Escola da Ponte no pode ser reduzido a uma mera discordncia (tcnica administrativa e financeira) quanto maneira de gerir com mais eficincia os dinheiros pblicos que o governo gasta na educao, em particular
na gesto da rede escolar (construo de edifcios e fluxo de alunos). A questo
poltica e interpela simultaneamente os defensores da escola pblica que, neste
caso, so confrontados com a necessidade de defenderem a existncia de
projectos pedaggicos prprios e a possibilidade de os alunos e as suas famlias
escolherem uma escola da sua preferncia; e os defensores da introduo de uma
lgica de mercado na educao e da livre escolha da escola que, neste caso,
aparecem como acrrimos defensores da sectorizao e da carta escolar,
obrigando os pais a matricular os seus filhos numa escola determinada pelo
Estado, em funo de critrios meramente administrativos.
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com base nestes pressupostos que eu irei fazer trs breves comentrios,
procurando situar as recentes medidas tomadas pelos responsveis do Ministrio da
Educao sobre a Escola da Ponte num contexto mais vasto de ataque escola pblica1.
O primeiro comentrio tem como tema defender a escola pblica e pretende chamar a ateno para o facto de ser necessrio reafirmar, hoje, os valores
fundadores da escola pblica, perante a difuso transnacional de uma vulgata neo-liberal
que v no servio pblico a origem de todos os males da educao e na sua privatizao
a nica alternativa.
O segundo comentrio tem como tema debater a escola pblica e pretende pr em evidncia a complexidade dos problemas com que se debate a escola pblica
numa sociedade cada vez mais injusta, individualista e mercantilizada, bem como a
necessidade de encontrar, na transformao da escola, novas formas e espaos de
interveno pblica.
Finalmente, o terceiro comentrio tem por tema promover a escola pblica e constitui uma oportunidade de afirmar a importncia de uma escola pblica que garanta a universalidade do acesso, a igualdade das oportunidades e a continuidade dos
percursos escolares, aberta diversidade dos pblicos, mas praticando uma poltica
activa de justia social, em benefcio dos mais desfavorecidos.
Defender a escola pblica
Durante mais de 150 anos o Estado assumiu, no mundo ocidental, a funo de
Estado Educador. A criao e desenvolvimento da escola pblica tornou-se, primeiro,
um imperativo para a consolidao do Estado-Nao e, mais tarde (principalmente a
partir da Segunda Guerra Mundial), um elemento essencial do desenvolvimento
econmico.
A escola pblica desenvolveu-se, assim, com base num voluntarismo poltico,
claramente centralizador, que pressupunha um forte consenso social no valor da
educao e nas modalidades de organizao da escola.
Nos ltimos tempos, como sabido, tem-se assistido a uma crise do prprio
conceito de Estado-Nao e a uma quebra clara do consenso social em que se baseava o
Estado Educador. Alm disso, o crescimento extraordinrio dos sistemas educativos e a
complexificao da sua organizao tornaram difcil a sua renovao e adaptao s
necessidades do mundo actual. Os resultados alcanados ficam sistematicamente aqum
das expectativas e a confiana na capacidade de os poderes pblicos resolverem os seus
problemas vem-se reduzindo de maneira notria.
Perante estas situao de crise, os governos procuraram responder, agora como
dantes, com grandes reformas que, com grande optimismo retrico, eram anunciadas
como o mito regenerador da educao e a boa soluo para tudo resolver de maneira
racional e planificada.
1 Estes comentrios incorporam diferentes reflexes que desenvolvi em outras publicaes e em outros contextos
temticos, nomeadamente Barroso, 1996, 1999, 2003.
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O balano que se faz destas grandes reformas que, principalmente depois dos
anos 60, constituam o manifesto poltico de qualquer ministro que se prezasse
conhecido. A maior parte das reformas no passou do papel e as que foram um pouco
mais longe raramente se radicaram nas escolas e, muito menos, na sala de aula e nas
suas prticas quotidianas.
Alis, o que se passou com mais frequncia, como assinalam David Tyack e
Larry Cuban (1995) ao analisarem um sculo de reformas nos Estados Unidos, foi que,
ao contrrio dos seus propsitos iniciais, em vez de as reformas modificarem as escolas,
acabaram sendo mudadas por elas.
Paralelamente com este insucesso das grandes reformas conduzidas pelo Estado,
tem-se assistido, principalmente desde o incio dos anos 80, ao alargamento de uma
perspectiva desenvolvimentista da educao com a sua subordinao aos imperativos da
competitividade econmica e s regras do mercado.
Um dos traos mais marcantes desta lgica de mercado consiste na tentativa de
reduzir o monoplio pblico da educao, de acordo com o que Dale (1994) chama, em
termos muitos gerais, de objectivos da Nova Direita: retirar os custos e
responsabilidade ao Estado e, simultaneamente, aumentar a eficincia e capacidade de
resposta e consequentemente a qualidade do sistema educativo.
Neste sentido, para os defensores de uma poltica neo-liberal, a modernizao da
educao passa, entre outras coisas, pela libertao da escola das mos do Estado, pela
empresarializao da sua gesto e pela introduo de um sistema de concorrncia em
que a satisfao do consumidor decide da sua rentabilidade e eficcia.
No possvel fazer, no mbito do presente texto, um balano das principais
crticas que tm sido feitas a estas polticas de modernizao baseadas na construo de
um mercado da educao. Mas h um aspecto que importa referir, tendo em conta os
objectivos de mostrar a necessidade de defender a escola pblica: as consequncias
daquilo que Ball (1994) chama de os valores da mudana e os dilemas ticos
provocados pela actividade do mercado e pela competio (p.129).
Falando da experincia inglesa, este autor chama a ateno para o facto de, ao
sublinhar-se a pretensa neutralidade do mecanismo da escolha do consumidor, se
estar a desviar a ateno dos valores e dos aspectos ticos ligados (e requeridos) pela
aplicao da lgica de mercado educao. Entre estes valores contam-se os que
celebram a tica do que Nagel (1991) chama de ponto de vista pessoal interesses pessoais e desejos individuais e, ao mesmo tempo, obscurecem e desprezam as preocupaes igualitrias daquilo que o mesmo autor designa por ponto de vista
impessoal.
Como afirma Ball (1994) no final do seu livro em que analisa criticamente a
reforma educativa inglesa: O que se perdeu na educao no Reino Unido foi a
existncia de qualquer tipo de discurso sobre as virtudes cvicas ou tica social (p.
144). E acrescenta, citando Plant (1992):
Sem o sentido da virtude cvica ou da orientao para valores que no tenham
unicamente em vista o interesse pessoal, o comportamento do mercado exigir
uma regulao crescente, em funo dos interesses do prprio mercado. Este
tipo de regulao tende a tornar-se cada vez mais problemtica se no houver
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uma maior preocupao em cultivar o sentido da responsabilidade social e
cvica, o que, como eu sugeri, se torna cada vez mais difcil devido eroso dos
valores sociais em favor dos interesses prprios e privados. (p. 89).
Idntica preocupao pelas consequncias de uma poltica educativa que v na
desinstitucionalizao e desregulao o nico processo de colmatar as deficincias de
funcionamento da escola pblica, ao mesmo tempo que olha para a educao como um
bem de consumo e no como um bem comum, est presente na anlise que David Tyack
e Larry Cuban (1995) fazem de um sculo de reformas escolares nos Estados Unidos:
Nesta ltima gerao, o discurso sobre a escola pblica tornou-se
extremamente limitado. Passou a estar centrado na competio econmica
internacional, nos resultados dos testes e na escolha individual da escola. Mas, em contrapartida, negligenciou por completo o tipo de escolhas que so
essenciais para o bem-estar cvico: escolhas colectivas sobre um futuro comum,
escolhas feitas, atravs de processos democrticos, sobre os valores e os
conhecimentos que os cidados querem passar para a prxima gerao. (p.
142).
Neste sentido, a defesa da escola pblica passa, por um lado, por desmontar o
carcter pretensamente neutro da introduo de uma lgica de mercado na educao,
denunciando a sua tica perversa e a sua intencionalidade poltica e, por outro, por fazer
da definio e regulao das polticas educativas um processo de construo colectiva
do bem comum que educao cabe oferecer, em condies de igualdade e justia
social, a todos os cidados.
Debater a escola pblica
A defesa da escola pblica no pode estar prisioneira de qualquer tipo de
ortodoxia sobre o modo como se concretizam os seus ideais e se organizam as suas
estruturas e actividades. A preservao da escola pblica passa pela sua capacidade de
se actualizar face s mudanas que ocorreram ao longo do tempo, nos vrios domnios
da vida social. Entre as questes mais importantes a debater neste propsito de mudana
situa-se a questo da regulao das polticas educativas e o papel que o Estado, os
professores, os pais dos alunos e a sociedade em geral, devem ter nesse processo.
Como tenho vindo a afirmar em diferentes momentos e contextos (Barroso,
1997, 1998, 1999, 2000), no possvel reduzir o debate sobre os modelos de
governao da educao a uma opo entre, por um lado, uma administrao
centralizada, planificada e hierarquizada e por outro, um mercado, descentralizado,
concorrencial e autnomo. Existem outras alternativas na educao pblica, entre o
centralismo estatal e a livre concorrncia do mercado, entre a fatal burocracia do
sector pblico e o mito da gesto empresarial, entre o sbdito e o cliente.
Whitty (2002, p. 20) afirma a este propsito:
(...) nem o Estado nem a sociedade civil constituem um contexto adequado
para o exerccio de uma cidadania activa e democrtica, atravs da qual seja
alcanada a justia social. A reafirmao dos direitos dos cidados em
educao parece exigir o desenvolvimento de uma nova esfera pblica, algures
entre o Estado e a sociedade civil mercantilizada, em que novas formas de
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associao colectiva possam ser desenvolvidas. O desafio reside em saber como
sair de um processo de deciso atomizado, para o assumir de uma
responsabilidade colectiva em educao, mas sem recriar um sistema de
planificao supercentralizado (...).
Segundo o mesmo autor, se se pretende evitar um processo de deciso atomizada
que gera a fragmentao e a polarizao entre as escolas e no interior de cada escola
(como acontece actualmente em Inglaterra), necessrio criar novos contextos de aco
colectiva no interior da prpria sociedade civil. Isto obriga a uma nova concepo de
cidadania que vise criar a unidade sem negar a especificidade (Whitty (2002, p. 20).
Um dos exemplos mais significativos da necessidade de debater o modo como a
escola pblica deve poder criar a unidade sem negar a diversidade diz respeito ao
processo de planeamento e regulao dos fluxos escolares dos alunos e da introduo,
ou no, de dispositivos de escolha da escola pelos alunos e suas famlias.
A livre escolha da escola constitui uma das expresses mais emblemticas das
formas de regulao pelo mercado e tem sido objecto de vrias investigaes que
permitem caracterizar muitas das suas modalidades e efeitos. Embora existam mltiplas
modalidades de escolha (parcial, total, por voucher, sorteio, critrios previamente
definidos, etc.) e no se possam ignorar os contextos especficos de cada pas, as
investigaes realizadas tm mostrado que a regulao exercida por este dispositivo est
longe de orientar o sistema na direco com que a retrica liberal pretende legitimar esta
medida (nomeadamente, aumento da eficcia dos resultados, maior informao e
liberdade das famlias). Na verdade, os comportamentos das famlias no so
homogneos, havendo diferenas claras de estratgias e resultados, conforme o seu
estatuto social e proximidade aos valores escolares, pelo que, em vez de diversificar a
oferta, o que este tipo de regulao faz hierarquiz-la.
Apesar destes resultados, convm sublinhar (como o fazem os mesmos autores e
os trabalhos de Van Zanten, 2000, Barroso et alli, 2002, Barroso e Viseu, 2003, entre
outros, confirmam) que, nos pases onde funciona a carta escolar com a consequente
obrigao de os alunos frequentarem a escola da sua residncia, a situao no muito
mais risonha, uma vez que o mesmo tipo de famlias acaba por conseguir furar o
sistema, em funo dos mesmos critrios. A polarizao social, a hierarquizao dos
estabelecimentos, as desigualdades entre as escolas continuam a existir nos sistemas que
utilizam a carta escolar, embora de uma maneira mais encoberta.
Isto significa que, no caso do debate sobre a escolha da escola, como dizem
Dubet e Duru-Bellat (2000, p. 136), mais do que impedir as famlias de fugir, mais
valia dar-lhes boas razes para o no fazer. Isto passa por garantir uma escola pblica
justa e de qualidade para todos, que tenha em conta as especificidades locais,
promovendo uma poltica de discriminao positiva que corrija as assimetrias
econmicas e sociais e fazendo da participao dos alunos, dos professores e dos pais
um exerccio permanente de cidadania.
No caso presente, isso significa que a opo no pode estar limitada entre, por
um lado, preservar a escola pblica impedindo as famlias de fugirem dela, e por outro,
aniquilar a escola pblica com a criao artificial de um mercado educativo sustentado
com dinheiro pblico. A soluo passa, pelo contrrio, por um reforo da dimenso
cvica e comunitria da escola pblica, restabelecendo um equilbrio entre a funo
reguladora do Estado, a participao dos cidados e o profissionalismo dos professores,
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na construo de um bem comum local que a educao das crianas e dos jovens. Por
isso, em vez de dar a cada escola o seu pblico, preciso que cada escola se abra
diversidade dos seus pblicos, o que s possvel se for intransigente no
reconhecimento dos seus direitos e se for solidria com as suas necessidades, interesses
e anseios.
E era isto que se passava na Escola da Ponte! Por isso que importante a
continuidade do seu projecto e preocupante a ameaa que sobre ele cai por pretensos
critrios administrativos.
Promover a escola pblica
A promoo da escola pblica exige que o Estado continue a assegurar, como
lhe compete, a manuteno da escola num espao de justificao poltica (Derouet,
2003), sem que isso signifique ser o Estado o detentor nico da legitimidade dessa
justificao.
Esta alterao do papel do Estado (de burocrata e garante da ordem universal a
regulador das regulaes e compositor da diversidade local e individual) insere-se no
que Dubet (2002) chama de declnio do programa institucional.
Com o desenvolvimento das polticas pblicas, o programa institucional no
pode aparecer como a cristalizao duma teologia moral e poltica de que o
Estado podia ser considerado como o senhor todo-poderoso. J no se trata de
conceber a aco pblica como a execuo dum programa atravs de uma
burocracia impessoal, mas de mobilizar as redes e grupos de actores pblicos e
privados encarregados de atingir objectivos definidos como resultados mais ou
menos mensurveis. (...) O interesse geral j no surge como uma categoria
transcendente, mas como uma produo local resultante de uma aco colectiva
e dum modo de regulao contnuo. (...) As grandes arbitragens ticas e
polticas, no podendo fazer-se no topo atravs da magia retrica das
instituies ou graas soberania poltica, so delegadas aos actores de base,
que devem, deste ponto de vista, comportar-se como sujeitos polticos e morais
obrigados a deliberar e a produzir arbitragens (Dubet, 2002, pp. 63-65).
Esta desinstitucionalizao da vida social (pela perda de referncia a normas
universais) leva multiplicao dos espaos de produo poltica (enquanto lugares de
legitimao, escolha, inveno de normas, construo de projectos e tomada de
deciso). Por exemplo, as escolas deixam de ser (ou de parecer ser) lugares de aplicao
de um projecto educativo nico construdo a partir do centro, para serem (ou parecerem
ser) lugares de construo de projectos educativos mais ou menos autnomos. Isto
significa, entre outras coisas, que necessrio, no caso da administrao das escolas,
passar de uma regulao pelas normas a uma regulao pelos resultados, tendo
em vista j no garantir a sua homogeneidade, mas sim a sua equidade (Dubet e Duru-
Bellat, 2000, p. 206).
A proliferao de espaos de deciso no domnio das polticas (com a
descentralizao e o reforo da autonomia das escolas e com o alargamento
participao da sociedade civil) pode conduzir sua atomizao e consequente
fragmentao e polarizao do servio educativo. Torna-se, por isso, necessrio, como
adverte Whitty (2002, p. 92), criar novos contextos para determinar mudanas
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curriculares e institucionais que estejam ao servio da sociedade no seu conjunto. Isto
passa, segundo este mesmo autor, por novas formas de associao na esfera pblica nas
quais os direitos dos cidados sejam reafirmados (e defendidos), face s actuais
tendncias para a constituio de uma verso reduzida do Estado e para a
mercantilizao da sociedade civil.
Por tudo quanto foi dito, podemos concluir que a repolitizao da educao, a
multiplicao das instncias e momentos de deciso, a diversificao das formas de
associao no interior dos espaos pblicos e o envolvimento de um maior nmero de
actores conferem ao sistema de regulao da educao uma complexidade crescente.
Esta complexidade exige um papel renovado para a aco do Estado, com o fim de
compatibilizar o desejvel respeito pela diversidade e individualidade dos cidados,
com a prossecuo de fins comuns necessrios sobrevivncia da sociedade de que a educao um instrumento essencial.
Essa compatibilizao s possvel com o reforo da formas democrticas de
participao e deciso o que, nas sociedades contemporneas, exige cada vez mais uma
qualificada e ampla informao, a difuso de instncias locais e intermdias de deciso,
uma plena incluso de todos os cidados (particularmente dos que, at aqui, tm sido
sistematicamente excludos, do interior e do exterior). S assim possvel estabelecer
um acordo sobre uma base comum suficientemente generosa, atractiva e plausvel que
possa unificar os cidados no apoio escola pblica e que Tyack e Cuban (1995)
consideram ser uma necessidade crucial do nosso tempo (p. 142).
15
Em sntese
Tomando como pano de fundo os comentrios atrs produzidos, possvel
perceber at que ponto as medidas tomadas pelos responsveis do Ministrio da
Educao em relao Escola da Ponte podem servir de elemento de diagnstico sobre
a orientao que vem sendo dada poltica educativa pelo actual governo e pelas foras
polticas e movimentos de opinio que o apoiam2. Essa orientao visa produzir uma
ruptura com os valores que serviram de base democratizao da educao aps 25 de
Abril de 1974 e s inmeras iniciativas e projectos de renovao do ensino pblico que
emergiram em muitas escolas, nestes quase 30 anos: em favor da igualdade de
oportunidades; no combate excluso social; na promoo de formas participativas de
gesto; na construo de organizaes democrticas; na integrao de minorias e
desenvolvimento do multiculturalismo; na criao de situaes de aprendizagem que
incorporem os progressos tcnicos e do conhecimento cientfico, mas que sejam
ajustadas diversidade cultural e social dos alunos e suas comunidades de pertena.
Esta ruptura processa-se atravs de uma estratgia que se manifesta
politicamente por trs tipos de comportamentos: hipocrisia, dramatizao, mistificao.
Por hipocrisia poltica quero significar uma inconsistncia deliberada (uma
dissonncia e um paradoxo) entre os discursos, as decises e as aces. Esta hipocrisia
visa criar uma falsa aparncia de negociao e consenso necessria aprovao de
determinadas medidas susceptveis de provocarem uma forte conflitualidade poltica e
social, escondendo as reais intenes que lhes esto subjacentes e remetendo para a sua
regulamentao e aplicao (menos visvel, mais dispersa e desfasada no tempo) a
verdadeira concretizao desses propsitos.
Por dramatizao quero significar a representao que os responsveis fazem de
uma determinada situao (absentismo dos professores, indisciplina nas escolas, gesto
de recursos, resultados escolares, etc.) baseada numa viso impressionista parcial e
raramente fundamentada da realidade. Generalizam-se situaes isoladas e conjunturais,
associam-se factos que tm diferentes explicaes causais, transformam-se problemas
gerais em responsabilidades individuais, buscam-se bodes expiatrios, etc., com o
sentido de gerar, por anttese, um sentimento favorvel aceitao de princpios,
modelos e prticas apresentados como as nicas alternativas possveis: o mercado para
combater os malefcios do Estado; o autoritarismo para combater os malefcios da
indisciplina; a avaliao para combater os malefcios da autonomia; a qualidade para
combater os malefcios da quantidade; etc.
Por mistificao quero significar a arte de iludir a opinio pblica, abusando da
sua credulidade, explorando os seus sentimentos de insegurana (pela instabilidade
2 Esta orientao no exclusiva do actual governo e em Portugal ela comeou a manifestar-se, com relativa
visibilidade, desde o primeiro governo constitucional, com o perodo da normalizao (ver entre outros, Grcio, 1981, Stoer, 1986,
Correia, 1999 e Teodoro, 2001), tendo atingido uma expresso significativa no ministrio de Roberto Carneiro (ver entre outros,
Afonso, 1997, Marques Cardoso, 2003).
16
social em que se vive) e de frustrao (pela no concretizao das promessas da
escolarizao). Esta mistificao assenta numa viso maniquesta sobre os problemas da
educao: de um lado, esto os maus (os governos anteriores, os pedagogos e as
cincias da educao) responsveis pela situao calamitosa em que dizem encontrar-se
o ensino; do outro lado, esto os bons que pretendem resolver a situao fazendo o
oposto do que dizem que os outros fizeram e legitimando as suas aces com o
fatalismo da obedincia aos imperativos da globalizao, da qualidade, da eficcia, e
outros conceitos de aluguer (cabe l dentro tudo o que se quiser). Para concretizar esta
estratgia, tomam-se medidas anunciadas como bombsticas encerramento de institutos, suspenso de reformas, alterao da Lei de Bases, etc. cujas consequncias ficam muito aqum dos efeitos prometidos, mas que servem para entreter a opinio
pblica e fazer de conta que a educao est a mudar no rumo certo. Entretanto, de
maneira mais velada, vo-se tomando medidas mais pontuais e menos publicitadas,
justificadas por supostas razes de eficcia, qualidade, poupana de recursos que
constituem pequenos passos de um programa oculto e de longa durao. Este programa
visa desestruturar o actual sistema educativo e os seus fundamentos democrticos e
igualitrios para que, em devido tempo, possa ser introduzida e aceite pacificamente a
soluo final: privatizao da escola pblica; criao de uma escola elitista e
segregacionista; substituio dos interesses colectivos pelos interesses privados.
luz desta estratgia que devem ser analisadas as medidas tomadas contra o
projecto educativo da Escola da Ponte, seja qual for o destino que este caso venha a ter
no futuro prximo.
luz desta estratgia que urge defender, debater e promover a escola pblica,
cujo destino se encontra ameaado pelos que, a pretexto de resolverem os problemas da
educao, querem entregar a sua soluo chamada mo invisvel do mercado,
esquecendo que em educao (como no resto) a mo tem dono e s invisvel para
quem no quer ver!
Lisboa, 12 de Outubro de 2003
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19
A escola do futuro
M a r i a E m l i a B r e d e r o d e S a n t o s
No falarei da importncia da Escola da Ponte para os seus alunos, professores,
pais, comunidade Dessa, certamente bem marcante, podero falar os prprios melhor que ningum. Entendo, por isso, a pergunta Por que importante a experincia da Ponte? a outros nveis e noutros domnios:
Em primeiro lugar, como um exemplo possvel duma escola pblica diferente,
que desnaturaliza algumas caractersticas da escola tradicional e quer ter em conta as
mudanas econmicas, polticas e tecnolgicas ocorridas ou em curso e, ao mesmo
tempo, reforar e desenvolver as suas qualidades democrticas e democratizadoras.
Em segundo lugar, como um ensaio de modos de inovar que sejam desejados e
construdos pelos prprios interessados, designadamente pelos professores, a partir da
escola, da sua situao, dos seus actores e parceiros.
Em terceiro lugar, como uma concretizao de uma teoria e de uma prtica de
formao de professores, baseadas, como diz Rui Canrio, no exerccio profissional
em contexto, combinando a aco e a reflexo colectivas.
Parece haver um consenso a nvel internacional, quer entre decisores polticos
quer entre estudiosos e investigadores, quanto necessidade de busca de novas formas
de escolarizao e de organizao escolar, de novos paradigmas de mudana e de novos
modelos de formao de professores.
Em 1996, os Ministros da Educao dos pases da OCDE, reunidos em Paris,
manifestaram a sua preocupao com as mudanas rpidas e profundas em curso
mundialmente, com a capacidade de acompanhamento dessas mudanas pelos sistemas
educativos e com a necessidade de repensar os modos actuais de organizao da escola.
Convidaram, ento, a OCDE a avaliar as implicaes de diferentes vises da escola de
amanh, tendo em conta, em especial, as novas tecnologias e os progressos da
pedagogia. Assim nasceu o projecto A Escola de Amanh do Centro para a
Investigao e o Ensino (CERI) da Organizao de Cooperao e Desenvolvimento
Econmico (OCDE) onde se tenta perscrutar o futuro, construir cenrios de evoluo
possvel e apoiar e dar a conhecer experincias de escolas e de sistemas educativos
inovadores.
Mais recentemente, os Ministros da Educao, reunidos aquando da 45 sesso
da Conferncia Internacional da Educao, propuseram-se: Assegurar a participao
activa dos docentes e do conjunto de parceiros da educao nos processos de
transformao dos sistemas educativos () recrutar e manter na profisso docente indivduos () motivados e competentes () reforar a autonomia profissional e o sentido das responsabilidades dos professores () Suscitar o compromisso de todos os
20
parceiros () para que contribuam activamente para a criao de uma escola entendida como um centro activo de aprendizagem intelectual, moral, espiritual, cvica
e profissional adaptada a um mundo em constante mudana. (Projecto de declarao
in a Pgina da educao).
De 18 a 20 de Setembro deste ano 2003, reuniu em Lisboa, na Universidade
Lusfona, a International Sociological Association com o tema Critical Education and
Utopia. Emergent Perspectives for the 21st century. Tambm aqui a mesma preocupao
com o futuro, com a mudana e a inovao, com a necessria desnaturalizao da
escola, com o questionamento da sua organizao formal e dos objectivos por ela
servidos.
Ou seja, parece haver, por todo o lado e tanto da parte de decisores polticos,
como de cientistas da educao, uma preocupao profunda com as transformaes
recentes e em curso (desde a globalizao da economia emergncia de novas
realidades regionais e supranacionais; desde o desenvolvimento das novas tecnologias
ao conceito de sociedade do conhecimento e evoluo do mundo do trabalho e do
emprego; desde as transformaes sociais e demogrficas ao conceito de
desenvolvimento sustentvel) e com a dificuldade de a organizao centenria que a escola lhes dar resposta, para j no falar da sua dificuldade em preparar o futuro.
Daqui decorre um apelo permanente melhoria da qualidade das escolas e sua
mudana e o estudo que tem vindo a ser feito paralelamente, designadamente pela
OCDE, sobre os processos mais eficazes para promover esta mudana. O processo de
reforma centralizado, descendente e linear posto em causa e, em seu lugar, fala-se de
mudanas mais limitadas, surgindo a nvel local de escola, fundamentalmente e expandindo-se horizontalmente atravs de redes mais ou menos informais de
professores.
A biologia da evoluo, com a demonstrao de que as espcies novas se
formam muitas vezes a partir de pequenas populaes perifricas, ou a teoria da
gesto, com os conceitos de instituio aprendente e de empresas criadoras de saber,
inspiram, por exemplo, David Hargreaves, da Universidade de Cambridge, a defender
que, dado que as autoridades escolares no podem saber antecipadamente quais sero
as estruturas e as culturas educativas de que necessitaremos em 2020 e mais alm,
seria prudente deixar as escolas procurarem, por si mesmas, esta informao to
necessria e experimentarem, atravs de inovaes, o que funciona nas novas
condies.
A Escola da Ponte (actual Escola Bsica Integrada das Aves/S.Tom de
Negrelos e seu projecto Fazer a Ponte) parece ser um exemplo bem sucedido de escola
inovadora.
Ao longo de 25 anos foi alterando a sua estrutura organizativa, desde o espao
(de rea aberta que as crianas percorrem como uma casa que verdadeiramente
habitem), ao tempo (planificado quinzenalmente), ao modo (trabalho de pesquisa
predominantemente), a uma muito maior participao dos alunos na planificao das
aprendizagens e na vida social da escola e a uma muito maior autonomia na sua
realizao. Inspira esta organizao uma filosofia inclusiva e cooperativa que se traduz,
por exempto, nas seguintes normas simples: todos precisamos de aprender e todos
podemos aprender uns com os outros, quem sabe mais deve ajudar quem tem mais
dificuldades e quem aprende, aprende a seu modo. O no estilhaar da organizao por
21
classes implica um trabalho em equipa dos professores e a sua disponibilidade quase
permanente. Mas, como respondeu Jos Pacheco, num colquio, a algum que
lamentava os professores da escola da Ponte por terem que ser missionrios, antes
missionrios que demissionrios!
A escola da Ponte foi, alis, apresentada como uma rede informal de formao
contnua de professores, num Seminrio realizado em Lisboa, em Setembro do ano
2000, pela OCDE, em colaborao com o Instituto de Inovao Educacional.
Este mesmo Instituto (IIE) , atravs do programa Boa Esperana/Boas Prticas,
reconheceu a qualidade deste trabalho e apoiou o seu estudo e disseminao. Antes, j
iniciara esse apoio atravs do programa Educar Inovando / Inovar Educando do Sistema
de Incentivos Qualidade da Educao (SIQE, no IIE).
Existem, assim, documentos vrios em texto e imagem, em Portugal e no
estrangeiro, que do testemunho detalhado desta inovao. Por outro lado, a Escola da
Ponte foi-se tornando polo formal e informal de uma rede de formao contnua de
professores. Finalmente, os resultados, genericamente muito positivos, obtidos pelos
alunos da Escola da Ponte nas provas nacionais de aferio do 1 ciclo do Ensino
Bsico, vieram demonstrar que as alteraes introduzidas se traduziram tambm em
mais e melhores aprendizagens acadmicas. Estes resultados so tanto mais admirveis
quanto se no trata de uma populao seleccionada que, pelo contrrio, inclui at uma
percentagem de crianas com Necessidades Educativas Especiais bem superior mdia.
Prolongar esta experincia to rica e to bem sucedida para o 2 ciclo foi o
passo seguinte. Falta agora o 3. Trata-se de um verdadeiro desafio cheio de
dificuldades e de riscos, mas com algumas condies altamente favorveis porque
desejado por alunos, pais e professores.
Para todos aqueles que se interessam por educao, esta experincia da Escola
da Ponte deveria ser seguida, estudada e apoiada como um verdadeiro laboratrio de
mudanas necessrias, proporcionando-lhe um ambiente securizante, reduzindo-lhe os
riscos e aumentando as possibilidades de xito.
S assim confiando, ensaiando, estudando, reorientando... poderemos participar na construo de uma escola do futuro, pblica e aberta a todos os pblicos,
democrtica no acesso, na organizao e na participao e democratizadora nos seus
efeitos. Ou no ser isso que todos queremos?
22
Uma inovao apesar das reformas
R u i C a n r i o
Por que foi to importante o movimento de solidariedade gerado em torno da
Escola da Ponte, por aco de tantos professores, educadores e cidados? Que lies
encerra a experincia da Escola da Ponte e em que nos pode ser til para o futuro?
Como pde uma pequena escola, aparentemente isolada, gerar apoios e resistir? Donde
vem a sua fora? Em que reside a exemplaridade desta luta? Eis algumas das perguntas
para as quais pretendo, neste texto, esboar algumas tentativas de resposta. Para que a
solidariedade com a Escola da Ponte seja, para alm da sua dimenso afectiva, um acto
de lucidez.
Aprender a escutar as escolas
Por contraste com uma perspectiva de estabilidade e continuidade, os conceitos
de mudana, inovao e reforma emergiram, a partir do final dos anos sessenta, como
palavras-chave para descrever, pensar e planear o funcionamento dos sistemas
escolares. A criao de agncias especializadas na promoo de inovaes, o
desenvolvimento da investigao aplicada e o crescente domnio do saber tcnico-
cientfico reforaram os mecanismos de tutela externa sobre os professores e as escolas.
Apesar da retrica sobre a criatividade das escolas, os processos de mudana deliberada
basearam-se numa atitude de desconfiana relativamente aos professores e s escolas,
apresentados como intrinsecamente resistentes inovao. A obrigao imposta s
escolas de serem inovadoras colocou estas numa situao penosa, de permanente duplo
constrangimento, ou seja, na impossibilidade de corresponder a esta exigncia: no
possvel ser criativo, por imposio externa.
Os processos de mudana deliberada, em larga escala, saldaram-se, regularmente
e por toda a parte (como particularmente notrio no caso portugus), por fracassos e
decepes. Estes fracassos podem ser relacionados com dois erros principais, um erro
de diagnstico e um erro de metodologia. O primeiro erro consiste em referenciar a
crise da escola como uma mera crise de eficcia e de meios, sobrevalorizando-se uma
resposta de natureza tcnica. Sabemos hoje que a crise da escola se situa, sobretudo, no
campo da legitimidade e apela, por isso, a respostas polticas que se situam no terreno
dos fins da aco educativa. O segundo erro radica em processos de mudana
construdos a partir de cima, numa lgica de exterioridade relativamente aos contextos e
aos actores locais. Esta importao para o campo educativo de processos industriais de
produo de mudanas contribuiu para acentuar, em vez de resolver, a crise da escola,
estabelecendo uma relao de conflito entre os processos de mudana institudos (do
centro para a periferia) e os processos de mudana instituintes (construdos a partir de
baixo). Em sntese, as escolas e os professores tm vindo de forma metdica, regular e
persistente, a ser vacinados contra as mudanas.
23
Este efeito perverso de vacina s pode ser prevenido e contrariado se, de uma
atitude de tutela, a Administrao puder evoluir para uma atitude de escuta,
relativamente s escolas e aos actores locais, nomeadamente, os professores.
Reconhecer, compreender, valorizar e apoiar iniciativas inovadoras das escolas
representa assumir uma estratgia indutiva de conhecimento e interveno na realidade
que se situa nos antpodas da lgica da reforma. Esta estratgia indutiva implica
reconhecer duas coisas que, sendo irritantes para alguns, no deixam, por isso, de ser
bvias: por um lado, tm sido as escolas a mudar (ou esvaziar de sentido) as reformas e
no o contrrio; por outro lado, s possvel mudar as escolas com os professores e no
contra eles. Implica, ainda, uma terceira concluso, a de que possvel e necessrio
aprender a aprender com aquilo que as escolas fazem (de bom e de mau).
nesta perspectiva que deve ser entendido o meu testemunho sobre a
experincia que, desde h mais de duas dcadas, tem vindo a ser laboriosa e
persistentemente construda, com avanos e recuos, feita e refeita, maneira de Ssifo,
por uma equipa de professores que, em Vila das Aves, teimam em ser autnomos,
criativos e donos da sua profisso sem, para isso, pedirem autorizao prvia. possvel
e necessrio aprender com a Escola da Ponte. Tentarei, de modo sucinto, enunciar
alguns dos aspectos desta experincia que me parecem mais marcantes e mais fecundos,
em termos da nossa aprendizagem.
Uma inovao contra as reformas
Ao longo dos ltimos 25 anos desenvolveu-se na Escola da Ponte uma
experincia mpar, marcada por um percurso complexo, no linear e necessariamente
conflitual, enquanto que, paralelamente, se processava uma sucesso de reformas
conduzidas pelas sucessivas equipas do Ministrio da Educao. Como prprio das
paralelas, estes dois processos nunca se encontraram, no sentido de mutuamente se
fecundarem. Ao longo de mais de duas dcadas o Ministrio agiu como um obstculo,
primou pela ausncia e raramente se colocou numa posio facilitadora, com excepo
do curto lapso de tempo em que esta, como outras experincias inovadoras, esteve
integrada no Programa Boa Esperana, da responsabilidade do Instituto de Inovao
Educacional. Pode, assim, dizer-se que a experincia da Escola da Ponte se desenvolveu
margem e apesar das reformas. Seremos at mais exactos se afirmarmos que ela se
desenvolveu contra as reformas, na medida em que se baseia em pressupostos e em
solues que so contraditrios com aquilo que tem sido a aco dominante da
Administrao.
- A experincia da Escola da Ponte tem subjacente uma teoria e uma prtica de formao de professores baseada no exerccio profissional em contexto,
combinando a aco e a reflexo colectivas. Na histria da experincia ganha
particular relevncia a construo de projectos autoformativos, baseados na
figura do crculo de estudos. Esta formao nada tem a ver com o desenfreado
consumo da formao, orientado para a acumulao de crditos que constituiu o
eixo estruturante da formao contnua de professores durante a dcada de 90.
- A experincia da Escola da Ponte encontrou uma resposta pedagogicamente coerente para lidar com a heterogeneidade do pblico escolar, sendo exemplar a
forma como integra e resolve os problemas dos chamados alunos difceis ou com
necessidades especiais. A construo desta resposta s foi possvel num quadro
24
de superao da organizao em classe, na medida em que esta foi
historicamente concebida para lidar com o aluno mdio. Pelo contrrio, as
sucessivas reformas, em termos da individualizao pedaggica, tm
permanecido no estdio da retrica ou, pior que isso e em nome da
diferenciao, reproduzem o que h de mais negativo na organizao
homognea em classes. Disto so um claro exemplo os chamados currculos
alternativos.
- Na experincia da Escola da Ponte os professores falam pouco de autonomia, mas exercem-na e constroem-na desde h muito. uma autonomia no
outorgada nem tutelada. Em contrapartida, a autonomia decretada pelo
Ministrio desencadeou (por boas ou ms razes) um sentimento defensivo e de
rejeio pelos professores, da autonomia que lhes caiu em cima. Parece ser
bvio que no a mesma autonomia que est em causa.
- As preocupaes com a flexibilidade da gesto curricular esto melhor representadas na experincia da Ponte (polivalncia dos espaos, flutuao dos
agrupamentos dos alunos, gesto autnoma dos tempos, diversidade de
dispositivos de aprendizagem, organizao democrtica da vida da organizao)
do que nas sucessivas reformas curriculares que, em nome da flexibilidade,
estabelecem, de modo inflexvel, solues uniformes (por exemplo, que a aula de
50 minutos seja substituda, em todo o lado, de forma obrigatria e autnoma
pela aula de 90 minutos).
Se a experincia da Escola da Ponte e a actividade reformadora central
obedecem a lgicas divergentes, no possvel reconhecer a experincia da Ponte e
praticar o contrrio? O que que estamos disponveis para aprender com a escola da
Ponte?
Escola: alargar o campo dos possveis
O dois ltimos sculos representaram o triunfo incontestvel da escola, enquanto
trao distintivo da modernidade. Esse triunfo desvalorizou todas as modalidades
educativas no escolares e empobreceu o nosso patrimnio educativo, tornando a
educao refm do escolar. A sada para este paradoxo reside, por um lado, na
relativizao do escolar (integrado como componente da educao permanente) e, por
outro lado, na sua reinveno, o que possvel, na medida em que se trata de uma pura
criao humana, tal como tudo o que social. A escola uma inveno histrica recente
e corresponde, por isso, a uma escola entre vrias escolas possveis. A escola que
historicamente conhecemos corresponde a trs dimenses que, em termos de anlise e
de aco, pertinente distinguir:
- Corresponde a uma outra forma de conceber a aprendizagem, com base na dissociao entre o tempo e o espao de aprender e o tempo e o espao de agir,
privilegiando a ruptura com a experincia dos sujeitos e os modos de
aprendizagem baseados na continuidade com a experincia.
- Corresponde a uma nova instituio portadora de uma forma especfica de socializao normativa que ganhou progressivamente uma posio hegemnica;
25
- Corresponde, ainda, a uma nova organizao, que corporiza uma relao social indita a relao pedaggica escolar com base num conjunto de invariantes (organizao do espao, do tempo, dos saberes e do agrupamento dos
alunos) que, por efeito de um processo de naturalizao, se tornaram
particularmente pouco visveis e refractrios a mudanas. O cerne estruturante
da escola a organizao dos alunos em classes homogneas, objecto de um
ensino simultneo por parte de um professor.
A ruptura com a organizao em classe constitui o trao mais distintivo,
importante e original, da experincia da Escola da Ponte. essa ruptura que explica que
o processo de mudana tenha sido lento, mas consistente (e no superficial e passageiro,
como frequente). Essa ruptura representa uma mudana radical (que vai raiz das
coisas) e equivale a construir uma organizao outra que pe em causa todos os
esteretipos no explicitados que continuam a servir de referncia para analisar e
intervir na realidade escolar. Nesta mudana radical reside o poder de atraco da
experincia da Ponte mas, simultaneamente tambm, os temores que inspira. Da que a
admirao, por vezes reverente, possa ser concomitante com a ideia de que se trata de
algo excepcional e que no pode constituir um referente para as restantes escolas.
a ruptura com a organizao em classe que obriga a que a experincia da Ponte
corresponda a uma interveno sistmica que abrange a escola como um todo e implica
uma aco colectiva do conjunto dos professores. desta ruptura com a classe (que as
sucessivas reformas e inovaes oficiais no s no questionaram como, em muitos
casos, reforaram) que decorre a possibilidade de a Escola da Ponte ser uma escola onde
no h aulas, no h anos de escolaridade, nem turmas, onde os espaos so
polivalentes, onde os professores no se queixam da falta de tempo para dar o
programa, onde os discursos e o pensamento dos professores goza de autonomia, em
vez de ser reactivo ao que o Ministrio faz, diz ou pensa fazer.
A organizao escolar moderna baseou-se na transposio da relao dual entre
um professor e um aluno para uma relao dual entre um professor e uma classe. O
pensamento pedaggico continuou preso primeira alternativa (a relao professor-
aluno) em desfasamento com a realidade (a relao professor-classe). Na experincia da
Ponte, esta contradio foi superada, na medida em que a organizao estruturada por
uma relao entre uma equipa de professores e um conjunto de alunos, considerados na
sua individualidade e que multiplicam entre si, na relao com os espaos e na relao
com os professores, uma gama variada de modalidades de interaco. assim que se
torna vivel uma escola que, em princpio, no deveria funcionar: todos os professores
trabalham com todos os alunos e estes no tm um lugar fixo para brincar, trabalhar e
aprender.
A demonstrao prtica de que possvel organizar uma escola de forma bem
sucedida, sem o recurso organizao por classes, representa uma contribuio
inestimvel dos professores da Escola da Ponte para enriquecer a utensilagem mental
que nos permite lidar com os problemas da organizao escolar.
Desalienar o trabalho escolar
A impresso mais imediata, e marcante, que se retira do contacto com os
professores e alunos da Escola da Ponte a de que todos se sentem bem na sua pele,
26
conhecem o seu papel e so protagonistas de um projecto comum que envolve toda a
escola. O modo como os alunos mostram a sua escola aos visitantes um indicador
relevante da sua implicao e responsabilizao na vida colectiva, igualmente
observvel nas reunies de debate, nas assembleias de escola e nos mltiplos grupos de
responsabilidade em que se organizam. A escola constri-se a partir do trabalho dos
alunos que, no sendo considerados nem clientes nem matria prima, so tratados como
crianas que esto a aprender a ser gente. Esta organizao a partir do trabalho dos
alunos baseado na construo progressiva da sua autonomia para gerir tempos e espaos, planear actividades, gerir informao e organizar a sua avaliao corresponde a modalidades de regulao extremamente complexas baseadas numa
grande diversidade de dispositivos que, no seu conjunto, representam uma alternativa
organizao por classes. Esta organizao funcional relativamente a uma actividade
dos alunos como produtores que permanentemente se exercitam no uso da palavra como
instrumento autnomo de cidadania. Aprender a ler e a escrever , ento, indissocivel
de aprender a ser gente, o que permite escola um acrscimo de eficcia nas suas
funes instrutivas tradicionais: as crianas lem e produzem escrita desde o primeiro
dia de escola.
O modo original de organizar o trabalho dos alunos tem uma contrapartida
simtrica quer no modo igualmente original de organizar o trabalho do professor, quer
no modo como este se relaciona com os colegas (trabalho colectivo), com os alunos e
com os saberes profissionais. particularmente estimulante o modo como na Escola da
Ponte se reequaciona a especificidade dos professores do 1 Ciclo no que diz respeito
articulao entre generalismo e especializao e como se dissocia a especializao da
disciplinarizao. Os contributos da experincia da Ponte, quer em relao
organizao escolar (como reconhecido pela sua transformao numa Escola Bsica
Integrada), quer em relao reconfigurao do ofcio de professor, no se
circunscrevem ao mbito do 1 ciclo do ensino bsico. Por outro lado, esses contributos
no se fundamentam em palavras, mas em aces que colocam em bases diferentes o
debate sobre o futuro da escola e da profisso docente.
Se a actividade desenvolvida na escola for encarada como um trabalho, as
possibilidades de ele ser vivido com prazer ou como algo penoso permanecem em
aberto. A dissociao entre o sujeito e o trabalho que realiza exprime-se por uma
ausncia de sentido que fonte de alienao. Esta alienao est presente de forma
dominante no trabalho assalariado. O prazer s possvel se o trabalho puder ser vivido
como uma expresso de si, ou seja, como uma obra. A distncia que vai do enfado ao
prazer, no trabalho escolar, a distncia que separa a escola linha de montagem da
escola feita projecto colectivo em que todos so produtores de saberes. A experincia da
Escola da Ponte fornece-nos elementos para que outras escolas possam percorrer este
caminho. Ensina-nos tambm que as mudanas nos modos de organizar o trabalho
escolar tm de abranger simultaneamente os professores e os alunos, os quais esto
condenados a ser aliados.
Continuidade e inovao
A experincia construda na Escola da Ponte no inteiramente original porque
no pode (nem seria desejvel que pudesse) partir do zero. Nesta experincia est
subjacente um elo de continuidade com um patrimnio de profissionalismo autnomo
consubstanciado em movimentos pedaggicos (Escola Nova, Movimento da Escola
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Moderna) e no pensamento e obra de educadores como Freinet, Dewey ou Paulo Freire.
A experincia da Escola da Ponte situa-se numa linha de continuidade relativamente a
este patrimnio comum, mas vai mais alm. Situa a questo da relao pedaggica num
quadro organizacional que o pensamento pedaggico anterior tendeu a subestimar ou
mesmo a negar. A construo de um outro referencial faz-se, no caso da Ponte, a partir
de uma escola ordinria, com os problemas, os constrangimentos e os recursos de
qualquer outra. A construo do projecto tem como fundamento a recusa de uma
atomizao do trabalho do professor, confinado a um territrio (a sala de aula) e a um
grupo (a classe), ou seja, a recusa de uma cultura profissional baseada na insularidade
que fonte de solides e sofrimentos.
Nas ltimas dcadas no escassearam as solues para os problemas educativos.
As reformas correspondem, justamente, a gigantescas mquinas para impr solues,
com o sucesso que se conhece. Parece que somos fortes em solues mas temos mais
dificuldade em equacionar os problemas de forma lcida e criativa. A experincia da
Ponte, com base em factos e no apenas em palavras, permite-nos reequacionar
diferentes dimenses do problema da escola: o problema do trabalho dos professores e
da sua formao profissional, a gesto da diversidade de pblicos, a construo de
processos de aprendizagem baseados no conceito de sujeito aprendente, a construo de
processos educativos contextualizados e participados pelos actores locais, a questo da
dimenso cvica da educao.
A melhor maneira de aproveitar, de modo fecundo, a experincia da Escola da
Ponte a de no encarar o seu contributo como uma soluo acabada e pronta a
exportar. O que se fez e faz na Escola da Ponte pode e deve ser apropriado por outros
colectivos e reconfigurado noutros contextos. No pode ser exportado e muito menos
copiado. A sua principal virtude reside em mostrar que o problema da escola tem um
carcter indeterminado e admite uma pluralidade de solues, cuja pertinncia uma
varivel social e histrica. A procura de caminhos alternativos no axiologicamente
neutra e, por isso, os problemas educativos com que nos defrontamos so, no essencial,
problemas de fins e no de meios. A experincia da Ponte tem subjacente uma
articulao entre projecto educativo e projecto social.
A centralidade da autonomia da escola
Para muitas pessoas, a forma obstinada e teimosa como a actual equipa
ministerial conseguiu transformar uma escola que funciona muito bem, inclusive
segundo os seus prprios critrios, num problema de alcance nacional s pode ser
revelador de inabilidade poltica ou de uma total incapacidade para compreender as
potencialidades que a experincia educativa da Escola da Ponte encerra. Mas o ataque
Escola da Ponte no poder ser plenamente compreendido se no for situado no quadro
de uma incompatibilidade de fundo entre a natureza desta experincia e as orientaes
de poltica educativa prosseguidas pelas diferentes equipas ministeriais desde os anos
80.
A experincia educativa desenvolvida na Escola da Ponte constitui a mais clara
afirmao do que pode ser a construo da autonomia de uma escola, baseada no
profissionalismo de uma equipa docente, em alternativa, quer a tutelas burocrticas e
centralizadas, quer a tutelas de clientelas polticas locais. Este processo de conquista,
construo e afirmao de uma autonomia real, no outorgada nem imposta por decreto,
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portador de futuro, na medida em que enuncia e corporiza as trs orientaes que, por
contraste com as estratgias de reforma, podem fazer coincidir a melhoria do
desempenho da escola com um processo de desenvolvimento simultaneamente
organizacional e profissional.
Essas trs orientaes so: em primeiro lugar, instituir, no funcionamento da
escola, mecanismos de regulao divergente que permitam transformar a escola numa
organizao qualificante, capaz de aprender com a experincia e de reorientar, de forma
permanente, o modo como articula recursos e finalidades, instituindo modos de gesto
estratgica; em segundo lugar, reforar a profissionalidade docente, contrariando os
processos de tendencial proletarizao do trabalho dos professores, o que implica que
eles possam controlar o sentido e o produto do seu trabalho; em terceiro lugar, instituir
processos e dinmicas indutivas de mudana que possam optimizar o potencial de
criatividade e o capital de inteligncia que existe nas escolas. A metodologia da
Reforma, que domina a cena da gesto do sistema escolar desde meados dos anos 80,
ope-se a estas orientaes, ponto por ponto: prope-se ensinar s escolas o que devem
fazer, procura transformar os professores numa alavanca humana capaz de servir
funcionalmente uma poltica de mudana dedutiva em que a periferia (as escolas) aplica
o que decidido, decretado e regulamentado no centro. O problema criado pelo
Ministrio da Educao na Escola da Ponte o resultado de uma contradio entre
lgicas de aco distintas, representa uma aco deliberada e coerente e no um
acidente de percurso devido a um mal entendido ou a um confronto de teimosias.
Escola da Ponte: uma luta exemplar
Razes boas e vlidas para justificar a solidariedade com a Escola da Ponte no
faltam. A dificuldade reside em escolher e hierarquizar. O processo de luta em que esto
implicados os professores, os alunos e os encarregados de educao desta escola , a
vrios ttulos, exemplar e nessa exemplaridade reside a sua importncia,
independentemente dos resultados imediatos que possam ou no ser obtidos.
Em primeiro lugar, o processo da Escola da Ponte representa um referencial para
todos os que continuam a considerar fundamental a existncia de um servio pblico de
educao, norteado pelos valores da democracia e da justia. O projecto educativo da
Escola da Ponte ilustra bem a possibilidade de construir uma escola simultaneamente
exigente e eficaz na promoo das aprendizagens e capaz de acolher uma grande
diversidade de pblicos, construindo um ambiente educativo que reconhece nos alunos
as pessoas que os habitam. Em segundo lugar, os professores desta escola batem-se pelo
reconhecimento do seu direito a definir o sentido e a controlar o produto do seu trabalho
e este combate faz-se em consonncia com uma concepo de idntica dignidade e
valorizao do trabalho dos alunos. Em terceiro lugar, a construo de um dispositivo
global de aprendizagem, inovador em relao tradicional gramtica da escola,
concomitante com um processo de co-produo da oferta educativa com os seus
destinatrios e interessados (alunos e encarregados de educao), atravs de
mecanismos de participao que ultrapassam o mero registo formal.
A autenticidade destes mecanismos participativos tem sido bem evidenciada
pelos acontecimentos mais recentes. Esta experincia anuncia-nos uma escola cujo
projecto educativo pode assentar em valores que so emergentes da aco colectiva dos
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actores educativos, nico suporte slido para uma autonomia liberta de tutelas centrais
ou locais.
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Repensar a escola e o sentido do trabalho escolar
F e r n a n d o I l d i o F e r r e i r a
O tipo de investigao que tenho privilegiado nos ltimos anos a pesquisa etnogrfica tem-me permitido manter um contacto e uma presena directa e prolongada em contextos educativos concretos. Tem sido em situaes diversas, de
envolvimento em projectos, de participao em aces de formao, de observao de
reunies, de visitas a escolas, de entrevistas com alunos, professores, pais, autarcas,
gestores escolares e outros actores educativos, que tenho construdo um conhecimento
por dentro da vida quotidiana das escolas. Mas nem sempre esse conhecimento tem sido
fruto da investigao mais estruturada e planificada. Frequentemente, tem sido nas
situaes mais informais, de conversa com as pessoas, nas quais escuto, mais do que
fao perguntas, que esse mundo se revela com maior clareza. Essas conversas revelam,
muitas vezes, um conhecimento diferente um conhecimento da escola, vista de fora, por quem no vive no seu seio e para quem ela se apresenta como uma realidade mais
estranha. E este conhecimento da estranheza essencial, sobretudo quando o que est
em causa uma realidade que tende a ser encarada como naturalmente boa
independentemente das suas prticas e experincias concretas.
Poderia contar vrios episdios reveladores deste tipo de conhecimento, mas
refiro aqui apenas uma conversa recente com um casal jovem que tem uma filha de seis
anos que acabou de entrar na escola. Como outros pais e mes, estes esto interessados
na vida escolar dos filhos. Neste caso, pude aperceber-me que eles no esto apenas
interessados, como j esto tambm bastante preocupados, apesar de a menina s ter
entrado para a escola h duas ou trs semanas. Contavam-me, receosos, que a professora
lhes dissera que a filha estava atrasada no i. Poderamos discutir amplamente o
significado desta expresso, que profundamente reveladora de concepes e prticas
de ensino, mas o que provocou maior estranheza foi o facto de eu prprio ter verificado
que a criana identificava e desenhava o i perfeitamente. Durante a conversa, pude
perceber, no entanto, que no era isso que estava em causa. Estar atrasada no i
significava que a criana no escrevia tantas linhas de iiiii quantas a professora
pretendia.
Este episdio ilustra uma das caractersticas mais enraizadas da forma escolar
tradicional o trabalho desprovido de sentido, baseado na mera repetio que as sucessivas reformas educativas das ltimas dcadas conduzidas pelo Ministrio da
Educao no conseguiram alterar, apesar de tanta retrica e de tanta legislao
produzidas. Neste perodo, tm-se desenvolvido, apesar de tudo, experincias que
questionam profundamente a forma escolar tradicional e mostram que a escola da
repetio no uma fatalidade e que possvel construir uma escola com sentido para
os saberes e para as pessoas que os trabalham no contexto escolar.
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A Escola da Ponte talvez o exemplo mais marcante de uma escola com sentido
que nasceu e se desenvolveu no perodo democrtico em Portugal, com a qual temos
muito a aprender. E possvel aprender com ela, no apenas nas suas dimenses
endgenas, mas tambm sobre os mecanismos das reformas educativas e de outras
decises do Ministrio da Educao que frequentemente criam dificuldades,
inviabilizam e at destrem experincias e projectos inovadores, tal como est a
acontecer hoje em relao ao projecto educativo da Escola da Ponte.
A lgica de reforma como mecanismo inibidor da transformao da escola
As reformas educativas so frequentemente apresentadas como um desgnio
nacional, com base no argumento de que o pas est atrasado, de que tem pela frente o
desafio da modernizao e de que necessrio proceder a reformas estruturais. Porm,
como lembra Stephen Ball (2002), as tecnologias polticas de reforma educacional no
so apenas veculos para a mudana tcnica e estrutural; so tambm mecanismos que
contribuem para a mudana das subjectividades, das identidades e dos valores. Por
exemplo, sob a aparncia de liberdade criada pela retrica da devoluo de poderes, da
flexibilidade e da autonomia, emergem novas formas de controlo que impregnam as
subjectividades dos professores e afectam as condies de trabalho e de vida nas
escolas. Estas tecnologias, das quais este autor destaca o mercado, o gerencialismo e,
particularmente, a performatividade, pem em causa a colegialidade e a autenticidade
dos professores. A cultura da performatividade competitiva gera sentimentos de culpa,
incerteza e insegurana ontolgica: Estarei a trabalhar bem?, Estarei a trabalhar o
suficiente?, Estarei a trabalhar no sentido certo?, Ser isto que querem que eu faa?.
Ora, esta insegurana tende a gerar uma fantasia encenada para ser vista e avaliada; o
espectculo e a opacidade tendem a sobrepor-se transparncia e autenticidade.
Estes mecanismos tm gerado a ideia, no interior das escolas e entre os
professores, de que as mudanas educativas lhes so exteriores. Isto , tendem a ser
encaradas como assuntos de gesto e da exclusiva responsabilidade dos administradores
e dos gestores, em relao s quais os professores que trabalham quotidianamente com
os alunos parecem considerar-se alheios ou apenas actores secundrios. Mesmo falando-
se muito, actualmente, em autonomia da escola, a gesto que tem estado no centro das
preocupaes das escolas e dos agrupamentos de escolas, designadamente com a
instalao de rgos, com a realizao de muitas reunies e com a elaborao de
documentos escritos, como os regulamentos e os projectos.
Se bem que as preocupaes com a gesto da escola j viessem da dcada
anterior, designadamente em torno da ideia de gesto democrtica, no contexto da
reforma educativa iniciada em Portugal em meados da dcada de 80 que se instala no
debate educacional, o conceito de gesto: o novo modelo de gesto, o regime de
autonomia e gesto, a gesto local da escola, a gesto da rede escolar, a gesto
curricular, a gesto pedaggica, a gesto de recursos. Os diversos documentos que tm
que elaborar o regulamento interno, o projecto educativo, o projecto curricular, etc. , os aspectos morfolgicos da composio dos rgos de gesto da escola e as questes
da rede escolar, expressas por exemplo nas preocupaes com as modalidades de
agrupamentos de escolas horizontais ou verticais invadiram as preocupaes dos professores, em detrimento dos assuntos respeitantes s actividades, aos saberes e s
aprendizagens escolares.
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No perodo recente, embora sejam abundantes as referncias s polticas de
autonomia e de gesto local da escola, as estruturas da administrao do Ministrio da
Educao tm criado um verdadeiro corrupio nos contextos da aco local. Por
exemplo, o projecto transformou-se numa das principais preocupaes da escola, mas
apenas nas suas dimenses formais e instrumentais. Como temos vindo a observar, os
professores viram-se obrigados a elaborar o projecto educativo de escola, o projecto
curricular de escola, o projecto curricular de turma, e outros, mas em grande medida
assumindo esse trabalho como um processo administrativo de elaborao de
documentos escritos exigidos pela Administrao e pela Inspeco. Do mesmo modo,
no mbito da reorganizao curricular, as novas reas a rea de Projecto, a Formao Cvica e o Estudo Acompanhado tendem a ser encaradas como modas, como mais uma disciplina a leccionar, como uma forma de intensificao do seu trabalho.
A caracterizao que Antnio Nvoa (1999) faz da situao actual dos
professores e da educao escolar bastante elucidativa. O perodo recente tem sido
marcado, como diz, pelo excesso de discursos e pela pobreza das prticas e por um
pensamento que se projecta num excesso de futuro como forma de justificar um
dfice de presente. A mudana tende a ser encarada como um mero jogo nominalista,
como se no houvesse outra mudana para alm da alterao dos nomes. o caso, por
exemplo, da passagem da rea escola para a rea de projecto, ou dos currculos
alternativos para a gesto flexvel do currculo. Mas estas mudanas no tm penetrado
no mago do trabalho escolar. Pelo contrrio, o entendimento da mudana como uma
mera alterao dos nomes no apenas inibidor da transformao do trabalho
pedaggico como tambm legitimador da conservao das prticas tradicionais. Isto ,
para sobreviverem profissional e institucionalmente no clima de urgncia criado pelas
reformas educativas, as escolas e os professores tendem a esconder as suas prticas e a
preocupar-se mais com a produo de discursos pedagogicamente correctos em
conformidade com os temas do momento das reformas educativas.
O ambiente de reforma permanente das duas ltimas dcadas no tem sido,
portanto, favorvel reflexo, experimentao e descoberta de alternativas forma
escolar tradicional, pois a azfama de mudana e o alvoroo projectocrtico em que as
escolas e os professores tm estado mergulhados tm gerado uma mentalidade
expectante e uma lgica de sobrevivncia que se traduz numa maior preocupao com a
encenao, o aparato e o faz-de-conta do que com os processos educativos concretos.
Tal clima no tem deixado tempo para a reflexo sobre questes que possam fazer a
prpria agenda educativa das escolas e dos actores locais. Estes andam cada vez mais
atarefados, desinteressando-se, ou vendo-se impossibilitados, muitas vezes, de
exercerem uma atitude reflexiva e crtica sobre os constrangimentos e as oportunidades
da sua aco profissional. Os temas do momento das reformas educativas tendem,
assim, a ser encarados numa lgica aditiva mais trabalho, mais disciplinas, mais reunies, mais papis e de exterioridade relativamente aos processos de mudana a mudana o que eles (o Ministrio e as estruturas da administrao) determinam e no como uma possibilidade de transformao do prprio trabalho quotidiano. No
deixando tempo aos professores, aos alunos, aos pais e a outros actores locais para a
reflexo sobre o que realmente necessrio mudar nas escolas, o ambiente de reforma
permanente tem sido, assim, mais favorvel emergncia de um pensamento fatalista e
resignado do que aco autnoma e reflexiva.
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A Escola da Ponte como smbolo de esperana e de coragem
A lgica de reforma avessa s experincias inovadoras que escapam sua
obsesso pela uniformidade e pelo controlo. Ignorando o valor dessas experincias, a
lgica de reforma impe-lhes enquadramentos legais, aplica-lhes decises e inviabiliza-
lhes projectos, acabando muitas vezes por as destruir. Frequentemente, esses
enquadramentos e decises so apresentados como uma espcie de desgnio nacional,
com base no argumento de que necessrio proceder a reformas. Acontece, porm, que,
apesar da difuso de slogans como em cada escola fazer a reforma ou a escola no
centro das polticas educativas e da retrica da autonomia da escola, da possibilidade
de as escolas construrem um projecto educativo prprio, da necessidade da
participao de todos os interessados no processo educativo, as reformas educativas
conduzidas pelo Ministrio da Educao tm-se desenvolvido quase sempre em funo
de crenas, interesses e estratgias muito particulares, parecendo por vezes mais o
resultado de um capricho do que de um processo de produo de polticas pblicas.
Sendo, embora, apresentadas como reformas, as ditas decises tornam-se, na realidade,
muito volteis. E , em grande medida, esta volatilidade que est na origem do
desalento que se vive hoje no interior das escolas, face constatao de que essas
reformas intensificaram o trabalho, mas no em benefcio da construo de uma escola
com sentido.
Uma das ltimas ideias difundidas pelo Ministrio da Educao a de que agora
pretende que a rede escolar privilegie a integrao do 1 e do 2 ciclos do ensino bsico
e no a integrao dos trs ciclos, na modalidade que ficou conhecida, desde os anos 90,
como a escola bsica integrada. Apesar desta matria de tipologias de rede escolar j
estar esgotada no debate educacional e de, ao longo das duas ltimas dcadas, j ter
esgotado a pacincia de muitos autarcas, gestores escolares, professores e outros actores
do sistema escolar, elas continuam a ser apresentadas pelos responsveis do Ministrio
da Educao como prioridades educativas. Tal no significa que a tipologia e os nveis
de ensino que uma escola deve abranger sejam aspectos irrelevantes; o que significa
que a questo se torna relevante apenas quando inserida num projecto educativo que no
fique refm dos aspectos de morfologia. Esta a caracterstica essencial do projecto
educativo da Escola da Ponte quando pretende desenvolver uma experincia de integrao dos trs ciclos do ensino bsico , mas paradoxalmente com base em argumentos de natureza gestionria e de mera morfologia que a continuidade desse
projecto ameaada pelos responsveis pelo Ministrio da Educao.
A Escola da Ponte e o seu projecto educativo assumem hoje, por isso, redobrada
importncia. Importncia para todos quantos nela tm estado envolvidos directamente,
mas tambm como smbolo de esperana e de coragem para todos os que levam a srio
o desafio de repensar a escola e o sentido do trabalho escolar.
Na minha actividade de investigador e de formador de professores, um dos
objectivos que procuro no perder de vista o de promover um pensamento reflexivo e
crtico que tenha em conta os constrangimentos e as possibilidades da aco humana. Os
diversos contactos que tenho mantido com as escolas e os professores tm revelado uma
enorme descrena em relao s possibilidades de transformao da escola, nos seus
aspectos mais substantivos. Surgem, porm, nesses contactos, momentos em que os
professores encaram essas possibilidades a partir de experincias inovadoras que
observaram. E a experincia da Escola da Ponte a que referida mais frequentemente.
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J participei em diversos encontros on