CÓMO HACER CIENCIAS SOCIALES Y HUMANÍSTICAS EN ÁFRICA

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  • Como Fazer Cincias Sociais e Humanas em frica

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  • Como Fazer Cincias Sociais eHumanas em frica

    Questes Epistemolgicas, Metodolgicas,Tericas e Polticas

    Teresa Cruz e SilvaJoo Paulo Borges Coelho

    Amlia Neves de Souto

    Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Cincias Socias em frica

    DAKAR

    (Textos do Colquio em Homenagem a Aquino de Bragana)

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  • CODESRIA 2012

    Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Cincias Socias em fricaAvenue Cheikh Anta Diop Angle Canal IV, BP 3304, Dakar, 18524 SngalSite web: www.codesria.orgTodos os direitos reservados

    Coordenao Grfica de Ibrahima FofanaComposio : Daouda ThiamImpresso : Imprimerie Graphi plus, Dakar, SngalDistribuio em qualquer parte por CODESRIA

    ISBN: 978-2-86978-505-2

    O Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Cincias Sociais em frica (CODESRIA), uma organizao independente, cujos objectivos principais so: a facilitao da pesquisa, apromoo de publicaes baseadas em pesquisas e a criao de fruns mltiplos em torno detrocas de ideias e informao entre investigadores africanos. Luta contra a fragmentao dapesquisa atravs da criao de uma rede de pesquisa temtica que transcende as fronteiras regionaise lingusticas.

    O CODESRIA tem uma publicao trimestral, a frica Desenvolvimento, a mais antiga revistaafricana especializada em cincias sociais; a Afrika Zamani, uma revista especializada em Histria;a Revista Africana de Sociologia; a Revista Africana de Assuntos Internacionais (AJIA); a Identidade,Cultura e Poltica: Um Dilogo Afro-Asitico; a Revista do Ensino Superior em frica; e a Revista Africanade Livros. Os resultados de pesquisas e outras actividades da instituio so disseminados atravsde 'Working Papers', 'Srie de Monografias', 'Srie de Livros do CODESRIA' e atravs do Boletimdo CODESRIA.

    O CODESRIA gostaria de agradecer a Agncia Sueca para o Desenvolvimento e CooperaoInternacional (SIDA/SAREC), ao Centro Internacional para o Desenvolvimento da Pesquisa(IDRC), a Fundao Ford, a Fundao Mac Arthur, a Corporao Carnegie, ao Ministrio Noruegusdos Negcios Estrangeiros, ao Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),ao Ministrio Holands dos Negcios Estrangeiros, a Fundao Rockefeller, FINIDA, NORAD,CIDA, IIEP, OCDE, IFS, OXFAM America, ao UNICEF e ao Governo Senegals, pelo apoioconcedido na realizao do seu programa de pesquisa, formao e publicao.

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    First published by Council for the Development of Social Science Research in Africa (CODESRIA)Avenue Cheikh Anta Diop X Canal IV, BP 3304, CP 18524, Dakar, Sngal Website: www.codesria.org

  • ndice

    Agradecimentos ..................................................................................................... ixAutores e Organizadores ......................................................................................xi

    Prefcio ........................................................................................................... xviiAnna Maria Gentili

    1. Introduo.................................................................................................. 1Teresa Cruz e Silva, Joo Paulo Borges Coelho & Amlia Neves de Souto

    2. Evocao: a personalidade de Aquino de Bragana ........................... 7Lus Filipe Pereira

    3. Aquino de Bragana: criador de futuros, mestre de heterodoxias,pioneiro das epistemologias do Sul ...................................................... 13Boaventura de Sousa Santos

    4. Aquino de Bragana, estudos africanos e interdisciplinaridade..... 63Elsio Macamo

    5. Aquino de Bragana e as reflexes e respostas sobre a produodo conhecimento e as cincias sociais em frica: Moambique,lies aprendidas, lies esquecidas? .................................................. 75Teresa Cruz e Silva

    6. Uma perspectiva cosmopolita sobre os estudos africanos:a lembrana e a marca de Aquino de Bragana ................................. 85

    Maria Paula Meneses

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    7. Actualidade, urgncia e colectivo na emergncia de um novocampo do saber em Moambique: o caso doCEA (1976-1986) ................................................................................. 109Carlos Fernandes

    8. Da possibilidade das cincias sociais em frica ............................. 125Carlos Cardoso

    9. A Universidade e a sua funo como instituio social ................ 145Aurlio Rocha

    10. A investigao em cincias sociais par le bas: por uma construoautnoma, endgena e horizontal do conhecimento ..................... 157

    Cludio Furtado

    11. A construo de So Tom e Prncipe: achegas sobre a(eventual) valia do conhecimento histrico ..................................... 171Augusto Nascimento

    12. Prticas da Sociologia Africana: Lies de endogeneidade egnero na academia .............................................................................. 195

    Jimi Adesina

    13. Mulher, Pesquisa, Aco e Mudana ................................................ 211Isabel Maria Casimiro

    14. Percepes e prticas da cidadania no Moambique urbano:servios pblicos, Estado e utentes entre comunicaoe alienao .............................................................................................. 227Luca Bussotti

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  • ndice vii

    15. Hibridismo ou estratgias narrativas? Modelos de heri nafico narrativa de Ngugi wa Thiongo, Alex La Guma eJoo Paulo Borges Coelho ................................................................... 239Ftima Mendona

    16. Do emprstimo bantucizao do Portugus em UngulaniBa Ka Khosa .......................................................................................... 247Nataniel Ngomane

    17. A escrita literria e as linguagens na fico moambicana ........... 261Aurlio Cuna

    18. Sntese do Colquio em Homenagem a Aquino de Bragana:Como fazer Cincias Sociais e Humanas em frica: QuestesEpistemolgicas, Metodolgicas, Tericas e Polticas ................... 266Cristiano Matsinhe

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  • Agradecimentos

    O colquio em homenagem a Aquino de Bragana, realizado pelo Centro deEstudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, emSetembro de 2009, foi uma experincia rica em contribuies cientficas. Osnossos agradecimentos vo em primeiro lugar para todos os colaboradores queapresentaram comunicaes (algumas das quais no foram aqui includas, pelaimpossibilidade que os seus autores tiveram de elaborar um texto final), e atodos os participantes, sem os quais o encontro no teria feito sentido. Aosautores desta compilao de textos vo tambm os nossos profundosagradecimentos. direco do CEA por ter acolhido esta iniciativa da realizaode um colquio para prestigiar o primeiro director da instituio e mentor dagerao dos intelectuais do ps-independncia, Isabel Casimiro com quempartilhmos a organizao deste colquio, e ao CODESRIA e IPAD Institutopara Cooperao Portuguesa, que nos deram o apoio financeiro para aorganizao deste evento, prestamos os nossos sinceros agradecimentos.

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  • Autores e Organizadores

    Jimi Adesina: Professor de Sociologia na Universidade de Western Cape, nafrica do Sul, doutorou-se em Sociologia na Gr-Bretanha. Os seus interessesde pesquisa centram-se nas reas da economia poltica para o desenvolvimentode frica, teoria social, a herana intelectual africana e poltica social. Publicouextensivamente em revistas internacionais e editoras de renome, sendo de destacar,entre as suas obras: African Development Challenges in the New Millennium (2006);Sociology, Endogeneity and the Challenge of Transformation (2006); Social Policy in Sub-Saharan Africa (2007); African Sociology, entry in International Encyclopedia of theSocial Sciences 2nd Edition (2008); Archie Mafeje and the Pursuit of Endogeny (2008).Luca Bussotti: Professor e Director Adjunto para a Investigao e Extensona Escola de Comunicao e Artes da Universidade Eduardo Mondlane. doutorado em Sociologia do Desenvolvimento pela Universidade de Pisa (Itlia).Tem vrios artigos e livros publicados. autor de vrios artigos e livros sobre aspolticas e os efeitos do desenvolvimento na Itlia e em frica, nomeadamentede lngua portuguesa, publicados na Europa, Brasil e Moambique.Carlos Cardoso: Director do Departamento de Pesquisa do Conselho para oDesenvolvimento da Pesquisa em Cincias Sociais (CODESRIA) doutoradoem Filosofia, pela Universidade Friedrich-Shiller na Alemanha. Foi Director doInstituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guin-Bissau. Autor e co-autor devrios livros e artigos, versando temas relacionados com a Guin-Bissau, fricae com as disciplinas de Histria, Sociologia Poltica e Antropologia Social.Isabel Casimiro: Professora e pesquisadora no Centro de Estudos Africanosda Universidade Eduardo Mondlane em Maputo e Presidente do Cruzeiro doSul Instituto de Investigao para o Desenvolvimento Jos Negro. Doutoradaem Sociologia pela Universidade de Coimbra em Portugal, os seus interesses depesquisa centram-se em estudos sobre mulher e gnero. Entre as suas publicaesdestacam-se: Paz na terra, guerra em casa: Feminismo e organizaes de Mulheres emMoambique (2004), e African Womens Movements. Changing Political Landscapes,organizado por Aili Mari Tripp, em conjunto com Joy Kwesiga e Alice Mungwa(2009). membro do CESAB Centro de Estudos Sociais Aquino de Bragana.

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    Joo Paulo Borges Coelho: Escritor e historiador moambicano doutoradopela Universidade de Bradford, professor de Histria Contempornea naUniversidade Eduardo Mondlane. Os seus trabalhos actuais de pesquisa incluema construo poltica e os conflitos e segurana na frica Austral e no Oceanondico, os movimentos e ordenamento populacional no territrio, e as questesque relacionam a Histria, o poder e a memria. Tem publicado um livro evrios artigos acadmicos sobre estes temas, destacando: "Public SafetyDimensions of Security Cooperation in Southern Africa DevelopmentCommunity", in Foprisa, Proceedings of the 2006 Foprisa Annual Conference. Gaborone,2007; "Estado, Comunidades e Calamidades Naturais no Moambique Rural",in Boaventura de Sousa Santos e Teresa Cruz e Silva (org): Moambique e a Reinvenoda Emancipao Social, Maputo: CIJ, 2004; "Tropas Negras na Guerra Colonial: OCaso de Moambique", in Jos Ramn Trujillo (ed), frica hacia al siglo XXI.Actas del II Congresso de Estudos Africanos en el Mundo Iberico. Madrid: SIAL Edicines,2001.Os seus trabalhos literrios incluem a publicao de vrios romances, doisvolumes de estrias e uma novela. membro do Centro de Estudos SociaisAquino de Bragana CESAB.Aurlio Cuna: Docente de literatura na Faculdade de Letras e Cincias Sociaisda Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, foi colaborador do jornalMeia Noite, e membro de vrias comisses de jri e concursos literrios emMoambique. Os seus interesses de pesquisa centram-se na rea da literaturamoambicana.Carlos Dias Fernandes: Mestre em Estudos tnicos e Africanos, doutorandona mesma rea pela Universidade Federal da Bahia, no Brasil.Cludio Furtado: Professor Associado no Departamento de Cincias Sociais eHumanas da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV), tendo sido Pro-Reitor dePs-graduao e Investigao e Coordenador de Mestrado em Cincias Sociaisna Uni-CV. doutor em Sociologia pela Universidade de S. Paulo, Brasil. Osseus interesses actuais de investigao tm-se centrado volta da questo fundiria,os novos movimentos religiosos, migraes e gnero, pobreza e desigualdadessociais e violncia urbana. Tem escrito extensivamente sobre questes fundirias,classe poltica em Cabo Verde ps-independncia, pobreza e desigualdades sociais.De entre as suas muitas publicaes, incluem-se: Gnese e Reproduo da Classe Dirigenteem Cabo Verde, Praia: ICLD, 1998; A Transformao das Estruturas Agrrias numaSociedade de Mudana Santiago, Cabo Verde. Praia-Santiago: ICL, 1993.Elsio Macamo: Professor de Estudos Africanos e director do Centro deEstudos Africanos na Universidade de Basileia na Sua. Doutorou-se emSociologia e Antropologia Social na Universidade de Bayreuth (Alemanha), ondetambm fez a sua agregao em Sociologia Geral. Tem publicaes em revistascientficas em Moambique e em outros pases e autor de vrios livros.

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  • Autores e Organizadores xiii

    Cristiano Matsinhe: Doutorado em Cincias Humanas pela Universidade Federaldo Rio de Janeiro. director adjunto do Centro de Estudos Africanos daUniversidade Eduardo Mondlane, e docente na mesma Universidade. Desenvolvepesquisas na rea da Sade Pblica e HIV /SIDA, Cultura e Sexualidade,Construo de Identidades, Estados Nacionais, e Cultura e Personalidade. Temvrias publicaes nas reas dos seus interesses de pesquisa, das quais destacamos:Dynamics of the Mozambican Response to HIV/AIDS; Mozambican National Responseto HIV and AIDS In Search for the "Multisectoral Approach". In: InternationalGlobal Dialogue, IDG, Johannesburg;Tbula Rasa Dinmica da Resposta Nacional ao SIDA. Maputo: Texto Editora.Ftima Mendona: Professora do Departamento de Lingustica e Literaturada Faculdade de Letras e Cincias Sociais da Universidade Eduardo Mondlaneem Maputo, aposentada depois de 2004. Desde 2007 investigadora integradado CLEPUL (Centro de Literaturas de Expresso Portuguesa da Universidadede Lisboa). Os seus interesses de investigao situam-se no campo da HistriaLiterria de Moambique, da qual resultaram vrias publicaes.Maria Paula Meneses: Investigadora do Centro de Estudos Sociais daUniversidade de Coimbra, doutorada em antropologia pela Universidade deRutgers (EUA). De entre os temas de investigao sobre os quais trabalhaactualmente destacam-se: os processos identitrios, as fracturas coloniais e aquesto ps-colonial, as relaes entre o Estado e as autoridades tradicionaisno contexto africano, e o papel da histria oficial, da histria patritica e damemria nos debates identitrios contemporneos, incidindo especialmente sobreo espao geopoltico africano. Tem vrios artigos e livros publicados, destacando-se, em 2010, Epistemologias do Sul (editado conjuntamente com Boaventura deSousa Santos na Cortez Editora, Brasil). O seu trabalho est publicado em revistas,livros e relatrios em diversos pases, incluindo Moambique, Espanha, Portugal,Senegal, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Colmbia, entre outros.Augusto Nascimento: Investigador auxiliar do Instituto de InvestigaoCientfica Tropical, de Lisboa. doutorado em Sociologia pela UniversidadeNova de Lisboa. Tem como principais reas de interesse a histria recente e aactualidade de Cabo Verde e de So Tom e Prncipe. Tem vrios artigos emrevistas nacionais e internacionais, e livros publicados versando particularmenteSo Tom e Prncipe e Cabo Verde, destacando-se: Atlas da Lusofonia. So Tome Prncipe (2008); Histrias da Ilha do Prncipe (2010) e, em co-autoria, Ilha deMoambique (2009).Nataniel Ngomane: Professor de Literatura Comparada na Faculdade de Letrase Cincias Sociais da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, e director daEscola de Comunicao e Artes (ECA), na mesma Universidade. Doutor emLetras pela Universidade de So Paulo, rea de Estudos Comparados de Literaturas

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    de Lngua Portuguesa. Os seus interesses de pesquisa centram-se na narrativamoambicana contempornea e na chamada nova narrativa latino-americana.Com participao em vrios eventos cientficos nacionais e internacionais, temtextos publicados em vrias revistas e livros nacionais e internacionais.Lus Filipe Pereira: Pedagogo e Historiador, Professor da UniversidadeEduardo Mondlane. pesquisador, membro fundador e da direco do Cruzeirodo Sul Instituto de Investigao para o Desenvolvimento Jos Negro. Nosltimos anos, os seus trabalhos de investigao debruaram-se, entre outrastemticas, sobre o mercado urbano e rural de terras, problemas dedesenvolvimento e sobre o patrimnio cultural da Ilha de Moambique. Entreas inmeras actividades realizadas, participou na elaborao da Agenda 20/25, membro do Conselho Nacional do Patrimnio Cultural, e do Conselho Nacionaldo Mar. Das suas inmeras publicaes, destacamos a Anlise da Situao Educativaem Moambique, onde autor e organizador, publicada pela OSISA, nas lnguasportuguesa e inglesa.Aurlio Rocha: Professor da Faculdade de Letras e Cincias Sociais naUniversidade Eduardo Mondlane em Maputo, Mestre em Economia eSociologia Histrica pela Faculdade de Cincias Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa. Os seus interesses de pesquisa situam-se na Histriae Sociologia Histrica. Tem vrias publicaes em livro (autoria e co-autoria) eem revistas cientficas moambicanas e estrangeiras. Boaventura de Sousa Santos: Doutorado em Sociologia do Direito, ProfessorCatedrtico da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e directordo Centro de Estudos Sociais da mesma universidade. Distinguished LegalScholar da Universidade de Madison nos Estados Unidos da Amrica, e GlobalLegal Scholar da Universidade de Warwick, na Gr-Bretanha. Sousa Santos tambm consultor para a rea de justia de alguns governos. Coordenadorcientfico de vrios projectos de pesquisa, tem uma lista extensa de publicaesem vrios pases, entre as quais poderemos destacar: Pela Mo de Alice: o social e opoltico na ps-modernidade; Conhecimento Prudente para uma vida decente; A crtica darazo indolente; em co-autoria com Joo Carlos Trindade: Conflito e TransformaoSocial: uma paisagem das justias em Moambique; em co-autoria com Maria PaulaMeneses: Epistemologias do Sul.Teresa Cruz e Silva: Professora e pesquisadora do Centro de Estudos Africanosda Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, doutorada em Cincias Sociaispela Universidade de Bradford (Gr-Bretanha). Os seus interesses de pesquisana rea de histria social centram-se em redor de questes sobre movimentosnacionalistas em Moambique e na frica Austral; papel social da religio e mulhere gnero. Publicou em vrias revistas cientficas nacionais e internacionais. Entreos seus trabalhos em autoria e co-autoria podemos destacar: Com Boaventura

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  • Autores e Organizadores xv

    Sousa Santos (2004) Moambique e a Reinveno da Emancipao Social; com ManuelArajo e Carlos Cardoso (2005) Lusofonia em frica: histria, democracia e integraoafricana; com Conceio Osrio (2008) Buscando sentidos: Gnero e Sexualidade entrejovens estudantes do ensino secundrio, Moambique, e em 2009,Gnero e Governao Local:Estudo de caso na provncia de Manica, distritos de Tambara e Machaze. membro doCESAB Centro de Estudos Sociais Aquino de Bragana.Amlia Neves de Souto: Doutorada em Histria Institucional e PolticaContempornea (sculos XIX e XX) pela Universidade Nova de Lisboa (Portugal), Professora na Universidade Eduardo Mondlane, e pesquisadora do Centro deEstudos Africanos da mesma universidade. As suas reas de interesse cientficoso: Histria contempornea de Moambique (Sc.XX at actualidade); Histriacolonial (poltica, institucional e militar), sobretudo da ltima fase do perodocolonial (1960-1974); Integrao regional na zona Austral de frica, e Histria,memria e identidades. Entre as inmeras publicaes destacam-se: Caetano e oocaso do imprio: Administrao e Guerra Colonial em Moambique durante o marcelismo(1968-1974); Samora Machel: Bibliografia (1970-1986); Il Mozambico nel periododella decolonizzazione portoghese: quale decolonizzazione?. In : L. Apa ; M.Zamponi (a cura di). Il colore rosso dei jacaranda. A 30 anni dalle indipendenze delle excolonie portoghesi. Repubblica di San Marino: Aiep Editore, 2005.

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  • Prefcio

    Anna Maria Gentili

    Nas suas aulas e at, mais frequentemente, nas conversas informais Aquinooferecia-nos com prodigalidade ideias, motivos de inspirao, anedotasesclarecedoras sobre problemas e acontecimentos histricos e polticos, fazendo-o com a autoridade de quem fala sobre assuntos que conhece bem, no s poros ter estudado, mas sobretudo por os ter vivido. Ele praticava com naturalidadea melhor forma de cortesia, que a sincera curiosidade humana em relao aosoutros, especialmente aos jovens, e por causa disso, foi um grande professor eum jornalista sem igual. Muitos de ns beneficimos desta sua generosidade, svezes sem mesmo o notar.Aquino no tolerava boatos nem boateiros, e a sua discrio acerca do que sediscutia nos crculos do poder era total. Aquino gostava de falar, mas nuncasobre si. Preferia conhecer o ponto de vista dos interlocutores, instando-os comperguntas insinuantes. No se contentando com as aparncias, esquadrinhava omago dos factos e exortava todos, especialmente os jovens, a serem inquietos,a interrogarem-se, a formularem perguntas sempre mais ousadas, a controlaremminuciosamente as fontes. Quem teve o privilgio de o acompanhar na pesquisade campo pode ser testemunha disso: em 1982, juntamente com Yussuf Adam,Colin Darch, Jacques Depelchin e Valdemir Zamparoni, no Planalto de Mueda,todos ns, que nos tnhamos por veteranos na pesquisa com as fontes orais,cedo nos apercebemos que as suas perguntas eram as que despertavam asrespostas mais estimulantes nos nossos interlocutores. Por outro lado, as suasaulas eram apaixonantes, capazes no s de esclarecer, mas tambm de nos fazerparticipar nos acontecimentos e contextos por meio de um processo dialcticoque no deixava de lado nenhum aspecto do assunto examinado. Ele acreditavaque as perguntas so mais importantes do que as respostas, e as suas eram sempremais cultas, esclarecidas e empticas do que as nossas.

    Ainda hoje, muitos anos decorridos desde a sua trgica morte, sentimos (eu,sem dvida, sinto) a sua falta. Muitas vezes tento imaginar como ele comentariaas mudanas ocorridas em Moambique no contexto das convulses que

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    caracterizam a acelerao da globalizao, e como, e onde, teria ele reconhecidoprogressos e retrocessos, desvendado os interesses envolvidos ou apontado asalternativas possveis. Aquino estava convencido de que cada problema tinhamais solues que a soluo bvia ou mais privilegiada, de acordo com as relaesde fora prevalecentes na burocracia partidria e estatal, e que o seu e nossodever de intelectuais era de estudar e apontar esses possveis caminhos alternativoscom base na recolha e anlise dos dados, factos e opinies slidas, e, por isso,valia a pena incentivar a pesquisa em conjunto com a formao, tendo semprecomo guia e finalidade a emancipao e a libertao das capacidades dedesenvolvimento autnomo dos indivduos e das classes mais vulnerveis.

    Aquino nunca deixou de crer firmemente no primado da poltica. A sua vidafoi preenchida pelo combate discriminao colonial e pelo esforo para impedirque a luta de libertao nacional moambicana ficasse contida dentro dos limitesde um compromisso neo-colonial. Contra o colonialismo, as manobras neo-colonialistas e as estratgias para destruir a soberania conquistada com tantoesforo, Aquino asseverava ser preciso operar por meio de um trabalho cientficoinfatigvel de observao e anlise das coisas, para se conquistar a liberdade e aemancipao sem perder nunca a esperana e a certeza de consegui-las. Possuaum pragmatismo destitudo de timidez, mas que tinha sempre presente o sentidodos limites, daquilo que era possvel num determinado momento histrico. Sabiaindagar os sentidos e os contextos por ns utilizados no conceito do conhecimento.Tratando-se de um cientista por formao, o conhecimento era por ele entendidocomo opinio acompanhada da razo.

    Considere-se a sua posio sobre o Acordo de Nkomati, expressa em artigose palestras: sem triunfalismo algum, especificava a este respeito os passos queconsiderava essenciais para se poder fazer ouvir a voz de Moambique numcontexto internacional em rpida transformao, com o objectivo de se poderchegar a uma soluo negociada que evitasse a derrota militar e, especialmente, aderrota poltica, e que acabasse com um conflito que era devastador para apopulao, e permitisse consolidar e relanar o que de positivo se haviaconquistado, reinstalando a capacidade de contribuio para a derrota do regimede apartheid. Ele sabia que o caminho seria longo e que no existiam soluesimediatas, nem militares nem negociais. Quando o avio que levava SamoraMachel e muitos dos seus ministros e conselheiros, entre os quais o prprioAquino, foi abatido em Mbuzini, ele estava empenhado em colaborar para reataros fios da negociao, sempre na perspectiva de acabar com a guerra. Na ltimavez em que o vi, em Harare, em Setembro de 1986, durante o Congresso dosPases No-Alinhados, Aquino integrava a delegao moambicana. Connoscoestava Lisa Foa, uma amiga italiana, que Aquino considerava inteligente jornalista,observadora inquieta, participante em vrias experincias de denncia de formas

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  • Prefcio xix

    de opresso, e com a qual gostava imensamente de discutir.2 Naquela altura,recorrendo como habitualmente a uma argumentao complexa, sem deixar deser discreto, fez-nos entender que o momento era particularmente perigoso, eque, justamente, a retomada das negociaes polticas estava a desencadear reacescruzadas por parte daqueles que eram resolutamente hostis a qualquer soluopoltica.

    Aquino no tolerava os clichs, nem os dogmticos acostumados langue debois, e, ainda que homem cultssimo, no cedia a fazer histria por analogia. Discutiaa importncia histrica das revolues e das lutas de libertao do passado e dopresente para a emancipao dos povos, salientando as suas contradies econdenando sem hesitao as derivas totalitrias. Insistia em sublinhar o carcterespecfico de cada luta poltica e/ou armada anti-colonial: a anlise revolucionriano se compadece com o apego a frmulas feitas. No acreditava num marxismotornado credo ou sistema, nem certamente num reductium ad unum dos factoshistricos. O pensamento nico no era trao marcante seu, e por isso aconteceu-lhe muitas vezes ser firme opositor de exaltadores de auto-proclamadas versesda ortodoxia marxista-leninista, tal como hoje aconteceria em relao a quem,da mesma forma acrtica, aderiu ao fundamentalismo liberal.

    Ser historiador (e cientista social) tarefa perigosa dos que acabam por oscilarentre ser considerados antagonistas ou, pelo contrrio, instrumentos do poder.Aquino estava firmamente convencido de que a luta de libertao produzira emMoambique elementos novos e no-comparveis com os anteriores, efundamentava nisso a sua convico de que era possvel e necessrio contribuir,por meio da pesquisa e da formao, para os traduzir numa nova ordem estatal,poltica e tica.

    As origens do Centro de Estudos AfricanosNuma entrevista de Christiane Messiant a Mrio de Andrade, em 1982, esteltimo reconhecia no amigo Aquino, um personagem importante do nossocaminho, salientando a abertura, a enorme cultura poltica e o facto de ele serum animal poltico dotado de grande curiosidade intelectual. Ele foi o primeirodeste grupo de intelectuais militantes pela causa da libertao das colniasportuguesas a regressar a frica, especificamente a Marrocos, como professor econselheiro do governo do Istiqlal e do sindicato. Amigo e conselheiro de BenBarka, teve um papel central na preparao da conferncia de 1961. Na alturado seu regresso a frica, que antecedeu o importante ano de 1960, ano dasindependncias africanas, Aquino j havia passado por muitas experincias econtinentes, desde Goa at Lisboa e Paris, esta ltima, nos anos 50, verdadeiracapital do mundo intelectual africano francfono, e encarava criticamente oprocesso de descolonizao que conduziu s independncias octroyes.

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    Entre 1945 e 1962 no houve ano em que a Frana no estivesse envolvidaem guerras coloniais desde a derrota da Indochina at Arglia, passandopelas revoltas na frica sub-sahariana, afogadas em sangue em favor decompromissos neo-coloniais. Dos 17 paises que se tornaram independentes em1960, 14 eram ex-colnias francesas, e o termo neo-colonialismo foi inventadonaquela altura para definir a continuidade da dependncia em relao aos interessesfranceses. Tornou-se clebre a piada do recentemente falecido presidente doGabo, Omar Bongo: A Frana sem a frica um carro sem carburante, e africa sem a Frana um carro sem motorista. O corao das trevas destaaliana, que foi definida como Franafrique por Felix Houphouet-Boigny, foi acumplicidade e o apoio activo que a Frana republicana, ptria do universalismodos direitos humanos, deu represso e ao martrio dos lderes que contra ela seprefilavam: em Madagascar, entre 1947 e 1948, um governo francs chefiadopor um primeiro-ministro socialista foi responsvel pela represso dumainsurreio que provocou mais de cem mil mortos. Nos Camares, o presidenteAhidjo, homem escolhido pelos franceses em lugar de Andr-Marie Mbida,extreminou todas as oposies; os chefes rebeldes da Union des Populations duCameroun foram eliminados com brutalidade, Rum Nyob foi trucidado em1958 e Flix Moumi envenenado em Geneva com barbouze. A independnciada Guin-Conacri em 1958, contra a vontade da Frana, provocara j o ostracismoe sanes pesadas contra este pas. Quem mostrou intenes de querer operaruma viragem em direco a uma poltica de maior autonomia, como SylvanusOlimpio no Togo, foi vtima de eliminao poltica e fisica manu militari.

    Em Paris, Aquino participava da atmosfera estimulante que florescia em tornoda Prsence Africaine, aderia denncia radical da hipocrisia das potncias coloniaiseuropeias nos Discours sur le colonialisme de Aim Csaire, e compartilhava areivindicao da historicidade dos mundos africanos. Desde essa altura que ofrancs vai constituir a sua lngua de eleio. Para alm dos limites do mundo e daintelectualidade de lngua portuguesa e francesa, com o regresso a frica, e coma sua actividade de jornalista, Aquino estabeleceu relaes de amizade esolidariedade com figuras importantes do mundo anglfono e no s,nomeadamente com o Gana, independente desde 1957 sob a liderana docarismtico Kwame Nkrumah, porta-voz de um nacionalismo pan-africanomoderno, radical, representando a emergncia de homens oriundos de camadasintelectuais urbanizadas, convencidos de que para conquistar a liberdade e asoberania plena tinha de se desmantelar a estrutura fundamental dos estadoscoloniais representada por sistemas administrativos de governo que visavam apromoo de uma independncia balcanizada. Aps a independncia, j em 1958,e a fim de revalidar o papel de liderana, Nkrumah havia promovido a All AfricaPeoples Conference, que adoptou o slogan Hands off Africa! Africa must befree. Nela participaram 28 delegaes africanas, entre as quais se destacavam

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  • Prefcio xxi

    lderes que desempenhavam mais decisivamente uma oposio crtica aocolonialismo, tais como Patrice Lumumba, Julius Nyerere, Namdi Azikwe, AhmedBen Bella e Kenneth Kaunda. Naqueles anos, Accra tornou-se a capital do sonhoe da esperana em relao a uma verdadeira emancipao. Em Janeiro, semprena capital do Gana, foi pronunciado pela primeira vez o famoso discurso sobreos Winds of change de Harold MacMillan, primeiro-ministro ingls de umgoverno conservador, pressionado pelo Labour Party no interior e pelosmovimentos nacionalistas africanos, e enfraquecido internacionalmente pelasrevelaes sobre as atrocidades cometidas durante a represso dos Mau-Mau noKenya. A convico de que, para alm de realista, era sem dvida mais convenientepara os interesses britnicos acelerar a descolonizao, foi confirmada em Fevereiroem Cape Town, no parlamento do regime do apartheid, que reagiu com umarecusa total e com a deciso de proclamar a repblica e de dar fora guerratotal contra qualquer contestao possvel ou movimento poltico de emancipao.Aquino viveu de perto todos estes acontecimentos e seguiu tambm de perto asvicissitudes da primeira independncia do Congo-Kinshasa. O assassinato dePatrice Lumumba, cuja denncia dos crimes da colonizao belga e reivindicaodo direito a uma independncia que significasse o reconhecimento pleno dedignidade e igualdade para a populao congolesa foram interpretadas comoum desafio destinado a arredar os desgnios de uma independncia apenas aparente,constituiu uma advertncia trgica a toda a frica. Contra ele e os seus ministrosmais fiis foi organizada uma caluniosa campanha de imprensa, preldio dodesenvolvimento de cumplicidades entre os servios secretos americanos, belgase franceses preocupados com a possibilidade de que o contgio nacionalistainfluenciasse o contguo Congo-Brazzaville, cofre-forte do petrleo activandoredes e financiamentos de ingentes interesses econmicos que se alastraram desdeas alianas entre multinacionais estrangeiras at aos poderes locais.

    No curso da sua vida, desde Goa, Lisboa e Paris, at Marrocos e Arglia eem contacto com as redes de reflexo e activismo poltico engajadas no apoio emancipao do que ento se chamava o terceiro mundo, assim como no seutrabalho de jornalista militante, que o fizera ganhar a confiana de todos osprincipais protagonistas das lutas polticas de libertao, desde Nkrumah a Nyerere Aquino desempenhou um papel de primeira ordem com a sua riqussimaanlise dos acontecimentos e das conjunturas especficas locais, entrelaadas comas dinmicas regionais e globais. Dos seus escritos jornalsticos emerge acentralidade da poltica como luta pelo controle e pela transformao do Estado,a ateno constante s motivaes e redes de interesse econmicas, e a importnciade um mtodo interdisciplinar.3

    Ao longo da dcada de 60, as grandes esperanas suscitadas pelasindependncias africanas comearam a desvanecer-se. Seguiram-se os golpes

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em fricaxxii

    militares e derivas autoritrias, favorecidas pela concluso da fase de expansoeconmica mundial e pelo endurecimento da guerra fria. A fragilidade dasestruturas dos Estados ps-coloniais, as heranas negativas, as assimetrias herdadasda dominao colonial, contriburam para tornar evidentes as caractersticas dascrises africanas, manifestaes do inelutvel espraiar de uma srie de contradiesenraizadas na histria de dominao colonial e, sobretudo, nas formas ambguasda descolonizao que favoreciam o estabelecimento e a consolidao dasprioridades da guerra fria, que permaneceram como estratgia principal deincorporao do continente, seja como for mantendo sempre, em certa medida,esses Estados numa posio de dependncia em relao a uma ou outra potnciamundial.

    Em 1960, Amilcar Cabral, que em todos os seus escritos sublinhou aimportncia do conhecimento, da pesquisa e da formao, incitava oscompanheiros da luta a voltar a frica. As lutas de libertao na Guin-Bissau ena frica Austral, ou seja no contexto de uma regio dominada pelo regime sul-africano do apartheid, representaram o relanamento do projecto de emancipao,de uma independncia sem qualquer ambiguidade, uma independncia semdescolonizao e sem a imposio de um regime neocolonial.4

    Centro de Estudos Africanos: pesquisa para a formaoO Centro de Estudos Africanos em Maputo pensado e organizado nestecontexto poltico e de conhecimento, e tira a inspirao tambm da organizaode programas acadmicos centrados nas cincias sociais activados desde a dcadade 60 em vrias universidades africanas, de Dakar a Dar Es Salaam. As perspectivasmetodolgicas e tericas por meio das quais se analisavam as realidades africanasj tinham sido postas em questo, desafiadas pela crtica que evidenciava as suasbases conceptuais ainda enraizadas nas ideologias do colonialismo. Para osintelectuais africanos, o desafio principal consistia em reconhecer simultaneamentea especificidade dos processos de evoluo histrica e dos interesses queorientavam as metrpoles, e a reivindicao da historicidade das sociedadesafricanas, assim como o direito plena emancipao.

    O modelo de formao intimamente ligado pesquisa, que vai caracterizar oCentro de Estudos Africanos, no pode ser percebido na sua essncia se no forreconhecida previamente a sua pertena, e mais tarde a sua contribuio, aovasto movimento internacional africano e pan-africano, votado a redefinirradicalmente o ensino da histria e das cincias sociais como instrumento deresgate e de soberania. Justamente pela sua experincia poltica e profissionalcosmopolita, Aquino concebia o Centro de Estudos Africanos como um centrono s de reflexo epistemolgica onde o nosso saber, mas tambm o deoutrm, fosse continuamente posto em questo mas tambm de formao,

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  • Prefcio xxiii

    sem modelos pr-estabelecidos e buscando inspirao em experincias maisavanadas cujo horizonte era, decisiva e explicitamente, o de contribuir parauma transformao social emancipatria.

    O projecto do Centro partia de um conjunto de valores essenciais elaboradose enraizados na luta de libertao: proteger e tornar real a liberdade to duramenteconquistada, crer firmemente na igualdade, apoiar com os recursos da pesquisae da formao a vontade e a capacidade de aco da liderana e do governo deMoambique. Por isso, a pesquisa de campo se tornou essencial, no s pararecolher dados reais que, analisados, permitiam conceber e melhorar as polticasadministrativas, econmicas e distributivas, mas tambm para tomarconhecimento concreto das condies e percepes dos problemas daspopulaes. Ainda que mais no proporcionasse, a pesquisa comeou a quebrara retrica ideolgica com que se falava dos problemas, e a pr em destaque quese a liderana poltica e os intelectuais empenhados e solidrios pareciam saberperfeitamente o que deveria nascer das cinzas do Estado colonial, a maioriadeles ignorava de facto o que era o Estado colonial. Por isso, o Curso deDesenvolvimento do CEA fundou-se na recolha e na anlise dos dados sobre aestrutura e a dinmica da mudana numa situao concreta, a moambicana,com as suas caracteristicas locais, nacionais e de contexto regional, identificandoas suas tendncias especficas, contraditrias e, por vezes, antagnicas, que aideologia no reconhecia ou at demonizava, com o fim de elaborar e discutirprioridades e possveis solues.

    O Curso contribuiu imensamente para a formao dos quadros: por causada situao colonial, muitos dos estudantes tinham uma instruo formal debaixo nvel, mas desempenhavam papis de responsabilidade em vrios sectorespblicos. O mtodo de ensino, sem descurar as aulas de formao bsica dadaspor professores de grande experincia e capacidade, fundava-se em determinarcuidadosamente a relevncia de um problema e na maneira de apontar soluesidneas para cada contexto. Foram muitos os desafios que surgiram, no mbitoda organizao de mtodos de ensino destinados a estudantes com diferentesnveis de formao, visando que se pusessem a par e adquirissem confiana,forma de os encorajar a participar e a colocar questes. Ao contrrio de osintimidar ou utilizar como mo-de-obra de baixo custo, pretendia-se envolv-los na teorizao, na organizao e na conduo e redaco dos trabalhos depesquisa.

    Foi Aquino quem escolheu Ruth First como directora de pesquisa. Duaspersonalidades diferentes, mas unidas por uma slida e antiga amizade, e poradmirao e respeito recprocos. Em Ruth, Aquino admirava a intelignciabrilhante, a capacidade de sntese, a honestidade absoluta, a dedio causa deMoambique, e tambm a sua elegncia. Longe de ser uma marxista dogmtica,

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em fricaxxiv

    Ruth compartilhava com Aquino a crtica ao totalitarismo das revolues soviticae chinesa, mas tambm no tolerava o egocentrismo da esquerda dos intelectuaisde salo. Nunca ouvi Aquino criticar Ruth em pblico; quanto a Ruth, devotavaa Aquino grande devoo e admirao. Os dois no toleravam a retrica,mantinham mentes livres que compartilhavam o mesmo horizonte poltico. Eram,claro, muito diferentes no carcter e no estilo: Aquino exercia a arte de intervir ecriticar (mesmo duramente) utilizando luvas de pelica, enquanto ela achava indigestaa diplomacia, tinha uma maneira de argumentar directa, por vezes mesmo sperae impaciente, e isto criava incompreenses que depois a faziam sentir-se vulnervel.Os dois, antes de o serem com os outros, eram exigentes consigo prprios, noaceitavam um trabalho mal feito. No s Ruth, mas tambm Aquino, raramenteficavam satisfeitos com os textos redigidos e quase sempre era preciso reescrev-los vrias vezes. Em certas ocasies, Aquino mostrava-se abertamente irritado, eno se socorria da sua requintada veia diplomtica: em particular quando liatradues de textos em portugus que achava desprovidas de fineza conceptual.

    Quem deduziu, a partir de uma observao superficial do ambiente detrabalho, que Aquino e Ruth tinham conflitos importantes, sem dvida nopercebeu aquilo que os tornava fundamentalmente solidrios, para alm dasdiferenas caracteriais: o facto de desde jovens terem sido, como Aquino dizia,compagnons de route, e de estarem ambos empenhados em contribuir para o trabalhode instituies que queriam produzir mudana. Os dois, e da mesma formatodos os que optaram por trabalhar no Centro, achavam que isso no significavaa subordinao a um desgnio superior nem aquiescincia cega ideologia nopoder, mas antes, e constantemente, colocar-se a pergunta de como contribuirmelhor para o progresso da luta emancipatria, e interrogar-se permanentementesobre como melhorar a maneira de trabalhar, de fazer pesquisa, de ensinar. Em1977, Ruth escrevia de Maputo, a Gavin Williams: there are gaps in our strategies;we can only hope to close them in practice; that means being where policies aremade and influenced; it also requires a practical understanding of the problemso we can offer alternatives when policies dont work out.5

    Em nenhum momento as decises sobre as mudanas no Curso deDesenvolvimento, ou nas opes de pesquisa, foram tomadas ou impostas porRuth. Aquino foi sempre o comandante-em-chefe e o indispensvel negociadore garante de uma pesquisa livre de condicionamentos.

    O Centro, onde afluam pesquisadores de muitas partes da frica e do mundo,era um espao poliglota de especialistas em disciplinas e tendncias intelectuaisdiversas, mas politicamente empenhados. Ao contrrio do que alguns pretendemfazer crer, nunca foi transformado num espao de pensamento nico. Foi antes,como diria Aquino, um espao onde espritos inquietos enfrentavam as suasdiversidades, ainda que solidrios na finalidade de contribuir para remover ou

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  • Prefcio xxv

    ultrapassar as limitaes impostas pela subordinao colonial, e para apoiar ocrescimento de uma capacidade de desenvolvimento autnoma. O Centro noera um mundo parte no contexto acadmico e de Moambique; antes contribuiupara transformar esse contexto e torn-lo conhecido atravs daqueles que aliforam formados e que, em seguida, tiveram a oportunidade de se integrar comsucesso em outros ambientes culturais, muitas vezes elaborando mesmo, nestepercurso, posies crticas a respeito daquela fase por que passaram.

    O Centro caracterizava-se pela simbiose entre pesquisa e formao no Cursode Desenvolvimento, cuja organizao era em cada ano renovada. A mim nuncamais me aconteceu viver uma experincia de pesquisa to significativa e semdvida que aprendi mais do que aquilo que fui capaz de contribuir. No Centroinvestiu-se em novas abordagem metodolgicas, experimentou-se um novognero de formao, desenvolveram-se categorias analticas e argumentaestericas para interpretar condies histricas concretas de trabalho e produoem Moambique, no contexto regional. Investigou-se sobre os aspectosproblemticos da questo rodesiana e sobre o significativo impacto do factormigratrio sobre as sociedades de provenincia dos migrantes. Aprendeu-se adar valor prtica da reciprocidade, responsabilidade para com as pessoas queparticipavam no trabalho de pesquisa, incorporando estudantes, camponeses,migrantes, trabalhadores, mulheres e jovens no processo de teorizao, levandoa que as pessoas no fossem reduzidas a meras informadoras sobre dados efactos, mas antes levadas a srio ao nvel conceptual.

    O apelo de Carlos Cardoso acerca da necessria integrao entre a dimensodo conhecimento e as dimenses tica e poltica, e o de Elsio Macamo queincita a aprofundar o pensamento de Aquino, de produo de um saber fundadona experincia, mas atento histria, pem-nos face responsabilidade deperceber, sem nos deixarmos desencorajar pelas derrotas e pelos pessimismos, aessncia daquela metodologia de ensino. Aquino acreditava no progresso nocom uma f cega, mas com uma convico reforada pela histria e pelaexperincia da prtica como prvia teoria, e sobretudo acreditava que cada umtinha de se empenhar em realizar esse progresso sem desfalecimentos, mesmoquando a mudana como aconteceu muitas vezes no passado e certamente vaicontinuar a acontecer no futuro se manifesta em retrocessos, revelandodivergncias profundas entre o projecto e a realidade. Este ensino chama-nos areflectir, investigar e discutir os significados concretos do desenvolvimento hojeem frica, tendo como horizonte a sorte das classes mais desfavorecidas evulnerveis, qualquer que seja a natureza do sistema mundial que condicionou econtinua a condicionar o terreno das escolhas e das opes possveis; reflectir,investigar e discutir tambm os resultados do processo de democratizao naprogressiva extenso dos direitos e da participao, qual, contudo, parece

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em fricaxxvi

    corresponder o languescer da dialctica poltica; e finalmente, discutir como equanto as reformas econmicas e sociais abrem direitos de acesso concreto auma cidadania igualitria, para perceber a configurao das foras sociais, noacto reintegrando a complexidade no lugar onde a simplificao de um modelonico parece guiar e justificar qualquer aco.

    Notas1. Pambazuka News 2008-04-19, Edio 1: http://pambazuka.org/pt/category, features

    47521.

    2. Lisa lembra Aquino como um intelectual com grande preparao e experinciapoltica.In: Lisa Foa, andata cos, Sellerio editor, Palermo, 2004.

    3. Um trabalho ainda por fazer consiste na releitura dos seus numerosssimos e consistentesartigos surgidos desde finais dos anos 60 na Africasia, Afrique-Asie, Lconomiste du tiersmonde, e noutras revistas, muitas vezes traduzidos em vrias lnguas. Alm disso, Aquinotinha um arquivo de entrevistas com protagonistas das independncias africanas, nuncacompletamente publicadas em que trabalhava pouco antes da sua morte. Como diz oseu amigo Lus Filipe Pereira, nunca mais foi encontrado esse arquivo.

    4. Aquino de Bragana, Independncia sem Descolonizao: a Tranferncia do Poder emMoambique 1974-1975, Notas sobre os seus antecedentes. In: Estudos Moambicanos,5/6, 1986, p. 9.

    5. G. Williams, Ruth first is dead, New Society, August 1982.

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  • 1Introduo

    Teresa Cruz e Silva, Joo Paulo Borges Coelho& Amlia Neves de Souto

    As crises de pensamento decorrentes das grandes mudanas verificadas no mundodurante a ltima metade do sculo XX e incio deste sculo levaram as CinciasSociais e Humanidades a acelerar a sua reconceptualizao num esforo tendentea clarificar e redefinir o seu papel na sociedade. Hoje, mais do que nunca, sedebate sobre a finalidade das Cincias Sociais. Questionamo-nos sobre o seucontributo para a formulao e resoluo dos problemas contemporneos,incluindo de que forma elas podem ajudar a uma maior eficcia na tomada dedecises polticas e administrativas. Questionamo-nos, inclusivamente, sobre ofuturo das prprias Cincias Sociais e Humanidades, futuro esse que dependeem grande medida da pertinncia das vises do mundo que nos proporcionam.

    A procura de respostas para estes questionamentos no pode estar dissociadada discusso em torno da problemtica referente produo e apropriao doconhecimento. A cultura cientfica actualmente encarada como uma dimensofundamental das sociedades contemporneas, na medida em que interfere comtodos os domnios da vida social. Ela representa o vector decisivo damodernizao e do desenvolvimento.

    Numa altura em que tanto se discutem as relaes Norte-Sul e Sul-Sul, asquestes ps-coloniais e o seu papel na vida actual, questes essas que se aplicamigualmente produo e apropriao do conhecimento cientfico, interrogamo-nos se possvel produzir formas alternativas de conhecimento, a partir docontinente africano, que possam contribuir para uma perspectiva epistemolgicacrtica capaz de desafiar os paradigmas hegemnicos, quer eurocntricos, querafrocntricos. igualmente relevante discutir at que ponto a formulao/reformulao de questes de carcter terico-metodolgico a partir de fricapoder, de algum modo, contribuir para uma descolonizao das relaes de

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica2

    poder na produo de conhecimento, num meio em que os constrangimentoscolocados ao exerccio da cidadania ganham particular significado na crescenterestrio das liberdades acadmicas.

    Na tentativa de melhor interrogar o futuro, e procurando ao mesmo temporespostas para o papel das Cincias Sociais e Humanas na soluo dos problemasque o mundo contemporneo nos coloca, o Centro de Estudos Africanos daUniversidade Eduardo Mondlane reuniu em Maputo, de 23 a 24 de Setembrode 2009, um grupo de pesquisadores em redor de um tema central para debate:Como fazer Cincias Sociais e Humanas em frica: questes epistemologias, metodolgicas,tericas e polticas. O colquio foi tambm uma ocasio privilegiada para homenagearAquino de Bragana, primeiro Director do CEA, falecido em 1986 no acidenteareo que vitimou igualmente Samora Machel, primeiro Presidente moambicano.Cientista social inquieto, que lembrava constantemente a necessidade doquestionamento da produo cientfica e de descolonizao do pensamentoafricano, Aquino de Bragana tinha como grande paixo poltica e intelectual,como referiu Jacques Depelchin, a procura de respostas singulares para os desafiosno s do momento, mas tambm do futuro.

    O debate que decorreu em Maputo reuniu acadmicos provenientes deinstituies do continente africano (Moambique, frica do Sul, Zimbabwe, Cabo-Verde e Senegal) e de alguns pases Europeus (Portugal e Sua). As discussescentraram-se em redor de trs eixos temticos: i) Desafios epistemolgicos,metodolgicos e polticos na produo de conhecimento em Cincias Sociais eHumanas; ii) Relevncia do pensamento de Aquino de Bragana na reflexosobre os desafios contemporneos das Cincias Sociais, e iii) Papel da reflexocrtica em Cincias Sociais na afirmao de identidade(s) africana(s) na produode conhecimento.

    A obra aqui apresentada, numa edio que resulta de uma parceria CEA/CODESRIA, rene a maior parte das contribuies para o colquio, revistaspelos respectivos autores. Como fazer cincias sociais e humanas em frica: questesepistemolgicas, metodolgicas, tericas e polticas (Textos do Colquio em Homenagem a Aquinode Bragana) tem, assim, o formato de actas de um colquio onde o pretexto daevocao de uma personalidade marcante e do seu legado criou espao para umcruzamento de ideias sobre o caminho percorrido e o futuro das Cincias Sociaise Humanas no continente africano. Com comunicaes centradas nas experinciasde pases africanos, com destaque para os falantes da Lngua Portuguesa, ocosmopolitismo que marcou a vida de Bragana levou os autores destacompilao de textos a trazerem para debate problemas de relaes internacionaisque envolvem, para alm de frica, a Europa e a Amrica. As ideias e contribuiesque compem esta obra mostram-nos tambm a importncia do casamentoentre as Cincias Sociais e as Humanidades.

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  • e Silva, Coelho & de Souto: Introduo 3

    O cruzamento de ideias espelhado nesta obra reflecte tambm as rupturas econtinuidades que marcam pelo menos trs geraes de acadmicos africanosdas universidades nacionais aps as independncias. Em alguns casos possveller pontos convergentes, mas tambm contraditrios ou nem sempre concordantes,entre os diversos autores. As suas opinies abrem, entretanto, novos caminhospara a pesquisa. Afinal de contas, desta luta de contrrios e da procura deconvergncias que se constroem ideias e projectos, este o caminho dopensamento cientfico.

    Lus Filipe Pereira comea com uma evocao, falando-nos da Personalidadede Aquino de Bragana e dos caminhos por ele percorridos desde o momento emque sai da ndia, aos 23 anos de idade, at Moambique, um percurso que olevou a outros continentes e ao contacto com polticos, historiadores, e socilogos,e o transformou finalmente num cidado africano com vrias ptrias.

    Boaventura de Sousa Santos abre o debate com o texto da confernciainaugural: Aquino de Bragana: criador de futuros, mestre de heterodoxias, pioneiro dasepistemologias do Sul. Comeando pelos laos e teias que envolveram as actividadesdiplomticas de Aquino de Bragana em vrios quadrantes do mundo socorrendo-se para isso, sobretudo, de documentao depositada no Centro deDocumentao 25 de Abril em Portugal e passando pela convico anti-colonialista que marcou a luta de Bragana, Sousa Santos aborda o contexto daproduo cientfica no Moambique independente e no Portugal do ps-25 deAbril de 1974 numa perspectiva comparada e centrada em questes de carcterepistemolgico.

    Elsio Macamo, com Aquino de Bragana, estudos africanos e interdisciplinaridade,parte do marxismo de Aquino de Bragana para fazer uma reflexo sobre osestudos africanos e sobre a produo do conhecimento cientfico em frica.

    Teresa Cruz e Silva, com Aquino de Bragana e as reflexes e respostas sobre aproduo de conhecimento e as cincias sociais em frica: Moambique, lies aprendidas, liesesquecidas?, parte igualmente do legado de Aquino de Bragana, e da escola geradano Centro de Estudos Africanos, para discutir o papel das universidades e daproduo do conhecimento.

    Maria Paula Meneses, com Uma perspectiva cosmopolita sobre os estudos africanos: alembrana e a marca de Aquino de Bragana, traz uma reflexo que espelha os percursosde uma gerao que viveu os impactos das primeiras mudanas na construode uma universidade do ps-independncia, reflectindo tambm sobre oconhecimento em frica e o poder da Histria.

    Carlos Fernandes, com Actualidade, urgncia e colectivo na emergncia de um novocampo de saber em Moambique: o caso do CEA (1976-1986), tenta resgatar a histria eo papel do CEA, trazendo uma interpretao sobre as origens e desenvolvimentodesta instituio em que, segundo a sua perspectiva, a obra A Questo Rodesiana constituiponto fulcral para a emergncia de um novo campo de pesquisa nas Cincias Sociais.

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica4

    Carlos Cardoso, ao tratar Da possibilidade das cincias sociais em frica, discutequestes epistemolgicas contemporneas das Cincias Sociais e dos EstudosAfricanos, voltando o olhar para as condies de produo cientfica nocontinente. Cardoso mergulha na histria das instituies de ensino superior emfrica e sua evoluo para tratar tambm da necessidade de rupturas na agendadas Cincias Sociais praticadas em frica.

    Aurlio Rocha, com A Universidade e a sua funo como instituio social, traz paradiscusso o papel social do ensino superior no contexto das mudanaseconmicas, polticas e sociais contemporneas. Tomando em linha de conta asituao global do estado do ensino, o trabalho de Rocha enriquecido pela suaavaliao do percurso da Universidade e dos desafios a que ela tem de fazer faceem Moambique. As suas reflexes abrem caminhos para solues alternativas epara o papel que cabe neste processo aos cientistas sociais.

    Cludio Furtado, com A investigao em cincias sociais par le bas: por uma construoautnoma, endgena e horizontal do conhecimento, discute a produo cientfica a partirde Cabo Verde, centrando-se na produo que emerge aps a independncia. Ocontexto histrico das Ilhas levam Furtado a discutir uma produo cientficaque, nas suas palavras, foi e continua sendo essencialmente diasporizada. Asreflexes do autor chamam a ateno para os profundos desafios que a prticacientfica deve enfrentar e, ao mesmo tempo que nos coloca questionamentosapresenta-nos tambm as novas perspectivas analticas que comeam a emergirnos estudos cabo-verdianos.

    Augusto Nascimento oferece-nos uma das raras oportunidades de discutirquestes relativas a S.Tom, com A construo de So Tom e Prncipe: achegas sobre a(eventual) valia do conhecimento histrico. Profundo conhecedor da histria daquelepas, Nascimento traz para discusso algumas hipteses sobre as relaes dasincidncias do saber social e, mais especificamente, do saber histrico, com asvicissitudes da evoluo poltica do arquiplago. Partindo da politizao dosaber histrico, percorre as diferentes fases poltico-econmicas por que o pastem passado e trata do desconhecimento da histria recente e do silenciamentodas memrias, questionando-se se possvel construir um pas ignorando essasmesmas memrias e trazendo para discusso, entre outras propostas, a necessidadede um espao aberto de debate e de produo de saber.

    Jimi Adesina, com Prticas da sociologia africana: lies de endogeneidade e de gnero naacademia, traz-nos uma reflexo sobre as discusses actuais relativas ao estado dasCincias Sociais em frica e o enfoque que os debates realizados nas ltimascinco dcadas tm dado questo da dependncia intelectual do continente.Procurando situar-se fora do j habitual campo de acusaes e pessimismos quecaracterizam muitas destas anlises, Adesina defende como alternativa a necessidadede uma produo cientfica de significncia epistmica, a partir de dentro. Parailustrar tal possibilidade, o autor traz para a sua anlise trabalhos de autoras

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  • e Silva, Coelho & de Souto: Introduo 5

    como Ifi Amadiume, Oyeronke Oyewumi e Nkiru Nzegwu, e seus contributostericos para as teorias de gnero, discutindo a partir dos seus estudos a questoda matrifocalidade na luta pela igualdade de gnero.

    Isabel Maria Casimiro, com Mulher, Pesquisa, Aco e Mudana, semelhana dePaula Meneses, embora num contexto geracional diferente, recorre ao seupercurso intelectual para debater a histria do desenvolvimento dos estudosfeministas em Moambique feitos a partir do Centro de Estudos Africanos,sublinhando, para isso, o papel de Aquino de Bragana no impulso dado necessidade de compreender o papel das mulheres no processo histrico. O seutrabalho refora ainda a importncia da contribuio das teorias feministas paraa anlise do desenvolvimento do continente africano, que a autora particularizacom a anlise das sociedades matrilineares.

    Luca Bussoti, com Percepes e prticas da cidadania no Moambique urbano: serviospblicos, Estado e utentes entre comunicao e alienao, apresenta um estudo micro-sociolgico centrado nos servios de Migrao em Maputo, que constitui umbom exemplo da importncia concreta que a prtica dos cientistas sociais podeter no contexto dos problemas actuais de Moambique.

    As contribuies encerram com uma srie de trs textos virados para a literaturacontempornea africana e moambicana: Ftima Mendona, com uma leituracomparada das narrativas de Ngungi wa Thiongo, Alex la Guma e Joo PauloBorges Coelho, interroga-se se estamos em presena de hibridismos ou estratgiasnarrativas; Nataniel Ngomane, com Do emprstimo bantucizao do Portugus emUngulani Ba Ka Khosa, discute a operacionalizao do conceito de emprstimo ea sua utilidade para a crtica literria; e, encerrando este painel de discusso, AurlioCuna analisa A escrita literria e as linguagens na fico moambicana, reflectindo emtorno da linguagem olhada do ponto de vista da dialctica leitura/escrita literrias.

    A obra fecha com uma sntese da autoria de Cristiano Matsinhe que, alm deelencar as comunicaes apresentadas no colquio, procura tambm transmitiro esprito do debate.

    Melhor do que o brevssimo resumo que aqui apresentamos, a leitura destestextos permitir ao leitor verificar como cada um dos autores respondeu propostada comisso organizadora da conferncia, que se baseou na necessidade de reflectirsobre questes epistemolgicas, metodolgicas, tericas e polticas envolvidas naproduo do conhecimento em cincias sociais e humanas em frica.

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  • 1. Introduction.pmd 29/03/2012, 10:176

  • 2Evocao: a personalidade de

    Aquino de Bragana

    Lus Filipe Pereira

    Esprito inquieto, erudito, afvel, didctico, atraente, mas sempre controverso,Aquino de Bragana foi um intelectual com quem muitos de ns tivemos aoportunidade de privar e aprender.

    Aquino foi um intelectual dotado de grande cultura poltica e filosfica. Culturapoltica no sentido do conhecimento da histria poltica, das teorias, das instituiespolticas, das relaes internas e internacionais, e das formas de fazer poltica.Dotado de uma notvel perspiccia e intuio poltica, tinha uma habilidade muitoprpria de investigar, recolher informao, analis-la e lev-la a um estado dereflexo mais profundo sobre o exerccio do poder, a tica poltica e o bemcolectivo.

    Internacionalista convicto, tinha subjacente uma viso global de uma sociedadejusta e equilibrada onde deveriam estar prioritariamente defendidos os interessesdos colonizados, dos trabalhadores, das classes desfavorecidas.

    A sua cultura exprime-se na obra que deixou, na colaborao regular quemanteve nas revistas Revolution Africaine, Afrique-Asie, LEconomist du Tiers Monde,nos livros escritos com Immanuel Wallenstein (Bragana e Wallerstein 1978), nacomparticipao em textos publicados quando Director do CEA e, ainda, nosmais diversos nveis de interveno poltica.

    Desde a participao na fundao da Confederao das OrganizaesNacionalistas das Colnias Portuguesas (CONCP) at negociao da indepen-dncia com a parte portuguesa, aos acordos de Lusaka e negociao do Acordode Nkomati com os lderes do apartheid da frica do Sul, jogou sempre umpapel determinante. Depois da independncia, no contexto do cerco movido aopas, a sua experincia influiu grandemente na abertura ao mundo ocidental.1

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica8

    Aquino sai da ndia com apenas 23 anos de idade, mas com o carcter jdefinido. Passa por Moambique e Portugal e fixa-se em Frana. Alguns anosmais tarde decide mudar-se para Marrocos, e depois para a Arglia, onde selocalizava a sede da CONCP. Na minha perspectiva, a cultura indiana deespiritualidade, tolerncia, justia e capacidade de negociao, marcaramdefinitivamente a personalidade de Aquino. Segundo Mrio de Andrade, seucompanheiro de luta, ele era um admirador de Ghandi e do pacifismo desde ajuventude, e esteve mesmo nos seus projectos escrever um ensaio sobre a figurae pensamento daquela personalidade.2

    Esprito inquieto e anti-conservador, dotado de grande integridade einteligncia, no se resigna dominao colonial e procura juntar-se a outroscompanheiros com quem pudesse partilhar as suas ideias. Paris, cidade ondefervilhavam os ideais da liberdade e onde se instalavam na altura os movimentosde libertao dos pases colonizados da frica e da sia, foi a sua opo.

    O contacto com grandes actores polticos em Frana como Roger Garaudy,historiadores e socilogos como Pierre George, Henry Lefebvre, CastroSoromenho, pensadores e filsofos como Frantz Fanon e Jean-Paul Sartre, e asleituras atentas de Hegel, Marx, Russel, Mao e muitos outros, e a sua vivncia eactividade profissional de jornalista, enriquecem o pensamento de Aquino e fazemdele um pensador ecltico.

    A participao activa nas lutas de libertao desenvolveu a sua anlise daprtica poltica e consolidou a sua personalidade. Aquino procurava compreender,em cada momento, as estratgias ditadas pelo colonialismo e os interesses pordetrs dos complots organizados contra as independncias dos povos africanos.Sempre que podia, transmitia a informao que tinha e alimentava o debateterico junto dos dirigentes das ex-colnias portuguesas, de quem se tornouamigo e, algumas vezes, conselheiro indispensvel.3

    Pelas suas convices, Aquino no se deixou nunca escravizar pela glria oupela fortuna, vivia a vida com desprendimento, afectividade, paixo, simplicidadee modstia. Detestava a solido, e talvez, por isso, cultivava a amizade. Gostavada discusso acalorada e da controvrsia, que alimentava com um certo humor.Tinha sede de aprendizagem e actualizao, e hbitos arreigados de leitura.

    Relativamente aquisio de novos conhecimentos, Aquino ensinava que erapreciso pr em dvida, duvidar primeiro, duvidar sempre. A sua atitude no eraa do cepticismo absoluto que pe em causa todo o conhecimento e contra oqual nenhum argumento lgico tem valor. Tratava-se fundamentalmente de umaposio cartesiana de pr em dvida para tornar claro e evidente o pensamentopor via da crtica e da reflexo. O importante era no aceitar a certeza absoluta,nem as aparncias da verdade, sem um exame crtico e rigoroso que permitisseentender e acreditar. Isto traduzia, de certa maneira, a necessidade da superao

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  • Pereira: Evocao: a personalidade de Aquino de Bragana 9

    do saber espontneo ou do saber vulgar, passando a um outro plano doconhecimento, o conhecimento reflexivo, que exige paciente aprendizagem,explicao racional, saber obtido com propsito firme e claramente definidosobre o que se pretende atingir, saber metdico, mesmo que no organizado.Nesta perspectiva, ele destacava a importncia de problematizar o saber e, aindacom o seu cariz filosfico, a necessidade de compreender o mundo em que viviapara melhor actuar sobre ele e o tornar mais justo e humano.

    No debate de ideias, rejeitava sempre o pragmatismo de tudo fazer sempensar, sem analisar criticamente e reflectir de novo sobre a aco realizada.

    No que se refere ao esprito investigativo, Aquino procurava sempre reunir omaior nmero de dados, cruzar informao e explicar a realidade social e polticado pas. Importa referir que ele no conseguia ser um homem de uma s ptria.Como disse uma vez Manuel Alegre, era um homem de mil ptrias.

    Utilizava fontes escritas, mas valorizava sobretudo as fontes orais. Num tomprovocador, dizia-me algumas vezes: Essa Histria que vocs fazem com recursoao arquivo e s fontes escritas no chega para aprofundar e atingir a verdadehistrica.

    Considerava que as conversas e opinies transmitidas pelos Presidentes edecisores polticos tinham mais importncia. Essas sim, eram indispensveis paraentender melhor os processos histricos, as razes das mudanas, que alteravammuitas vezes o rumo dos acontecimentos e, por isso, o rumo da Histria. Contava como ele dizia muitas vezes, off the record como pensavam de maneira diferentee tinham opes contraditrias os Presidentes na frica Austral, que todaviaapareciam publicamente como tendo opinies polticas consensuais.Uma das suas grandes qualidades era a capacidade de comunicar na relaopessoal. Sabia fazer os corredores nas reunies e conferncias internacionais.Nos contactos polticos, jogava a seu favor a sua credibilidade, simpatia, aindisciplina e a distncia do aparelho partidrio, a empatia para encontrar soluesque respeitassem os interesses de todas as partes. O Presidente Samora chamava-lhe afectivamente o submarino, porque descia fundo na sua anlise.Aquino teve um papel determinante como facilitador nas negociaes comPortugal em 1974. Sendo na altura um mensageiro do presidente Samora, acaboupor tornar-se tambm um homem de confiana do alto-comissrio Vitor Crespo,que o convidou a instalar-se no Palcio do Governo.4

    Em cada contacto, a sua abertura, a sua seduo o seu fascnio permitiam-lheentrar no mundo do outro, criar uma verdadeira empatia, fazer dele um amigo.Era o mediador que a todos interessava e em quem todos podiam confiar.Dizia: Os conflitos acabam sempre pela negociao. Esta viso custou-lhealguns dissabores, sobretudo com o caso da UNITA, em Angola.

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica10

    Era preciso, segundo ele, identificar quem tinha capacidade de tomar decises.Numa viso dialctica, dizia, com humor, que no se podia rotular as pessoas dereaccionrio ou revolucionrio porque todos tinham dentro de si os seuscontrrios. Ou seja, um pouco de reaccionrio e um pouco de revolucionrio.

    Por gentileza da Slvia de Bragana, obtive alguns manuscritos originais quegostava de mostrar para vermos o tipo de notas que ele recolhia e comentava.Infelizmente, o seu arquivo principal, um conjunto de pastas organizadas,desapareceu logo aps a sua morte.

    Notas1. Interveno de Graa Machel na homenagem a Aquino de Bragana em 15 de Junho de

    2006, no CEA.

    2. Depoimento de Mrio de Andrade in Bragana 2009:94.

    3. Depoimento de Marcelino dos Santos in Bragana 2009:112.

    4. Depoimento de Vtor Crespo in Bragana 2009:283.

    RefernciasBragana, Aquino de; Wallerstein, Immanuel, 1978, Quem o Inimigo?, Lisboa: Iniciativas

    Editoriais (3 volumes).

    Bragana, Slvia, 2009, Aquino de Bragana, batalhas ganhas, sonhos a continuar, Maputo: Ndjira.

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  • Pereira: Evocao: a personalidade de Aquino de Bragana 11

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica12

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  • 3Aquino de Bragana: criador de futuros,

    mestre de heterodoxias, pioneiro dasepistemologias do Sul1

    Boaventura de Sousa Santos

    O fazedor de laos e teiasComeo com algumas citaes sobre laos e teias.2 Cludio Torres um conhecidoarquelogo portugus e participou activamente na oposio ditadura salazaristaque durante quarenta e oito anos dominou Portugal. No incio dos anos sessentado sculo passado fugiu clandestinamente do pas, depois de passar sete mesesna PIDE.3 Ao chegar a Rabat, em Marrocos, sem grandes contactos, pretende oendereo do conhecido oposicionista portugus Manuel Sertrio.4 Como obt-lo? Em 19 de Novembro de 1961 escreve a Manuel Sertrio:

    Sou filho do Dr. Flausino Torres, colaborador do Seara Nova. Fugi de Portugaljunto com cinco amigos e minha mulher num pequeno barco com destino aMarrocos, onde agora temos autorizao de permanncia. O motivo imediato danossa fuga foi a recusa em fazer parte das foras coloniais; eu e outro amigo seramoschamados em 2 de Julho, os outros rapazes que vieram poderiam ser tambmincorporados pouco depois, e assim samos em 24 de Junho do Porto e chegamosa Tnger em 10 de Julho. Aqui em Marrocos, dois separaram-se de ns pordivergncias ideolgicas; foi um casal que agora h dias entrou na aventura doGalvo5, e que, como deve j saber, foi expulso daqui. Ns os cinco que continuamosjuntos estivemos j todos nas prises da Pide, uns 3 meses, outros um ano e eu saagora em Janeiro ltimo depois de 7 meses. O Aquino de Bragana deu-nos a suadireco e viemos imediatamente ter consigo, principalmente para dizermos quetambm queremos trabalhar, fazer qualquer coisa que sirva nossa finalidade comum.Desde o princpio que tentamos desenvolver a possibilidade de criar aqui um grupopoltico activo. Neste momento, depois de resolvido mais ou menos o nosso

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica14

    primeiro problema de sobrevivncia, temos essa possibilidade. Assim, o nossoprimeiro passo a comunicao com todos os ncleos e organizaes honestas deportugueses no exlio, para trocar pontos de vista e principalmente pedir ajuda dasua experincia de luta.Ns temos absoluta confiana em si, Manuel Sertrio, e queramos que nos ajudasseno s nestes primeiros contactos com os portugueses a no Brasil ou noutrospases mas tambm nos enviasse o maior nmero possvel de propaganda para serdistribuda aqui entre as centenas muito grandes de emigrados.Alm disto, gostaramos muito de manter uma certa assiduidade de correspondnciaconsigo com vista a uma ajuda extraordinria de esclarecimento e informao quenos poder prestar.Queria que recebesse um grande abrao amigo de todos ns que esperamosansiosamente a sua resposta.Cludio TorresPS: Queria acrescentar que tambm escrevemos para a Shakuntala Miranda emLondres.A nossa direco aqui: Cludio Torres, 15 avenue de la Victoire, ap. n 9, Rabat.Maroc.6

    Como vemos, Aquino de Bragana, na altura em Marrocos, representante domovimento de libertao de Goa, foi quem permitiu o contacto entre doisoposicionistas portugueses, Cludio Torres e Manuel Sertrio.

    Em 23 de Julho de 1963, Manuel Sertrio escreve, j de So Paulo, a Aquinode Bragana sobre Miguel Urbano Rodrigues (irmo do conhecido escritorportugus Urbano Tavares Rodrigues), um conhecido oposicionista, membrodo partido comunista. Diz assim:

    Meu caro Aquino, no esqueci as nossas to teis conversas em Bombaim e Londres.Aqui no Brasil, tenho acompanhado, com os outros companheiros, a evoluo doproblema colonial e as manifestaes visveis das organizaes nacionalistas,especialmente do secretariado da CONCP,7 que reputo da mais incontestvelrepresentatividade. Sei que o problema portugus tambm objecto do vossoexame atento e disso temos tido ns algumas provas. Espero que, pelas ltimasmanifestaes populares em Portugal, se v tornando evidente que apenas Salazar eos seus funcionrios e oficiais fascistas se opem hoje ao livre exerccio do direito autodeterminao dos povos das colnias portuguesas. Especialmente na emigraoso rarssimos aqueles que, como o capito Galvo, pretendem contrariar o exercciodaquele direito pelo qual, afinal, tambm ns, portugueses, de certo modo lutamos.Atravs dos necessrios contactos, ultimamente estabelecidos, entre dirigentesportugueses emigrados e do interior, parece de toda a utilidade a deslocao de umcerto nmero de elementos para um pais africano, com o General Humberto Delgado8 frente. De fixao dos dirigentes representativos e credenciados num pas em queas nossas organizaes e as vossas pudessem facilmente contactar e relativamenteprximo de Portugal muitas coisas se poderiam esperar. Ora, o General Humberto

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  • Santos: Aquino de Bragana: criador de futuros, mestre de heterodoxias 15

    Delgado estaria disposto a deslocar-se para Marrocos e pelo menos, eu logo deincio, o acompanharia. Esta seria, assim, digamos, a viagem inaugural...

    Sucede que o prprio General me relatou a correspondncia j trocada com Rabatnesse sentido, mas que caiu em ponto morto. E com a anuncia do General queresolvi dirigir-lhe, a si, esta carta pedindo que nos informe das possibilidades reaise actuais de uma tal deslocao. Claro que, na sua resposta, agradecerei toda a espciede notcias que possa transmitir. Incluso, remeto-lhe um documento. Com as minhassaudaes para o Marcelino dos Santos, envia-lhe um cordial abrao o seu amigo.9

    Nessa poca, Marrocos era, pela sua proximidade com Portugal, uma base deoperaes privilegiada para os oposicionistas ditadura salazarista.10 Mas no erafcil cri-la e, perante as dificuldades, a Aquino de Bragana que os democratasportugueses recorrem e os detalhes que do dos seus planos polticos revelam quetinham nele uma grande confiana e o consideravam um companheiro de luta.11

    Alguns anos mais tarde, em Novembro de 1967, Manuel Sertrio, j emArgel, escreve mo o seguinte bilhetinho dirigido a Aquino de Bragana:

    Aqui lhe envio um exemplar do currculo do Miguel Rodrigues, na sequncia danossa conversa de h dias. Ele aceitar um vencimento que permita viver a umafamlia de cinco pessoas (a mulher dele muito doente e no pode trabalhar). Quervir jantar um dia destes a minha casa para conversarmos vontade. Contamosconsigo para a soluo do problema do Miguel Rodrigues. Saudaes amigas doManuel Sertrio.12

    Quase dez anos mais tarde e num contexto poltico totalmente diferente, oslaos e as teias tecidas na dcada anterior continuam fortes. Tais laos e teiasenvolvem solidariedades pessoais e polticas, relaes de amizade e decompromisso poltico sem que se saiba bem onde terminam umas e comeamoutras. que Aquino de Bragana simultaneamente um poltico integral e umhumanista incondicional. Em Maio de 1976, Aquino de Bragana escreve umbilhete a Piteira Santos,13 da Frente Patritica de Libertao, que foi seu amigoem Marrocos, e depois na Arglia:

    Meu velho Piteira, aproveito o excelente portador, meu amigo Mrio Trindade, parate mandar este lacnico bilhete. O Mrio Trindade bom conhecedor desta complexae apaixonante experincia. Julgo que uma conversa informal com ele ser muito tilpara ti. O Mrio Trindade arquitecto de profisso, de nacionalidade moambicanae partidrio, como eu, duma rpida normalizao das relaes luso-moambicanas.Estou bem e feliz. Um abrao, Aquino. O Mrio Trindade te dar nossas notcias.Saudaes fraternas. Aquino.14

    Pouco tempo depois, volta a escrever a Piteira Santos a convid-lo para o IIICongresso da FRELIMO (1977):

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica16

    Meu Caro Piteira

    Peo informar-me pela volta do correio se aceitas um convite pessoal como Director do Jornal DR15 para cobrir o III Congresso daFRELIMO que ter lugar na 1 semana de Fevereiro.

    O professor Pereira Sousa esteve c recentemente e teve uma longa e tilconversa com o nosso Vice-Presidente.16 No se esqueceu ele de dizerquo estimulante tem sido para a esquerda portuguesa as tuas lcidaseditoriais no DL (O Marcelino disse-lhes que tu eras um amigo develha data).

    Deves ter lido a mensagem muito calorosa enviada pelo nosso Presidenteao Chefe do Estado Portugus condenando os ltimos atentados bombistasem Lisboa17 um bom sinal de degelo as relaes Portugal Moambique podem vir a normalizar-se muito rapidamente

    No temos nenhum contencioso com Portugal[...] dizia-me Samoraquando lhe fiz o relatrio da minha viagem a Lisboa.

    Para o III Congresso da FRELIMO foram convidados o PS do MrioSoares e o PC do Cunhal. Espero que o Soares aceitar o convite, poispodero constatar sur place que Moambique de Samora Machel no uma Bulgria sovitisada, quero dizer um estado cliente deMoscovo

    Mariana e os filhos apreciavam o bacalhau e o couscous. Merci pourEstela!18

    Saudaes fraternais,Aquino de Bragana19

    Apesar de totalmente dedicado construo do novo Moambique, Aquino deBragana segue de perto a situao poltica portuguesa e, tal como no passado,procura criar pontes entre portugueses e moambicanos, e entre iderios polticosdiferentes. A sua vocao para limar arestas, procurar consensos, evitardogmatismos, ampliar alianas vem de muito longe. um gnio nico capaz dehumanizar a poltica no processo em que politiza a humanidade. Referindo-se avivncias de muitos anos antes, Jos Cardoso Pires, outro conhecido escritorportugus, tambm ele exilado em Paris no final dos anos 50, lembra, assim, osseus tempos de exlio em entrevista revista Almanaque (1991):

    - Voc teve de sair do Pas um pouco abruptamente...- Sim, houve um perodo em que eu tive de me exilar do Pas no comeo

    duma vaga de prises de intelectuais. Retirei-me do Almanaque e detudo o mais numa fuga mais ou menos discreta... Londres primeiro, Parisdepois e, finalmente, o Brasil. Em Paris fui encontrar Castro Soromenho

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  • Santos: Aquino de Bragana: criador de futuros, mestre de heterodoxias 17

    que j l estava refugiado havia um ms. Era um homem muito frgilfisicamente mas duma coragem admirvel, o Soromenho. Vivamos nomesmo hotel barato da Rue des coles, acho que conto isso em E AgoraJos?, e tivemos dias difceis, franceses difceis, ligaes difceis, guerra daArglia, Salan, Jeune Nation, toda essa merda. Os nossos companheirosde ento eram o Aquino de Bragana, o Mrio Pinto de Andrade e oMarcelino dos Santos que hoje vice-presidente da Repblica deMoambique, qualquer deles, mergulhado at ao pescoo na independnciaafricana.20 Alis como o prprio Soromenho, que veio a morrer na maiormisria em So Paulo, amparado por Casais Monteiro e Jorge de Sena.

    Para finalizar, um outro trao da personalidade e da trajectria poltica de Aquinode Bragana pode ler-se num livro muito polmico sobre as misrias do exlio,de Patrcia McGowan Pinheiro. A propsito dos oposicionistas portugueses emRabat e em Argel, ela refere esta relao com o Aquino logo no incio da dcadade 1960:

    Aquino apreciava o facto de Piteira Santos ser um comunista dissidente [...]. Tivemosum contacto dirio com o Aquino. Arranjmos apartamento no mesmo prdio,onde igualmente habitava o Amlcar Cabral e a famlia, sendo frequentes os seresat altas horas. Aquino era um companheiro sedutor, inteligente e culto, maneiraparisiense. Tinha uma enorme admirao por Amlcar Cabral e Mrio PintoAndrade [] Para ele a chave da independncia passava por um entendimentocom os portugueses e no parecia ter muita confiana no xito de qualquer lutaarmada. Eu sou capaz de negociar com o prprio Salazar, dizia muitas vezes, algovaidosamente (Pinheiro 1998: 35).

    Anti-colonialismo e anti-fascismoAquino de Bragana foi o intelectual orgnico das ligaes entre os diferentesmovimentos de libertao nacionalistas e entre estes e a oposio democrticaao colonial-fascismo salazarista. Construiu o seu papel com base numa anliseterica no muito explicitamente detalhada, mas muito intensamente vivida dasespecificidades do colonialismo portugus e da relao nica no contexto docolonialismo europeu entre o nacionalismo, o anti-colonialismo e o anti-fascismo. Logo em 1963, pergunta-se em texto publicado na Rvolution Africaine:dentro do contexto portugus como pr a questo do anti-fascismo e do anti-colonialismo?21 Era nessa altura uma questo muito complexa para a qual nohavia respostas inequvocas. conhecida a ambiguidade de Marx sobre ocolonialismo, e a internacional comunista (a Terceira Internacional) tinha dadoprioridade durante vrias dcadas luta contra o fascismo. A luta contra ocolonialismo seria para depois.22 Esta ambiguidade a respeito da luta anti-colonial

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  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica18

    reflectia-se nas foras de oposio ao fascismo portugus e Aquino estava muitoatento a elas. Escreve em Rvolution Africaine, a 15 de Junho de 1963:

    A Frente Patritica de Libertao Nacional constituda por elementos cujo anti-colonialismo est longe de ser consequente. Por outro lado uma fraco importanteda classe operria vive da indstria transformadora23 cujas matrias-primas vm dascolnias (Bragana 1963:7).24

    E a seguir cita o Movimento de Aco Revolucionria (MAR), onde militavamManuel Sertrio e Antnio Lopes Cardoso, como sendo o movimento quemais consequentemente articulava o anti-fascismo com o anti-colonialismo:25

    Estas questes mostram a importncia de um programa mnimo apresentando asopes possveis para um Portugal sem Salazar. O texto que apresentamos doMovimento de Aco Revolucionria de Libertao Nacional esfora-se por clarificaralgumas hipteses de trabalho que merecem reflexo (Bragana 1963:7).

    Esta articulao entre a luta anti-fascista e a luta nacionalista, em que Aquinotanto investia, tinha, obviamente, duas faces. Implicava, por um lado, que Aquinoobservasse de perto as opes dos anti-fascistas portugueses e, por outro, queestes comentassem igualmente de perto as suas anlises dos movimentos delibertao. Em 4 de Maro de 1973, em carta expedida de Argel e dirigida aGermano Filipe, Manuel Sertrio comenta o longo artigo que Aquino de Braganaacabava de publicar em Afrique Asie26 sobre o assassinato de Amlcar Cabral dequem era muito amigo:27

    Depois de publicado o artigo, tive aqui dois encontros com o Aquino, a quem dissecom franqueza ter ficado com a impresso de numerosas lacunas e at de algumascontradies se encontrarem no artigo. Isso espevitou-o a ter-me feito outrasrevelaes. As desinteligncias eram muito grandes no PAIGC,28 muitoscomandantes do interior estavam contra a direco, a priso do partido em Conakryestava cheia, o Amlcar estava ao corrente do que se tramava e previra mesmo o seuassassnio mas, diz o Aquino, considerava que no podia prender toda a gente...A reportagem publicada na Africasia, para o leitor atento, j d muita matria paracongeminaes: repare que o objectivo inicial a priso e no a morte de Amlcar,que os chefes dos conjurados se apresentam ao Skou Tour,29 que este tem umaresposta evasiva e os deixa partir livremente e s toma uma atitude depois de ouviros embaixadores de Cuba e da Arglia (pases em que Amlcar era pessoalmentemuito bem cotado). Repare ainda que o Aristides foi transportado numa barcaacheia de armas: no se dirigiria ela para uma zona libertada e no para Bissau? Poroutro lado, os conjurados poderiam ser to estpidos que tivessem acreditadonuma promessa de independncia para a Guin sem Cabo Verde feita pelosportugueses (que portugueses?) E seriam todos traidores, depois de muitos delesterem passado anos na guerrilha? E, prisioneiros polticos que so do Skou,poderiam contar com a cumplicidade deste?! Enfim, pergunto eu: no se teriatratado de uma rebelio contra uma directoria demasiado autoritria, em que o culto

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  • Santos: Aquino de Bragana: criador de futuros, mestre de heterodoxias 19

    do chefe era perfeitamente claro, e ao mesmo tempo demasiado ideolgica (pr-sovitica)?30

    Na entrevista que concedeu a Augusto de Carvalho do jornal Expresso, a 10 de Maiode 1975, podemos ver as melhores formulaes de Aquino de Bragana a respeitoda vinculao recproca entre anti-fascismo e anti-colonialismo:31

    Era preciso pr uma pedra sobre o colonialismo e comear uma nova vida, novasrelaes entre os dois pases sem laos neo-coloniais. Assenta-se em que o MFA32 ea Frelimo eram os autnticos e legtimos representantes dos dois povos [] queSpnola tinha um projecto e o MFA tinha outro, alis eram, segundo nspensvamos, as nicas entidades que tinham projectos ps coloniais embora todoo mundo fosse contra a colonizao. O projecto de Spnola era a reconstituio deuma comunidade luso-africana e o MFA pretendia liquidar o Imprio, reconhecendocomo seus legtimos representantes desses povos os homens que tinham afirmadoe formado a sua personalidade poltica na luta contra o ocupante (1975:19-20).

    E logo depois em Uppsala afirma de maneira lapidar: No h bons nem mauscolonialistas, o inimigo a abater o sistema colonial-fascista e no o povoportugus, vtima tambm ele da opresso fascista (Bragana 1981: 43-50).

    As especificidades do colonialismo portugus, sobretudo do seu perodofinal, no deixariam de se reflectir nos processos polticos que determinaram ofim do colonialismo e nos que imediatamente se lhe seguiram. Aquino viu istomelhor que ningum. No incio do processo de transio para a independncia,Aquino chama a ateno para a novidade poltica que est a ocorrer e alerta parao perigo de ela ser desvalorizada no caso de ser analisada luz da tradioterica e doutrinal que ento dominava o pensamento crtico e a prtica deemancipao. Diz ele: Em termos de descolonizao o que se passa emMoambique totalmente novo. No est nos livros. No vo buscar os livros.No vo buscar as receitas. Isto novo (Bragana 1974:17).

    Quando algum lhe pergunta como que um movimento revolucionrio tode esquerda aceitava estar a participar num governo de transio, a convivercom o antigo colonizador nos mesmos gabinetes33, ele responde:

    No. O que se passa novo. E deve-se a dois grandes protagonistas: do nosso ladoo Samora,34 do lado dos portugueses o Melo Antunes (Bragana 1974: 18).35

    A questo colonial ocuparia sempre o pensamento de Aquino, tendo-lhe dedicadouma ateno especial ao teorizar a transio para a independncia em Moambique.Caracterizando a opo da FRELIMO em evitar qualquer tipo de ambiguidadessobre a questo da transferncia de poderes, como o trao marcante desteprocesso, onde a descolonizao era uma necessria condio prvia democratizao, e no o contrrio (1986: 8), Aquino marcava esta opo como

    3. Santos.pmd 18/11/2011, 12:4619

  • Como fazer cincias sociais e humanas em frica20

    a condio base para uma independncia sem descolonizao e sem a imposiode um regime neo-colonial (1986: 10).

    Para Aquino, como para muitos intelectuais da sua gerao,

    [] a opo nacionalista no foi, verdadeiramente, uma questo de escolha; foi,antes, algo de estruturalmente programado, um gesto de ruptura dialctica e oposios realidades, interesses e valores do Estado-nao colonial, de cujos intelectuais,provindos da escola colonial, se esperava precisamente que contribussem para a suaprpria eternizao no poder. (Ki-Zerbo 2005: 81).

    Combinando uma perspectiva nacionalista comprometida com a libertao docontinente com os princpios ticos da filosofia pan-africanista, Aquino, tal comoTour, Nkrumah, Nyerere e, antes deles, Du Bois e Pademore, envolveu-se nacausa da libertao africana. Como refere, Amina Mama (2010: 603-637), nosurpreende que muitos dirigentes polticos nacionalistas tenham provindo dacomunidade intelectual radical.

    Esta tradio intelectual radical no se compaginava com as noes deimparcialidade ou neutralidade cientfica, nem com a organizao disciplinar doconhecimento ento